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Latin American Journal of Fundamental Psychopathology On Line
versão On-line ISSN 1677-0358
Lat. Am. j. fundam. psychopathol. on line v.5 n.1 São Paulo maio 2008
ARTIGOS
As potencialidades das imagens cinematográficas para o campo da atenção em saúde mental
Movie Images as potential approaches to mental attendance
Francilene Rainone* ; Liliane Seide Froemming**
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Psicologia, Departamento de Psicanalise e Psicopatologia
Prefeitura Municipal de Porto Alegre, Cais mental Centro-Secretaria da Saúde
RESUMO
O texto busca discutir as relações entre as imagens do cinema e as imagens da psicose, mediante conceitos teóricos da psicanálise e da saúde mental. Partindo de uma questão central – as imagens do cinema podem ser propositivas para uma construção narrativa na psicose? –, o objetivo geral deste ensaio é analisar, com base em uma prática que utiliza as imagens cinematográficas como mediadora na produção da fala de sujeitos psicóticos, as relações entre imagem e identificações imaginárias. Propomos investigar a possibilidade de – pelas imagens da tela e do que é produzido a partir delas enquanto discursividade – um reordenamento e a inscrição da pulsão no registro da simbolização.
Palavras-chave: Imagens do Cinema, Psicose, Construção Narrativa na Psicose, Identificações Imaginárias, Reforma Psiquiátrica.
ABSTRACT
The text intends, from theoretical concepts within the areas of Psychoanalysis and Mental Health, to discuss the relationships between the images of movies and those of psychosis. Stemming from a core question – can movie images function as starters to a narrative construction in psychosis? –, the present essay's general objective is to analyze, based on a practice that makes use of movie images as mediators in the production of speech of psychotic individuals, the relationships between image and imaginary identifications. We propose to investigate the possibility of, through the images on the screen and through what is produced from them as discursiveness, a reordering and the inscription of pulse in the register of symbolization.
Keywords: Movie Images, Psychosis, Narrative Construction in Psychosis, Imaginary identifications, Psychiatric Reform.
RESUMÉ
D'après certains concepts théoriques de la psychanalyse et de la Santé mental ce texte cherchera à discuter les rapports entre des images du cinéma et des images de la psychose. Tout en partant d'une question central – est-ce que des images du cinéma peuvent être une démarche propositive pour la construction d'un récit dans la psychose – la visée générale de cet essai c'est d'analyser depuis une pratique où nous utilisons des images cinématographiques comme médiatrices dans la production des dires des sujets psychotiques, les rapports entre l'image et des identifications imaginaires. Nous proposons investiguer la possibilité , d'après des images de l'écran du cinéma et de ce qui est dit depuis ces images là en tant que discursivité, d'un réarrangement et l'inscription de la pulsion dans le registre de la symbolisation.
Mots clés: Images du Cinéma, Psychose, Construction de Récit dans la Psychose, Identifications Imaginaires, Reforme Psychiatriques.
RESUMEN
El texto busca discutir las relaciones entre las imagens del cine y las imagens de la psicosis con basis en los conceptos de la psicanálisis y de la salud mental.Partiendo de una cuestión central que es : ¿ Las imagens del cine pueden ser un dispositivo para la construción de narrativas em la psicosis . El objetivo general deste trabajo es analisar com basis en una práctica que utiliza las imagens cinematográficas como mediación en la producción de la palabra hablada de sujetos psicóticos, las relaciones entre imagen y identificaciones imaginarias. Propusemos investigar la posibilidad de, a través de las imagens de la pantalla y de lo que es producido a partir de ellas enquanto discurso, un reordenamiento y la inscripción de la pulsión en lo registro de la simbolización.
Palabras clave: Imagens del Cine, Psicosis, Construción Narrativa en la Psicosis, Identificaciones Imaginarias, Reforma Psiquiátrica.
Entre as imagens e a linguagem
Numa quinta-feira pela manhã, em atividade ligada ao CAPS (Centro de Atenção Psicossocial), na cidade de Porto Alegre, profissionais e pacientes estavam em mais uma sessão do Cinema em Debate,1 e depois da projeção do filme Simão, o fantasma Trapalhão,2 Tamandaré – como vamos chamá-lo aqui – solicita o microfone e diz: "Com licença... boa tarde... bom dia... eu gosto dos filmes de fantasma... pois o fantasma que eu fui tentava proteger uma vida no porão e uma noite eu peguei um lençol branco botei por cima assim e fui fazer isso para deixar as pessoas... bem porque aconteceu no meio do mato lá uma coisa... aconteceu a morte alguma coisa um desastre alguma coisa, pois é... daí no outro dia eu peguei fui lá à igreja chamar o padre, pô padre dá um jeito em nós, 54 pessoas do São Pedro lá naquela casa... aquela assombração, aquele porão, aquela coisa lá... pois é... eu me vesti de fantasma e eu vou falar a verdade pra vocês... eu vi... eu vi o fantasma... eu me vesti de fantasma, fui fantasma e vi como é que é o fantasma... igual a esse fantasma... igual a esse que passou aqui... igual a ele". Fez-se um instante de silêncio na platéia, e Tamandaré continuou: "E lá nessa casa... eu vi o fantasma, mas eu... eu... eu nunca pensei que ia botar isso na minha cabeça... me deixa assim dizer que vê Deus... que é... que é... diz que viu Deus... vê Deus... inventar coisa... então, daí eu agora... agora estou mais calmo... porque... me acalmei mais um pouco, porque eu vi um... vi assim um fantasma do meu lado assim... eu disse que era essa coisa, mas aí eu que estava naquele lugar... eu... eu que sou aquilo ali eu acho... não sei... é que eu vi... a pessoa queria vê Deus, eu queria vê Deus, né, e o fantasma... castigo pra mim... não se faz... isso é pecado".
Após a fala de Tamandaré, uma das profissionais que conduz a atividade, solicita o microfone também e faz o seguinte comentário: "Eu queria dizer que eu gostei muito... bom, a gente há um ano vem se encontrando aqui... eu queria dizer que o que o Tamandaré disse é muito importante, agora cada um volta pro seu local, pras suas casas, para os albergues, para as ruas, para os CAIS, para os CAPS e vai pensando... o que ele disse é importante, tem coisas que a gente vê e os outros não acreditam... é só a gente que vê... como é importante quando alguém diz, eu vi isso, eu não sei se está dentro da minha cabeça ou se os outros vêem também... eu acho que é por isso que o filme é bonito... às vezes a gente vê coisas que só a gente vê e poder falar para os outros e perguntar se eles estão vendo também ou não, se é uma coisa que só existe dentro da nossa cabeça ou se os outros vêem também... é importante que quando a gente diz que viu alguma coisa que tenha alguém que acredite... mesmo que não esteja vendo também... e às vezes essas coisas daí vão embora... vão lá... desaparecem... param de... aparecer para gente... eu achei bem importante o que o Tamandaré disse assim pra gente pensar".
Tamandaré é atendido no CAPS Cais Mental Centro, vem diversas vezes por semana e sistematicamente fica isolado; já esteve internado por diversas vezes e ao sair do hospital permanece delirante e com muitos efeitos colaterais das medicações. Em sua fala no Cinema em Debate, percebe-se claramente um modo de existir, modo este de recusa da operação que organiza o laço social, e é dessa recusa que derivam os impasses desses sujeitos em sua circulação pelo social.
Essas falas demonstram muito concretamente uma das tantas experiências postas em prática no renovado campo de trabalho realizado pelos CAPS, serviço que se pretende substitutivo do hospital psiquiátrico e que, a partir da proposta da Reforma Psiquiátrica, tem apresentado propostas novas e criativas de projetos institucionais que estão em desenvolvimento, em que o tratamento dos transtornos mentais graves tem como preocupação temas complexos como a reinserção social, a reabilitação psicossocial e a própria inscrição psíquica de cada sujeito atendido nesses serviços. As formas renovadas de aproximação da loucura incluem a formulação de dispositivos clínicos e de ações variadas que pense a criação de espaços sociais nos quais se possa dar um estatuto diferente à representação social da loucura.
A intenção deste texto é tecer algumas reflexões sobre como as imagens cinematográficas, numa atividade específica como o Cinema em Debate na saúde mental, seriam uma forma para a proposição de experiências que produzem efeitos discursivos em pacientes psicóticos e em seus laços com o social. Os impasses que a clínica com os transtornos mentais graves nos aponta implicam o redimensionamento de nossas formas de intervenção e, ao mesmo tempo, nos convoca a teorizar sobre essas práticas, na perspectiva de propor ampliações metodológicas e de manter viva a discussão do tratamento com a loucura. Estas ampliações metodológicas devem ser permanentemente reinventadas de modo que atuem no território social como motores de sociabilidade, como intermediários de trocas sociais que estão bloqueadas.
Ao refletirmos acerca da loucura desde a perspectiva psicanalítica, tomaremos a psicose como modo de existir e não como uma condição a ser debelada. Desde Freud, o sintoma diz da verdade de um sujeito, constituindo-se, paradoxalmente, no ponto que o eclipsa e que o representa.
A instituição como lugar de laço social
O CAPS Cais Mental Centro, da cidade de Porto Alegre, onde a idéia do Projeto Cinema em Debate surgiu, é um serviço especializado da Secretaria Municipal de Saúde da cidade, destinado a adultos com transtornos mentais graves e que atende tanto moradores do distrito sanitário da região central de Porto Alegre e bairros próximos, quanto pacientes encaminhados pelas Unidades Sanitárias, pela Moradia Protegida Nova Vida, pela Casa de Apoio Viva Maria, pelo Abrigo Municipal Abrivivência e, também, moradores de rua, quando solicitado pela equipe de abordagem de rua da FASC,3 além de encaminhamentos feitos pelo Ministério Público.
O CAPS Cais Mental Centro conta com uma equipe que, formada por profissionais de diversas áreas – psicologia, psiquiatria, terapia ocupacional, enfermagem e serviço social _, se orienta por um projeto de trabalho construido coletivamente e calcado numa proposta de atuação interdisciplinar. Diversas modalidades de atendimento dão expressão a esse projeto coletivo de trabalho: oficinas terapêuticas; oficinas de geração de renda; atendimento individual em terapia ocupacional; psicoterapia individual ou de grupo; avaliação e acompanhamento psiquiátrico; entrevistas com familiares; acompanhamento terapêutico; visitas domiciliares; grupos de convivência; e o Projeto Insere – cujo objetivo é as relações com o espaço externo ao serviço, como atividades na área de lazer, cultura, educação e profissionalização. É dentro deste projeto que se inscreve o Cinema em Debate.
O Cinema em Debate combina a sessão de cinema e a proposta de uma conversa sobre o filme logo após sua exibição. Foi em maio de 2003 que introduzimos o projeto de acompanhar ao cinema os pacientes que freqüentam os serviços de saúde mental. Desde então, o evento tem ocorrido de dois em dois meses, com exibição, na Casa de Cultura Mário Quintana, de filmes cedidos pela Distribuidora Columbia Pictures ou, ainda, com filmes locados e exibidos na sala P. F. Gastal, da Usina do Gasômetro de Porto Alegre.
É necessário acrescentar que entendemos o CAPS como uma instituição de passagem, instituição que acolhe, protege e instiga (no sentido de criar dispositivos)4 o laço com o social. Ou seja, trata-se de fazer da instituição um lugar de laço social para quem, por definição, tem dificuldades de fazer laço, trazendo para primeiro plano a questão da existência e pensando no fazer desta atividade desde a perspectiva da processualidade e do enlaçamento.
Por que cinema e saúde mental?
Trabalhar com o Cinema em Debate implica a abertura de um espaço de problematização. Em vista disso pode afirmar que se trata de uma intervenção na cidade, pois a atividade ocorre no espaço de um cinema e fora, portanto, dos lugares comumente definidos como espaços de tratamento. Defendemos que a ida ao cinema possibilita este ir e vir, a alternância entre espaço urbano e espaço institucional, a convivência com o social como movimento que um sujeito faz para fora de si.
Isso pode parecer complexo e até confuso num primeiro momento, mas imprime dinamismo naquilo que parecia parado, impõe alternância entre o dentro de uma instituição, que é conhecido e cômodo, e a experiência de circular pela cidade, de transitar nos espaços público e social. Isso transparece na rapidez com que algumas questões são colocadas nos debates das sessões e vão se sobrepondo. As imagens das cenas vistas nos filmes fazem emergir discursos que levam para fora do cinema e possibilitam um lugar potencializador da criação de elementos que possam servir de mediadores para a constituição de um laço ao Outro minimamente consistente.
Como nos diz A. Pitta (2001):
A um só tempo temos que desinstitucionalizar a assistência psiquiátrica ofertada por nossas instituições e também desenvolver uma tecnologia de cuidados que considere um compromisso ético de acolher e cuidar de pessoas culturalmente desinseridas, socialmente abominadas. (p. 10)
Postulamos que, no trabalho da equipe de um CAPS, está implicado, também, se dedicar às possibilidades de uma boa equação entre o público e o privado, o coletivo e o individual, o institucional e o idiossincrático, e isto não é uma tarefa qualquer. Ao longo de 10 anos de trabalho neste CAPS, temos nos empenhado em reavaliar e criar novos projetos que dêem contorno às necessidades desses sujeitos. E a atividade com o cinema tem sido uma das nossas apostas.
Nossa proposta de trabalhar no Cinema em Debate com imagens cinematográficas funda-se na idéia de as mesmas constituírem estímulos para os processos de pensamento, oferecendo fragmentos significativos para a discussão e a resignificação das imagens do psicótico, e, ainda, um dos principais efeitos produzidos por estas imagens na narrativa de sujeitos psicóticos é a possibilidade de que os mesmos se desloquem do lugar de isolamento e ocupem mais do que simplesmente seu lugar na poltrona do cinema, mas a posição de eu, de sujeito.
A escuta dos sujeitos em grave sofrimento tem possibilitado e ensinado muito aos profissionais da área da saúde mental, por meio de um fazer interdisciplinar que se desdobra em campos conceituais híbridos que se complementam.
Devido às especificidades do cinema, cuja matéria-prima se constitui de imagens, não se pode negar que existe uma relação de comunicação entre espectador e filme. Podemos dizer que o filme prevê seu espectador e se dirige a ele não só através da narrativa, mas, principalmente, mediante apelos visuais e sonoros.
O espectador não é um elemento passivo, totalmente iludido. É alguém que usa suas faculdades mentais para participar ativamente, preenchendo as lacunas das imagens com seus investimentos intelectuais, e entre os efeitos decorrentes de suas operações mentais está a transformação de seu pensamento.
O cinema combina imagens e narrativa; já a psicanálise trabalha com as narrativas que surgem das imagens psíquicas de cada indivíduo. Embora Freud nunca tenha se dedicado a abordar temas relacionados diretamente ao cinema, é inevitável que nos aproximemos de suas formulações teóricas, tendo em vista a afirmação de que o sonho é composto por imagens que, produzidas pelo inconsciente, contam a história do desejo do sonhador.
Nenhuma outra forma de arte é capaz de retratar o sonho com tanta fidelidade quanto o cinema o faz, graças à sua capacidade de distorção da imagem. Freud (1899), a partir de uma de suas lembranças encobridoras, afirma: "Posso garantir-lhe que as pessoas muitas vezes constroem essas coisas inconscientemente, quase como uma obra de ficção" (p. 281). Tal assertiva nos leva a pensar que as imagens distorcidas seriam como que fabricadas desde o desejo de cada sujeito e, nesta medida, não podem jamais ser separadas de suas estreitas relações com a intimidade de quem as lembra.
Nossa proposta aos participantes do Cinema em Debate é de que, após a exibição do filme, eles escolham cenas que lhes tenham chamado atenção ou alguma coisa que as imagens da tela lhes tenha feito pensar ou sentir. Isto porque acreditamos que o cinema carrega em si uma possibilidade de movimento, operando com outro tipo de distância entre o olhar e a realidade e fazendo de cada imagem uma seqüência a ser explorada, na busca de algo que não está lá. Ir ao cinema é uma experiência que apela fortemente para o corpo e o mantém imóvel, enquanto coloca o sujeito em um movimento pulsional intenso. Todo o filme apresenta, potencialmente, um trem vindo em direção ao sujeito, como na célebre apresentação dos irmãos Lumière, que assustou e fez com alguns dos espectadores presentes se levantassem para fugir.
Acreditamos na possibilidade de, no trabalho com a psicose, criar, desde a ficção do cinema, situações de resgate da potência enunciativa em sujeitos circunscritos pela psicose. Ou ainda, criar espaço para que, através da fruição de um filme, as imagens da tela contribuam na enunciação de cenas ou de vivências de cada um dos participantes, possibilitando-lhes falar de si, mediante os recortes operados pela projeção cinematográfica.
As imagens da psicose e a polissemia do significante em J. Lacan
O que seria determinante para uma estruturação psicótica? Embora presente nos escritos de Freud, é na leitura de Lacan que a Verwerfung foi alçada à categoria de conceito determinante para a especificidade das psicoses, pois a falha que dá à psicose sua condição essencial enquanto estrutura singular é o fracasso da metáfora paterna.
Para a psicanálise, a psicose está relacionada ao modo como o sujeito lida com a falta inscrita na subjetividade – ou seja, como lida com a falta que condiciona a forma de cada um se haver com o sexo, o desejo, a lei, a angústia e a morte. Isto irá situá-lo em uma das estruturas clínicas: neurose, psicose ou perversão.
A foraclusão diz respeito ao sujeito em sua história e singularidade, designando o mecanismo essencial da psicose. Lacan (1956-1957) afirma que a castração é um "jogo jogado com o pai, jogo de quem perde ganha, que por si só permite à criança conquistar o caminho por onde nela será depositada a primeira inscrição da lei" (p. 214). Quem perde o lugar de objeto tamponador da falta materna – ser o falo – ganha a possibilidade de ascender à significação fálica – ter o falo – e, assim, ingressar na trilha que leva o sujeito a uma posição em que ele escape da estrutura da psicose.
Em virtude de entendermos que a psicose é uma estrutura singular, acreditamos na necessidade da clínica com estes sujeitos priorizar a singularidade, fazer emergir algo da ordem do mais particular e íntimo de cada sujeito, desde sua história e, principalmente, desde os significantes que a constituem. É partindo dos ensinamentos de Lacan – o qual propõe a necessidade de se compreender a loucura como algo intrínseco ao ser humano - que temos desenvolvido este trabalho com as imagens do cinema e as imagens da psicose, as quais compreendem as imagens produzidas pela alucinação e pelo delírio.
Encontramos em Lacan (1946) algo que nos ajuda a refletir sobre esta posição: "Assim, longe de a loucura ser um fato contingente das fragilidades de seu organismo, ela é a virtualidade permanente de uma falha aberta em sua essência" (p. 177). Por entendermos que a loucura é própria da condição humana e que a psicose é um modo de existir, e não uma patologia a ser debelada, que propomos uma atividade onde a plurissemia das imagens cinematográficas oportunizem ao sujeito a condição e a produção enunciativa. Oferecendo espaço de fala e enunciação, desde o que cada imagem evoca singularmente.
No decorrer desta pesquisa fomos observando a importância de o sujeito psicótico se reconhecer enquanto eu. No trabalho com a atividade do Cinema em Debate, ao fazer circular a palavra no final do filme, ocorre também o contato com o outro, essencial para o exercício da alteridade, pois propicia ao sujeito a possibilidade tanto de encontrar o outro, quanto de se reconhecer. Observamos que no diálogo, no debate, podemos perceber coisas próprias e coisas pertencentes ao outro, seja pela semelhança ou pela diferença daquilo que se experimenta. Afinal, cada sujeito tem seu próprio acervo de imagens psíquicas, sendo através deste que nos constituímos como sujeitos.
O sujeito psicótico tem histórias, frases, nomes, imagens que constituem sua bagagem emocional e que muitas vezes é de difícil compreensão para os que os escutam desde uma estrutura psíquica diferenciada. Em virtude disso, as imagens psíquicas singulares provenientes de pessoas com transtornos mentais graves se revestem de significado e de importância relevantes para seus percursos de tratamento e – porque não dizer – de vida. O que guardamos como imagem depende do contexto, e o que evocamos acaba sendo reeditado.
Com as atividades desenvolvidas no Cinema em Debate, pretende-se oferecer as imagens cinematográficas como propositivas no trabalho de escuta com a psicose. Escuta essa com condições de marcar a diferença entre a cena proposta pelo filme e uma outra cena, uma cena singular e interna, podendo compor a narrativa de cada um dos participantes. Como bem situa Becker (2006), trata-se de "oferecer, através da escuta, o terceiro tempo de um olhar que não sabe e não quer tudo conhecer, mas que pode, sim, reconhecer que há algo de invisível no sujeito" (p. 140). Este olhar do outro é constituinte e, portanto, opera como uma marca, configurando um lugar.
Oferecer escuta e olhar é o que, no trabalho com a psicose, se faz necessário para que uma narrativa, mesmo sendo ficcional, possa se desenvolver dando sustentação a um vazio deixado pela foraclusão do significante-mestre. Assim, entendemos que, através das imagens do cinema, o psicótico possa vir a construir uma narrativa que o (re)situe na cadeia discursiva simbólica. E isto ocorre na medida em que o espectador devolve – desde seu olhar e desde o entendimento que naquele momento lhe é possível – a polissemia que as imagens proporcionam.
Pensar na plurissemia das imagens remete, assim, à polissemia do significante, conceito muito caro à psicanálise e embasado na relevância dada por Lacan (1961-1962) ao significante e à sua relação com o sujeito: "nada suporta a idéia tradicional filosófica de um sujeito, a não ser a existência do significante e de seus efeitos" (p. 16). Para o autor, o que há de concreto na experiência da psicanálise refere-se ao fato de que a "identificação é uma identificação de significante" (Ibid). Podemos ressaltar que o significante situa-se como um traço que, a partir da história de cada um, marca-a para sempre. E, além de marcá-la, se repete, inscrevendo na cadeia significante um registro do acontecimento doloroso, balizando cada passo da história de um sujeito, apresentando-se, muitas vezes, sob roupagens diferentes e emergindo repetidas vezes em momentos inesperados.
E, aqui, nos arriscamos a pensar a fala de cada um dos participantes do Cinema em Debate como possíveis de enunciar elementos importantes desta cadeia significante. Em uma narrativa delirante, alguns significantes retornam desde fora, desde o real, como nas alucinações, muitas vezes sem que o sujeito possa deles se apropriar e sem que lhe seja possível encontrar um ponto de amarra para as suas alucinações.
No momento em que, desde o ato de ver um filme, o sujeito psicótico recorta uma cena para socializá-la, para, através desta, poder falar, ele se coloca diante do outro como um eu. Importando aqui aquilo que, a partir disto, ele pode reconstruir da sua história:
"O que achei importante neste filme foi ver que nem liberdade para o suicídio eles tinham."5
Quando M. recorta esta cena do filme, fala de algo que, na projeção do filme, aparece muito sutilmente – não sendo nem enfatizado, nem mesmo tomado como uma possibilidade para a personagem _, mas que para ele teve impacto. Numa conversa, dias após a apresentação do filme, M. diz:
"Para mim é muito difícil falar de minha vontade de morrer, dos meus pensamentos de morte e de ver a morte tão perto, em muitos momentos de minha vida a morte aparece para mim, mas como era falando do personagem, deu para falar o que eu pensava, fica mais fácil se não é da gente que falamos".
É neste sentido que pensamos o quanto a plurissemia das imagens pode construir uma abertura, uma possibilidade para as imagens desagradáveis, duras, quase alucinadas de cada sujeito psicótico, de modo a operar, em sua rede de sustentação subjetiva, a construção de uma polissemia dos significantes.
Finalizando e abrindo novas questões
Os impasses que a clínica com os transtornos mentais graves nos colocam implicam um redimensionamento de nossas formas de intervenção e, ao mesmo tempo, nos convoca a teorizar sobre nossas práticas, na perspectiva de propor ampliações metodológicas – o que mantém viva a discussão sobre o tratamento com a loucura.
Assim, a atividade do Cinema em Debate é um recurso para que, no cotidiano de nossa prática, possamos ir constituindo um espaço privilegiado de escuta e de trabalho com as imagens da alucinação e do delírio que a psicose produz. É necessário, pois, analisar, que para o psicótico, sua relação com a própria imagem é de fato um grande impasse; na clínica escutamos insistentemente o quanto não se reconhecem, o quanto suas fisionomias são distorcidas, o quanto não conseguem nem mesmo se ver numa foto ou espelho.
Se entendermos que a imagem é adquirida a partir do olhar, do desejo do outro (no caso da mãe, que encarna, neste momento, o Outro primordial) tomado como espelho, nunca é com seus próprios olhos que o sujeito se vê, mas sempre com os olhos do outro. Pensamos, então, em poder investigar se o trabalho com as imagens produzidas através das lentes da câmera da filmadora ou da máquina fotográfica nas oficinas podem auxiliar no processo de trabalho com psicóticos, no sentido de propiciar que falem de si, busquem e produzam imagens que os representem, signifiquem ou ressignifiquem suas imagens, bem como organizar, estruturar desde a exterioridade suas imagens internas.
Os fios que compuseram a teia da prática com o Cinema em Debate foram os atendimentos e as conversas após a exibição dos filmes, os recortes realizados da fala de cada um que foi à frente, no final da projeção, e teceu seu comentário, os desdobramentos possibilitados a partir dessas atividades e, também, os caminhos por onde nos levaram as diversas leituras realizadas, às quais recorri para compor as idéias e tecer este texto.
Leituras sobre a realização das montagens no cinema, edição e recortes operados nas cenas, foram elucidativos para a compreensão da metodologia que dava forma a este trabalho e à investigação com o cinema. Foi possível perceber um processo de recortar cenas da prática e de enlaçá-las com formulações teóricas e nossas próprias reflexões sobre as atividades propostas no Cinema em Debate e os efeitos por elas produzidos.
J. Bernardet (1999), em seu texto sobre o filme de Marcelo Masagão – Nós que aqui estamos por vós esperamos –, &ndafirma que a montagem de imagens tem duas vertentes: uma construtiva e outra destrutiva. Segundo o autor, a montagem construtiva é aquela em que, ao colocarmos uma imagem ao lado de outra, elas têm reforçados seus sentidos originais; já a montagem destrutiva se caracteriza pela composição de imagens que, tendo anteriormente significações específicas, perde seu sentido original para recriar, em sua junção, novo sentido.
As duas formas de montagem descritas por J. Bernardet mostram-se de grande importância para compreendermos os modos como à associação de imagens – especialmente na clínica da psicose – possibilita sentidos, cria novas significações, permite a polissemia do significante.
Em função disso, podemos pensar que as imagens capturam e fazem falar o eu, mesmo que a língua seja estrangeira ou a palavra interrompida, pois, através do olhar dirigido às cenas do filme, o rapaz de origem alemã pode capturá-las e tentar nos dizer o que pensou a partir delas.
Observa-se, assim, que a experiência do espectador cinematográfico constrói-se como uma forma de recepção, na qual o olhar se encontra diretamente engajado. Em outras palavras, o espectador de cinema é um espectador cuja experiência de recepção se diferencia das outras formas de recepção predominantes na arte – como na pintura e na literatura, por exemplo. Essa diferença se traduz tanto do ponto de vista do modo como o olhar é captado pelas imagens em movimento, quanto pelo modo como o corpo se engaja na experiência de recepção, ao longo do processo perceptivo/receptivo. Neste sentido, é J. Lacan (1990 [1964]) quem nos afirma que "em nossa relação às coisas, tal como constituída pela via da visão e ordenada nas figuras da representação, algo escorrega, passa, se transmite, de piso para piso, para sempre nisso em certo grau elidido – é isso que se chama olhar" (p. 74).
Retomando as questões que norteiam este trabalho: como este olhar que retorna da tela pode, ao capturar o olhar do sujeito psicótico, mediar seu trânsito pelo eixo simbólico? Ou, como este olhar dirigido às cenas fílmicas pode fazer emergir o eu do sujeito? Será nesta hiância entre a imagem e o pensamento, entre a imagem e a sua associação e elaboração, que algo da ordem do singular pode advir?
Xavier (1990), em seu artigo "Cinema: revelação e engano" que as relações entre visível e invisível, ao serem propostas pela montagem de um filme, levam o espectador a estabelecer ligações que não se encontram, propriamente, existentes na tela. A montagem cria uma cadeia associativa de imagens, cada plano apresenta uma nova definição dos elementos em jogo, conduzindo o espectador a compor sua própria narrativa, construindo um espaço, quebrando a tranqüilidade do olhar submisso às regras. O autor se pergunta pela autenticidade de uma imagem, querendo sublinhar que o que ele questiona não é a verdade implicada na cena, mas, sim, a significação do que é dado a ver. Para Xavier, a veracidade de uma imagem inaugura-se no contato com as produções de sentido que são constituídas pelo sujeito que as contempla.
Podemos, aqui, citar a fala de T., após a apresentação do filme A partilha, diretor Daniel Filho, no Cinema em Debate: "Discutir com os irmãos e ter que aceitar o que eles dizem já me levou a baixar o hospital, não aceito o que eles pensam, penso diferente e por isso sou considerado... mas no filme elas conseguiram brigar, xingar e mesmo assim ficaram amigas... a cena da Glória Pires foi a que mais gostei, pois mostrou que às vezes posso ter razão e deixar que eles pensem diferente,deixar que me vejam como queiram".6
Esta fala refere-se à cena do filme em que quatro irmãs reencontram-se, após a morte da mãe, para fazer a partilha de seus bens. Há discussão, encontros e desencontros, desentendimentos, mágoas, mas cada uma vai seguindo o percurso de sua vida. Nestes encontros, cada uma das irmãs vai apresentando como é, como vive, do que gosta e o que busca para o futuro. Após muitos desencontros e desavenças, concluem a partilha, porém não sem terem, antes, podido contemplar as diferenças. Diferenças que as marcam e constituem, mas que também as unem. Diferenças que podem ser percebidas pela imagem que cada uma apresenta ao olhar das demais. Cada uma das irmãs percebe a outra como diferente de si, mas, ao mesmo tempo, encontra nesta diferença algo que singulariza a si própria, que lhe permite, diante do outro, constituir e ser possuidora de um eu.
Com base nestas experiências e nas reflexões que delas advieram, surgiu a questão central deste trabalho: em que medida as imagens do cinema contribui para que as imagens do real da psicose possam emergir permeadas pela linguagem e ressignificadas pelo simbólico.
No decorrer desta pesquisa, fomos observando que o cinema, o filme e o debate constituem apenas meios capazes de fazer circular a palavra. Constatamos que as imagens propiciavam que, ali onde antes havia pacientes ou usuários – como denominados no serviço público –, surgissem sujeitos. Verificamos também, que para isso ocorrer era necessário o desejo dos profissionais envolvidos com a atividade e a transferência que os participantes tinham com quem os levavam até a exibição do filme, a quem se dirigiam ao falar no final da projeção. Mas o mais importante foi constatar, nesta investigação, por trás de toda a atividade do Cinema em Debate existe demanda, desejo, transferência, testemunho, que ali algo é dado ao olhar de um outro – e que é isso que viabiliza o reconhecimento e o fazer uso da palavra.
A posição que ocupamos para os participantes do Cinema em Debate dá um estatuto todo particular a esta atividade: nós, profissionais, também estamos ali porque queremos, porque gostamos de cinema, porque fizemos uma escolha e uma aposta na atividade. Assim, além de estar partilhando algo que é do social no social, há uma dimensão de prazer que está colocada, e ela é peça importante nesta experiência.
Resta claro, portanto, que não se trata de pensar a atividade enquanto terapêutica ou não, mas, como assinala Trevisan (2006), enquanto uma aposta de que esta colocação em ato da relação ao outro, através da mediação da imagem (o cinema propriamente dito) e da voz (com o microfone), permite que algo do sujeito desperte.
Assim, adotar a ficção das imagens fílmicas como pressuposto de um trabalho na clínica renovada dos serviços de atenção à saúde mental, pressupõe constituir uma atividade de exploração e de trânsito por certo bordeamento, entre o dentro e o fora da instituição, entre o público e o privado, entre o individual e o coletivo. Mas principalmente sacudindo e remexendo em questões muito singulares e íntimas de cada um que aceita estar na sessão do Cinema em Debate, necessitando desde o debate, desde a colocação de cada fala, dar suporte e escuta para o que estará por vir.
Referências
BECKER, Â. L. Narrativas em cena: desejo e criação no processo de performance. Revista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Porto Alegre, n. 30, p. 137-144, jun. 2006. [ Links ]
BERNADET, J. C. Nós que aqui estamos por vós esperamos. Folha de São Paulo, São Paulo, 15 ago.1999. Caderno Mais, p. 13-16. [ Links ]
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LACAN, J. (1956-1957) O seminário _Livro 4. A relação de objeto e as estruturas freudianas. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1995. [ Links ]
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TREVISAN, Ester. A transferência e os dispositivos terapêuticos em saúde mental: a proposta do "Cinema em Debate" na saúde mental. Revista do Cais Mental Centro, Porto Alegre, n. 1, p. 30-35, 2006. [ Links ]
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Endereço para correspondência
Francilene Rainone
Rua José Bonifácio, 71
90040-130 Porto Alegre, RS
E-mail: frainone@cpovo.net
Liliane Seide Froemming
Rua Ramiro Barcelos, 2600
90035-003 - Porto Alegre, RS
Telefone: (51) 33165066
E-mail: lilifrom@portowebcom.br
Recebido em setembro de 2007
Aceito em dezembro de 2007
* Terapeuta Ocupacional graduada em 1990 pelo IPA/Porto Alegre, trabalha na Secretaria Municipal de Saúde da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, é Mestre em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS/2007, é especialista em Saúde Mental, possui formação em psicanálise/APPOA e psiquiatria/HPSP Porto Alegre. (Porto Alegre, RS, Brasil).
**Psicanalista da Associação Psicanalítica de Porto Alegre, Professora doutora da UFRGS no Programa de Psicologia Social e Institucional. (Porto Alegre, RS, Brasil).
1 Projeto desenvolvido no Caps Cais Mental Centro e que será explicitado ao longo deste escrito.
2 Simão, o fantasma trapalhão. Direção: Paulo Aragão. Produção: Cacá Diniz e Daniel Filho. Intérpretes: Renato Aragão, Dedé Santana, Ivete Sangalo, Angélica e outros. Roteiro: Renato Aragão. Brasil: R.A Produções Artísticas/Globo Filmes; Columbia Pictures do Brasil, 1998. 1 bobina cinematográfica (92 min), son, color, 35 mm.
3 Fundação de Assistência Social e Comunitária, órgão ligado a Prefeitura Municipal de Porto Alegre.
4 Dispositivos, como oficinas de cinema, de imagens, de saídas pela cidade, de escrita e edição de saraus na cidade, dentre outros.
5 M. falando do filme Os melhores dias de nossas vidas, após o Cinema em Debate.
6 T., participante do Cinema em Debate, após o filme A Partilha, exibido em 25/3/2004, na Sala Paulo Amorim, Casa de Cultura Mario Quintana.