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Stylus (Rio de Janeiro)
versão impressa ISSN 1676-157X
Stylus (Rio J.) no.33 Rio de Janeiro nov. 2016
CONFERÊNCIA
Problemas cruciais para a formação do analista na atualidade: o sujeito suposto saber em questão1
Crucial problems to the formation of the analyst in actuality: the subject supposed to know in question
Ronaldo Torres*
RESUMO
O conferencista examina neste trabalho as questões relativas à formação do analista na atualidade. Retoma o lugar de relevo dado à formação por Freud e Lacan, indicando o próprio campo da experiência analítica como núcleo dessa operação. Revigora o uso comum do termo "atualidade", retomando sua presença fundamental na clínica psicanalítica a partir da transferência, tal como proposta por Lacan enquanto "colocação em ato da realidade do inconsciente". É nesse mesmo escopo, ligado à transferência, que insere a noção de saber como centro de sua apresentação, discutindo como a experiência analítica acontece como percurso do sujeito suposto saber e, ao final, como destituição subjetiva contingente. Debate em seguida as dimensões infinita e finita articuladas à posição do sujeito em relação ao saber. O trabalho traz, então, a contribuição de refletir sobre a formação do analista enquanto operação relativa ao laço social próprio ao discurso do analista (teoria dos quatro discursos) e trata de sua apresentação naquilo que Lacan denominou psicanálise em extensão.
Palavras-chave: Formação, Atualidade, Saber, Transferência, Discurso.
ABSTRACT
In this work, the speaker examines issues related to the preparation of the analyst in actuality. He recapitulates the important emphasis placed on education by Freud and Lacan, indicating the field of analytical experience itself and the core of this operation. He strengthens the common use of the term "actuality", highlighting its fundamental presence in the psychoanalytical clinic from the transference as also proposed by Lacan in the condition of "the placement in an act of the reality of the unconscious." It is in such a scope, connected to the transference, that the notion of knowing is inserted as the trajectory of the subject supposed to know and, at the end, as a contingent subjective contribution. Later on, the work debates the finite and infinite dimensions articulated to the subject's position in relation to knowledge. The text then brings the contribution of reflecting about the analyst's preparation as an operation connected to the social bond typical of the discourse of the analyst (the theory of the four discourses) and handles its presentation in what Lacan has coined psychoanalysis in extension.
Keywords: Preparation, Current times, Knowledge, Transference, Discourse.
Elegi para minha fala aqui, para essa conversa com vocês, o "sujeito suposto saber em questão" que, como Ida Freitas mencionou, é uma passagem do Seminário 15 de Lacan, O ato psicanalítico (LACAN, 1967-68/inédito). Pretendo desenvolvê-la e veremos como isso acontece ao longo de minha fala, fala que, como sabem, sempre precisa de certa coragem para começar, mas que nunca se sabe como vai acabar.
Começo, então, por aquilo que o tema proposto suscitou, a forma como a proposta foi formulada: "Problemas cruciais para a formação do analista na atualidade". Provocado por isso, recolhi três vértices deste tema para pensar, e trouxe alguns apontamentos que me ocorreram, só para iniciar o debate.
Primeiramente, os problemas cruciais. Como sabem, não é exatamente uma expressão conceitual de Lacan, pois ele não a trabalhou como um conceito. Embora não seja uma expressão conceitual, é interessante notar que Lacan a usou em passagens importantes. Por exemplo, a passagem que considero bastante relevante, e penso que de fato o seja, em que ele se refere a essa expressão quando fala exatamente do Analista da Escola (AE), na "Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola". Não sei se lembram deste trecho, mas ele diz assim:
Analista da escola a quem se imputa estar entre os que podem dar testemunho dos problemas cruciais nos pontos nodais em que se acham eles no tocante à análise, especialmente na medida em que eles próprios estão investidos nessa tarefa ou, pelo menos, sempre em vias de resolvê-los (LACAN, 1967a/2003, p. 249, grifos nossos).
"Investidos nessa tarefa", isto é, a do tratamento dos problemas cruciais. Em seguida, ele diz: "Esse lugar implica que se queira ocupá-lo. Só se pode estar nele por tê-lo demandado de fato senão formalmente" (Ibid.). Ressalto também esse queira, queira ocupá-lo. E, na linha seguinte, ele trata exatamente sobre a questão da formação: "Que a escola pode garantir a relação do analista com a formação, que ela dispensa, portanto, está estabelecido" (Ibid.). Este é o primeiro recorte que trago.
Essa expressão também aparece, evidentemente, em alguns pontos do seminário Problemas cruciais para a psicanálise, o Seminário 12; e ali ela está vinculada ao que Lacan chama de "posições subjetivas do ser" – é o caso, por exemplo, da aula 23, mais para o final do seminário, e aparece também vinculada à questão do ser, do ser relacionado ao sujeito, no começo do resumo desse seminário que está em Outros escritos:
Que o ser do sujeito é fendido, Freud só fez redizê-lo de todas as formas, depois de descobrir que o inconsciente só se traduz em nós de linguagem, que tem, pois, um ser de sujeito (LACAN, 1966/2003, p. 206).
Queria então, de forma preliminar, extrair esses três pontos relativos a esse recorte dos problemas cruciais, que são:
1. A articulação com a experiência analítica levada a seu termo e a aposta da transmissibilidade disso como o pilar da Escola, falando dessa referência ao AE e da experiência do passe;
2. O aspecto relativo ao desejo nesse queira, que ele queira ocupá-lo, que deixo em suspenso por enquanto;
3. A articulação ao ser do sujeito no Seminário 12. Retomarei isso mais à frente, mas lembro que, como a sucessão indica, o Seminário 12 vem depois do 11, que é, por assim dizer, o "primeiro" seminário lacaniano. Alguns interpretam que os primeiros dez seminários teriam sido a incursão formidável, extremamente importante, de Lacan nos grandes temas freudianos, e que o Seminário 11 seria o primeiro seminário lacaniano. Digo isso, porque o seminário é marcado como um ato. Lacan o inicia falando sobre a excomunhão, e 1964 é o ano em que ele funda a Escola Freudiana (Ato de fundação), e também para indicar, desde já, por que falaremos mais adiante sobre isso, um percurso importante, que existe entre o Seminário 11 e o Seminário 15.
Além desses primeiros apontamentos sobre os problemas cruciais, gostaria de fazer um comentário mais geral sobre essa expressão. Porque, tenho a impressão de que Lacan assumiu uma posição permanente de tomar os problemas cruciais para tratá-los, posição que ele tomou diante da prática psicanalítica e dos problemas que se apresentavam para ele clinicamente. A obra de Lacan – na experiência que tenho com ela, a cada vez que a leio e volto a estudá-la – me transmite como ele está se virando com as questões que se lhe apresentam. Claro, muitas delas são teóricas, questões de diálogo com diversas disciplinas, diversos campos do saber, mas fundamentalmente, trata-se de um percurso de tratamento de questões clínicas que surgiam para ele.
Isso é um aspecto importante de transmissão. Muitas vezes, toma-se a obra lacaniana como uma obra hermética, ou uma espécie de doutrina da revelação, como se ali houvesse um saber fechado que apenas alguns iniciados pudessem acessar. Parece-me, contudo, ser exatamente o contrário. Penso que, nesse sentido, há um "jogo de inversão" em Lacan, que ele promovia principalmente em seus Seminários – os Escritos têm um estatuto um pouco diferente. Nos Seminários ele reunia uma porção de pessoas para ouvi-lo falar e é claro que ali havia uma transmissão dos problemas, das questões de que ele tratava, dos fundamentos da psicanálise. Porém, no final das contas, quem estava tratando as questões como psicanalista clínico, fica muito claro que era ele. Lacan queria ali trabalhar certas questões que se lhe apresentavam teoricamente, mas a partir da clínica.
Faço esse comentário lateral, porque isso tem muito a ver com a formação. É muito diferente pensarmos em uma formação que venha por uma transmissão de um saber dado, um saber posto, e em uma transmissão que seria de uma experiência, também relativa ao saber, claro, mas que traz muito presente o que poderíamos chamar de furo no saber. É isso que movimenta e que não se trata de não saber. Lacan também é muito enfático sobre isso na "Proposição". Vocês devem se lembrar de que há essa ressalva que ele faz. Ele diz que "o analista só se autoriza de si", mas logo em seguida, indica que não se trata de saber que nada sabe, pois o que se trata é o que ele tem de saber.
Essa transmissão, a partir do saber e seu furo, entretanto, não é simples, porque não responde a uma genealogia. Outra maneira de dizer isso é que ela não se transmite por alienação.
Passemos, então, ao segundo vértice do tema, problemas cruciais na formação.
Lacan percorreu um longo caminho para propor, de forma concisa, para fazer uma "redução", vamos dizer assim, um bem-dizer aquilo que chamou de junção, que se coloca, entre outras coisas, como base para a formação do analista. Aquilo que ele chamou de junção entre psicanálise em intensão e psicanálise em extensão:
Para introduzi-los nisso, eu me apoiarei nos dois movimentos da junção, o que chamarei neste arrazoado, respectivamente, de psicanálise em extensão, ou seja, tudo o que resume a função de nossa escola como presentificadora da psicanálise no mundo e psicanálise em intensão, ou seja, a didática, como não fazendo mais do que preparar operadores para ela (LACAN, 1967a/2003, p. 251).
Essa junção parece portar a propriedade de certos espaços topológicos, que são espaços unilaterais, como a Banda de Mœbius, por exemplo. Se tomarmos qualquer ponto na única face que há nela, teremos esse único ponto em uma única face, mas ele também pode ser um ponto para um corte que pode funcionar como uma passagem para outro espaço topológico, com outras propriedades. Por exemplo, uma fita bilateral que pode gerar uma esfera. Então, ele é junção e também ponto de corte.
Outra maneira de se aproximar disso é a partir da teoria dos conjuntos e da lógica da linguagem. A lógica de Port Royal, por exemplo, Lacan a cita diversas vezes; trata isso como compreensão – o mesmo que intensão – e extensão de um conceito. Todo conceito teria uma intensão e uma extensão.
A compreensão (ou a intensão) é o conjunto dos elementos que compõem o conceito. A extensão, por sua vez, é o conjunto dos objetos que recaem sob o conceito. Tomemos os números primos: sua compreensão é a dos números naturais, divisíveis por si e por um; já sua extensão são todos os objetos que recaem sob esse conceito (isto é, 1, 2, 3, 5, 7, 11...), o que revela, inclusive, tratar-se de um conjunto infinito. Vale ressaltar aí a presença da infinitização, que não é necessariamente referente à extensão, mas que, às vezes, se realiza nela, dessa maneira, por exemplo. Vemos, então, que ao se tomar um conceito é possível desdobrar sua intensão e sua extensão.
Há outras noções, formas convergentes a essas dimensões, como a conotação e a denotação, por exemplo, ou mesmo o sentido e a referência tal como Frege teorizou.
Entendo que Lacan pretendeu seguir com as noções de intensão e extensão algo que pôde extrair da orientação freudiana. Aproximando-nos, então, da questão da formação, notamos que, por um lado, Freud cuidou atentamente desse aspecto na própria experiência psicanalítica. Ele sabia conjugar, na análise de analistas que conduzia, momentos de supervisão e de instrução teórica. Mas, por outro lado, ele se ocupava, em outros dispositivos, de um trabalho em torno do saber psicanalítico, cuidando da formação de psicanalistas dedicados a pensar e desenvolver a psicanálise. É o que podemos atestar em seu engajamento institucional permanente (conferir, por exemplo, as Atas das reuniões da Sociedade Psicanalítica de Viena); um compromisso que, talvez possamos referir, como uma coletivização em relação ao saber, um trabalho coletivo em relação ao saber.
Nosso ponto de articulação central nesse encontro é a noção de saber. Além de se colocar na experiência de certa coletivização a seu redor, ele está naquilo que faz da psicanálise uma experiência original. A grande subversão freudiana, como sabem, foi exatamente reconhecer, nas manifestações nas quais só se reconhecia desrazão e loucura, as formações do inconsciente. Freud propôs que ali havia razão, havia saber: eis o ponto fundamental da subversão freudiana. Lacan pôde avançar ao distinguir saber e conhecimento e, com essa distinção, afirmar o saber inconsciente como um fundamento para a psicanálise. Uma das formas de se falar sobre o que é a experiência psicanalítica, a experiência clínica, é dizer que ela é um percurso do sujeito suposto saber.
Tomarei, então, o saber em sua relação com o sujeito em conjunto com esse ponto de articulação entre a intensão e a extensão para pensar algumas coisas sobre a questão da formação.
À primeira vista (voltaremos a isso posteriormente), parece haver um descompasso entre os termos, se tomarmos esse ponto de articulação entre a intensão e a extensão: se por um lado a psicanálise em intensão é proposta por Lacan a partir de uma finitude, aquilo que ele chama de destituição, uma destituição subjetiva, o mesmo não acontece no caso da extensão articulada à formação. Há, evidentemente, um aspecto extremamente importante para a formação na destituição, mas ela não representa tudo o que é da ordem da formação. Questionei-me, como, então, enodar destituição e formação, já que são termos que designam operações distintas. A formação diz respeito à Bildung, ligada à cultura como ideia do cultivo ao longo do tempo (uma das figuras freudianas que ilustram isso é a drenagem do Zuiderzee,2 um trabalho de civilização, de cultivo).
Passemos, então, ao terceiro e último vértice dessa parte preliminar, a questão da atualidade. Problemas cruciais para a formação do psicanalista na atualidade.
Isso remete a uma das formas pelas quais Lacan define a transferência: a transferência é a atualização da realidade do inconsciente – atualização como mise en acte, "colocação em ato". A transferência, portanto, é a colocação em ato da realidade do inconsciente, sua atualização.
Obviamente, atualidade evoca uma referência ao tempo presente, mas trata-se de um termo muito feliz e preciso por conter a marca da colocação em ato no presente de algo que é anterior na estrutura. Dispomos do trabalho extremamente precioso de Lacan, ao falar dos conceitos fundamentais da psicanálise no Seminário 11, de distinguir transferência de repetição a partir da relação entre automaton e tiquê.
Temos a atualização da cadeia na qual o significante nunca se repete, por seu valor ser sempre relativo à sua posição (que é sempre única na cadeia) e que é dado por sua diferença, uma diferença relativa. No entanto, ele atualiza também a perda de objeto, condição dessa operação.
Lacan percebe que é necessário fazer essa distinção, daquilo que ele trata como repetição, que retorna sempre ao mesmo lugar, o real como encontro, acidente, não necessário. Necessário é um termo que vem da lógica modal e Lacan o define depois como aquilo que não cessa de se escrever. Daí que o acidente, diferentemente, seja aquilo que retorna sempre ao mesmo lugar. Trata-se de uma ideia contraintuitiva, porque aquilo que retorna sempre ao mesmo lugar, que vem como acidente, não é necessário – é por isso, aliás, que é repetição, porque guarda essa mesmidade daquilo que não é assimilável, que não tem representante. Lacan retoma isso na "Proposição", quando diz que "existe um real em jogo na própria formação do analista. Afirmamos que as sociedades existentes fundam-se neste real" (LACAN, 1967a/2003, p. 249).
Há, portanto, uma posição advertida em não se confundir atualidade com novidade. A reflexão e debate sobre o que há de novo, nos tempos presentes, é tanto mais relevante quanto se leva em conta o que se atualiza da estrutura e o real que se coloca em jogo. Cito:
Conheço bem a patologia das associações e sei perfeitamente que, a miúdo, nos grandes grupos políticos, sociais e científicos reina a megalomania pueril, a vaidade, o respeito às fórmulas vazias, à obediência cega e o interesse pessoal em lugar de um trabalho consciencioso consagrado ao bem comum.
As associações, tanto em seu princípio quanto em sua estrutura, conservam certas características da família. Existe o presidente, o pai, cujas declarações são indiscutíveis, e cuja autoridade é intangível. Os restantes responsáveis, os irmãos mais velhos, que tratam os mais novos com altivez e severidade, rodeando o pai de lisonjas, porém dispostos a derrocá-lo para ocupar seu lugar. Enquanto a grande massa dos membros, parte dela segue cegamente ao chefe e outra parte escuta a um e outro agitador, ao mesmo tempo em que considera o êxito dos mais velhos com aversão e inveja e tenta suplantá-los para receber os favores do pai (FERENCZI apud COTET, 2004, p. 74).
Talvez muitos de vocês a conheçam. Essa citação é de Sándor Ferenczi. Tem, portanto, 106 anos e foi proferida no congresso de Nuremberg, que fundou a IPA. Ferenczi é considerado importante na fundação da IPA, não se opunha a ela, mas, como podemos observar, "estava prenhe de atualidade".
Podemos também pensar na situação política atual no Brasil: embora haja um apelo discursivo sobre a novidade, não há aspectos novos a serem comemorados na atualidade. Ao contrário, o atual não é novo.
Podemos também tomar "Situação da psicanálise em 1956", um texto formidável de Lacan e importante para as considerações sobre a formação. As críticas que ele faz ali têm esse mesmo sentido, essa mesma advertência, assim como o próprio texto da dissolução da Escola.
A questão para o sujeito, e portanto para a psicanálise, segue articulada, não exatamente ao novo, mas àquilo que ele "conhece bem". "Conhecer bem" é uma expressão de Lacan que se refere ao sintoma – ele a utiliza no Seminário 24, dizendo que o sintoma é aquilo que ele conhece bem, que o sujeito conhece bem, conhece de melhor, aquilo que se reproduz em sua vida, que o fixa em inibição, sintoma e angústia (pelo menos é assim que se inicia uma nova análise, o início de uma análise de alguém, quando a pessoa nos procura). E talvez, depois de um percurso, possa haver algo de novo. De novo também é um significante equívoco. Quando brincamos com uma criança, ouvimos: de novo, de novo, de novo, não quer parar.
Depois da experiência psicanalítica pode vir essa nova razão enquanto ato psicanalítico. Lacan se referiu a isso, ao articular o ato analítico ao novo discurso numa passagem do Seminário 20, na qual faz referência a Rimbaud, no poema, "A uma razão":
Sua cabeça se vira, um novo amor.
Sua cabeça se volta, um novo amor.
Passo a desenvolver, agora, uma proposta central a partir desses pontos. Pretendo indicar como a formação do analista depende de um laço social, portanto de um discurso. Um laço social original. E que esse discurso, no que tange à formação, se coloca em intensão e extensão, mesmo que guarde, entre essas instâncias, diferenças. Além disso, apontar como esse discurso tem relação direta com o lugar do saber, o lugar que o saber tem nesse laço.
Gosto da maneira como o Bernard Nominé, em uma passagem por São Paulo,3 iniciou a conferência dizendo assim: "O que se transmite em uma cura psicanalítica é a própria psicanálise". Claro! Não foi por outra razão que Lacan afirmou que qualquer análise é uma análise didática, já que a análise produz um analista. Da mesma forma como localizou o fim da análise na passagem de analisante a analista. Porém, como já indicamos, a psicanálise em intensão não é tudo o que entra em jogo quando falamos em formação do analista.
Lacan inverte a intuição sobre o tempo quando afirma que o fim é condição de um começo. Foi a isso que chegou quando formulou que o ato analítico é a passagem de analisante a analista, uma inversão do tempo. Porque o analista que está no fim, ele sustenta uma análise, o começo e o percurso de outra análise. Esse é o laço da psicanálise em intensão.
Mas o que é essa passagem? O que está implicado nessa passagem?
Abordo esse tema, porque me parece que ele nos indica as questões que levaram Lacan a se debruçar sobre o laço no que diz respeito à extensão. Essa passagem, esse passe, é a resposta em ato ao impasse ao qual a análise levou o sujeito. É esse impasse a que Lacan faz referência quando anuncia "o sujeito suposto saber posto em questão". Como já mencionei, Lacan chegou a uma formulação bastante contundente sobre isso. O passe desse impasse é a destituição subjetiva ou, de outra forma, e essa forma é mais próxima à chave que escolhi para trabalhar hoje, a queda do sujeito suposto saber.
Por exemplo, ele afirma no Seminário 15:
A transferência, eu a restaurei em sua forma completa ao reportá-la ao sujeito suposto saber. O final de análise consiste na queda do sujeito suposto saber e sua redução ao advento desse objeto a (LACAN, 1967-68/inédito).
Ou em outra passagem, diz:
A questão é: o que se torna o sujeito suposto saber? Vou lhes dizer que, em princípio, o psicanalista sabe o que ele se torna, seguramente ele cai. (Ibid.)
Em seguida, Lacan fala do des-ser, enquanto objeto a que atinge o sujeito suposto saber. Aproveitarei, então, essa referência ao des-ser articulado com aquilo que atinge o sujeito suposto saber, nesse ponto do passe, o passe como essa passagem. Tomarei isso como um "gancho" para voltar àquilo que falei antes sobre os problemas cruciais, no Seminário 12. Ele ali falava das posições subjetivas do ser e, nesse momento, retoma o des-ser.
Mas por que, no Seminário 12, Lacan se interrogava sobre o ser se ele já havia assentado a psicanálise sobre a falta-a-ser, essa marca do sujeito?
O sujeito do significante é o sujeito sem qualidades, falta-a-ser. O significante não confere um ser ao sujeito. Lacan havia trabalhado bem isso, que é tão importante para a experiência, fundamental, por ser o que sustenta a associação livre e faz o sujeito deslizar na cadeia significante, sujeito suposto saber. Aliás, este é outro conceito que Lacan desenvolveu muito bem na "Proposição", sobre o que é a posição do sujeito suposto saber. Ele diz ali: "um sujeito não supõe nada. Ele é suposto. Suposto pelo significante que o representa para outro significante" (LACAN, 1967a/2003, p. 253). Suposto ao saber, subposto ao saber, portanto.
Voltando à questão do ser e do des-ser, Lacan se deu conta de que, se havia essa posição evanescente do sujeito na cadeia, havia outra também, que o fixava, que o fazia retornar sempre ao mesmo lugar – do trauma à fantasia, como escreveu no Seminário 11, ponto do real. Também no Seminário 11, ele afirma a psicanálise como uma práxis: "O que é uma práxis? É o termo mais amplo para designar uma ação realizada pelo homem que o põe em condição de tratar o real pelo simbólico" (LACAN, 1964/1985, p. 14). E, mais à frente, "Nenhuma praxis mais que a análise é orientada para aquilo que no coração da experiência é o núcleo do real" (Ibid., p. 55). São passagens bem conhecidas e importantes do Seminário 11.
Uma das formas que Lacan buscou para abordar o registro do real na experiência psicanalítica foi a retomada do ser, uma grande subversão que ele faz sobre a longa tradição do ser. Lacan nos propõe um ser sem essência, um ser inessencial, um ponto êxtimo ao sujeito, do qual ele começa a falar no Seminário 7: A ética da psicanálise. A primeira aproximação importante de Lacan sobre essa noção do real vem de das Ding.
Trata-se, para ele, de um problema crucial dar resposta à incidência do ser no sujeito. Entendo isso como um movimento que vai do Seminário 7 ao Seminário 15, ou seja, um longo percurso – sete ou oito anos de trabalho buscando bem dizer sobre isso. Se afirmo que vai até o Seminário 15 é porque nele aparentemente Lacan chega a uma resposta, uma solução a partir da própria ideia do ato analítico. Não é por acaso que ele propõe um seminário sobre o ato psicanalítico em 1967-68, logo após tratar da lógica da fantasia (que se debruça sobre a estrutura lógica da fantasia), propondo na sequência esse passe, essa passagem, como travessia da fantasia.
A montagem da fantasia fundamental é a resposta do sujeito à falta do Outro. A falta do Outro sexo, como Lacan dirá logo em seguida, no Seminário 16. Na realidade, ali ele não fala sobre a falta do Outro sexo, mas é o primeiro seminário em que está dito, afirmado: não há relação sexual. Ele já havia dito nos seminários 14 e 15 que não havia ato sexual, e depois retoma essa afirmação numa passagem do Seminário 16, dizendo algo como "ato sexual há, o que não há é relação (proporção) sexual". Considero o Seminário 16 muito importante, pois também é aquele no qual, na primeira ou segunda aula, Lacan afirma que a "estrutura é o real".
Não há relação sexual, porque ela não pode ser escrita. Podemos apenas escrever a não relação sexual. Aliás, é importante também comentar como Lacan dá um tratamento muito rigoroso a essa noção do impossível, como o impossível de se escrever. Lembrei-me agora que no Seminário 23: O sintoma, ele afirma que o fato de não ter conseguido ainda fazer um nó de quatro não significa que este seja impossível. Só é impossível se for provado que é impossível – ou seja, é preciso dar a prova do impossível, o que é algo bastante distinto.
A fantasia é uma tentativa de escrever a relação sexual, mas escreve apenas a relação entre o sujeito e o objeto. Usei a referência ao des-ser para falar da falta-a-ser e do ser na experiência do sujeito suposto saber e seu impasse. Mas, ao final das contas, qual que é o impasse? Qual o impasse do sujeito suposto saber?
Lacan propõe que ao final das contas há... o final das contas. Não há mais contas, pois a infinitização da cadeia, outra maneira de se dizer isso, a suposição do sujeito à cadeia, figura maior da transferência, como Lacan diz, leva ao limite da fantasia, da fantasia fundamental. Um dos nomes para isso é construção da fantasia. A cadeia não deixa de ser infinita, mas deixa evidente que o sujeito retorna sempre ao mesmo lugar da fantasia, ou seja, acaba a conta. A conta pode continuar, mas ela sempre vai voltar ao mesmo lugar. A fantasia se evidencia, torna-se uma evidência.
Por que me parece importante resgatar essas ideias? Porque a ideia de que o passe em si, o ato, não é operação oriunda do saber equivale a dizer que ele não virá do Outro, já que o saber é uma relação de alienação do sujeito ao Outro da linguagem. E também não virá pelo sujeito, já que sua posição é a que se construiu em relação ao Outro na fantasia.
Essa é uma proposta bastante contundente de Lacan, a de que o ato psicanalítico é sem Outro e sem sujeito, o que leva a indicar que é um rompimento com as coordenadas simbólicas. E ele propõe que a agência desse passe seja referente ao objeto a, quando este pode passar à função causa e não à função de resposta à falta do Outro. Outra maneira de dizer isso (e Lacan sempre usou esse recurso, de dizer coisas de várias maneiras distintas) é indicar que esse ato faz um furo no saber, a partir do ponto em que a infinitização do saber não precisa, no sentido de não ser necessária, ser respondida e sustentada pela fantasia fundamental. Há, portanto, uma solidão absoluta e singularidade no ato. A partir daí, podemos seguir o que ele afirma na "Proposição": "O analista só se autoriza de si". Porque não se autoriza do Outro.
Essa rápida (e necessariamente incompleta) digressão sobre o percurso da análise é importante para tratar nosso tema da formação. Porque assim que Lacan chega a essas formulações sobre o ato, ele se dá conta de que a solidão absoluta do ato coloca questões a ele próprio: o que é uma estrutura sem sujeito? Nesse ponto de suspensão do ato, o que é uma estrutura sem Outro? O que é a transferência depois do ato, já que uma das maneiras que ele definiu conceitualmente a transferência foi com o sujeito suposto saber? Ao final das contas, o que é o próprio inconsciente a partir de então? E talvez, a maior questão de todas, o que é dirigir uma análise a esse fim, um fim no qual encontramos exatamente aquilo que, neste ponto, não se articula, não se dialetiza, não faz laço? Remeto vocês aqui algumas passagens em que ele fala sobre o horror ao ato. E também, o que é isso que permite que se dirija uma análise? Neste caso, a pergunta é pelo lado oposto: o que é isso que permite que se dirija uma análise a partir do ato, se o consideramos como aquilo que não faz laço, porque é sem sujeito, é sem Outro, sua agência é a agência do objeto?
Lacan começa, então, a indicar novas noções que conhecemos: "um saber sem sujeito", fala que aparece no próprio Seminário 15, "saber real, estrutura real, inconsciente real". Ele diz, no "Resumo do Ato Analítico", presente nos Outros escritos: "que haja inconsciente, significa que há um saber sem sujeito" (LACAN, 1969/2003, p. 372).
Há uma mudança então. Há uma operação de passagem do sujeito suposto saber para um saber sem sujeito. Que haja inconsciente (digamos, agora, real) significa que há um saber sem sujeito. E também o Outro, nessa nova acepção, enquanto Outro sexo, e as questões relativas ao gozo feminino.
Foi o que me ocorreu quando Ida Freitas me perguntou sobre o título dessa conferência, quando já refletia acerca dessa participação aqui. Mas quando ela me indagou sobre o título, pensei em uma passagem, também do Seminário 15, em que Lacan afirma:
Conviria saber onde se situam as coisas, por exemplo, quanto ao que constitui o gozo feminino. Está bem claro que é deixado completamente fora do campo. Por que é que falo inicialmente do gozo feminino? (LACAN, 1967-68/inédito, Aula de 21/02/1968).
Ele se pergunta, e responde: "Ora, talvez para precisar já algo do sujeito suposto saber em questão" (Ibid.). Lacan, então, a partir do momento em que chega à formulação do passe clínico, do ato psicanalítico, entende a importância de dizer esse ato, o ato psicanalítico: "Se é um ato e foi precisamente daí que partimos desde o ano passado [se referindo ao Seminário A lógica da fantasia], é algo que nos levanta a questão de articulá-lo" (Ibid., Aula de 28/02/1968).
Observem os problemas cruciais se colocando para Lacan. A experiência o levou a propor esse tipo de operação, um ato psicanalítico. Mas, em seguida, ele se propõe outra tarefa, outro compromisso clínico, o de dizer esse ato, articulá-lo – o que é legítimo e, mais ainda, o que implica a consequência de ato, na medida em que o ato é, por sua própria dimensão, um dizer. Lacan retoma, então, a noção de discurso, que é uma referência antiga para ele (debate com muitas disciplinas), porém para tratar da questão do laço. Que tipo de laço é esse?
Diz ele, também no Seminário 15:
Assim, as coisas se passam e isso evidencia que todo discurso produz atos como efeitos. Se houvesse apenas a dimensão do discurso, isso deveria propagar-se mais rápido. Justamente, o que é preciso destacar, é que salta aos olhos que esse discurso, que é o meu, tem essa dimensão de ato, no momento em que falo de ato. Pensando bem, esse é o único motivo da presença das pessoas que estão aqui (Ibid., Aula de 24/01/1968).
E prossegue: "Não estamos no plano de prestações de serviços universitários. Não posso lhes oferecer nada em troca de suas presenças, o que os diverte é que vocês sentem que algo se passa" (Ibid.). E, ao final do seminário, ele coloca isso como uma espécie de compromisso do analista:
É justamente o que acabo de levantar, a saber, o da consistência de um discurso. É justamente porque o analista, até agora, não sabe sustentar o discurso de sua posição, que ele faz qualquer outro. Ele faz esse tipo de ensinamento que é como todos os ensinamentos, embora o seu não devesse parecer em nada com os outros, como nada de outro. Ensinará tudo, não importa o que, salvo a psicanálise se não souber sustentar o discurso de sua posição (Ibid., Aula de 27/03/1968).
Hoje, evidentemente, nos encontramos em posição que permite acompanhar a obra de Lacan e notar como a teoria dos discursos surgiu como resposta às questões levantadas pelo ato psicanalítico.
Mas considero importante a maneira como isso também está posto em ato por Lacan no discurso. Refiro-me aqui ao "Discurso na Escola Freudiana de Paris", redigido em dezembro de 1967, portanto, dois meses após a "Proposição". Ali, Lacan retoma seu "Ato de fundação", de 1964:
Mas se de fato estive só, sozinho ao fundar a escola, tal como, ao enunciar este ato eu disse com audácia, tão sozinho quanto sempre estive em minha relação com a causa psicanalítica, ter-me-ei nisso acreditado o único, eu já não o era, a partir do momento em que um ao menos me seguisse o passo e não por acaso aquele cujas dádivas atuais interrogo. Com todos vocês naquilo que faço sozinho, haverei eu de me afirmar isolado? Que tem esse passo, por ser dado sozinho, a ver com ser o único que se acredita ser ao segui-lo? Não me fiei eu na experiência analítica, isto é, naquilo que me chega de quem com ela se virou sozinho? Acreditasse eu ser o único a tê-la nesse caso, para quem falaria? Antes, é por alguém ter a boca cheia da escuta sendo a sua única o que vez por outra lhe servia de mordaça. Não existe homossemia entre o único (le seul) e sozinho (seul). Minha solidão foi justamente aquilo ao que renunciei ao fundar a escola. E que tem ela a ver com aquela em que se sustenta o ato psicanalítico senão poder dispor de sua relação com este ato? (LACAN, 1967b/2003, p. 267).
Bom, não me estenderei sobre a teoria dos discursos, mas com ela Lacan pôde construir o avesso do discurso do inconsciente, ao qual chamou prevalentemente de "Discurso do Mestre". Ele indicou algumas vezes que o discurso do mestre é o discurso do inconsciente, e pôde construir o avesso do discurso do mestre, ao qual chamou de "Discurso do Analista".
Parece estranho dizer que o Discurso do Analista é o avesso do discurso do inconsciente. Mas vejamos: o Discurso do Mestre é discurso do inconsciente, porque formaliza a estrutura do sujeito suposto saber. Se tomarmos o patamar de cima, o infinito da cadeia significante que supõe um sujeito e se sustenta pela fantasia, sendo o objeto a a produção:
O duplo giro, os dois quartos de volta que Lacan propõe é outra forma de dizer das duas operações da análise que, incrivelmente, foram propostas desde 1946 – algo notável, estranho até, se considerarmos que seu ensino apresentou mudanças significativas ao longo de seu percurso. Ele propõe, entre o Discurso do Mestre e o Discurso do Analista, a histerização do discurso como um giro, e depois outro giro para o discurso do analista. Eis as duas operações: o instante de ver e o momento de concluir, que encerram um tempo de compreender; que, perfazem o tempo de compreender. Lacan formulou esses conceitos de outras formas, como quando fala das operações de alienação e separação, tomadas como tempos de uma análise, ou a partir dos termos retificação subjetiva e destituição subjetiva, ou ainda, entrada em análise e fim de análise, que podem ser localizados também no quadrângulo do ato psicanalítico nos Seminários 14 e 15.
No Discurso do Analista, temos o a no lugar de agente, tal como ele já havia formulado antes da Teoria dos Discursos. Lacan já havia tratado disso no Seminário 15, ao dizer que nesse passe, no passe clínico, a agência era do objeto a como função de causa, e o S1 como a produção desse significante extraordinário, significante fora de série.
Gosto do texto de Jairo Gerbase, que está em Hipótese lacaniana (2011), em que ele fala do inconsciente real. Parece-me que ali ele trata dessa ideia do significante fora de série – se não me engano é o significante água, que aparece a partir de um sonho, um fragmento clínico; essa ideia de Lacan já havia sido trabalhada em um momento posterior, do "Prefácio à edição inglesa do Seminário 11", de que quando uma formação do inconsciente já não tem sentido algum, temos a certeza de estar no inconsciente. O significante real. Há uma passagem de Jairo Gerbase na qual ele afirma que "o inconsciente não suporta a amizade" (GERBASE, 2011, p. 32). Parece-me um modo interessante de tratar esse ponto do real, do significante real. E da forma como entendo, o significante da falta do Outro, talvez outra maneira de dizer desse significante fora de série seria aquilo que faz borda no furo do saber, onde a verdade dá lugar ao saber furado. O saber furado no lugar da verdade.
Entendo que Lacan tenha buscado formalizar no discurso do analista um laço social que fosse afeito ao ato analítico, e considero realmente notável que ele tenha proposto a estrutura formal da Escola a partir do passe e do cartel, que são dispositivos que realmente verificam esses termos e esses lugares. E são dispositivos que derivam do psicanalista. Ele é muito claro no início da "Proposição", abrindo-a dizendo: "Vamos tratar de estruturas asseguradas na psicanálise e garantir sua efetivação no psicanalista" (LACAN, 1967a/2003, p. 248). É do psicanalista que ele passa um bom tempo falando até a conhecida passagem: "o analista só se autoriza de si mesmo". Portanto, trata-se de uma aposta de Lacan, uma aposta que, acredito, não precisa ser a única para esse tipo de laço, mas que se dirige para que as transferências possam se apresentar a partir de outra estrutura, outro discurso.
Recapitulando, retomei duas formas de se referir à transferência: sujeito suposto saber e atualização da realidade do inconsciente, duas formas conceituais com que Lacan abordou a transferência. Talvez possamos contar com essa segunda para pensar outro laço. Depois da queda do sujeito suposto saber, depois de uma destituição dessa apresentação da transferência, talvez possamos contar com essa outra apresentação, da atualização da realidade do inconsciente, mas talvez não mais na vertente simbólica que isso toca, e talvez, como atualização do real do inconsciente no discurso do analista. Daí a ideia do avesso.
Isso para retomar a vertente do infinito, porque fazia essa diferenciação quando falei de destituição e formação. Na destituição há uma posição finita, ao passo que na formação é importante que não haja, que ela continue fazendo laço – o nosso laço entre analistas, o laço de cada psicanalista com sua própria formação e o laço com as pessoas que se aproximam, que buscam formação.
Lacan deu um nome para isso: transferência de trabalho. Ele não tratou muito disso. Então temos essas formas de se referir sobre a transferência: "atualização da realidade do inconsciente", "sujeito suposto saber" e, depois, aparece esse dizer sobre a transferência de trabalho, essa forma de atualização. Se pensarmos em usar essa maneira de se referir à transferência, como uma atualização do real do inconsciente, considero importante pensá-la como "um a cada vez", não pelo modo do necessário, mas talvez do contingente, aquilo que ele definiu como o que cessa de não se escrever. E, de fato, nossa experiência coletiva demonstra que não há garantias sobre isso. Se há alguma coisa do analítico, do discurso do analista no laço social, e acredito que há, isso não é realmente da ordem do necessário.
O que me faz pensar sobre uma instabilidade do discurso do analista, e parece-me que esta é uma questão a ser mais bem elaborada, talvez um trabalho coletivo. O discurso do analista, talvez, seja um discurso instável. Os fracassos no passe, no dispositivo do passe, parecem atestar isso. Claro que os passes que não são autenticados atestam esse modo da contingência, e é importante que o passe não seja do campo do necessário (ele tem essa vertente do fracasso que faz as coisas andarem).
Mas há também os fracassos e disfuncionamentos que, acredito, são de outro matiz. Não só o passe, há outros movimentos também, movimentos relativos às transferências que buscam mantê-las sobre a estrutura do sujeito suposto saber, colonizações de transferências, algumas vezes.
O sujeito suposto saber não é o fim: é importante colocá-lo em questão, ele não é posto como fim. Talvez seja uma tarefa fazer da infinitização, de certo modo do infinito, a partir de uma finitização, de um finito, de um ato, passar a outro tipo de infinito, a outro tipo de laço. Talvez esse infinito tenha a ver com as nossas formações como analistas, e talvez tenha sido um dos exercícios que Lacan tentou praticar.
Trouxe essas reflexões para vocês para pensarmos que foi um desses exercícios, um desses problemas cruciais, que incomodaram essa figura inquieta que era Jacques Lacan e que o levou a tratar o discurso do analista, enfim, como uma aposta.
Referências
COTET, S. "Uma sexta psicanálise de Freud: o caso Ferenczi" In: Ornicar 1. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004. [ Links ]
GERBASE, J. (2011). A hipótese lacaniana. Salvador: Campo Psicanalítico. [ Links ]
LACAN, J. (1964). O seminário, livro 11: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 1985. [ Links ]
__________. (1964-65). O seminário, livro 12: Os problemas cruciais da psicanálise. Publicação interna CEF, 2008. [ Links ]
__________. (1967a). "Proposição de 9 de outubro de 1967 sobre o psicanalista da Escola" In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. [ Links ]
__________. (1967b). "Discurso na Escola Freudiana de Paris" In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. [ Links ]
__________. (1967-68). Seminário, livro 15: O ato psicanalítico, inédito. [ Links ]
__________. (1968). "Resumo do seminário O ato psicanalítico" In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2003. [ Links ]
Endereço para correspondência
Av. 9 de Julho, 3229 - Conj. 110
CEP 01407-000 – Jd. Paulista – São Paulo (SP)
Tel. (55) 11 3051 8289
E-mail: ronaldotorrescl@gmail.com
Recebido: 25/08/2016
Aprovado: 12/09/2016
* Psicanalista. Doutor pelo Instituto de Psicologia (USP)
1 Conferência pronunciada em 03/06/2016 na ocasião da Diagonal Epistêmica do Fórum do Campo Lacaniano de Salvador.
2 Nota do autor: Referência ao Golfo de Zuiderzee, nos Países Baixos, uma das planícies com lagos de água doce que se ligam ao Mar do Norte por um dos braços do rio Reno. Em razão das constantes cheias, que ocasionavam enchentes, por volta do ano 400, os habitantes da região construíram diques, que lhes permitiram refugiar-se durante as cheias e aproveitar as terras para a agricultura.
3 Nota do autor: Referência à conferência "A transmissão da psicanálise", proferida durante a Jornada de Encerramento do Fórum do Campo Lacaniano em São Paulo em 03/12/2011.