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Stylus (Rio de Janeiro)
versão impressa ISSN 1676-157X
Stylus (Rio J.) no.29 Rio de Janeiro nov. 2014
ENSAIOS
Conflito entre psicanalistas1 e impasses fálicos da brasilidade
The conflict between psychoanalysts and the phallic deadlocks of the brazilianness
Christian Ingo Lenz Dunker*,I,II; Fuad Kyrillos Neto**,III
I Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP)
II Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-Brasil
III Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ)
RESUMO
Neste ensaio examinam-se as rupturas e discordâncias no interior da tradição lacaniana de psicanálise, com foco em sua inscrição cultural e sua acolhida no Brasil. Considerando-se a psicanálise como prática clínica, discurso social e dispositivo de transmissão, a hipótese desse trabalho é de que os conflitos e divisões entre psicanalistas podem ser remetidos a diferentes gramáticas fálicas, presentes na cultura brasileira, particularmente depois dos anos 1970. Pretende-se contribuir para o entendimento da grande penetração da perspectiva lacaniana de psicanálise no Brasil, como também subsidiar o entendimento mais genérico da recepção de práticas, teorias e discursos no período posterior à Ditadura Militar. Finalmente, à luz dos impasses fálicos da brasilidade apresentados no decorrer do texto, discute-se um episódio ocorrido em uma instituição de psicanalistas.
Palavras-chave: Psicanálise, Instituição, Política, Transmissão, Poder.
ABSTRACT
In this essay shall examine whether the ruptures and disagreements inside tradition of Lacanian psychoanalysis, focusing on its cultural inscription and its reception in the Brazil. Considering psychoanalysis as a clinical practice, social discourse and transmission device, the hypothesis of this study is that the conflicts and divisions among psychoanalysts can remit to differents phallic grammars, present in the Brazilian culture, particularly after the 1970. It is intended contribute to understanding of the great penetration of the perspective of lacanian psychoanalysis in the Brazil, as well as subsidize the more general understanding of reception practices, theories and discourses in the post-military dictatorship period. Finally in the light of the phallics deadlocks of the brazilianness shown throughout the text, will be discussed an episode that occurred in an institution of psychoanalysts.
Keywords: Psychoanalysis, Institution, Politics, Transmission, Power.
Introdução
Neste ensaio pretendemos examinar as rupturas e dissensões no interior da tradição lacaniana de psicanálise à luz de sua inscrição cultural e sua recepção social no Brasil. Considerando a psicanálise como prática clínica, discurso social e dispositivo de transmissão, a hipótese é de que os conflitos e divisões entre psicanalistas podem ser remetidos a diferentes gramáticas fálicas presentes na brasilidade, particularmente, depois dos anos 1970. Assim, pretendemos contribuir para o entendimento sobre a grande penetração dessa forma de psicanálise no Brasil e também para o entendimento mais genérico da recepção de práticas, teorias e discursos no período posterior à Ditadura Militar.
A psicanálise chega ao Brasil nos anos de 1920, em três contextos distintos: (1) na controvérsia modernista sobre a identidade nacional, em que ela assume um papel crítico em defesa da universalidade do sujeito, contra as teorias antropológicas do branqueamento; (2) na expansão da psiquiatria higienista, em que ela é mobilizada para renovar o discurso diagnóstico contra o positivismo francês, consagrando-se ainda como contramodelo liberal da prática hospital-asilar; (3) no debate sobre a interpretação da formação do pensamento econômico, sociológico e antropológico brasileiro, em que ela atua como uma espécie de psicologia das formas simbólicas sobre a gênese da autoridade e da dependência no contexto da colonização e da endocolonização. Essa tríplice circunstância confere caráter particular à psicanálise no Brasil a um tempo, discurso de modernização, prática clínica e instrumento teórico de reflexão sobre processos de institucionalização. Isso descreve a extensão da penetração social da psicanálise até os anos 1970, mas não basta para entender a grande facilidade e capilaridade que as formas renovadas de psicanálise encontraram no Brasil depois desse período.
O que torna interessante o estudo da rivalidade, das batalhas em torno do poder e da economia de autoridade, no caso da psicanálise lacaniana, é o modo como ela se apresenta: explicitamente como discurso destinado a tratar ou quiçá superar a forma fálica da luta pelo reconhecimento. Isso se mostra de forma clara em três conceitos mobilizados por Lacan no contexto das transformações clínicas e políticas que ele trouxe para a psicanálise francesa até os anos 1980: desejo do analista, ato do psicanalista e discurso do psicanalista.
Desejo, ato e discurso do psicanalista
Lacan (1958/1998; 1959-60/1997) desenvolve a noção de desejo do psicanalista, tendo em vista a crítica do exercício do poder como sintoma da perda da autenticidade da prática psicanalítica. O desejo do psicanalista – com o que ele comporta de falta-em-ser e de pagamento com suas palavras, com seu corpo e com o juízo mais íntimo de seu ser – surge como uma alternativa ao excesso de ser, à identificação com o psicanalista e ao sistema de garantias constituídas pela figura institucional do analista didata. Trata-se assim de autorizar ou de formar um desejo, o desejo de analista, em contraposição à construção de uma posição egoica ou de mestria. Vemos, assim, que a noção de desejo do psicanalista é formulada como solução para a distribuição institucional da autoridade, segundo as regras da identificação fálica nas quais o mestre apoia sua autoridade.
A ideia de ato do psicanalista ocorre principalmente no seminário homônimo (LACAN, 1967-68) e no importante texto que fundamenta uma nova forma de associação entre psicanalistas (LACAN, 1967/2003). O ato do psicanalista liga-se a momentos instituintes, como o início e o fim do tratamento psicanalítico, bem como a passagem de psicanalisante a psicanalista. O ato contrapõe uma dimensão temporal de dessubjetivação (destituição subjetiva), de fracasso e de travessia das identificações, justificando porque o psicanalista não se autoriza senão de si mesmo. São atos típicos: a fundação, a dissolução e a nomeação. Portanto, o conceito de ato do psicanalista é outra forma de crítica conceitual, mas agora articulada a dispositivos institucionais concretos, como o passe e o cartel, que pretendem não apenas isolar um desejo de obter a pura diferença, como o desejo do psicanalista, mas oferecer condições específicas para reconhecer tal acontecimento em uma comunidade experimental, conhecida como Escola de Psicanálise. Dessa feita, o falicismo não é questionado por uma crítica interna à qualidade do desejo ou à sua alienação, mas por uma lógica de sua distribuição, separação e reconhecimento, que pretende superar a dinâmica imaginária de identificação entre grupos, hierarquias e genealogias.
O conceito de discurso do psicanalista liga-se fortemente ao Seminário 17 (LACAN, 1969-70/1992), ao Seminário 18, (LACAN, 1971/2009) e ao artigo Radiofonia (LACAN, 1970/2003). Ele compreende uma tentativa de formalização das possibilidades de laço social, segundo a relação entre o dominante (semblantes) e o Outro, e segundo o plano da desconexão entre a produção e a verdade que lhe dá causa. Aqui, o discurso do psicanalista é deduzido do discurso do mestre, como seu avesso (l'envers) ou como uma relação de subversão. Em vez do significante mestre, como dominante, o discurso do psicanalista terá o objeto a como agente. Se o discurso do mestre toma o outro no lugar de escravo que produz um saber, o discurso do psicanalista coloca, no lugar do outro, a posição de sujeito. Subvertendo relação fantasmática, entre sujeito barrado e objeto a, como se dá na enunciação do discurso do mestre, o discurso do psicanalista trará uma disjunção entre saber e verdade.
O desejo do psicanalista, como desejo destituído de ser, fundamento e critério da ética da psicanálise, representa a promessa de um antídoto contra a transferência do sistema de interesses, da pessoa do psicanalista e das associações psicanalíticas, com a falicização da autoridade assim constituída para o interior do tratamento. Todos os poderes devem advir da palavra e de seu livre exercício. Aí está a asserção distributiva e equalizante contida na noção de desejo do psicanalista que a liga ao que Max Weber chamava de ética da convicção.
O ato do psicanalista, como ato que se adianta ao sujeito que ele cria retrospectivamente, ataca outro ponto da questão. Uma vez que o desejo do psicanalista é um acontecimento concernente à experiência relativamente privada do tratamento, como regular sua articulação com o espaço público? A crítica potencial contida na noção de ato limita e desequilibra a correspondência entre privado e público. Limita a correspondência ao ato de cada novo psicanalista de autorizarse como tal segundo sua análise. Desequilibra a fixação desse ato ao regime de reconhecimento consensual e espontâneo, pelo recurso ao dispositivo do passe. Por meio dele uma experiência privada, idiossincrática e culturalmente específica de tratamento por ser publicamente reconhecida, nomeada e inscrita institucionalmente. A nomeação com AE (Analista de Escola) é um evento de considerável falicização, mas ela seria compensada pela orientação para a transferência de trabalho, para a crítica do funcionamento da escola e para a desconstrução dos sintomas identificatórios convencionais, gerados pelo conflito fálico entre analistas. Temos assim uma espécie de complemento da ética da convicção, expressa pelo desejo do psicanalista, na ética da responsabilidade, atinente ao seu compromisso com a transmissão.
O discurso do psicanalista é uma estrutura muito mais permanente, que pretende fazer a crítica de certas formas típicas de falicização, situadas inteiramente na esfera pública, tais como educar, governar e fazer desejar. Ainda que a passagem ao discurso do psicanalista exija a mediação de estruturas complementares, como a estrutura da demanda e da transferência, reservamos aqui a ambiguidade que permitiria a emergência do discurso do psicanalista fora do contexto do tratamento. Nesse caso trata-se da intrusão, no espaço público, do que estaria suprimido pela economia da fala na situação clínica tout cour. O discurso do psicanalista pode emergir sempre que a progressão ou regressão instabiliza o discurso do mestre, tornando-se assim uma noção indispensável para pensar a prática do psicanalista em instituições em geral, não apenas a de natureza psicanalítica. Nessa medida, o discurso do psicanalista representa uma crítica à potência e à impotência dos discursos da educação e do governo, bem como um aliado que forçará o reconhecimento circunstancial do questionamento histérico.
Cada um dos momentos de teorização crítica do desejo e dos laços entre analistas contém uma pequena variação no conceito de falo. Em 1958, o falo era um significante que controlava soberanamente a dialética do desejo (LACAN, 1958/1998), e com isso as relações de reconhecimento; em 1967, ele tornou-se um caso particular do desejo, a ser contraposto em sua causa, ao objeto a, e em sua indução de significação, ao sentido (LACAN, 1967/2003). Em 1970, ele era ainda mais restrito à função de mito específico por meio do qual o significante se sexualiza (LACAN, 1970/2003).
Impasses fálicos da brasilidade
Vejamos sinteticamente como certos impasses de falicização aparecem nas primeiras inscrições culturais da psicanálise no Brasil:
(1) Na São Paulo do pós-guerra, a criação de uma instituição psicanalítica destinada à formação de novos quadros faz com que psicanalistas se aproximem de um projeto de higiene mental e se afastem dos intelectuais e artistas, seus parceiros até então (FACCHINETTI e PONTE, 2003; OLIVEIRA, 2005). A divisão entre o movimento institucionalista que pretendia fundar um braço da IPA (International Psychoanalytic Association) no Brasil e a penetração local da psicanálise como movimento cultural opunha internacionalistas e localistas. A prática da clínica psicanalítica em São Paulo ganhou impulso em 1936, com a chegada de Adelheid Koch. Nossa primeira didata demora a aprender a língua, estabelecendo em seguida critérios clássicos para sua instituição: análise didática, supervisão de dois casos clínicos e oferta de cursos teórico-técnicos (SAGAWA, 1994). Contudo, o estilo retraído e introspectivo de Adelheid, próprio de uma refugiada oriunda da Europa central, será rapidamente confrontado por Frank Philips, australiano de modos rebuscados e apresentação cosmopolita. Enquanto ela se inscrevia no espírito marginal da colônia, ele tornaria a psicanálise uma experiência para aristocratas. Virgínia Bicudo, nossa primeira analista, formada inicialmente em São Paulo, depois em Londres, manteve esse dualismo constante em sua trajetória. Vemos aqui o impasse fálico da significação das origens humildes não sem o gosto pelo estrangeiro, do comunitarismo rural, e não sem a força das famílias aristocráticas. De um lado a psicanálise como experiência ascensional, para as classes médias, de outro, a psicanálise como confirmação do signo de acesso privilegiado à cultura europeia. Vemos, assim, como a economia fálica do reconhecimento, entre nossos primeiros analistas, opunha virtudes privadas e signos públicos.
(2) Mark Burke chegou ao Rio de Janeiro em 1948 com o intuito de fazer avançar a institucionalização da psicanálise no Brasil. Alguns meses depois desembarcou o segundo didata, Werner Kemper. Em 1951, começou a grave crise no Instituto Brasileiro de Psicanálise (IBP), envolvendo Kemper e Burke. O primeiro não aceitava os questionamentos do segundo sobre a prática profissional de sua mulher, promovida pela graça dos favores do marido à condição de analista didata (PERESTRELO, 1987). Abuso de autoridade, nepotismo e clientelismo na luta pela hegemonia levam Kemper a fundar o Centro de Estudos Psicanalíticos. Em 1951, com a chegada do primeiro grupo de psicanalistas argentinos exilados do peronismo, o Rio de Janeiro sediava nada menos do que três grupos que buscavam reconhecimento da IPA (De barulhos e silêncios: contribuições para a história da psicanálise no Brasil, op. cit., p. 72). Temos aqui uma história contada em outra chave. São atos disruptivos, denúncias e imposturas. Contrapondo-se à lógica da autoridade transferida diretamente do colonizador, seus excessos e desmandos exprimem-se em recorrentes cisões, atos de desconhecimento e de recusa de reconhecimento. A gramática de compromissos e alianças, de vícios privados e benefícios públicos parece confirmar o dito de que para os amigos tudo, para os inimigos a lei.
(3) Em menos de vinte e cinco anos, a contar de 1975, quando fundou-se o Centro de Estudos Freudianos no Recife, São Paulo e Campinas e paralelamente o Colégio Freudiano do Rio de Janeiro, as cisões no lacanismo nacional parecem ter se multiplicado em ritmo acelerado. Tendo atrás de si o mito do processo francês, com a exclusão de Lacan da IPA, em 1953, a fundação da École Freudienne de Paris, em 1964, e finalmente sua dissolução em 1980, os atos de fundação e refundação parecem constitutivos do estilo de associatividade lacaniana. A cisão da Escola Brasileira de Psicanálise em 1998, dezoito anos depois da formação do Campo Freudiano no Brasil, representa o caso maior de um processo disseminador muito mais pulverizado. Ao contrário das Sociedades de Psicanálise, ligadas à internacional, nunca houve, na tradição lacaniana brasileira, um grupo suficientemente hegemônico e estável para impor seus costumes e práticas de modo unitário e inquestionado. Aparentemente estamos diante de uma combinação dos dois casos anteriores: atos de divisão motivados pela crítica ao pensamento único e à hegemonia discursiva criam novos e cada vez menores agrupamentos em torno de mestrias locais ou internacionais. Por outro lado, reforça-se o desejo de legitimidade, a crítica das imposturas e o empuxo à purificação das origens. A soma dessas duas forças – concentradas respectivamente em torno dos impasses do desejo de psicanalista e do ato do psicanalista – leva à concentração de expectativas em torno de uma comunidade que seja a um tempo orgânica e autenticamente criada segundo uma origem comum e regida por leis, estatutos e dispositivos consensualmente firmados e geridos. Esta combinação é o que se pode chamar escola, e sua expectativa é garantir o discurso do psicanalista.
Durante o período da Ditadura Militar brasileira, a percepção social da psicanálise defendendo a neutralidade do analista diante do paciente, a primazia formal do contrato e a assepsia político-moral do tratamento torna-se um problema (COIMBRA, 1995; OLIVEIRA, 2005). A universalidade do método psicanalítico, expressão da dinâmica universal entre o consciente e o inconsciente, não poderia desconsiderar o contexto local de enunciação e a sua própria economia de poder e de autoridade no interior da transferência.
É importante lembrar que a fundação da primeira associação lacaniana brasileira, em 1975, (ROUDINESCO e PLON, 1998) é contemporânea da redemocratização, da ressignificação do legado dos anos de chumbo e da nova feição institucional assumida pelo Brasil, sobretudo após 1992. Coetâneo da Tropicália e do Cinema Novo, o lacanismo propaga-se com a renovação da reflexão sobre a cultura e sobre a crise da cultura brasileira. Ele corresponde também a um experimento institucional e associativo em torno de novas formas de laço social. Além disso, ele tem uma forma de tratamento que age no interior das reformulações das políticas formal e informal do sofrimento. Durante muito tempo os analistas lacanianos deparavam-se com uma desqualificação cabal herdada da própria exclusão de Lacan pela IPA. Isso não é psicanálise, a frase ecoava entre os jovens candidatos, tendencialmente egressos dos cursos de psicologia mais do que das cadeiras psiquiátricas. Isso compunha mais um desafio ao caminho formativo, que se torna então politizado, baseando-se na narrativa revolucionária e na contracultura. Esse complexo de indiferença somado à gramática do reconhecimento negativo, que acompanhava a tensão entre as classes psicanalíticas em tempos de ditadura, impregnou o espírito do lacanismo brasileiro para o bem e para o mal.
Nesse contexto emergem em lugar de mestria inúmeros analistas lacanianos. Isso não reflete necessariamente suas atuações clínicas, mas serve como uma espécie de testemunho ou prova pública de que eles são capazes de recusar o exercício do poder. Tal exercício de mestria apoia-se em alguns dispositivos culturais importantes: o domínio da obra de um autor de língua francesa, conhecido por sua erudição e complexidade; a possibilidade de ler e interpretar diferenças políticas no interior do movimento psicanalítico; bem como o manejo de lideranças combinando hierarquias psiquiátricas e hospitalares, universitárias e parauniversitárias.
A mestria assim constituída é uma mestria acumulada, típica dos intermediários ou caudilhos dos processos de colonização. Não é que esses psicanalistas estejam inadvertidos quanto à possibilidade de manipulação da teoria psicanalítica pelas instâncias de poder. Pelo contrário, o problema parece estar na confiança excessiva de que haveria uma espécie de isolamento ou suspensão metodológica que garantiria a uma comunidade psicanalítica ser antes um fragmento cosmopolita da psicanálise mundial e só depois disso um caso particular e fortuito de brasilidade. Tal manipulação teria como resultado a dissociação absoluta entre a esfera do psicanalítico e do sujeito moral em sua vida pública e privada (CHNAIDERMAN, 1999).
Tal fenômeno agravou-se e assumiu contornos dramáticos por volta dos anos 2000, quando o panorama etário da psicanálise lacaniana alterou-se substancialmente. Em vez da distribuição entre figuras pioneiras e seus grupos de referência – mais ou menos limitado ao número de transferências que cada qual conseguia suportar – emergiu uma quantidade inusitada de alunos, candidatos e interessados na atividade psicanalítica que exigia outra reconfiguração institucional. O crescimento dos grupos se via limitado – pela primeira vez em escala nacional – pela presença de escolas lacanianas rivais nas mesmas cidades do Brasil. Isso transportou para a dimensão dos grupos a antiga prática do reconhecimento negativo, gerando por sua vez novas exigências de diferenciação teóricas, genealógicas e institucionais. A superação da lógica do trauma antropofágico e do ciclo que vai da paranoia à servidão voluntária, a ultrapassagem da cordialidade ressentida e da vigilância predatória das transferências, bem como a redefinição do tamanho da casa que deveria acolher os psicanalistas (local e internacional) firmavam-se como promessas.
Essas notas históricas permitem apresentar o que estamos chamando de impasses fálicos da brasilidade. No primeiro caso trata-se de observar que o falicismo liga-se à transmissão paterna de uma autorização para o desejo. O Nome-do-pai, como instância que localiza o falo no campo do Outro, age como organizador de um conflito de origens (LACAN, 1957-58/1998). Trata-se de um impasse próprio da filiação, que se impõe como uma espécie de meta-regra para o funcionamento totêmico da transmissão psicanalítica, com seus periódicos banquetes totêmicos e disputas de nomeação. O drama do falicismo das origens acentua-se toda vez que reconhecemos que para além das marcas formativas como psicanalista, cada um carrega suas inscrições de classe e cultura. Afinal, a soberania da transferência implica que as posições administrativas devem tencionar-se com o respeito e o reconhecimento livremente formados.
Como nos lembra Chnaiderman (1999), há uma relação entre escuta analítica e escuta política. As relações de um Estado freudiano com o poder de Estado são, portanto, de negação e reprodução, de assimetria e de simetria invertida. Isso advém do fato de que por aqui a psicanálise de extração lacaniana tenha prosperado em associação com os movimentos de resistência política e depois de redemocratização do país, mas que em seu interior, ao mesmo tempo, prosperem tolerância, práticas e costumes de baixo democratismo.
No início, dizia Lacan, está o lugar e não a origem (LACAN, 1967/2006, p. 12). E esse início prescreve lugares diferentes para os quais o falo adquire a função de indutor de comensurabilidades e trocas. Daí que toda vez que se acentue ou que se negue a função da origem e a consequente primazia genealógica como seu imperativo de pureza, chegamos a um impasse fálico. Chamemos esse impasse de trauma antropofágico, pois foi com essa denominação que os modernistas, como Mário e Oswald de Andrade, pensaram a cultura brasileira.
No segundo caso, o que se desenrola sob a efígie dos atos de fundação e dissolução, o que está em questão não é bem a origem, mas o falo como operador de pactos, alianças e associações. Trata-se aqui da regra pela qual o acesso ao gozo só é possível pela escala invertida da lei do desejo (LACAN, 1960/1998). E a lei do desejo é a lei fálica do reconhecimento do desejo como desejo do Outro. Portanto, o impasse fálico gera-se aqui pela obstrução do reconhecimento do desejo, pelo desejo de reconhecimento e, ademais, desejo transformado em demanda. Seu sintoma é a indiferença, sua prática é a constituição de grupos por exclusão identificatória. Seu impasse é o impasse do mestre que não pode se conformar em ser reconhecido apenas por escravos, ou de escravos que constituem novas mestrias como uma luta fálica permanente entre significantes mestres travestidos de leis formativas. Torna-se assim impossível que o falo circule e realize sua função distributiva entre os psicanalistas, que não seja como aliança para a conquista de novos objetivos. Disso decorrerá uma política necessariamente expansionista, colonizatória e militante. O sintoma desse impasse compõe certas patologias da autoridade tais como o clientelismo, a troca de favores e a instrumentalização das relações de proteção. Ora, o problema da pessoalização da lei é que ela leva ao sentimento narcísico de injustiça e ao ressentimento com as pequenas diferenças. Por isso esse impasse fálico poderia ser chamado, em homenagem a Sérgio Buarque de Holanda, de impasse da cordialidade ressentida.
O terceiro caso não se refere nem ao circuito paterno-filiativo, nem à dinâmica do mestre-escravo, mas a uma terceira função do falo, que é a de articular um tipo de gozo, em sua disparidade, entre homens e mulheres. O gozo fálico não é em si um problema, uma vez que é necessário para toda atribuição de sentido e distribuição da significação. O impasse do gozo fálico decorre de que sua subjetivação depende, necessariamente, de um tipo de universalidade negada tanto pela existência de exceções, quanto pela existência da não-totalidade no interior desse universal. A tendência ao fechamento do gozo fálico exprime-se em práticas de dominação ou no que Lacan chamava de exercício de um poder (A direção do tratamento e os princípios do seu poder, op. cit., p. 592). Esse é o real que está em jogo na formação das formações de psicanalistas. Formações que fazem passar do grupo à massa, da lógica da autoridade à gramática do poder, da experiência à sua forma determinada e improdutiva. Aqui, o impasse fálico decorre do uso da lei para desmentir seu propósito, da identificação com o síndico da lei, tanto com o executor sadeano, quanto com o zelador impessoal de regulamentos. Essa atitude de funcionário da psicanálise, de condutor da causa, de guardião da ordem e de vigia noturno da interpretação de texto cria um impasse fálico de tipo concentracionário. Para ele, o mundo se dividirá entre verdadeiros analistas e impostores usurpadores. Quem não está na casa-grande estará na senzala. Por isso, em deferência a Gilberto Freire, podemos dizer que se trata do complexo de casa pequena, segundo o qual a casa dos psicanalistas estará sempre pequena demais para eles mesmos – justificando a expansão permanente de seu discurso – e grande demais para os outros – justificando os expurgos e purificações.
Localismo, internacionalismo e institucionalismo
Divididos entre localistas, que aspiram algum reconhecimento para a diversidade de seus percursos formativos e para a pertinência de suas práticas clínicas; internacionalistas, que advogam uma psicanálise mundializada; e institucionalistas, que acreditam na rediviva aplicação das ideias lacanianas em matéria associativa, a tensão permanece. À medida que a penetração do lacanismo em instituições universitárias, hospitalares e educacionais avançava; à medida que, portanto, se torna mais importante produzir justificativas públicas para empreendimentos associativos, acentua-se a tensão entre institucionalistas – que querem recuperar, por exemplo, o modelo de transmissão propugnado em torno da Escola de Lacan – e os anti-institucionalistas – que preferem permanecer independentes, preservando um estilo de formação em torno de um psicanalista mais experiente, baseado em vínculos mais pessoais.
Assim, a questão da brasilidade assume duas chaves concorrentes: a da insistência no reconhecimento de um modo de sociabilidade nacional, com suas respectivas lideranças, e a do fazer-se reconhecer por instâncias internacionais, e seus respectivos baluartes. A polêmica contra a presença da psicanálise nas universidades exprime bem o caso diferencial dos que não querem ver nem as autoridades locais, nem a instituição psicanalítica, ou suas afinidades eletivas internacionais articular-se com o debate público. Inversamente, é no discurso da pureza, seja de fidedignidade da análise pessoal ou da teoria, seja da filiação genealógica, seja na aplicação das regras e dispositivos de Escola, que os três discursos se compõem e se identificam.
A causa das rupturas e dissidências nem sempre reside em significativas divergências teóricas entre grupos. Souza (1994) aponta o caráter próprio de nosso empuxo à servidão voluntária como solução sintomática para as contradições entre liberdade e justiça. A servidão voluntária seria escandida pelos rituais periódicos de devoração totêmica, cujo produto engendra desde encarnações locais de caudilhos até a "fetichização" do texto lacaniano.
Essa leitura, de natureza mais romântica e independentista, contrapõe-se com os que apostam na delimitação de regras e estatutos claros e consensualmente construídos em acordo com regras de fundação. Tanto o antídoto quanto o diagnóstico são conhecidos no Brasil como hipótese do déficit de implantação liberal. A cura para nossa servidão – a que radica na colonização por mestres estrangeiros ou seu sucedâneo na intracolonização por mestres locais – está nas regras e regulamentos, ou seja, na racionalização e impessoalização das práticas institucionais. A tensão entre românticos e liberais está presente desde o nascimento da primeira organização internacional de psicanalistas, marcada pelo debate entre o uno-original, representado pela psicanálise para vienenses, e o múltiplo-regulamentado, representado pela prática da psicanálise sem fronteiras (RIBEIRO, 2000).
Ao contrário de outras práticas liberais como a medicina ou a advocacia – para as quais as associações adquirem um valor funcional de controle corporativo, força política e representação científica – na psicanálise, especialmente na psicanálise de orientação lacaniana, as Escolas compõem uma espécie de prova social de uma eficácia ética. Elas exprimem a promessa de um novo laço social que remonta à possibilidade de erigir instituições ou comunidades redentoras, nas quais tais patologias do social seriam mitigadas ou ausentes. Enquanto as linhagens derivadas da IPA tendem a ver o poder como um problema relativamente secundário em relação à prática clínica da psicanálise; para a tradição lacaniana, a posição crítica, a crise identitária permanente e a emancipação em relação ao poder é uma expectativa constantemente renovada. Foi nessa direção que suas posições conseguiram superar o elitismo preservacionista, abrindo a psicanálise para as classes médias e para a democratização de seus meios. Porém, isso instituiu, reversamente, um novo tipo de elite, baseado no acesso a autores e tradições intelectuais de alta complexidade, transmitidas de modo não trivial. Isso foi decisivo ainda para legitimar uma vida institucional dupla, envolvendo participação em associações psicanalíticas e instituições públicas ou privadas, bem como para a expansão da prática clínica para fora do consultório particular.
O argumento liberal que privilegia a liberdade de escolha do candidato a analista é também a aposta de que tal liberdade pode ser utilizada para proliferar a prática do favor, do compromisso ou da filiação no espectro, que vai da manipulação direta de transferências até o populismo e as restrições fetichistas acerca do uso, posse ou propriedade do nome da marca, para retomar a bela expressão de Fontenele (2002). Aqui, o paradoxo crucial das escolas lacanianas é fazer-se reconhecer e conhecer mais além de seus próprios usos e costumes, de seu vocabulário e sotaques provincianos ou não. O livre acesso à transmissão corresponderá ao livre acesso às demandas de análise, o que nem sempre será bem tolerado pelas diferentes comunidades, às quais se aplica o princípio da transmissão.
A metafísica no buraco da política
As estratégias de organização e de distribuição do poder desenvolvidas pelos psicanalistas não são muito diferentes das que encontramos nos grupos tradicionais, seja o genealogismo, típico dos primeiros tempos do freudismo; as arquiteturas verticais burocráticas, características do momento de internacionalização da psicanálise; o modelo comunitário-associativo de espírito e forma liberal ou a comunidade romântica e personalista. De forma sintética, podemos opor as políticas que confiam nos dispositivos e não nas pessoas (institucionalistas e internacionalistas) às políticas que confiam nas pessoas e não nos dispositivos (contrainstitucionalistas e localistas). De modo semelhante, poderíamos opor as políticas baseadas na confiança (ética da convicção) às políticas baseadas na eficiência (ética da responsabilidade). Porém, a coesão de psicanalistas em instituições se efetiva com a exclusão do discurso do analista.
O que parece estranho na experiência psicanalítica brasileira é que a reconstituição e aplicação desse programa não estejam, com raras exceções, atravessadas por uma reflexão mais permanente e de fundamento sobre o processo colonizador, sobre as práticas institucionais correntes, sobre a diversidade de experiências políticas e implantações culturais que geralmente concorrem na formação de cada novo projeto associativo. A psicanálise é usada para pensar o Brasil, mas a brasilidade é muito pouco usada para pensar a psicanálise. Isso sobrecarrega o discurso institucional de Lacan em um universalismo formalista que facilmente se inverte em tirania localista, segundo nosso dispositivo de sincretismo cultural.
Torna-se claro que a primeira dificuldade para o tratamento dos impasses fálicos no conflito entre psicanalistas é a dificuldade crônica de alinhar uma crítica das instituições psicanalíticas que considere as vicissitudes da brasilidade. A segunda dificuldade é que os impasses reconhecidos devem ser tratados em uma língua particular que são as próprias disposições textuais de Lacan sobre o assunto. Isso torna o buraco da política imediatamente preenchido por um uso metafísico dos conceitos, dos significantes e das citações. O exercício de domínio do texto se impõe aos argumentos e investe de autoridade os contendores. Isso faz com que o texto perca sua posição terceira de mediador simbólico e desloca a contenda imaginária dos envolvidos para uma justa de sabor escolástico.
As associações psicanalíticas fundadas por Lacan possuíam um nível de abertura, inovação e democratização surpreendente, mesmo para a França dos anos 1960-1970. Baseados no experimentalismo institucional, no contexto cultural de renovação das modalidades de ensino e de questionamento do poder pelo desejo, os grupos lacanianos formaram uma espécie de vanguarda crítica e criativa, combatendo vivamente os sintomas enumerados por Lacan: genealogismo, gerontocracia, burocratismo, endogamia, falta de abertura a outros saberes, renúncia ao espírito científico de investigação e justificativa pública.
Argumentamos que tanto a grande penetração cultural da psicanálise de corte lacaniano no Brasil, quanto seus sucessivos impasses de institucionalização derivam tanto da importância assumida pelo modelo revolucionário de transmissão e de organização entre psicanalistas quanto do provimento de uma discursividade institucional. Segundo Parker (2013), esse modelo teria encontrado em solo nacional duas condições favorecedoras: uma ampla disseminação da psicologia como disciplina universitária e prática institucional, além de uma grande infiltração cultural do cristianismo sincrético. Tais condições exprimem um déficit de implantação do individualismo liberal coligado a um sincretismo cultural que, por vários caminhos, participa da implantação da psicanálise no Brasil (DUNKER, 2008). Tal programa colocaria o psicanalista como um caso de vanguarda na experimentação por novas formas de vida institucional, comunitária e discursiva. Isso é frequentemente percebido por outras formas de psicanálise ou de psicologia, como o signo de certa inautenticidade, de impostura intelectual ou mimetismo de costumes mal incorporados.
Em cada modelo do programa lacaniano há um contramodelo ou problema a ser particularmente tratado pelo laço entre analistas: a primazia da identificação com a posição fálica, no caso do desejo do psicanalista; a hegemonia do discurso do mestre-universitário, no caso do discurso do psicanalista; a noção de comportamento regrado, no caso do ato do psicanalista, e, finalmente, a noção de sociedade, no caso do conceito de escola.
Um caso real
Em maio de 2013, a até então única brasileira nomeada no Fórum do Campo Lacaniano (FCL) como Analista de Escola (AE) pediu seu desligamento. O Fórum, como é popularmente conhecido, é uma das associações emergentes no Brasil da retomada. Ele surgiu da cisão de 1998 no interior da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e representa o terceiro momento do lacanismo brasileiro, depois do período dos fundadores (1975-1985) e o tempo da expansão individual das escolas e grupos pelos estados (1985-2000). Contando com um número substancial de membros, o FCL de São Paulo mostrava-se um exemplo nacional da confluência e do tratamento dos impasses fálicos que organizam os conflitos entre psicanalistas. Analista de Escola é exatamente a função daquele que deve fazer a crítica e concorrer para a superação dos impasses institucionais que acompanham a transmissão da psicanálise em uma dada comunidade. Segundo a conceitografia lacaniana, exaustivamente estudada e detalhadamente transformada em disposições administrativas entre 2000 e 2010, encontrava-se exatamente uma situação de conflito prevista. Os chamados dispositivos de Escola, tendo o passe em seu centro. No entanto, e apesar de todas as precauções, o experimento aparentemente não funcionou conforme esperado.
Examinemos o ocorrido à luz dos impasses fálicos da brasilidade que apresentamos até aqui. Analista de Escola é uma função que continua agindo mesmo em ausência. A retirada de um AE deveria ser imediatamente percebida como um ato, no sentido do que vimos anteriormente. Mas um ato pode ser neutralizado e remetido a circunstâncias pessoais ou derrogado quanto a seus motivos. Ou seja, por mais que confiemos em dispositivos e regras impessoais de relação, a relação entre analistas ainda parece depender das tradicionais noções de reconhecimento e cordialidade. Porém, e isso parece ter um valor de generalização para o caso Brasil, pode ser mais fácil renunciar a compartilhar diferenças de percurso formativo do que reconhecer o caráter incontornável da dimensão da pessoa. Não há laço de discurso que seja imune à cordialidade ressentida que tenderá a perceber no Analista de Escola, não uma autoridade constituída, pessoal e impessoalmente, pública e privada, mas um privilégio a invejar. Nesse sentido, estaríamos diante do exemplo de um evento de trauma totêmico, ao modo do lapso na narrativa de Totem e Tabu, o momento no qual os filhos devoram o pai, para em seguida inadvertidamente se colocarem no lugar dele e assim tornarem-se a próxima vítima.
Para além dos motivos de ordem pessoal, é interessante observar a mobilização de discursos localistas contra internacionalistas, como que a formar a série que vai da servidão voluntária à paranoia semidirigida. E o efeito é previsível, uma vez que a série institucionalista foi desativada. Ou seja, depois de anos falando em dispositivos, formas, funções e instâncias, tal ato imprevisto precisa recorrer às séries suprimidas. A separação mal posta entre funções e pessoas faz esquecer que existe um discurso que escolhe pessoas para funções, que seleciona regras para casos, que aplica exceções universais. Lembramos que uma das causas da cisão com a EBP é o funcionamento do campo freudiano descrito como: "Miller dirigindo junto aqueles que lhe são próximos, mesmo quando não ocupam cargos (e quando ocupam, tudo é legitimado)" (QUINET, 1998, p. 124).
Vemos, assim, a fragilidade da confiança no discurso quando este destitui o valor das contingências, nas quais se inscrevem as pessoas. Em acordo com o tipo de capitalismo à brasileira – caracterizado pela precariedade e pela administração calculada da anomia – a categoria de impossível, como sucedâneo do conceito de Real, é convocada como princípio de poder. Temos então um bom exemplo de como a metafísica pode ser convocada para ocupar o buraco da política.
O psicanalista que se autoriza de si mesmo não impede que eles se reúnam para desautorizar uns aos outros. Dessa maneira, a potência de desprezo, indiferença e desafetação torna-se a modulação maior da lógica de reconhecimento negativo. No fundo, a desqualificação de pessoas, o destrato de diferenças de estilo, a prevalência de militância com a respectiva atitude bélica para com outras formas e grupos de psicanálise decorre da evitação em reconhecer uma condição mais simples e elementar: a inscrição cultural da psicanálise. A recusa em aumentar a densidade da biodiversidade formativa, apoiada na soberania da noção de transmissão, torna cada vez mais difícil reconhecer percursos não normativos e antes chamados estandartizados. Importa que a tensão que leva à saída da AE replica a tensão muito antes acalentada entre a capital e as cidades no interior de São Paulo.
Todo avanço científico ou aperfeiçoamento prático passa por uma concorrência relativa, seja de formas teóricas, de discursos ou de ofícios. Mas uma característica da luta pela hegemonia é reduzir a variância teórica ao erro de doutrina e o erro de doutrina à fidelidade primária. É assim que certos autores são suavemente excluídos, certos temas sobrevalorizados e algumas versões dos escritos de Lacan são canonizadas. Em vez da clínica miúda, da autoridade provisória conferida pela prática continuada, encontramos outro procedimento ascensional da cultura brasileira da retomada, ou seja, a leitura do texto sagrado com força de lei e investido de efeito normativo.
Uma associação de psicanalistas pode desenvolver um discurso universitário muito mais universitário do que a própria universidade. Mas o ponto crucial é como ela lida com a relação entre o público e o privado. Arrogância, desprezo e desdém, derivados ou não da superestimação moral ou cognitiva, são formas incuráveis da experiência humana. Contudo, algo adicional acontece quando isso se torna a dominante de um discurso. O narcisismo da casa pequena age aqui estimulando a matilha de pensamento, a polícia do uso controlado das palavras e, principalmente, a vigilância do uso idôneo e justificável da propriedade da marca. Falar em nome de, representar ou simplesmente ser visto com nos leva de volta ao fantasma das origens. Detalhamos que nos primórdios da psicanálise brasileira, o fetiche personalista da autoria aristocrática opunha-se à massificação da psicanálise como um bem de domínio público, repleto de cópias imperfeitas.
A chamada orientação para o real, mote e clamor discursivo de muitas escolas lacanianas, pode tornar-se uma orientação para segregação. A segregação é um dos nomes do real. Se os limites de minha linguagem são os limites de meu mundo, os limites de uma Escola de Psicanálise são os limites de quem, do quê e dos porquês que ela pode incluir. Nos anos de 1960 ela excluía homossexuais, incultos ou apenas e tão somente os mais pobres. A segregação é, no fundo, outro caso de colapso da função de reconhecimento. A impossibilidade de reconhecer a procedência da alternância de poder. E isso vale para dualismos como centro e periferia, local e internacional, um regime mais confederativo (reconhecendo mais as contingências e exigências locais) ou um regime federativo (reconhecendo mais um centro convergente). A tensão não se resolve pela primazia de um ou outro polo. A elipse do reconhecimento é substituída pelo eclipse de um de seus polos, como se ele não fosse apenas uma alternativa que não nos incluímos, mas uma oposição que não deve existir.
O tema do passe nos remeteria ao incômodo fato de que, apesar de muitos terem atravessado o procedimento do passe, apenas um havia sido nomeado. Nos bastidores da saída da AE pairava esta inquietação. Aqui, somos levados a reconsiderar a síntese final representada pelos discursos em detrimento da particularidade do desejo do psicanalista e da contingência do ato do psicanalista. Talvez confie-se demais na língua universal dos matemas, na potência normativa da Escola (pensada por Lacan para a França da década de 1960), na pureza trans-histórica dos dispositivos, na facilidade pela qual se poderia reconhecer a unidade da psicanálise. Por outro lado, muitos dos candidatos falam português; os passadores, espanhol e o cartel do passe, eventualmente, só francês. Entre as centenas de textos sobre o passe nesta e em outras Escolas de Psicanálise, poucos discutem o que é a língua na análise, o que é a cultura oral, o que são experiências locais de sofrimento, o que significa ser psicanalista em e para uma classe ou outra. Poucos abordam como os Analistas Membros de Escola (AME) – que indicam passadores – refletem a inscrição social da psicanálise no horizonte da subjetividade de sua época.
A soberania dos processos discursivos, a fé no ideário liberal de impessoalização racional das instituições, o exílio forçado da falsa autonomia, o temor ao espaço público, a obsessão com a representação em cargos e delegações pode extrair o que há de pior nas pessoas. Nenhum empreendimento associativo no Brasil pode desconhecer o problema da concentração não só de renda, mas de poder, com a qual nossa história foi escrita. Concentração tem aqui o sentido de concentrar, criar centro, reunir para excluir, no sentido de não reconhecer. O ideal liberal – no qual ninguém habita os dispositivos que agem como orelhas invisíveis, ajustando o mercado e os conflitos – não pode ser superado apenas pelo retorno ao ideal romântico do desejo autêntico de psicanalista, cuja prova tautológica de subsistência é o horror à mistura com os processos institucionais de poder. Ambas as posições trabalham por si mesmas, sob o fundo da barbárie política. As formas jurídicas, disciplinares e administrativas de opressão serão o sintoma da falta de mediação para os conflitos fálicos.
Referências
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Endereço para correspondência
Christian Ingo Lenz Dunker
Rua Abílio Soares, 932 – Paraíso. 04005-003 São Paulo - SP
E-mail: chrisdunker@usp.br
Fuad Kyrillos Neto
Praça Dom Helvécio, 74 Sala 122 CEP 36301-160 São João Del Rei – MG
E-mail: fuadneto@ufsj.edu.br
Recebido: 21/01/2014
Aprovado: 22/08/2014
* Psicanalista, professor livre-docente do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). AME da Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano-Brasil.
** Doutor em Psicologia Social pela PUC/SP. Docente do Departamento de Psicologia da Universidade Federal de São João del-Rei (UFSJ).
1 No escopo deste trabalho adotamos uma definição convencional e nominalista do termo psicanalista, entendendo que este refere-se aos que, sem necessária sobreposição de condições (1) dedicam-se à prática clínica autodeclarando-se psicanalistas, (2) participam de escolas, associações e grupos, formais ou informais de formação de psicananalistas (3) escrevem, participam de atividades públicas, de natureza científica, de transmissão ou de divulgação sendo assim socialmente reconhecidos como psicanalistas seja por uma comunidade mais ampla ou mais restrita. Tal definição recobre, aproximativamente, noções como as de Analista Membro de Escola, Analista de Escola e Analista Praticante, usualmente encontradas em Lacan. Não empregaremos uma definição que pretenda estabelecer o que vem a ser o verdadeiro ou legítimo psicanalista, pois entendemos que este essencialismo, ingênuo ou propositado, é um dos motivos fundamentais do conflito entre os psicanalistas, qual seja, a posse, uso e controle hegemônico ou não do emprego deste significante no interior de relações de reconhecimento.