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Stylus (Rio de Janeiro)
versão impressa ISSN 1676-157X
Stylus (Rio J.) no.24 Rio de Janeiro jun. 2012
TRABALHO CRÍTICO COM CONCEITOS
O Dever de Dizer e o Dever de Calar
The duty to speak and the duty to silence
Christian Dunker*
Universidade Metropolitana de Manchester
RESUMO
Este trabalho pretende justificar axiologicamente as condições que tornam o dizer um ato contingente, porém, baseado em uma forma de dever. Discute-se a noção de dever contrapondo sua extração superegoica com sua dimensão ética bem como sua tensão conceitual com a lógica da interpretação.
Palavras-chave: Interpretação, clínica, lógica, ética.
ABSTRACT
This paper establish some axiological justification to the conditions by witch a "speak" (dire) presents itself as a contingent act, in a form of duty. We discuss the notion of duty, opposing it its superego extraction to its ethical dimension, as well as its conceptual tension with the logic of interpretation.
Keywords: Interpretation, clinic, logic, ethics.
1. Introdução
A noção de dever liga-se em Freud à noção de superego. É o dever que origina o caráter insensato e insaciável de nossa exigência moral, de nossa aptidão para a idealização, do circuito de empobrecimento da experiência gerado pela obediência ao supereu. Mas se o supereu trabalha ao modo de um puro dever, como o imperativo categórico, será que todo dever precisa ser reduzido à expressão superegoica?
Retomo aqui a antiga questão técnica, legada por Strachey, sobre o superego do psicanalista, cuja tradução lacaniana seria o gozo do analista. No artigo The Nature of the Therapeutic Action of Psychoanalysis, Strachey (1934) introduz a noção de interpretação mutativa, que origina uma torrente de concepções sobre as relações entre supereu e interpretação. A interpretação mutativa envolve uma separação entre fantasia e objeto; ela não é só mutativa porque muda o paciente, mas porque é uma ruptura no dizer do analista. Na esteira dos desenvolvimentos de Ferenczi sobre a espontaneidade e sinceridade que se deveria esperar da relação analítica, os pós-freudianos enfatizaram que o supereu seria o conceito metapsicológico fundamental para entender a interpretação. É neste contexto que se pode entender a emergência de modelos clínicos baseados em "experiências emocionais corretivas", economia das intervenções baseada na oposição entre "frustração e gratificação" e efeitos avaliados em termos de "regressão e agressão". É preciso lembrar como Rudolph Lowenstein, analista de Lacan, desenvolvera, uma teoria da interpretação fundada na passagem da superfície para a profundidade, ou seja, uma concepção que aparentemente procurava mitigar o impacto superegoico da interpretação. Uma parte deste problema é resolvida por Lacan por meio de uma retomada dos problemas relativos ao significante e ao sentido e uma releitura dos processos hermenêuticos presentes no sonho, no chiste e na psicopatologia da vida cotidiana. Menos claro, entretanto, é como a crítica lacaniana da interpretação de estrutura superegoica lidará com o problema da decisão interpretativa. De fato há inúmeras indicações que ligam a prática da interpretação com o tempo. No entanto, quando o problema é a forma, a quantidade e a extensão das intervenções, Lacan sempre insistiu na liberdade e no tato do analista. É neste plano que se coloca nosso problema sobre o tipo de dever envolvido na economia de fala e silêncio, em meio a qual a interpretação se desenvolve. Não podemos confundir o dever da interpretação com o poder da interpretação. Ou seja, há certas condições que nos informam quando uma interpretação é possível, mas nem sempre que podemos arriscar uma interpretação, devemos fazê-lo. Consideramos esta afirmação de Freud sobre os momentos e as condições sobre as quais a interpretação é possível:
Se comunicamos a um paciente uma representação que ele recalcou em seu próprio tempo e conseguimos recuperar, isso, em princípio, nada modifica seu estado psíquico. (...) Não se conseguirá mais que uma nova desautorização (Ablehnung) da representação recalcada. Mas agora o paciente tem a mesma representação numa dupla forma, em lugares diferentes de seu aparelho psíquico; primeiro possui a recordação consciente do traço auditivo da representação que comunicamos, em segundo lugar, como com certeza sabemos, leva em seu interior a recordação inconsciente do vivenciado. Só quando esta última se torna consciente se alcança êxito (FREUD, 1915, p. 171-172).
Ou seja, a representação comunicada envolve um tempo e um trabalho de reconstrução ou recuperação. Em seguida há o trabalho de passar da recordação do traço auditivo à vivência ou experiência (ducharbeiten). É só no terceiro tempo da interpretação que ela alcança seu êxito ao se "tornar disponível para a consciência". Ou seja, a interpretação envolve o poder de lembrar, mas também o poder de esquecer. O dever de dizer, mas também o dever de calar. E esta liberdade faz parte do processo em contraste com aquilo que devemos lembrar e o que devemos esquecer. Se o campo das condições de possibilidade da interpretação inspira uma lógica da intervenção psicanalítica, o campo das condições de dever da interpretação nos convida à consideração ética do problema. O fato, talvez mais interessante, é que estas duas condições não se somam nem se completam, elas produzem alguma tensão entre si, como pretendemos mostrar neste trabalho.
2. Ética e Lógica da Interpretação em Lacan
Nossa tese pode ser então enunciada da seguinte maneira: se a lógica da interpretação sem ética é vazia, a ética da interpretação sem lógica é cega. Mas mesmo se lógica e ética da interpretação se reunissem, como condições de possibilidade e condições de necessidade, ainda sim esta seria manca do ponto de vista da liberdade do analista. Vejamos como este movimento aparece em três incidências cruciais no entendimento lacaniano da interpretação.
É nesta direção que Lacan insiste que a interpretação deve ser pensada como restituição da verdade, estrutura de ficção, transformação da articulação metafórica ou metonímica,no contexto da crítica da interpretação como reconstrução da realidade factual da lembrança.
Sejamos categóricos: não se trata na anamnese psicanalítica, de realidade, mas de verdade, porque o efeito de uma fala plena é reordenar as contingências passadas dando-lhes o sentido das necessidades por vir, tais como as constitui a escassa liberdade pela qual o sujeito as faz presentes (LACAN, 1953, p. 257).
Aqui, Lacan é hegeliano, no sentido de que liberdade e necessidade, ética e lógica procedem de uma mesma substância comum, a saber, o tempo. O tempo é este conceito no interior do qual a dimensão ontológica da realidade se bascula em dimensão antropológica da verdade, invertendo assim a relação tradicional e intuitiva do passado como campo do necessário e o futuro como campo do contingente. A oposição lógica entre realidade e verdade se redobra na oposição entre contingência e necessidade. Ora, a verdade de corte ontológico realista não pode abrigar o futuro, limitada que está pela estrutura judicativa da inferência. É com este conceito ético antropológico de verdade que Lacan consegue reverter o realismo "anamnésico" da teoria da interpretação convencional. Ou seja, a verdade assim considerada "cria suas próprias condições de efetivação", condições que não estão dadas. É como efeito ético da interpretação que se recupera a escassa liberdade do sujeito no presente.
Um segundo momento da estratégia ético-lógica de Lacan para esta matéria é a consideração da interpretação exata ou inexata,no contexto da discussão comGlover. Aqui, encontramos o caso clínico de Lacan, que se vale da interpretação formulada pelo sonho da esposa de seu paciente (LACAN, 1958, p. 626-637). Diante do convite para que ela trouxesse outro homem, para um encontro sexual a três, a esposa sonha com uma mulher dotada de pênis. Lacan considera que ao contar este sonho ao seu amante, ela teria sido a agente da interpretação. Novamente, é pela estrutura de ficção, representada pela hipótese da tríade e pela resposta na forma do sonho da esposa, que se dá a transformação da articulação metafórica do sintoma-demanda em articulação metonímica do desejo. Remanesce que a interpretação final de uma análise não tenha sido feita pelo próprio analista, mas pela esposa do paciente, quiçá em posição de analista. Ótimo exemplo, e raro por referir-se à prática do próprio Lacan, do dever de calar-se e de pagar, com suas palavras, com seu corpo e com o juízo mais íntimo de seu ser (kern unseres wesens). Aqui, Lacan é heideggeriano, no sentido de que a escuta precede a decisão.
O terceiro exemplo da abordagem ético-lógica da interpretação vem da polêmica em torno da ideia de que a interpretação seria aberta a todos os sentidos,no contexto do debate com Laplanche. A interpretação isola um kern, um coração de non-sense, mas não é ela mesma non-sensical e aberta, ou flutuante, para todos os sentidos. Ora, por que não? Porque ela não é apenas lógica, mas também ética. "O que funda, com efeito, no senso e no não senso radical do sujeito, a função da liberdade é propriamente esse significante que mata todos os sentidos." (LACAN, 1963, p. 238).
Ou seja, a interpretação toca ou alude ao objeto a em sua estrutura de corte. Ela extrai um efeito ético de liberdade com base em um "significante que mata todos os sentidos". Aqui, Lacan é decisionista, como Carl Schmitt. É com a suspensão da lei, como lei de linguagem e de sentido, que ética e liberdade reaparecem.
O problema que remanesce nestas três incidências temáticas da interpretação é o da sua infinitude, ou seja: se a interpretação abriga em seu interior o não senso, pode ser efetivada por qualquer um em função de analista e condicionar-se em uma verdade que representa a liberdade futura. Qual é a terminabilidade do processo interpretativo?
3. A Interpretação como Corte
Depois que temos as condições pelas quais a interpretação se inicia e se mantém, o problema é como fazê-la parar. E mesmo que ela se efetive como silêncio, como fazer para extrair deste silêncio uma função não interpretativa, mas separadora? É aqui que precisamos examinar melhor como a interpretação possui uma estrutura de corte. O corte, contudo, sempre pode ser reabsorvido como uma nova interpretação. É preciso lembrar que este é o início do tema da interpretação em Lacan. Desde a tese de 1932 ele está às voltas com um fenômeno clínico chamado de delírio de interpretação. Descrito por Serieux e Capgras em:
(...) um raciocínio falso que tem como ponto de partida uma sensação real, um fato exato, o qual em virtude de associações de ideias ligadas às tendências e à afetividade e através de induções ou deduções erradas, acaba por adquirir para o doente uma significação pessoal, pela qual tudo se coloca invencivelmente a ele relacionado (SÉRIEUX, P. & CAPGRAS, 2004, p. 77-83)
A interpretação delirante distingue-se do mero erro de interpretação ou entendimento em dois aspectos: ela não pode ser corrigida ou retificada, e ela não é uma significação isolada, mas algo que se irradia, se dissemina e se organiza em sistema. Mas, examinando o delírio de interpretação, Lacan acaba por concluir que todo delírio é apenas isso, interpretação. O que levanta o problema inverso: qual interpretação estaria imune ao delírio? Há, então, três aspectos que estão na origem lacaniana do problema de uma possível lógica da interpretação psicanalítica: a sensação real, a incorrigibilidade simbólica e o espírito imaginário de sistema. Síntese do real, corrigibilidade simbólica e unificação imaginária definem as perguntas fundamentais que uma lógica da interpretação deve responder. Neste caso, interromper a interpretatividade do inconsciente só pode ser feito pela disjunção entre os registros. Podemos reconhecer aqui como a função superegoica, como voz e observação, como obrigação ao gozo e parceria egoica ao masoquismo, é este elemento que mantém unido o imaginário do sentido, a consistência da significação e a ex-sistência da falta de senso (non-sensical). A nomeação e o silêncio, em sua dimensão superegoica, tornam-se assim o equivalente do quarto nó, o equivalente da suplência, no caso da interpretação. O dever de calar só se coloca como um verdadeiro dizer separador se esta dimensão superegoica puder ser suspendida. O dever de calar é, então, principalmente, o dever de calar a enunciação superegoica que parasita a interpretação.
Voltemos ao problema. Como pensar a interpretação sem que ela seja um prolongamento irradiador e disseminador de um sistema delirante – do analisante ou do analista? Como interpretar sem confirmar uma significação isolada, sancionando uma fantasia ao modo de um fetiche? Como interpretar sem expandir indefinidamente o caráter corrigível, modulável e enigmático de toda significação (Bedeutung) baseada na promessa unificadora, representada pelo sintoma, como sentido fálico (Sinn)? É certo que Lacan pensou este problema como a hipótese da dupla volta da interpretação, ou o oito interior da interpretação, desenvolvido em L'Etourdit, mas ao modelo lógico ali presumido não possui correlato ético evidente. Significa dizer que as categorias como desejo do analista, ética da psicanálise e ato psicanalítico são suficientes para apresentar a contrapartida que observamos nos três momentos anteriores da questão?
O dizer e o calar têm a ver com a topologia que escolhemos para articular a ética e a lógica da interpretação. O dizer, no entanto, aparece mais como um desenvolvimento da teoria da letra no interior da teoria dos discursos do que propriamente uma renovação conceitual do problema. Mas é preciso que o dizer inclua dentro de si o próprio calar para podermos postular um dever, que vai além da lei analítica da livre associação e da atenção flutuante. Associação ligada, como no quantificador (universal ou existencial) que transforma variável livre em variável ligada e atenção fixa, seriam então as características do dever de dizer.
Mesmo que a categoria de dizer em Lacan seja uma espécie de equivalente linguístico-discursivo do que o espaço é para a matemática-topológica, seria preciso articular o dizer com a problemática histórica da imissão do supereu na teoria psicanalítica da interpretação. O dizer é o espaço no qual os ditos acontecem, o espaço que delimita a curvatura dos ditos, a reta contígua da metonímia, a elipse metafórica, a assíntota delirante. Mas onde está a liberdade do dizer? Como tantas vezes insistiu Lacan, nada nos obriga a dizer, nem ao analista nem ao analisante (só o superego obriga). A regra fundamental chama-se associação livre e associação (atenção) flutuante, não associação justa segundo o que se deve dizer ou calar. Mas, e aqui está o ponto que quero trazer para o âmbito da interpretação, sob algumas circunstâncias não muito comuns, até mesmo raras, o dizer e o calar tornam-se um dever.
O tema da interpretação pode ser pensado com base nas condições necessárias que limitam ou facultam sua incidência. Há certas condições nas quais a interpretação é possível ou não. São os limites do que pode ser interpretado, sejam eles limites mais genéricos, como os que se impõem pelo diagnóstico; sejam limites móveis, como aqueles que são dados pela transferência; limites materiais, dados pela associação livre e discurso do analista a cada sessão; ou ainda os limites metapsicológicos, relativos à interpretabilidade de uma formação do inconsciente. Resumidamente, a associação livre de um lado e o umbigo dos sonhos do outro, são as fronteiras (die Grenze)da interpretação.
Além das condições de possibilidade, há as condições suficientes da interpretação: o desejo do psicanalista e o tempo da transferência. São as condições nas quais uma interpretação é desejável, seja porque ela se articula com a tática ou com a estratégia do tratamento, seja porque ela efetua a política própria que define a psicanálise. Ora, este desejo é sempre uma contingência. É por isso que a tática das intervenções frequentemente trazem gramáticas de aposta, de cálculo, de risco. Propor uma interpretação é, neste contexto, algo análogo a contar um chiste: surpresa, desconcerto e iluminação, uso do tempo, avaliação de qual é a "paróquia transferencial", a escolha morfológica e sintática dos significantes, as interpretações baseadas na palavra e as interpretações baseadas nos pensamentos, e assim por diante. Nunca sabemos de antemão se vai dar certo. Chistes e sua Relação com o Inconsciente (FREUD, 1901) é o grande tratado psicanalítico sobre a interpretação. Ou seja, a interpretação é um conceito pragmático, que deve ser pensada em relação a seus fins, seus meios, sua eficácia.
4. Conclusão
Mas, além das condições necessárias, nas quais a interpretação é logicamente possível ou não; e das condições suficientes, nas quais a interpretação é eticamente desejável ou não, há certas interpretações que se colocam como uma espécie de violação das regras psicanalíticas. Tanto a regra da associação livre, quanto sua recíproca escuta equitativa são regras disposicionais, ou seja, elas fixam a intenção de suspender o juízo, a antecipação do sentido ou a ocultação de pensamentos. É justo que percebamos certos casos como violação de uma regra: o silêncio e a repetição em sua conotação de resistência, por exemplo. Conhecemos muitas situações nas quais a fala do paciente não funciona mais livremente. De acordo com a tese de Lacan, tal movimento equivale à resistência como resistência do discurso e função intrínseca do analista. Mas por que não haveria situações nas quais o desejo do psicanalista se vê tomado pelo dever, pelo puro dever de dizer ou de calar?
Há dois bons exemplos deste tipo de interpretação no caso de Margareth Little, que Lacan examina no seminário sobre A Angústia:
(1) "A analista, munindo-se da coragem, em nome da ideologia, da vida, do real, de tudo o que vocês quiserem, faz, afinal a mais singular intervenção em relação à perspectiva que chamarei de sentimental. Um belo dia quando o sujeito repisa todas as suas complicações de dinheiro com a mãe, a analista lhe diz em termos claros: olhe, pare com isso, porque literalmente, eu não aguento mais ouvir, você está me dando sono" (LACAN, 1963, p. 159).
(2) "Na segunda vez são as pequenas modificações feitas pela analista no que ela chama de decoração do consultório (...) Margareth Little já fora apoquentada o dia inteiro pelos comentários de seus pacientes: está bonito, está feio, este marrom é horrível, este verde é admirável (...) A analista lhe diz textualmente "Escute, estou pouco me importando para o que você possa achar" (LACAN, Ibid, p. 160).
Com estas duas intervenções ela coloca a paciente em trabalho de luto, antes jamais abordado com relação à sua mãe. Note a série invocada pelo exemplo: "em nome da ideologia, da vida, do real, de tudo o que vocês quiserem". Note como o exemplo contraria quase tudo o que podemos conceber vagamente como uma deontologia psicanalítica: acolhimento, paciência, benevolência, a pessoa do analista, as convenções etc. Mas, por algum motivo e de algum lugar ela tirou este "dever dizer". Desconfio que é do mesmo lugar com o qual se extrai o "dever de calar" com o qual aguentamos em silêncio atrocidades e desgraças que ninguém mais suportaria ouvir. O lugar de onde extraímos um efeito discursivo, que a língua comum chama de calar fundo. Do latim calare, baixar a voz, proveniente de cális – fazer baixar, deixar cair – e cálamo, caneta, pena de escrever. De onde procede também a palavra calamidade, desgraça, prejuízo ou dano; e a palavra calado, parte baixa do navio, que fica submersa e em contato com a água. Se isto for correto, abre-se uma pista para pensar a aparição do tema do ato psicanalítico em Lacan como conceito forjado para ocupar a zona limite de indecidibilidade entre o que a interpretação pode e o que a interpretação deve fazer.
Com isso reúno alguns argumentos para postular a existência de uma espécie de contrapartida do lado do analista do imperativo freudiano do "Wo es war soll Ich werden". O verbo sollen quer dizer dever. Mas assim como o verbo ser (war) se desdobra em dois no português de "ali onde isso estava-era", é uma novidade totalmente radical, se queremos levar a sério o dito freudiano e imergi-lo no dizer brasileiro.1 Por outro lado, o alemão tem duas palavras onde nós só temos uma: konnen e durfen. Ambas querem dizer poder, mas o durfen exprime um poder-dever, enquanto o konnen exprime um poder-intransitivo. Ambos se opõem ao dever (sollen), mas um é superegoico (konnen), o outro não (durfen). E é isso que ocorre no lado B do "Wo es war soll Ich werden", ou seja, o lado do analista, a saber, "Wo Ich war, soll es werden". Tradução: onde estava eu, com meu eu, onde eu era, com minha posição de sujeito, deve (no sentido inverso ao poder-dever) aparecer a palavra (ça parle) e o dizer (discurso sem palavras).
Referências bibliográficas
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SÉRIEUX, P. & CAPGRAS, J. Asloucuras raciocinantes – o delírio de interpretação:introdução. In: DALGALARRONDO, P.; SONENREICH, C. & ODA, A. M. R. História da psicopatologia: textos originais de grandes autores. São Paulo: Lemos, 2004. p. 77-83.
STRACHEY, James (1934). The nature of the therapeutic action of psycho-analysis. International Journal of Psycho-Analysis, 15, p.127-159. [ Links ]
Endereço para correspondência
Christian Ingo Lenz Dunker
Email: chrisdunker@uol.com.br
Recebido em: 06/02/2012
Aprovado em: 08/03/2012
Notas
* Psicólogo. Pós-Doutor pela Universidade Metropolitana de Manchester. Mestre e Doutor Psicologia pela Universidade de São Paulo. Livre-docente da Universidade de São Paulo. AME da EPFCL - Brasil/ Fórum São Paulo. Autor dos livros Lacan e a Clínica da Interpretação (Hacker, 1996), O Cálculo Neurótico do Gozo (2002), Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica (Annablume, 2011), tendo este último sido publicado também em inglês (2010).
1 Conforme discussão com Ricardo Goldenberg, Dominique Fingermann, Angela Vorcaro e Leda Bernardino.