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Stylus (Rio de Janeiro)

versão impressa ISSN 1676-157X

Stylus (Rio J.)  no.33 Rio de Janeiro nov. 2016

 

PSIQUIATRIA NA ATUALIDADE

 

Sujeito do inconsciente e sujeito de direito: ponto de conjunção ou de disjunção na interlocução da psicanálise com a saúde mental?

 

Subject of the unconscious and law subject: conjunction or disjunction point in the dialogue of psychoanalysis with the mental health?

 

 

Paulo Bueno*

Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social. Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade
Centro de Atenção Psicossocial Infantil Espaço de Vida
Fórum do Campo Lacaniano – São Paulo

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A inclusão do discurso psicanalítico nas instituições públicas de atenção psicossocial se faz cada vez mais presente e, como consequência, tem gerado um debate no campo sobre seus limites e alcances. Um importante ponto deste debate está na noção de sujeito. A Reforma Psiquiátrica brasileira elegeu como meta central a restituição de direitos historicamente destituídos dos usuários dos equipamentos substitutivos ao manicômio. Neste contexto o sujeito em sofrimento é, muitas vezes, tomado prioritariamente como sujeito de direitos no planejamento das ações em equipes multiprofissionais. Há autores que propõem que entre sujeito do inconsciente e sujeito de direitos há uma equivalência. Problematizaremos tal proposta – a partir de uma imersão na filosofia do direito, de onde se origina o termo – para indicar a imprecisão de tal equivalência, demonstrando, em seguida, que a noção de sujeito de direitos tem limitada contribuição enquanto operador clínico. Serão exploradas as críticas que Lacan teceu à transformação da saúde em um direito, prevenindo aqueles que operam no campo assistencial dos riscos que comportam ceder de sua posição. Por fim, propor-se-á que o psicanalista sustente nas equipes de atenção psicossocial não o amálgama ao arcabouço conceitual hegemônico, mas sim a multiplicidade discursiva, de modo que possa garantir entre as brechas institucionais o espaço do sujeito desejante.

Palavras-chave: Sujeito de direito, Psicanálise, Atenção psicossocial, Saúde mental.


ABSTRACT

The inclusion of the psychoanalytic discourse in public institutions of psychosocial care has become increasingly present and, as a result, this has produced a debate in the field about its limits and reaches. An important point in this debate is the notion of subject. The Brazilian Psychiatric Reform has elected as a central goal the restitution of historically deprived rights of users of substitutive equipment to the asylum. In such a context, the suffering subject is very often taken primarily as a subject of rights in the planning of the actions in multidisciplinary teams. Some authors propose that between the subject of the unconscious and the subject of rights lies an equivalence. We problematize such an argument through an immersion in the philosophy of law, where this term comes from, indicating the inaccuracy of such equivalence by demonstrating later on that the subject of rights notion poses a limited contribution as a clinical operator. Lacan's reviews on the transformation of health into a legal right will be explored, calling the attention of those who operate in the healthcare field to the risks inherent to the decision of giving away their position. Finally, we propose that the psychoanalyst supports in the teams of psychosocial attention, not the amalgam of the hegemonic conceptual framework, but a discursive multiplicity, so that the space of the desiring subject can be guaranteed amongst the institutional gaps.

Keywords: Subject of law, Psychoanalysis, Psychosocial care, Mental health.


 

 

[...] o doente, antes excluído do mundo dos direitos e da cidadania, deve tornar-se um sujeito, e não um objeto do saber psiquiátrico. A desinstitucionalização [...] é um processo ético, de reconhecimento de uma prática que introduz novos sujeitos de direitos e novos direitos para os sujeitos (AMARANTE, 1995, p. 494).

Saúde Mental e psicanálise, sujeito de direitos e sujeito do inconsciente: termos que se opõem, se sobrepõem ou que se complementam? Podem coexistir em um mesmo equipamento de Atenção Psicossocial práticas orientadas por estes conceitos?

Tentarei elaborar algumas reflexões com base nestas perguntas, colocando no centro o conceito de sujeito de direitos. Como ponto de partida será utilizado o texto Saúde mental e ordem pública (MILLER, 2001), originado de uma conferência proferida em 1988 na Espanha. Faremos a explanação de duas equivalências estabelecidas pelo autor: a primeira, entre saúde mental e ordem pública, em que afirma que o conjunto de dispositivos institucionais de tratamento é marcado pela função de manutenção da ordem pública e que seus usuários são aqueles que perturbaram a ordem; na mesma linha, o autor estabelece outra equivalência, a de que o sujeito do inconsciente é o sujeito de direitos. Este texto é de grande importância, pois auxilia a situar a função social dos dispositivos de Saúde Mental e traz legibilidade à demanda direcionada aos profissionais deste campo. Porém, não contribui para uma necessária delimitação entre o campo psicanalítico e o da Saúde Mental. Assim, recorreremos a alguns autores da área jurídica para defender que não há grandes vantagens teórico-operacionais para o campo da Atenção Psicossocial na equivalência entre sujeito do inconsciente e sujeito de direitos.

O autor afirma categoricamente que a "saúde mental é uma parte, uma subcategoria, do conjunto da ordem pública" (Ibid., p. 56) e que a perda de saúde é perturbação da ordem. Aos profissionais de Saúde Mental cabe a decisão de quem poderá circular pelas ruas – será eleito aquele que não trouxer grandes perturbações e tampouco apresentar um potencial grau de periculosidade. Essa é a principal demanda social aos equipamentos de Atenção Psicossocial: decidir quem está apto ao convívio coletivo. Isto aproxima os profissionais de Saúde Mental dos operadores da justiça e dos policiais. O que os diferencia é o fato de que a via de ação do profissional de Saúde Mental é o tratamento, enquanto a dos juristas e dos policiais é a punição. Estes, com base no ordenamento jurídico vigente, têm como alvo as ações e omissões daquele que responde pelo que faz. Já o sujeito ao qual se dirige o profissional da atenção psicossocial é aquele que não é responsabilizado por seus atos, com base no princípio de inimputabilidade, cuja definição podemos verificar no artigo 26 do Código Penal Brasileiro (2012):

É isento de pena o agente que, por doença mental ou desenvolvimento mental incompleto ou retardo, era, no momento da ação ou omissão, inteiramente incapaz de entender o caráter ilícito do fato ou determinar-se de acordo com esse entendimento (Ibid., pp. 240-241).

Miller (2001, pp. 55-56) irá alicerçar sua definição de sujeito de direitos na noção de responsabilidade. Logo, aquele que não responde pelos próprios atos não é um sujeito de pleno direito. Nesta perspectiva o autor afirma que a psicanálise se dirige ao sujeito de direitos, que seria o que responde pelo que faz e pelo que diz. Na mesma esteira afirma que o sujeito de direitos é o mesmo que o sujeito da enunciação e da castração e que a entrada em análise implica um sentimento de culpa que traz em seu bojo o questionamento sobre si. O sujeito de direitos, assim como o sujeito psicanalítico é aquele que demanda, que tem queixas e as leva para o setting analítico, é aquele que pode reivindicar, ou, em outros termos, aquele que tem "direito a". Ao mesmo tempo, o sujeito de direitos é o sujeito do dever, na medida em que é orientado pelo imperativo "tu deves cobrar" do Outro.

Constituem material de grande valia as reflexões deste texto, mas é importante que nos detenhamos na equivalência entre o sujeito psicanalítico e o sujeito de direitos. Alguns autores têm se amparado nessa equivalência para pensar a interface com o campo da Atenção Psicossocial. Todavia, é preciso notar que Miller parte de uma definição precisa, porém recortada da noção de sujeito de direitos, ao tomá-la pelo viés único da responsabilidade. E mais: conclui seu escrito traçando uma oposição entre atuação psicanalítica e as intervenções em Saúde Mental. Partiremos da hipótese de que se objetivamos estabelecer um diálogo entre os dois campos que possibilitem novos modos de intervenção em Saúde Mental, bem como a possibilidade de circulação do discurso analítico em seus equipamentos, devemos ampliar a definição de sujeito de direitos milleriana e questionar a partir desta ampliação se ainda há um ganho conceitual na equivalência com o sujeito do inconsciente.

Partiremos do filósofo do direito Costa Douzinas, que realiza uma leitura da contemporaneidade a partir das teses de que vivemos em uma cultura dos direitos humanos e de que a ideologia dominante na atualidade é a ideologia dos direitos. O autor, que sofre influências da psicanálise lacaniana, realiza uma leitura crítica do conceito de sujeito de direitos a partir da construção dessa noção na filosofia e no direito e analisa o impacto social de sua predominância. Expõe que:

Para Kelsen, o sujeito jurídico, em vez de ser o centro da lei, é um construto jurídico secundário, um espaço lógico ou point de capiton, que ajuda a aproximar e a combinar uma série de normas e regras de comportamento. O sujeito é o portador de direitos e deveres, uma personificação de normas. Conforme observa Kelsen, a "pessoa jurídica não é um ser humano, mas uma combinação personalizada de regras jurídicas" (DOUZINAS, 2009, p. 241).

Nota-se, assim, que o sujeito de Hans Kelsen, sendo um construto jurídico, é um operador teórico aplicável ao campo judicial; o sujeito do inconsciente é teórico tão somente na medida em que é a formalização de um fenômeno analítico. Para a emergência do sujeito psicanalítico basta que se ligue um significante ao outro, ou um ato falho, sonho, lapso etc. Para que o sujeito jurídico entre em cena é preciso um arranjo jurídico-institucional que dê suporte ao seu aparecimento.

Douzinas afirma que o sujeito de direitos "posiciona-se no centro do universo e pede à lei para garantir suas prerrogativas sem maiores preocupações quanto às considerações éticas e sem empatia pelo outro" (Ibid., p. 246). É um sujeito cujo imperativo ético é o "reivindica!", e para tanto o cálculo em jogo é o da maximização dos direitos, buscando, sim, um benefício coletivo, porém é o benefício coletivo de um grupo de pertença do qual se é integrante, seguindo a lógica das identidades culturais. A forma que este discurso, que é o discurso dos direitos, assume na atualidade é a de uma estrutura discursiva que é regida por uma gramática cujos termos se resumem à polaridade de ter ou não ter direitos. Significantes como solidariedade, consciência de classe, coletivismo, responsabilidade e ética são termos contingentes e não necessários em tal discurso. O que está em questão é a localização do sujeito de direitos do ato judicial e a posição ética por ele assumida. Constata-se que este sujeito é, antes, o depositário da norma jurídica do que aquele que se posiciona e se responsabiliza.

Este sujeito sem considerações éticas se contrapõe ao sujeito de direitos definido por Miller como responsável. A formulação do direito positivo é a do sujeito jurídico como um mero suporte que será contemplado por um direito ou cobrado por um dever; não possui um caráter pré-definido. A definição do sujeito de direitos como aquele que responde pelos seus atos é incompleta; atesta-se este fato a partir de uma breve análise do uso do termo no campo jurídico. O conjunto das categorias de seres que se enquadram na definição amplia-se largamente: aquilo que em 1789 surgiu como direito dos homens se ampliou metonimicamente para mulheres, crianças e escravos; atualmente no Ocidente engloba todos aqueles que são nascidos em uma nação, e luta-se para que casos especiais passem a ser enquadrados enquanto sujeitos de direito. O exemplo emblemático é o da tradição da tribo ianomâmi, que tem a prática de matar os bebês recém-nascidos que podem representar alguma maldição à tribo. Existe projeto de lei (CÂMARA DOS DEPUTADOS, 2007) em tramitação que visa criminalizar esta prática e tomá-la como infanticídio, ou seja, defende-se a primazia do direito à vida e busca-se tomar como sujeito deste direito os bebês ianomâmis. Não será necessário que se entre no mérito da discussão sobre o que deve ser priorizado: a soberania cultural da tribo ou o direito à vida dos recém-nascidos, o foco é acentuar a tendência atual de resolver questões complexas transformando a todos em sujeitos de direitos. Outro caso exemplar é o do projeto de lei norte-americano de incluir o feto como sujeito de direitos, não mais como parte do corpo da mãe, podendo esta responder criminalmente por negligenciar o feto em gestação.

O exemplo que melhor ilustra nossos argumentos – para que refutemos de vez a ideia de um sujeito de direitos vinculado exclusivamente à responsabilidade – é o dos animais como sujeitos de direitos. O caso dos direitos dos animais impõe algumas reflexões, pois revela de modo contundente o caráter de depositário do sujeito jurídico; este caso configura uma ampliação do conceito de Kelsen que afirma que o sujeito tem direitos e deveres e, embora os animais não possuam deveres no sentido jurídico do termo, são entendidos por muitos juristas como seres que devem ser contemplados em seus direitos essenciais.

Essa curiosa plasticidade do conceito opera porque o sujeito jurídico é concebido como uma derivação da norma jurídica (KELSEN, 1960/1968, pp. 188-189); ele é, em essência, uma criação da lei, a lei cria o sujeito de direitos. Tal definição implica uma noção abstrata de igualdade que é a base para se pensar que tais sujeitos são iguais perante a lei. Essa igualdade é uma ficção, e o sujeito do inconsciente emerge para denunciar essa ficção e inscrever a singularidade. Uma breve vinheta de um caso ocorrido em um Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) infanto-juvenil da Grande São Paulo servirá para ilustrar tais afirmações. Madalena (nome fictício), mãe de uma paciente de oito anos, dizia sempre que todos os seus problemas eram causados pelo comportamento da filha. Viviam em uma situação paupérrima em que a base de sustento da casa era o bolsa família. Raissa (nome fictício) começou a envolver-se em brigas na escola – agredia e era agredida pelos garotos de sua sala. Além disso, com seus gritos, cantorias e agressões ao irmão perturbou a ordem e tranquilidade do quintal da casa em que morava, o que provocou reclamações dos vizinhos e consequente despejo por parte do proprietário. Por fim, após uma atuação histérica em que a garota se despiu durante o atendimento psicoterapêutico que fazia na Unidade Básica de Saúde (UBS), foi encaminhada para o CAPS por sua psicóloga, que entendeu que naquele momento a UBS não daria conta das demandas que eram apresentadas por essa família. Madalena alegava que não tinha dinheiro, porque não podia trabalhar para cuidar dos seus dois filhos, disse que não encontrara vaga na creche próxima à sua casa para o mais novo, de dois anos. As reivindicações eram claras e as respostas para a resolução da situação não menos evidentes. O assistente social do CAPS conseguiu vaga em creche para o garoto e ajudou a mãe a arrumar um emprego, inscrevendo-a no Programa Frente de Trabalho. À garota foi oferecido um espaço de escuta e em pouco tempo cessaram os sintomas iniciais e passou a construir laços sociais mais positivos na escola. Em poucas semanas Madalena foi demitida, após recorrentes faltas no trabalho, e deixou de levar o filho à creche, perdendo a vaga. Trabalhou-se no sentido de garantia de direitos, mas não houve a escuta do que se enunciava para além da reivindicação. O sujeito do inconsciente, em ato, mostrou sua impossibilidade de ocupar o lugar abstrato que a norma jurídica reservou ao sujeito de direitos. Por outro lado, se a garota teve alguma possibilidade de beneficiar-se dos efeitos da intervenção analítica foi em decorrência de ser um sujeito de direitos. A mãe só procurou ajuda psicológica para Raissa pelo fato de temer que a garota parasse de frequentar a escola, condição para o repasse do benefício do bolsa família. Portanto, o que se constata a cada momento é que estamos em um delicado emaranhado que só nos apresenta paradoxos.

Este é apenas um exemplo para pensarmos sobre o intrincado campo em que um dado discurso, o dos direitos, se erige como hegemônico na estrutura social. Tal discurso se destaca por sua particular capacidade de descrever situações políticas complexas e conflitivas em termos normativos relativamente simples. É um discurso que assume que a sociedade caminha para uma homogeneidade cultural e moral e que traz implícita a crença de que o mal-estar se dissolverá paulatinamente. Esse discurso se entrelaça com uma certa política de identidade cultural. Tal política de identidade tem como base as categorias de diferença e de igualdade, e esta é a linguagem de expressão de reivindicações: "almejo tal direito, pois é preciso tratar diferentemente meu grupo identitário para que assim possamos atingir a igualdade". A política de identidade, portanto, não tem em seu centro a noção de singularidade, mas sim a dupla igualdade/diferença, que nos remete ao narcisismo das pequenas diferenças.

O uso do discurso dos direitos para descrever normativamente um conflito social ou um conjunto de reinvindicações é uma forma limitada de narrativa. Tal discurso propõe que um certo número de reinvindicações possa ser traduzido em uma única linguagem comum. Essas reinvindicações são oriundas de um conflito social absolutamente complexo que envolve disputa de classes, interesses de cunho econômico, étnico e cultural; tais reinvindicações são produções discursivas de sujeitos e coletivos que possuem histórias singulares. Precisamente por esse motivo se faz necessária a demarcação do lugar em que opera a psicanálise no campo da Saúde Mental, para que se evite o amálgama do discurso psicanalítico ao discurso dos direitos. A escuta das reinvindicações deve estar para além do discurso dos direitos que em sua gramática simplificadora tem apenas duas direções: a de conceder direitos ou a de negá-los.

Lacan, ao analisar a transformação – iniciada nos fins da década de 1940 com o surgimento da Organização Mundial da Saúde (OMS) – da saúde em direito, indica que a resposta à demanda no campo da saúde, ainda que seja uma demanda por direitos, não pode ser negligenciada:

O desenvolvimento científico inaugura e põe cada vez mais em primeiro plano este novo direito do homem à saúde, que existe e se motiva já em uma organização mundial. À medida que o registro da relação médica com a saúde se modifica, em que esta espécie de poder generalizado que é o poder da ciência, dá a todos a possibilidade de virem pedir ao médico seu ticket de benefício com um objetivo preciso imediato, vemos desenhar-se a originalidade de uma dimensão que denomino demanda. É no registro do modo de resposta à demanda do doente que está a chance de sobrevivência da posição propriamente médica (LACAN, 1966a/2001, p. 10).

Neste ponto, em que o discurso jurídico se enlaça com a saúde, a demanda apresenta-se amalgamada à reivindicação. Responder ao enunciado da reinvindicação por direitos sem aproximar-se da questão concernente ao desejo é arriscar-se a incorrer no erro apontado por Lacan de perder a posição transferencial, a qual o paciente supõe um saber e direciona seu apelo. A separação entre reivindicação e demanda deve ser uma tática norteadora para a Atenção Psicossocial nas discussões de caso. Viganò (2012) propõe que se diferencie o caso social do caso clínico, e que este sirva como base para se pensar as ações e intervenções em Saúde Mental. Na mesma linha, nos parece essencial a apuração da escuta da demanda que traz o paciente e da resposta que será dada a tal demanda. Responder a demanda é, antes de tudo, posicionar-se diante dela, compreender que nem sempre o que é pedido é a cura, o paciente "vem às vezes nos pedir para autenticá-lo como doente. Em muitos outros casos ele vem pedir, do modo mais manifesto, que vocês o preservem em sua doença" (LACAN, 1966a/2001, p. 10). Posicionar-se de modo que se considere que há uma falha estrutural entre demanda e desejo e que, portanto, este não se reduzirá àquela, como aponta Lacan:

[...] longe de ceder a uma redução logicizante, ali onde se trata do desejo, encontramos em sua irredutibilidade à demanda a própria mola do que também o impede de ser reduzido à necessidade. Para dizê-lo elipticamente: que o desejo seja articulado é exatamente por isso que ele não seja articulável (LACAN, 1966b/1999, p. 819).

A leitura e escuta das situações que são apresentadas cotidianamente nos equipamentos de Atenção Psicossocial exigem referenciais de alta complexidade para que se possa oferecer um tratamento efetivo tanto às questões de sofrimento subjetivo como àquelas de iniquidade e exclusão sociais. O sujeito da Saúde Mental, atendido por uma equipe multidisciplinar, deve ser visto sob diferentes óticas. Não devemos substituir o discurso médico pelo discurso dos direitos, mas sim pela multiplicidade discursiva. Neste contexto de multiplicidade visualiza-se uma porta de entrada para o psicanalista que tem como princípio ético fundamental guardar o lugar de emergência da singularidade, do sujeito do inconsciente e da verdade do desejo. Em suma, a contribuição do psicanalista é abrir espaço dentre tantos discursos para a narrativa do próprio sujeito, contada em primeira pessoa, e que essa narrativa contada seja levada em conta nas decisões multiprofissionais.

 

Referências

AMARANTE, Paulo. Novos Sujeitos, novos direitos: o debate em torno da reforma psiquiátrica. Rio de Janeiro: Cad. Saúde Pública, jul/set 1995.         [ Links ]

BRASIL. Código Penal, Processo Penal e Constituição Federal. São Paulo: Saraiva, 8ª ed., 2012.         [ Links ]

CÂMARA DOS DEPUTADOS. Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania. Projeto de Lei nº 1.057, 2007.         [ Links ]

DOUZINAS, Costas. O fim dos direitos humanos. São Leopoldo: Unisinos, 2009.         [ Links ]

KELSEN, Hans. (1960). Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes, 6ª ed., 1998.         [ Links ]

LACAN, J. (1966a). "O lugar da psicanálise na medicina" In: Opção Lacaniana: Revista Brasileira Internacional de Psicanálise. São Paulo: no 32, pp. 8-14, dez, 2001.         [ Links ]

__________. (1966b). "A subversão do sujeito e a dialética do desejo" In: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1998.         [ Links ]

MILLER, J.-A. "Saúde mental e ordem pública" In: GLAZE, A.; BRISSET F.O.B.; MONTEIRO, M.E.D. A saúde para todos não sem a loucura de cada um: perspectivas da psicanálise. Rio de Janeiro: Wak Ed., 2011.         [ Links ]

VIGANÒ, C. "A construção do caso clínico" In: ALKMIN, W. D. (org.). Carlo Viganò: Novas Conferências. Belo Horizonte: Scriptum Livros, 2012.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
Rua Dr. Fernandes Coelho, no 86, apto. 21
CEP 05423-040 – Pinheiros, São Paulo (SP)
E-mail: paulotbueno@hotmail.com

Recebido: 25/08/2016
Aprovado: 12/09/2016

 

 

* Mestrando pelo Núcleo de Pesquisa Psicanálise e Sociedade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da PUC-SP, Psicólogo do CAPS Infantil Espaço de Vida. Psicanalista em formação, participou dos módulos de formação do FCL-SP (Fórum do Campo Lacaniano – SP).

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