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Cadernos de Psicopedagogia
versão impressa ISSN 1676-1049
Cad. psicopedag. v.6 n.11 São Paulo 2007
ARTIGOS
Contribuições da neuropsicologia cognitiva e da avaliação neuropsicológica à compreensão do funcionamento cognitivo humano
Contributions of cognitive neuropsychology and neuropsychological assessment to human cognitive processing comprehension
Alessandra Gotuzo Seabra Capovilla *
Universidade São Francisco
RESUMO
A neuropsicologia cognitiva focaliza o processamento da informação, ou seja, as diferentes operações mentais que são necessárias para a execução de determinadas tarefas. Pressupõe que o estudo de pacientes com lesões cerebrais e seus padrões de comportamento pode contribuir para a compreensão de como a mente funciona, o que, por sua vez, pode retornar aos próprios pacientes permitindo um melhor entendimento de seus problemas e auxiliando no delineamento de intervenções mais adequadas. A avaliação psicológica baseada na neuropsicologia cognitiva objetiva explanar os processos subjacentes às atividades mentais superiores do ser humano e correlacionando-os com o funcionamento neurológico. No Brasil, diferentes testes foram desenvolvidos para este fim, abordando algumas das áreas avaliadas pela neuropsicologia, especificamente atenção, processamento visoespacial, linguagem oral, linguagem escrita, funções executivas e habilidades aritméticas. Vários desses testes são informatizados, o que facilita o registro de parâmetros temporais como tempo de reação e duração da resposta. Alguns, inclusive, podem ser aplicados de modo remoto via Internet, possibilitando estudar diferentes amostras espalhadas por amplos territórios. Estão sendo conduzidos estudos para verificar a precisão e buscar evidências de validade de tais testes. Os participantes são tanto crianças quanto adultos, com e sem distúrbios neuropsiquiátricos, incluindo dislexia, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, e transtornos de ansiedade. Tais instrumentos têm contribuído para expandir a avaliação neuropsicológica no Brasil, auxiliando na compreensão dos processos cognitivos e seus correlatos neurológicos, no aprimoramento de procedimentos de avaliação, e na promoção da reabilitação de indivíduos com disfunções ou lesões neurológicas, de forma responsável e eficiente.
Palavras- chave: Avaliação neuropsicológica, Processamento cognitivo, Neuropsicologia cognitiva.
ABSTRACT
Cognitive neuropsychology focuses on information processing, different mental operations that are necessary to execute tasks. It assumes that study of brain-injured patients and their performance patterns can contribute to comprehend how the mind works. Such knowledge helps practitioners to comprehend their patients limitations and to delineate more effective remediation procedures. Psychological assessment based on cognitive neuropsychology aims to explain the processes underlying human complex mental activities, and to correlate such processes to neurological functioning. In Brazil, different neuropsychology tests have been developed to assess attention, visuo-spatial processing, oral language, written language, executive functions and arithmetic abilities. Many of these tests are computerized, recording temporal parameters, such as reaction time and response duration. Some of them can be applied virtually using the Internet, which allows studying large samples of participants scattered over vast territories. In the present, precision and validity studies are being conducted with a number of batteries applied to children and adults, with and without neuropsychiatric disorders, such as dyslexia, hyperactivity/attention deficit disorder, and anxiety disorders. Such tests have contributed to expand neuropsychological assessment in Brazil, aiding the comprehension of cognitive processes and their neurological bases, the improvement of evaluating processes, and the rehabilitation of patients with neurological disorders, in a more effective way.
Keywords: Neuropsychological assessment, Cognitive processing, Cognitive neuropsychology.
Neuropsicologia cognitiva
A neuropsicologia cognitiva estuda fundamentalmente o processamento da informação, isto é, das diferentes operações mentais que são necessárias para a execução de determinadas tarefas (Gazzaniga, Ivry & Mangun, 2002). Desta forma, enquanto a neuropsicologia clássica concentrava-se na busca pelos correlatos neuroanatômicos e neurofuncionais dos processos mentais, ou seja, pelas bases neurológicas das atividades mentais superiores (Vendrell, 1998), a neuropsicologia cognitiva alterou a ênfase para o estudo das operações mentais. Estas envolvem tomar uma representação como um input, executar algum tipo de processamento sobre esse input, e então produzir uma nova representação, o output. Assim, segundo Gazzaniga, Ivry e Mangun (2002), operações mentais são “processos que geram, elaboram ou manipulam representações mentais” (p. 99).
De acordo com Ellis e Young (1988), a neuropsicologia cognitiva pressupõe que o estudo de pacientes com lesões cerebrais e seus padrões de comportamento pode contribuir para a compreensão de como a mente funciona, o que, por sua vez, pode retornar aos próprios pacientes permitindo um melhor entendimento de seus problemas e auxiliando no delineamento de intervenções mais adequadas. Há dois objetivos principais na neuropsicologia cognitiva. O primeiro é a explicação de “modelos do desempenho cognitivo, intacto e alterado, de pacientes com lesão cerebral em termos de prejuízos de um ou mais dos componentes de uma teoria ou modelo de funcionamento cognitivo normal” (Ellis & Young, 1988, p. 4). O segundo é “derivar conclusões sobre os processos cognitivos normais, intactos, a partir de modelos de capacidades deficitárias e intactas vistos em pacientes com lesão cerebral” (Ellis & Young, 1988, p. 4).
Assim, a teoria neuropsicológica deve apresentar explanações sobre o processamento subjacente às atividades mentais superiores do ser humano (Bear, Connors & Paradiso, 2002), explanações estas que permitam a verificação neuroanatômica de tal processamento (Kristensen, Almeida & Gomes, 2001). Deste modo, a neuropsicologia cognitiva visa compreender “como um indivíduo processa a informação, em termos funcionais, sendo de menor interesse, para essa abordagem, o mapeamento das relações cérebro-comportamento e a descrição de seqüelas típicas de lesão cerebral” (Fernandes, 2003, p. 268-269). Duas implicações fundamentais derivam deste modelo, o direcionamento de modelos de reabilitação de pacientes com lesões ou disfunções cerebrais, e a testagem de modelos do funcionamento cognitivo normal (Fernandes, 2003).
Freqüentemente a neuropsicologia cognitiva faz uso de modelos computacionais para a explicação da arquitetura funcional do sistema cognitivo (Ralph, 2004), por meio de fluxogramas detalhados com caixas-e-linhas, que descrevem as unidades de processamento da informação e seu percurso. Ao descrever os padrões de funcionamento de pacientes individuais é possível progredir rumo à compreensão exata das caixas e das linhas, bem como reestruturar o próprio diagrama, por exemplo, inserindo mais caixas ou unidades de processamento, se necessário, especialmente a partir das observações de dissociações. A partir dos diagramas, o modelo teórico pode ser testado a partir dos dados já existentes e novas predições podem ser feitas, numa interação bidirecional entre dados observados e teoria subjacente. Desta forma, tais modelos computacionais permitem a teorização tanto sobre a arquitetura quanto sobre o funcionamento dos sistemas cognitivos (Ralph, 2004). É importante ressaltar que as caixas e linhas dos diagramas computacionais não pressupõem, necessariamente, dissociações modulares entre eles.
A busca pela compreensão sobre a organização dos sistemas cognitivos e dos correlatos neurológicos de diversas operações mentais tem sido apontada como o objetivo de diferentes estudos da neuropsicologia e da neurociência cognitiva. Por exemplo, Gill, O’Boyle, e Hathaway (1998), em estudos sobre processamento visoespacial em rotação mental, referiram-se à necessidade de subdividir a tarefa de rotação mental, incluindo os processos mentais componentes (tais como codificação do estímulo, geração de imagens, rotação e comparação mental, e tomada de decisão sobre a comparação), de forma a relacionar cada componente a diferentes padrões de ativação encefálica. Corbetta, Miezin, Dobmeyer, Shulman e Petersen (2003), num estudo sobre atenção, enfatizaram a necessidade de identificar os sistemas neurais envolvidos na discriminação de forma, cor e velocidade de estímulos visuais sob condições de atenção seletiva e dividida. Estudando pacientes com demência de Alzheimer, Lewis, Dove, Robbins, Barker e Owen (2003) buscaram padrões de alterações cognitivas relacionadas às funções executivas produzidas por lesões frontais, incluindo dificuldades de planejamento e memória de trabalho. Davis e Johnsrude (2003), em uma pesquisa sobre compreensão da linguagem, referiram-se ao estudo das “séries complexas de estágios de processamento envolvidos na tradução dos sons da fala em significado” (p. 3423). Há, ainda, trabalhos sobre a neurociência da emoção, como por exemplo a revisão de Davidson, Jackson e Kalin (2000) e o estudo de Davidson e Sutton (1995), que se referem à importância do “conhecimento sobre os substratos neurais da emoção”, enfatizando a necessidade de destrinchar “os processos emocionais em operações mentais mais elementares, tais como a percepção da informação emocional e a produção de atividade autonômica e de comportamento expressivo” (p. 217).
Em relação aos temas abordados pela neuropsicologia cognitiva, Harley (2004) descreveu a seguinte freqüência, a partir de um levantamento dos artigos publicados entre 1998 e 2001 no periódico Cognitive Neuropsychology: leitura (com 25 artigos), faces (23), memória (21), semântica (16), ação (14), reconhecimento de objetos e percepção (12), produção de fala (11), atenção (7), cognição espacial (5), escrita e ortografia (5), matemática (4), compreensão de sentenças (2), fundamentação teórica (1), arquitetura léxica (1) e música (1). Observa-se, portanto, que a neuropsicologia cognitiva tem abrangido diferentes áreas de estudo, sempre buscando compreender operações mentais envolvidas em determinadas tarefas e, em maior ou menor grau, sua relação com o funcionamento neurológico.
Aliás, este tem sido um ponto de divergência na neuropsicologia cognitiva. Dentre os seus fundadores, a maioria, como Morton (1984) e Mehler, Morton e Jusczyk (1984), considerava como não sendo de interesse a localização das funções psicológicas no encéfalo (Harley, 2004). Apesar de algumas posições menos radicais, como a de Shallice (1990), segundo o qual as considerações anatômicas não deveriam ser descartadas como irrelevantes e alguns estudos de grupo poderiam fornecer dados úteis, a abordagem centrada no estudo de caso único e na diminuição da ênfase sobre a localização cerebral prevaleceu na neuropsicologia cognitiva entre as décadas de 1970 e 1990 (Harley, 2004). A essência desta postura é a de que módulos cognitivos não correspondem a estruturas neurológicas distintas e de que, mesmo que haja alguma correspondência, para compreendê-la é necessário ter previamente uma teoria completa sobre a cognição de forma a guiar a interpretação dos dados neurológicos.
Corroborando esta posição, Coltheart (2004) propõe uma distinção entre neuropsicologia cognitiva e neurociência cognitiva. Segundo ele, os neuropsicólogos cognitivos não estudam o encéfalo, mas sim o processamento cognitivo anormal. Quem deve buscar a relação entre processos neurológicos e atividades cognitivas é a neurociência cognitiva.
De fato, segundo Posner e DiGirolamo (2000), freqüentemente não é clara, ao psicólogo, a importância da localização de funções, visto que apenas saber qual parte do encéfalo está envolvida numa dada função pode informar pouco sobre quais operações cognitivas estão ocorrendo. Porém, a importância da localização fica evidente quando compreendida de um ponto de vista mais abrangente, que inclui três suposições principais: as funções encefálicas complexas podem ser divididas em processos mais simples e gerais; esses componentes podem ser localizados anatomicamente e estudados de forma relativamente isolada; e os processos encefálicos mais simples podem ser diretamente relacionados aos processos comportamentais mais simples (Miller, 1996; Posner & DiGirolamo, 2000). As evidências mais recentes provenientes de imagens encefálicas funcionais têm contribuído para validar muitas dessas suposições.
Nos últimos anos tem havido um crescente interesse na identificação das áreas encefálicas responsáveis pelos processos cognitivos, bem como um aumento no número de artigos publicados com pesquisas de grupo. Pesquisadores que compartilham essa posição têm considerado que a localização neural das funções psicológicas não é apenas de interesse neurológico, mas pode nos informar sobre modelos psicológicos (e.g., Caplan, 2004; Harley, 2004). A localização das funções pode ser importante para a neuropsicologia cognitiva não pelo conhecimento sobre a localização exata dos componentes, mas sim pelo conhecimento sobre as conexões entre eles.
Caplan (2004), por exemplo, critica a suposição de que é necessário ter previamente uma teoria completa sobre a cognição para interpretar dados neurológicos. Segundo ele, as medidas neurológicas permitiriam, sim, contribuições valiosas ao entendimento da mente humana. Também segundo Shallice (2004), as evidências provenientes de imagens funcionais podem contribuir para a compreensão do funcionamento cognitivo. Shallice cita, como exemplo, os estudos sobre semântica, em que as imagens funcionais estão contribuindo para esclarecer pontos conflitantes. Têm sido reveladas, por exemplo, evidências de especificidade anatômica que pode ser relacionada à existência de tipos específicos de subsistemas, sendo que o processamento semântico deve ocorrer por categorias, sendo o processamento de coisas vivas distinto do processamento de artefatos.
Vallar (2004), da mesma forma, apresenta evidências da importância dos dados neurológicos para a re/formulação de teorias sobre os processos mentais, por exemplo, na teorização sobre subsistemas separados, dentro da memória fonológica, entre um input fonológico de curto-prazo e um processo de reverberação mais ligado aos componentes motores e articulatórios. Nesta área, estudos de imagem funcional em sujeitos normais, associados a dados de pacientes com lesões neurológicas, têm permitido maior compreensão sobre as bases neurais dos processos cognitivos, contribuindo para o delineamento de teorias sobre os próprios processos.
Para tal compreensão, a neuropsicologia cognitiva parte de alguns pressupostos, tais como a modularidade, as dissociações e o isomorfismo. Um dos princípios fundamentais da neuropsicologia cognitiva é a modularidade (Fodor, 1983), que se refere à independência funcional entre diferentes processamentos. De acordo com este princípio, o desenvolvimento ou o prejuízo de determinados componentes cognitivos não afeta a totalidade do sistema cognitivo (Fernandes, 2003). Os diferentes módulos cognitivos apresentam especificidade de domínio, ou seja, processam informações específicas. Assim, uma lesão ou disfunção cerebral determinada podem levar a uma alteração específica, e não genérica, do funcionamento cognitivo.
Tais especificidades podem ser verificadas nas dissociações (Geschwind, 1965; Shallice, 1990), situações em que um paciente apresenta desempenho alterado numa dada tarefa A mas desempenho intacto numa tarefa B. Um exemplo clássico de dissociação é a encontrada no paciente KF que, após uma lesão cerebral, apresentou desempenhos em memória de curto prazo seriamente alterados, enquanto sua memória de longo prazo permaneceu intacta (Eysenck & Keane, 1994). Um outro exemplo de dissociação foi citado por Gazzaniga, Ivry e Mangun (2002). Nele, foram avaliadas a memória de recência e a memória de familiaridade (i.e., qual estímulo foi apresentado por último x qual estímulo foi apresentado mais vezes), comparando o desempenho de dois grupos de sujeitos, com e sem lesão cerebral. Os resultados mostraram que pacientes com e sem lesão neurológica apresentaram desempenhos semelhantes em memória de recência, mas diferentes em memória de familiaridade.
Um problema das dissociações simples, como as citadas, deriva da impossibilidade de determinar se as duas tarefas em que houve dissociação são fenômenos específicos, independentes, ou se simplesmente uma delas é mais difícil que a outra. Para caracterizar a independência funcional entre as tarefas, é necessário observar uma dupla dissociação. Neste caso, um grupo X pode ter pior desempenho na tarefa A, mas bom desempenho na tarefa B, enquanto grupo Y tem quadro oposto, isto é, desempenho pobre em A e bom em B. As duplas dissociações mostram que são tarefas realmente específicas.
O isomorfismo refere-se ao pressuposto da universalidade do sistema cognitivo funcional (Fernandes, 2003), ou seja, de que os módulos cognitivos são universais a todos os indivíduos e correspondem, de forma aproximada, aos mesmos sistemas neurológicos. Este pressuposto possibilita a pesquisa neuropsicológica por meio do método de caso único. De fato, um grande número de pesquisas em neuropsicologia cognitiva tem sido conduzido com caso único, enquanto outras fazem uso de grupos. A principal crítica ao estudo de grupos baseia-se na impossibilidade de haver duas lesões exatamente iguais, em tamanho e em local. Além disso, os métodos de imagem também são razoavelmente imprecisos, o que pode invalidar o agrupamento de pacientes com base nestas características neurológicas.
Pesquisadores como Caramazza (1986) e Coltheart (2004) defendem o uso de estudos de caso, buscando principalmente duplas dissociações que auxiliem a compreensão dos fenômenos cognitivos. Tais estudos de caso permitem insights sobre os componentes de uma função cognitiva, como exemplificado por um dos pacientes de Caramazza que apresentava um tipo especial de anomia, não conseguindo nomear especificamente frutas e vegetais, o que sugere alguma independência entre esta habilidade e a nomeação de outros tipos de estímulos.
Por outro lado, o uso de grupos tem seu espaço e é defendido por alguns pesquisadores, tais como Ralph (2004), Vallar (2004) e Shallice (2004), pois pode auxiliar no estabelecimento de correlações entre áreas encefálicas e funções cognitivas, especialmente quando se faz uso da sobreposição de imagens cerebrais de vários pacientes. Tais estudos pressupõem alguma homogeneidade pacientes, que podem ser agrupados por sintomas ou por local da lesão.
Assim, a neuropsicologia cognitiva, ao estudar indivíduos com lesões ou disfunções cerebrais, pode auxiliar na compreensão de como a mente humana funciona (Fernandes, 2003), contribuindo tanto para o desenvolvimento teórico, quanto para o delineamento de procedimentos de reabilitação. Segundo Lezak (1995), o comportamento pode ser conceitualizado em três grandes sistemas funcionais. O primeiro refere-se às funções cognitivas, que envolvem os aspectos do comportamento relacionados ao processamento de informação. Dividem-se em quatro classes, por analogia às operações computacionais de input, estocagem, processamento e output, que são: funções receptivas, memória, pensamento e funções expressivas, além das “variáveis de atividade mental” (nível de alerta, atenção e taxa de atividade ou velocidade). O segundo sistema funcional refere-se aos aspectos emocionais, e incluem as variáveis de personalidade e emoção. Geralmente as alterações nestas funções conseqüentes a danos cerebrais são resultantes de interações complexas entre o distúrbio neurológico, as demandas sociais, os modelos comportamentais prévios e as reações a todos esses três fatores. O terceiro sistema funcional refere-se às funções executivas, que refletem a capacidade do sujeito de engajar-se em comportamento independente, proposital e auto-regulado. Referem-se a como uma pessoa faz algo, enquanto as funções cognitivas referem-se a o que e quanto uma pessoa consegue fazer. Dentre as dificuldades mais importantes nos distúrbios das funções executivas estão a incapacidade de iniciar atividades e as dificuldades no planejamento e na condução de seqüências de atividades com vistas a um objetivo.
Apesar dos três aspectos serem partes integrantes de todo comportamento, eles podem ser conceitualizados e tratados separadamente. Na neuropsicologia, as funções cognitivas têm recebido mais atenção que as demais. Porém, raramente uma lesão cerebral afeta apenas um sistema. Ao contrário, a maior parte das lesões afeta os três sistemas, apesar dos distúrbios cognitivos tenderem a ser os mais proeminentes em termos de sintomatologia (Lezak, 1994, 1995).
Avaliação neuropsicológica
A avaliação neuropsicológica é um método para se examinar o encéfalo por meio do estudo de seu produto comportamental (Lezak, Howieson & Loring, 2004) e é essencial não somente para a tomada de decisões diagnósticas, mas também para o desenvolvimento de programas de reabilitação (Ardila & Ostrosky-Solís, 1996). Assim, a avaliação embasada na neuropsicologia cognitiva busca ultrapassar tanto a mera classificação do indivíduo em relação a um grupo de referência, quanto a mera descrição dos distúrbios apresentados, visando à “interpretação dos mecanismos a eles subjacentes” (Capovilla, 1998, p. 38).
Segundo Lezak et al. (2004), a avaliação neuropsicológica pode ser relevante para seis propósitos principais: a) diagnóstico; b) cuidados com o indivíduo; c) identificação de tratamentos necessários; d) avaliação dos efeitos de tratamentos; e) pesquisa e f) questões forenses. Em relação ao diagnóstico, o avanço das técnicas de neuroimagem e dos exames laboratoriais diminuiu significativamente a necessidade da avaliação neuropsiológica para o diagnóstico da maior parte das lesões e disfunções neurológicas. Porém, esta avaliação ainda é crucial em determinados quadros, tais como as demências, traumatismos crânio-encefálicos menores ou certas encefalopatias, visto que estes não são facilmente detectados nas técnicas usuais. Além disso, mesmo quando exames de neuroimagem detectam a presença de lesões, a avaliação neuropsicológica é fundamental para esclarecer os seus correlatos comportamentais, sendo ainda importante para o estabelecimento do prognóstico dos pacientes em determinados quadros e para a identificação precoce de certos distúrbios que, em seu estágio inicial, não apresentam alterações neurológicas óbvias.
Em relação aos cuidados com o indivíduo, a avaliação neuropsicológica pode fornecer, aos membros de seu convívio familiar e social, informações importantes relativas às suas capacidades e limitações. Estas informações incluem capacidade de auto-cuidado, capacidade de seguir o tratamento proposto, reações às suas próprias limitações, adequação de sua avaliação de bens e dinheiro, dentre outras. Conhecer estes aspectos do paciente é fundamental para estruturar o seu ambiente, promovendo alterações se necessário, de forma que ele tenha condições ótimas de reabilitar-se e evitando possíveis problemas secundários, como atribuição exagerada de responsabilidade ou de atividades que não estejam ao seu alcance.
Além de informações aos cuidadores, a avaliação neuropsicológica pode auxiliar o direcionamento da reabilitação, ao fornecer tanto dados sobre as áreas deficitárias do indivíduo, quanto sobre as habilidades preservadas e o potencial para a reabilitação. A avaliação serve, ainda, para verificar as mudanças do indivíduo ao longo das intervenções realizadas, sejam elas cirúrgicas, farmacológicas, psicológicas ou de outra natureza. Identificar tais mudanças, que podem ser positivas ou negativas, ajuda a rever as intervenções, redirecionando-as quando possível.
Em relação à pesquisa, a avaliação neuropsicológica pode auxiliar a compreensão da atividade encefálica e da sua relação com o comportamento, contribuindo para o estudo de diversos distúrbios. A propósito, muitos dos testes inicialmente desenvolvidos para pesquisa têm se revelado úteis para a prática clínica, tendo seu uso ampliado na clínica para documentar o estado cognitivo dos indivíduos. Finalmente, em relação às questões forenses, a avaliação neuropsicológica tem sido requisitada em casos sobre perda de funções legais ou danos corporais, sendo útil para auxiliar decisões sobre a presença de possíveis danos neurológicos e cognitivos que estejam relacionados aos comportamentos em questão (Lezak et al., 2004).
A avaliação neuropsicológica envolve o estudo intensivo do comportamento por meio de entrevistas, questionários e testes normatizados que permitam obter desempenhos relativamente precisos (Lezak, 1995). O dano cerebral é considerado um “fenômeno multidimensional mensurável e que requer uma abordagem de avaliação multidimensional” (Lezak, 1995, p. 19). Diversas condições que podem afetar as conseqüências de um dano cerebal devem ser consideradas, tais como a natureza, extensão, localização e duração da lesão; as características físicas, de gênero e de idade do paciente; sua história psicossocial; e as individualidades neuroanatômicas e fisiológicas.
Para o estudo neuropsicológico podem ser usados procedimentos de comparação estandardizada ou não. Nos procedimentos estandardizados, a avaliação do distúrbio é feita em relação a um padrão que pode ser normativo (ou seja, derivado de uma população apropriada) ou individual (derivado da história prévia do paciente e de suas características). A avaliação neuropsicológica estandardizada tem sido grandemente influenciada pela psicometria (Groth-Marnat, 2000; Kristensen, Almeida & Gomes, 2001; Mäder, 1996). Conforme exemplificado por Wood, Carvalho, Rothe-Neves e Haase (2001), os passos no desenvolvimento de um instrumento de avaliação neuropsicológica devem seguir os critérios para desenvolvimento de instrumentos de avaliação psicológica em geral (Alchieri, Noronha & Primi, 2003), envolvendo a definição do construto psicológico a ser examinado, a operacionalização deste construto de forma a possibilitar a sua mensuração experimental e/ou psicométrica, e a verificação das características psicométricas do instrumento de avaliação neuropsicológica, que poderá envolver a análise dos itens, análise da precisão e da validade do instrumento.
Assim, para conduzir de modo apropriado a avaliação neuropsicológica e, especialmente, a avaliação estandardizada normativa, é necessário dispor de instrumentos precisos, válidos e normatizados para uma determinada população. É essencial, ainda, atentar às habilidades que sofrem grande influência de nível de escolaridade ou nível socioeconômico de modo a considerar, para comparação, o grupo específico ao qual o paciente pertence. Em tais casos pode ser preferível conduzir uma avaliação estandardizada individual, e não normativa, para comparar as habilidades atuais do paciente neurológico com suas características anteriores à lesão cerebral. Além disso, a fim de estabelecer com precisão em que consistem os distúrbios que dificultam a realização de uma prova, é necessário não se limitar à execução estandardizada da prova, mas sim possibilitar a introdução de mudanças específicas na aplicação ao longo da avaliação (Ardila & Ostrosky-Solís, 1996). Aliás, a flexibilidade na aplicação dos instrumentos é um aspecto central da avaliação neuropsicológica (Lezak, 1995).
Na avaliação neuropsicológica formal são administradas provas estandardizadas, mas, ao mesmo tempo, deve ser realizada uma observação detalhada das respostas gerais do paciente diante da prova e da situação de avaliação (Ardila & Ostrosky-Solís, 1996). Para tanto, paralelamente ao registro quantitativo das respostas, são feitos registros qualitativos da responsividade do paciente, reconhecimento de seus próprios erros, respostas emocionais e características de execução das tarefas, com ênfase no estudo intensivo de casos individuais (Caramazza & Martin, 1985; Kristensen et al., 2001).
Para proceder à avaliação neuropsicológica, o examinador deve planejar quais instrumentos usará em função de suas hipóteses sobre os distúrbios do paciente, levantadas a partir de informações coletadas, por exemplo, na entrevista inicial e nos procedimentos diagnósticos de outros profissionais. Usualmente o examinador inicia a avaliação com uma bateria neuropsicológica básica que aborde as principais áreas do funcionamento cognitivo, permitindo posteriores decisões sobre a necessidade de usar instrumentos mais específicos e refinados. As áreas usualmente avaliadas nas baterias neuropsicológicas básicas são atenção, processamento visoespacial, memória, funções lingüísticas orais e escritas, cálculo, funções executivas, formação de conceitos, habilidades motoras e estado emocional (Lezak, 1995). Uma bateria básica não pretende ser exaustiva, devendo o examinador decidir, posteriormente, sobre a introdução de outros instrumentos de avaliação.
Segundo Ardila e Ostrosky-Solís (1996), uma bateria de avaliação neuropsicológica deve ter as seguintes características: 1) fundamento teórico sólido; 2) permitir explorar funções básicas, isto é, formas fundamentais do comportamento, resultantes da atividade do sistema nervoso e, nesse sentido, afetadas o mínimo possível por fatores socioculturais e educacionais; 3) ser aplicável com um mínimo de ajuda e instruções verbais, permitindo avaliação de pacientes com severos distúrbios de linguagem; 4) ter critérios de avaliação objetivos e bem definidos, possibilitando alguma quantificação de forma a permitir obter índices de validade e precisão; 5) requerer um mínimo de recursos, aparatos e materiais para a aplicação.
Segundo Golden (1991), os resultados de crianças submetidas à avaliação neuropsicológica devem ser analisados ainda com maior cautela, considerando os fatores de desenvolvimento e ambientais envolvidos. Geralmente sua interpretação é mais complexa que a interpretação de resultados de adultos com lesões cerebrais mas histórico de desenvolvimento normal. Outros métodos, tais como a observação clínica e o diagnóstico médico, devem ser conjuntamente considerados para a interpretação dos resultados.
Os objetivos específicos de baterias de avaliação neuropsicológica infantil são: a) auxiliar a identificação de lesão cerebral em crianças com sintomas de etiologia incerta; b) avaliar a extensão e a natureza de dificuldades em crianças com lesões conhecidas de modo a traçar procedimentos de intervenção; c) avaliar os efeitos de estratégias de intervenção ou reabilitação sobre o funcionamento neuropsicológico; d) analisar o efeito de diferentes tipos de lesões em diferentes populações; e e) testar suposições teóricas sobre as relações entre comportamento e sistema nervoso, a fim de confirmar, expandir ou modificar modelos atuais sobre o funcionamento cerebral em crianças (Golden, 1991).
Como em qualquer outro instrumento de avaliação psicológica, uma bateria de avaliação neuropsicológica infantil deve obedecer aos critérios de precisão e validade (Golden, 1991). As normas de um instrumento neuropsicológico para crianças podem ser traçadas para diferentes idades ou para diferentes níveis escolares (Lezak, 1995).
Instrumentos brasileiros para avaliação neuropsicológica
No Brasil, pesquisadores e clínicos que trabalham com avaliação neuropsicológica ainda se deparam com um problema bastante grave, a escassez de instrumentos precisos, validados e normatizados disponíveis para pesquisa e diagnóstico, embora as pesquisas em neuropsicologia tenham crescido e resultado em trabalhos valiosos. Nosso grupo de pesquisa tem trabalhado nesta área, com o desenvolvimento e a validação de instrumentos de avaliação e de procedimentos de intervenção.
A seguir são apresentados, de forma sumariada, alguns dos instrumentos para avaliação neuropsicológica que nosso grupo de pesquisa tem desenvolvido no Brasil. Vários desses testes são informatizados, o que facilita o registro de parâmetros temporais como tempo de reação e duração da resposta. Alguns, inclusive, podem ser aplicados de modo remoto via Internet, possibilitando estudar diferentes amostras espalhadas por amplos territórios. Estudos buscando evidências de validade destes testes têm sido conduzidos com populações infantil e adulta, com e sem distúrbios neuropsiquiátricos, incluindo dislexia, transtorno de déficit de atenção e hiperatividade, e transtornos de ansiedade.
Alguns instrumentos brasileiros destinam-se à avaliação de diferentes habilidades de linguagem oral. Por exemplo, para avaliar o vocabulário expressivo, isto é, quais palavras uma criança fala, está disponível a Lista de Avaliação de Vocabulário Expressivo, originalmente desenvolvida por Rescorla (1989) e adaptada, validada e normatizada para a população paulista por Capovilla e Capovilla (1998). Ela é destinada a crianças a partir de dois anos de idade, com o objetivo de avaliar possíveis atrasos de linguagem oral expressiva.
O vocabulário receptivo pode ser avaliado por meio do Teste de Vocabulário por Imagens Peabody, que já foi traduzido e adaptado para o português, com a disponibilização de dados de precisão, validade e normatização para idade entre 2 e 14 anos (Capovilla & Capovilla, 1998). Contém 125 pranchas de teste, em que o examinando deve selecionar, dentre quatro figuras alternativas, a que melhor corresponde à palavra falada pelo examinador.
A nomeação de figuras pode ser avaliada por meio do Teste Infantil de Nomeação (Capovilla, Montiel, Macedo & Capovilla, no prelo), que possui as versões tradicional (em papel) e computadorizada. O examinando vê desenhos de linha e deve pronunciar o seu nome em voz alta. Uma outra forma de avaliar nomeação, desta feita em conjunção com a habilidade de leitura, é por meio do Teste Informatizado de Nomeação de Figuras por Escolha (Capovilla, Viggiano, Raphael, Bidá, Capovilla, Neves & Mauricio, 2004), em que o examinando deve escolher, dentre quatro palavras escritas, a que melhor corresponde a uma figura.
Temos desenvolvido, ainda, instrumentos para avaliar habilidades de metalinguagem, ou seja, de reflexão intencional sobre a linguagem. Dentre tais instrumentos encontram-se a Prova de Consciência Fonológica (Capovilla & Capovilla, 2004) e a Prova de Consciência Sintática (Capovilla, Capovilla & Soares, 2004).
Ainda em relação à linguagem oral, há o Teste de Repetição de Palavras e Pseudopalavras (Capovilla, em preparação), com base no teste de Gathercole e Baddley (1989). Para avaliar a fluência verbal, desenvolvemos uma versão informatizada do Teste de Fluência Verbal FAS, baseado em Benton e Hamsher (1989), que requer que o sujeito fale o maior número possível de palavras começadas com as letras F, A e S, tendo um minuto para cada letra.
Em relação às habilidades de leitura, desenvolvemos o Teste de Competência de Leitura de Palavras - TCLP (Capovilla, Viggiano, Capovilla, Raphael, Mauricio & Bidá, 2004), que avalia o uso diferencial das estratégias de leitura pelo examinando. Paralelamente à avaliação do reconhecimento de palavras, há o Teste de Competência de Leitura de Sentenças (Capovilla, Viggiano, Capovilla, Raphael, Bidá, Neves & Mauricio, 2004) avalia as habilidades de compreensão. Ambos os testes estão disponíveis nas versões tradicional e computadorizada. A avaliação da escrita pode ser feita por meio da Prova de Escrita sob Ditado, que apresenta itens com diferentes características psicolingüísticas (Capovilla & Capovilla, 2004).
Para avaliar a atenção, nosso grupo de pesquisa tem desenvolvido versões de alguns testes classicamente usados, tais como testes de cancelamento, Teste de Trilhas e Teste de Stroop. O Teste de Atenção por Cancelamento (Montiel & Capovilla, 2006a) possui três partes que avaliam atenção seletiva e atenção alternada, sendo a tarefa básica do examinando selecionar, em uma matriz de estímulos, aqueles semelhantes ao estímulo-alvo. O Teste de Trilhas – Partes A e B (Montiel & Capovilla, 2006b) objetiva avaliar aspectos de manutenção da atenção e capacidade de alternar entre estímulos relevantes. Está disponível, ainda, o Teste de Stroop Computadorizado nas versões neutra (Capovilla, Montiel, Macedo & Capovilla, 2005) e emocional (Montiel, Capovilla, Capovilla & Macedo, no prelo).
A avaliação das funções executivas pode ser feita por meio do Teste de Geração Semântica (Capovilla, Cozza, Capovilla, Macedo & Dias, 2006), também informatizado, em que é solicitada a geração de um verbo semanticamente associado a um substantivo. Temos, também, uma versão da Torre de Londres, que requer a transposição das três esferas que o sujeito deve rearranjar, uma a uma, a partir de uma posição inicial fixa, de modo a alcançar diferentes disposições finais especificadas pelo aplicador.
Para avaliar as habilidades aritméticas, temos a Prova de Aritmética (Capovilla, Montiel & Capovilla, 2006), que contém seis subtestes para avaliar diferentes habilidades relacionadas à matemática. Para avaliar o processamento visoespacial, desenvolvemos o Teste ImagéticaBaby (Lopes, Capovilla, Berberian, Capovilla & Macedo, 2006), um software que apresenta pares de figuras bidimensionais para o julgamento de identidade, requerendo rotação mental para a solução da tarefa.
Considerações finais
A avaliação neuropsicológica tem crescido em todo o mundo, com o desenvolvimento de instrumentos de avaliação que apresentam parâmetros psicométricos adequados de precisão e validade, bem como normas para diferentes faixas etárias. Tal crescimento também tem sido observado no Brasil, apesar de ser uma área ainda escassa de estudos. A ampliação da avaliação neuropsicológica é fundamental, visto que pode auxiliar a compreensão dos mecanismos subjacentes às alterações encontradas nos processos cognitivos, mais que a mera classificação do indivíduo em relação a um grupo de referência.
Os instrumentos descritos neste artigo têm contribuído para expandir a avaliação neuropsicológica em nosso país. Aliados a outros pesquisadores, esperamos que o avanço da neuropsicologia possa contribuir para a compreensão dos processos cognitivos e seus correlatos neurológicos, o aprimoramento de procedimentos de avaliação e a promoção da reabilitação de pacientes com lesões ou disfunções neurológicas, de forma responsável e eficiente
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Endereço para correspondência
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Psicologia,
Universidade São Francisco
Rua Alexandre Rodrigues Barbosa, 45,
Itatiba, SP, 13.251-900
Telefone: (11) 4534-8046,
Fax: (11) 4524-1933
e-mail: alessandra.capovilla@saofrancisco.edu.br
Recebido: 02/03/2006
Aceito: 29/06/2006
* Doutora e Pós-Doutorada em Psicologia pela Universidade de São Paulo