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Stylus (Rio de Janeiro)
versão impressa ISSN 1676-157X
Stylus (Rio J.) no.29 Rio de Janeiro nov. 2014
CONFERÊNCIAS
O que resta da infância
What is left of childhood
Colette Soler*
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – França
Formações Clínicas Campo Lacaniano - Paris
RESUMO
A autora examina as diversas marcas deixadas pelas experiências da infância e sua repercussão no nível da repetição e do sintoma. Ela destaca diferentes abordagens do real, seja como impossível, seja como contingência indelével e se pergunta sobre as respostas éticas dos sujeitos e os efeitos possíveis da análise sobre esse ponto.
Palavras-chave: Marca, Repetição, Sintoma, Ética do final da análise.
ABSTRACT
The author examines the several marks left by childhood experiences and their repercussion at the level of repetition and symptom. She stresses different approaches to the real, be it as impossible or the indelible contingence, and asks herself about the ethical answers of the subjects and the possible effects of the analysis on this issue.
Keywords: Mark, Repetition, Symptom, Ethics final analysis.
II Conferência – XIV Encontro Nacional da EPFCL – Brasil Belo Horizonte, 26/10/2013
O que eu vou falar hoje tem, implicitamente, algo a ver com as marcas, porque não vou falar disso propriamente, e se relaciona com o passe e o final de análise. De fato, eu queria repercutir o que trabalhei no ano passado no meu curso em Paris. Eu havia escolhido como título "O que resta da infância". Portanto, é uma questão sobre as marcas da história própria de cada um.
Evidentemente, existe uma questão sobre a relação entre as marcas e a estrutura. E, no fundo, há um ponto em comum entre a estrutura e as marcas. Refiro-me às marcas da história. E, no final das contas, as aventuras das quais falava Patrícia Muñoz, começam muito cedo na vida. Então, existe um ponto em comum entre a estrutura e as marcas, que é o fato de não podermos fazer nada com isso. E não podemos fazer nada no sentido de que sofremos essas marcas. Não são exatamente a mesma coisa – estrutura e marcas, elas, porém, possuem esse ponto em comum, que evidentemente coloca o problema do limite da psicanálise, limite na operação psicanalítica, limite da operação psicanalítica, que não vai poder mudar nada nem na estrutura nem nas marcas.
Vou fazer algumas observações gerais sobre esse tema, entre as marcas e a estrutura. Primeiro, quando eu digo estrutura, não estou falando da estrutura de linguagem. Há uma estrutura de linguagem, claro. No fundo, é isso que a linguística toma como objeto, mas, quando nós dizemos com Lacan "a estrutura", o que estamos falando é da estrutura como efeito da linguagem. Vocês encontrarão isso explicitamente em Radiofonia (LACAN 1970/2003, p. 405), quando Lacan diz no começo da questão dois: "seguir a estrutura é certificar-se do efeito da linguagem". É aí que vocês encontram a diferença assinalada por Lacan entre linguística e linguesteria.
A linguesteria implica tanto a linguagem quanto aquilo que não é linguagem, ou seja, o corpo; o corpo imaginário ou como substância de gozo. O maior efeito de linguagem é o objeto a. Eu digo maior porque o $ (sujeito barrado) é outro efeito de linguagem. Efetivamente, sem essa estrutura do objeto a construída por Lacan, não se poderia conceituar nem o desejo nem o gozo. Em particular, não seria possível conceituar os gozos da repetição e do sintoma. Há um traço da estrutura aqui salientado: a estrutura é para todos, é universal, universal dos falantes. Dito de outra forma, isso se parece com o destino. Ninguém escapa a isso. As marcas são o contrário, elas correspondem a um por um, cada um tem as suas, portanto, decorrem da contingência. Se começássemos a refletir sobre estrutura e contingência, teríamos um título possível.
Constataríamos, imediatamente, uma trajetória de Lacan impressionante. Ele construiu a estrutura, começou com isso e indicou muito bem que a estrutura não excluía a história, ao contrário, a estrutura se inscrevia na diacronia. Isso ocorre em todo o período de Lacan até o final dos Escritos, de certa forma. E quanto mais ele avançou no seu ensino, mais frisou e destacou a questão da contingência, de certo modo em todos os níveis e até mesmo no nível do final da análise. Mas este é um pequeno parêntese que estou fechando.
As marcas da história individual infantil – inclusive isso começa desde a infância –, poderíamos dizer que é aquilo que cessou de não se inscrever, e que, a partir daí, não cessa mais de se inscrever. Isso faz com que uma contingência, a marca de uma contingência, se prolongue em necessidade, e que não cesse mais de se inscrever. Essas marcas são sempre singulares, mesmo quando são as marcas de um traumatismo coletivo. As próprias marcas são singulares, isso é muito importante porque as marcas singulares são conscientes em geral, o sujeito pode falar sobre isso, não somente são conscientes, mas elas colam, aderem à pele. É aquilo ao qual ele está mais ligado, amarrado, e no fundo é isso que está no coração do sentimento da identidade pessoal, isso é muito sensível na vida.
Quando encontramos alguém, um desconhecido, e queremos conhecer essa pessoa, não precisa de muito tempo nesse primeiro encontro para que um conte ao outro, e reciprocamente, a história da sua primeira infância, tal como ele estaria contando essa história a si mesmo. Pelo contrário, a própria estrutura é desconhecida, naturalmente desconhecida, é o que Lacan pôde dizer: a estrutura é aquilo que não se aprende da experiência. É o que o faz dizer que ele construiu o objeto a. E nesse sentido me parece que as marcas da história singular dissimulam a estrutura. No entanto, postulo que as marcas se escrevem conforme a estrutura e, nas marcas, a estrutura se torna efetiva. Isso é um problema para o passe, porque no passe alguém é suposto falar uma língua própria ("de son cru"), expressão francesa que Lacan empregou e significa: próprio, de si mesmo; ninguém mais poderia ter falado uma coisa dessas.
Voltarei um pouco mais com a questão das marcas, porque existe marca e marca. E as únicas marcas que interessam à psicanálise são as marcas que inscrevem a estrutura, mas existem outras. Existem as marcas que provêm do fato de que alguém nasceu em algum lugar, e ter nascido em algum lugar deixa marcas de identidade. As pessoas nascem em uma língua, em um clima, em uma paisagem, em uma cultura, em uma tradição, e tudo isso fabrica o sentimento de identidade, nutre um sentimento de exílio e nostalgia quando fica longe desse lugar de origem, o que produz afetos muito fortes quando do retorno à terra natal. Mas existem as outras marcas que são os acidentes verdadeiros da história e do nascimento: lutos, doenças, deficiências, e quando alguém nasce deformado é uma marca. De certa forma, a psicanálise não se ocupa dessas marcas. O analisando pode falar a respeito se isso lhe satisfaz, e ele fala disso, mas não é isso que está em questão na psicanálise.
Parece-me que há dois tipos de marcas que interessam à psicanálise. Vou deixar de lado a questão eventual da marca do analista no final da análise, uma questão muito eventual. Falo das outras marcas. Há dois tipos de marca que interessam à psicanálise: são, primeiramente, as marcas do trauma próprio de cada um; e, depois, as marcas que inscrevem o gozo que está no âmago do sintoma. Eu vou desdobrar um pouco isso.
As marcas do trauma persistem, como sabemos, na forma da repetição; essa é a tese de Freud repensada por Lacan, mas que ele mantém. O trauma perdura, não volta como o recalque, não volta na cadeia significante como volta o recalcado; o trauma perdura, insiste na repetição, na forma da repetição do traço unário que indexa o trauma.
Existem as outras marcas, às quais Lacan deu o nome de letra do sintoma. São dois tipos de marcas que participam do Um: o Um do traço unário, ou o Um da letra de gozo. Não se trata do mesmo Um, mas os dois procedem do Um. Essas marcas são indeléveis e se inscrevem na contingência, o que significa que são incuráveis, por isso, inclusive, na última vez que estive no Brasil, em Fortaleza, tomei como tema "Repetição e Sintoma".1
Como o sujeito vai perceber a estrutura a partir dessas marcas sofridas? Pela análise. Todas as fórmulas de Lacan sobre o final de análise implicam um saber adquirido sobre a estrutura, porque os sujeitos já conheciam as marcas. É uma questão. Devemos entender como um sujeito que seria totalmente ignorante dos textos de Lacan e de Freud, que não teria aprendido a estrutura construída por Lacan depois de Freud, que não falaria, portanto, como nós agora; como um sujeito, no entanto, que se engaja numa análise, porque tem sintomas, poderia chegar a um fim que implicaria uma conclusão estrutural? Efetivamente, toda a questão da operatividade da análise é que está em jogo nesta questão que estou levantando sobre a marca, para, a partir da marca, chegar ao real da estrutura.
Queria lembrar algumas afirmações de Lacan a respeito do final de análise. Ele diz: "passar da impotência ao impossível", é um tema que implica a lógica; o impossível é alguma coisa que se demonstra. "Demonstrar o impossível da relação numa análise." Como se demonstraria alguma coisa numa análise? "Saber ser um rebotalho", saber adquirido, portanto. É uma expressão equívoca, "saber ser um rebotalho, dejeto", porque, em francês, no texto de Lacan, ela significa "saber que se é um dejeto". Dito de outra forma, que alguém não está inscrito no Outro a partir do significante. A expressão equívoca em francês pode também querer dizer "saber fazer com isso", "saber se virar com isso, que é ser um dejeto". E, obviamente, a questão é como se passa da experiência particular a uma conclusão para a qual Lacan dá uma fórmula generalizante.
Em uma época, eu dizia, é necessário um analisante lógico; é verdade, mas é insuficiente, geral demais, porque, mesmo em lógica e em matemática, nenhuma conclusão pode acontecer sem um ato que coloque essa conclusão. Mesmo para dizer dois mais dois igual a quatro é preciso um sujeito que consinta dizer que dois mais dois é igual a quatro. Dito de outra forma, a ordem de dedução nunca é suficiente para fundar uma ordem de conclusão. Por outro lado, Lacan, ao lado dessas fórmulas que eu lembrei e entre muitas outras evidentemente, insiste sobre o caráter singular de um final de análise. Na Nota Italiana (LACAN, 1973/2003, p. 313), ele diz que é necessário que o sujeito tenha cingido o seu horror de saber de uma forma geral; ele é, acrescenta, da sua própria, destacado de todos. Cingir a causa de seu horror de saber, isso é uma aquisição de saber, no entanto singular, que não combina muito com o intercâmbio, o compartilhar. Este é todo o problema dos cartéis do passe: reconhecer uma estrutura num saber singular.
Então, como a análise vai tocar nisso? Vocês podem notar, em tudo que estou dizendo, que há dois tipos de real implicado: de um lado, há o real que se demonstra como impossível, que é a grande definição de Lacan do real. O real é o impossível, mas o impossível se demonstra. E quando ele avança com o "não há relação sexual", é a fórmula do real que deve se demonstrar numa análise. Por outro lado, há um real que se encontra, mas não se demonstra. O real da repetição e o real da letra do sintoma constituem algo do real que se encontra na contingência, nos dois casos.
São esses "Uns", da repetição e da letra do sintoma, que fazem existir o inconsciente no real. Dessa forma, talvez possamos distinguir o que a análise faz em relação a esses dois reais. Primeiro, como uma análise demonstra o impossível da relação sexual? Lacan respondeu a essa pergunta, portanto não preciso procurá-la no texto, está no texto Introdução à edição alemã dos Escritos (LACAN, 1973/2003, pp. 553-556). No fundo, a análise demonstra o impossível da relação sexual pelo que ela escreve, e o que ela escreve é sempre o Um. "Há Um" ("Y a d'l'Un") é uma fórmula que, evidentemente, responde ao "não há relação sexual", mas que Lacan produziu alguns anos depois.
É uma demonstração fraca, não tão fundamentada; portanto, diz Lacan, pelo fato de que uma análise, por mais que avance, só vai produzir Uns, e não apenas o Um das marcas, mas o Um fálico. Vocês encontrarão essa referência no texto O Aturdito (LACAN, 1972/2003, pp. 449-497). A análise coloca a função proposicional Φ (x), o que traz a ideia de que, pela associação livre, pelo deciframento, pelo fio das ideias que se desdobram, pela re- petitio, da demanda, há o Um que se impõe subjetivamente, como conclusão subjetiva, se assim podemos dizer. Esse é um primeiro eixo da resposta.
Eu poderia ter feito um seminário apenas sobre esse ponto, mas me parece que foi convincente, muito próximo da nossa experiência. Inclusive, é por isso que a fase final de uma análise, antes do final, não é uma fase alegre, na medida em que o sujeito estava esperando uma solução para a sua solidão, ao Um dos seus sintomas, ao Um da repetição, aos impasses do amor. Ele, então, começa a perceber que não é a análise que lhe vai dar isso. Nesse sentido, existe um afeto, nessa fase do final de análise, que atesta ter o sujeito aprendido alguma coisa, que ele está se dirigindo para essa conclusão, e, portanto o "Há o Um" se demonstrou para ele.
No entanto, concernindo ao outro lado do real, o real que se encontra, que se encontrou e deixou sua marca, suas marcas, como o sujeito vai chegar a uma conclusão, como dizia Freud? E aqui invoco Freud: como o sujeito vai concluir que sua infelicidade, que ele achava única, era, no final das contas, uma infelicidade banal, ou seja, procedia de uma estrutura que vale para todos?
Voltei a me interrogar sobre as marcas da repetição e as marcas do sintoma, e sobre o que eu chamei de "as suas variáveis", porque é certo que o que Freud escreveu no Além do Princípio do Prazer (FREUD, 1920/1980), ou seja: um traumatismo, na relação com o Outro () e que persiste depois, na forma da repetição, e o traumatismo que Freud escreveu como traumatismo infantil, não somente para os neuróticos, mas para todas as crianças, é uma maneira de dizer: estrutural. Freud não usa essa palavra, mas já é uma maneira de dizer isso: traumatismo para todos, fracasso das aspirações do amor, do desejo de saber e do desejo de criar uma criança.
Lacan encontrou um termo para nomear esse traumatismo, que não pode não se produzir, dizendo, troumatisme, em vez de traumatismo, que vem do (trou) furo. É um idiomatismo que não tem tradução. É uma maneira de dizer que esse troumatisme, no fundo, provém do Outro, dessa marca do Outro que forçosamente é furado. O matema desse troumatisme é S().
A questão é que o analisante tem de perceber isso, dar-se conta disso, e constatamos que isso é possível, embora não ocorra em todos os casos; temos um signo clínico, sem que o sujeito necessite dizê-lo, a cada vez que vemos um analisante, que vem de anos e anos de análise, depois de ter denunciado aos gritos as respostas que ele obteve, de seu pai, de sua mãe e de todos os outros, acabar por dizer: "Bem! Eles fizeram o que eles puderam".
É uma coisa muito simples, mas que indica que, naquele Outro do discurso, não havia a fórmula para me responder. E é encorajador saber que é possível acontecer isso, mesmo que não se trate de todos os casos. Acabei por me perguntar se este isso poderia provir das diferenças do trauma singular de cada um, porque trauma para todos, sim, mas cada um com o seu. Aí, de novo, a estrutura avança no particular de cada caso, portanto, quais são os fatores que fazem variar essa fixação ao traumatismo?
Eu acho que existe, em primeiro lugar, o que chamo as figuras do Outro. Com efeito, falamos do Outro com maiúscula, o Outro do discurso onde o sujeito foi recebido, acolhido, mas são os outros pequenos a que dão vozes e corpo a este grande Outro A. E, neste assunto, há uma grande variedade entre cada sujeito, inclusive com o fator de que o valor social, a questão social, entra na psicanálise, de acordo com a configuração das famílias, a cultura, a ausência de cultura e todos os fatores que a diferenciam. Isso vai das formas moderadas até o oposto, as formas de excesso, que nós conhecemos como transgressões, violências, negligências, e também que um sujeito nasceu em algum lugar; e ter nascido aqui ou lá não é a mesma coisa.
Essas diferenças são as questões que interessam mais a todos os serviços sociais e educativos, um serviço que se interessa pelas formas singulares do traumatismo, especificamente as formas desfavoráveis aos sujeitos. É óbvio que a psicanálise tem de se haver também com essas questões, assim como Lacan nomeou "pais traumáticos", porque, dependendo desses "pais traumáticos", o furo pode ser mais ou menos perceptivo, e há algumas famílias em que o furo é quase tampado pela obscenidade do Outro, pela violência e excitação. É por isso que eu criei outro neologismo, tropmatismo,2 para expressar o furo tampado por um excesso.
A respeito do Outro com o qual o analisante teve de se haver, estou falando do Outro real e não do Outro fantasmático, a análise nada pode a respeito disso; e, quando há realmente um excesso, um tropmatismo, com certeza é mais difícil, não impossível, mas é mais difícil para o sujeito perceber e apreender que é uma infelicidade banal.
Isso é um primeiro fator de variável, mas existem outros pelos quais me interesso muito, que são os fatores nativos; são os fatores que não vêm do simbólico, nem da história nem do imaginário; são fatores que vêm do início, e a que Freud chamava de constituição. É muito relevante constatar como Freud, depois de ter desdobrado e desenvolvido todos os aspectos possíveis da determinação, retorna para um fator de origem, a constituição, que não dá para captar, apreender, no entanto está presente. Lacan não deu muita atenção a esta questão da constituição, no entanto eu gosto muito desta expressão que ele usou – as armas que o sujeito tem por sua natureza. Ele não desenvolveu isso, mas nós poderíamos escrever um capítulo, desenvolver esse tema, sobre quais são essas armas que o sujeito tem da sua natureza.
Apesar de se chamar isso de constituição ou por outro nome, trata-se aqui de um fator que não provém nem da estrutura, nem dos acidentes da história. Chamei de nativo, mas talvez não seja a melhor forma de nomear, pois, se eu digo nativo, estou postulando que isso não vai mudar. Em todo o caso, o que Freud chamou de recursos do sujeito, inclui no traumatismo um fator desse tipo. O traumatismo é o encontro com uma experiência do real, o encontro do real numa experiência de desamparo, mas o desamparo em função dos recursos do sujeito. Freud não explica muito também quais seriam esses recursos, mas é uma indicação de que os sujeitos são mais ou menos traumatizáveis, há os encontros com o real e também o fator pessoal. Isso está presente em Freud de uma maneira muito forte, e evidentemente em Lacan mais ainda. Freud diz, textualmente, que o traumatismo inclui a avaliação das fraquezas e de nossas forças ante um perigo.
Há uma tese que circula muito hoje em dia, não sei se aqui no Brasil também, que é a noção de resiliência. Detesto essa invocação da resiliência porque, de certa forma, é invocada frequentemente para sugerir ao sujeito que ele seja um pouco mais corajoso. Porém, existe algo de verdadeiro nessa noção, e Lacan diz isso de outra forma. Ele fala simplesmente da maneira como o sujeito responde ao real, e nessa fórmula não se trata do real que deve ser demonstrado, mas do real que se encontra, e o nome dessa maneira de o sujeito responder a esse real é a ética do sujeito. A definição que eu acabei de citar está no Seminário 7: a ética da psicanálise (LACAN, 1959-60/1991). Lacan diz que a ética não tem de se relacionar com as normas do Outro, a ética é a relação com o real, especificamente a ética individual, é a maneira como o sujeito responde ao real. Compreendemos então que, com essa definição Lacan pode falar da ética da psicanálise, de um discurso, e da mesma maneira, poderíamos falar da ética do mestre, do universitário, da histérica; e isso seria denotar a maneira como em cada discurso se responde ao real, ou melhor, a maneira como cada discurso trata o real, na medida em que o discurso já é justamente um tratamento do real.
Quando Lacan se refere à ética enquanto aquilo que responde ao real, evidentemente está falando sobre o real do gozo. A ética da psicanálise (LACAN, 1959-60/1991) é um seminário sobre o gozo, um primeiro seminário sobre o gozo. Portanto, esse fator individual, ético, está em jogo na questão das marcas, da repetição e do sintoma, que são as duas grandes modalidades do gozo, prescritas pela estrutura de linguagem. Freud falou da escolha da neurose, embora o neurótico não tenha precisamente a impressão de que tenha escolhido a sua neurose; mas Freud indica com exatidão que essa escolha é a respeito do gozo, embora ele não empregue o termo gozo, mas, quando ele diz que, na raiz da histeria, está a aversão à carne, se isso não for uma escolha de origem, o que é isso? E quando ele fala do obsessivo, esse excesso de prazer, se não se trata aí de uma captação pelo gozo, o que é então? Portanto, em nossos termos, isso é como uma resposta ética.
Chegamos, então, a uma questão crucial: será que uma psicanálise, uma aventura da psicanálise pode mudar a opção ética de um sujeito? A questão se desdobra, podemos desdobrá-la, eu a desdobro porque Lacan a desdobrou. Podemos, às vezes, mudar a opção diante do real do inconsciente, isso que é evocado por Lacan, quando invoca a mudança no horror do saber, de novo na Nota italiana (LACAN, 1973/2003, p. 313). Minha leitura desse texto encontrou diversas fases, e a última me fez perceber algo que não havia percebido antes: essa carta é uma distinção entre o desejo do saber e o desejo de saber. O desejo do saber é necessário para entrar em análise, e a marca do desejo do saber não é a marca do desejo de saber, isto é: a tese de Lacan, na Nota aos Italianos, em que ele, inclusive, aplica Freud, já que Freud tinha a marca do desejo do saber, e o desejo do saber é o desejo do significante, de desdobrar significante após significante, após significante. E produzir assim pequenos mais de saber, mais de saber e avançar sobre esses pequenos mais de saber. E como parar? Como parar quando alguém é tomado pelo desejo do saber? É necessário o desejo de saber, e Lacan diz que isso faltou a Freud, faltou a marca de saída; Lacan não formula assim, ele fala dos amores de Freud com a verdade, a verdade que corre depois do significante, e é isso que tem de cair para que haja um analista.
Então, não vamos confundir as marcas do desejo do saber com as marcas do desejo de saber, marca de saber é saber o quê? É saber as consequências do inconsciente, da estrutura, é saber o destino da repetição e do sintoma que faz para nós o inconsciente. É isso que faz o horror, não é o significante que faz o horror; ele alivia, faz esperar o Outro, é uma esperança.
Em relação ao horror do saber, primeiro passo do texto, a humanidade não quer o saber, então é necessário uma marca para detectar o desejo de saber, o qual a humanidade não quer. E, no final, é necessária outra marca, não do desejo de saber, que seria muito forte, mas, em todo caso, de uma ultrapassagem do horror de saber das consequências da estrutura. E Lacan é extremista neste texto, se o horror de saber não foi ultrapassado, não existe analista. Ou antes, não há analista digno de ser analista da Escola. Isso não vai impedir muitos analistas de funcionar, isso é muito extremo.
Na verdade, Lacan parece pensar, nesse momento, que a análise permite que o sujeito ultrapasse, leve em conta, constate, o horror ao saber. Alguns seriam até levados ao entusiasmo, um afeto que eleva, que entusiasma.
Portanto, quais são as consequências desse primeiro real, do inconsciente real? Sim, a análise tem um efeito certo, isso não quer dizer que esse efeito aconteça em todos os casos, mas ocorre suficientemente para que se diga que é possível. Podemos modificar a relação ética com o saber real, e dito de outra forma, a análise permite que o sujeito seja um pouco mais corajoso em relação àquilo que não queria saber na particularidade do seu caso, sempre.
E agora, o que vamos dizer sobre a ética do sintoma de gozo, em relação à ética da relação com o gozo? Será que iremos lograr que uma histérica modere sua aversão à carne, será que iremos lograr que um obsessivo seja menos capturado pelo seu gozo?
Acho que, neste ponto, Lacan não produziu uma resposta, mas formulou uma questão, embora não se reconheça sempre uma questão nessa fórmula. A meu ver, ele formula a seguinte questão: será que a análise de uma histérica pode fazer uma mulher? Vocês conhecem a fórmula? É impressionante, mexe muito com as mulheres especialmente, mas vamos ver o que queria dizer, quando Lacan disse isso. É que ele, assim como Freud, distingue o sujeito histérico da mulher a partir do traço da relação com o gozo carnal, a aversão na histeria; e Lacan considera que uma mulher não está nesta aversão, é a ideia dele. Mas, quando ele diz: será que podemos fazer de uma histérica uma mulher? – é isso que quer dizer, podemos levantar essa aversão. Não é uma questão que indique um desejo de retificar a histeria, é uma questão a respeito do alcance, do impacto da psicanálise, e sobre a ética em relação ao gozo. Inclusive, vou terminar com isto: quais razões teria um analista para querer transformar uma histérica em mulher? Não estamos hierarquizando os sintomas, porque seria melhor ser uma mulher sem a aversão à carne, do que uma histérica que teria a aversão? Cuidado! Temos de levar a sério essa questão, de que a psicanálise não tem de cuidar das normas, mas tentar não se preocupar com a norma, portanto concluo com isto: no que diz respeito à ética da relação com o gozo carnal, eu não vejo nenhuma indicação nos textos de Lacan que indiquem que a análise produziu uma mudança, mas ele colocou a questão.
É isso!
Referências
FREUD, S. (1920). Além do princípio do prazer. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de S. Freud, v. XXVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1980. [ Links ]
LACAN, J. (1959-60). O Seminário, livro 7: a ética da psicanálise. Versão brasileira Antonio Quinet. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1988. [ Links ]
LACAN, J. (1970). Radiofonia. In: LACAN, J. Outros escritos. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, pp. 400-447. [ Links ]
LACAN, J. (1972). O Aturdito. In: LACAN, J. Outros escritos. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, pp. 449- 497. [ Links ]
LACAN, J. (1973). Nota Italiana. In: LACAN, J. Outros escritos. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, pp. 311-315. [ Links ]
LACAN, J. (1973). Introdução à edição alemã de um primeiro volume dos Escritos. In: LACAN, J. Outros escritos. Tradução: Vera Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003, pp. 553-556. [ Links ]
Endereço para correspondência
E-mail: solc@wanadoo.fr
Tradução: Dominique Fingermann
Transcrição e Revisão: Bárbara Cristina da Silva, Pollyana Silveira de Almeida, Conrado Ramos e Ida Freitas
Revisão Final: Solange Fonsêca
* Doutora em Psicologia (Paris VII). AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano – França. Professora de FCCL – Paris. Autora de vários livros, entre os quais Psicanálise na Civilização (Contra Capa), O que dizia Lacan das mulheres (JZE), edição bilíngue do Caderno Stylus 1: O corpo falante, O inconsciente. Que é isso? (Annablume), Lacan, o inconsciente revisitado (Cia de Freud), Declinações da Angústia (Escuta), Seminário de leitura de texto: A angústia, de Jacques Lacan (Escuta), A repetição na experiência analítica, (Escuta).
1 Disponível em Stylus: Revista de Psicanálise, Rio de Janeiro, n. 23, p. 15-32, 2011.
2 Tropmatisme – neologismo criado por Soler a partir do deslocamento da palavra traumatisme, para troumatisme (neologismo de Lacan que significa o trauma produzido pelo furo), para trop (demais/ excesso) matisme. [Nota do tradutor].