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Avaliação Psicológica
versão impressa ISSN 1677-0471versão On-line ISSN 2175-3431
Aval. psicol. v.5 n.1 Porto Alegre jun. 2006
ARTIGOS
Habilidades intelectuais de crianças com câncer e crianças não portadoras da doença
Intellectual skills of children with cancer and children who do not have the disease
Aline Magalhães da Silva1; Elaine da Trindade Gallego2; Maria Cristina Triguero Veloz Teixeira3
Universidade Presbiteriana Mackenzie
RESUMO
O trabalho teve como objetivo avaliar o desempenho intelectual com a aplicação do teste WISC-III, em dois grupos de crianças entre 7 e 11 anos: crianças com câncer que tem acompanhamento pedagógico e crianças que não apresentam a doença e freqüentam a escola regularmente. Os resultados apontaram que a média da pontuação de habilidades do teste do grupo composto por crianças com câncer foi superior à média de pontuação do grupo de crianças não doentes. Não houve uma avaliação dessas habilidades intelectuais pré-doença no grupo de crianças com câncer, entretanto os resultados apontaram para a preservação de um desempenho intelectual satisfatório, se comparado com as outras crianças. Embora as escalas Wechsler sejam medidas de inteligência, o estudo, embora inicial, mostra que esse tipo de escala facilita a identificação de habilidades intelectuais em crianças afastadas da escola e conseqüentemente delimita o nível de funcionamento mental das mesmas para orientar trabalhos psicopedagógicos.
Palavras-chave: Câncer infantil, Escala de inteligência, Habilidades intelectuais.
ABSTRACT
The study aims at assessing, through the application of the WISC-III test, the intellectual performance of two different groups of children between 7 and 11 years old: a group of children with cancer that had pedagogical accompaniment and another group of children who do not have the disease and that go to school regularly. The main results pointed out that the abilities scoring average of the test of the group of children with cancer was higher than the scoring average of the group of children who do not have the disease. Even though there has been no assessment of the intellectual performance before the disease in the group of children with cancer, these results indicate that they have a satisfactory intellectual performance, if compared to the other children. And although the Wechsler Scales are intelligence measures, this initial study shows that this type of scale facilitates the identification of intellectual skills in children who are away from school, and indicates their mental functioning level to help guiding psychopedagogical works.
Keywords: Children's cancer, Scale of intelligence, Intellectual skills.
Introdução
O câncer é uma doença que atinge pessoas de todos os lugares, idades e ambos os sexos e as crianças também são afetadas. O progresso no desenvolvimento do tratamento do câncer na infância foi relevante nas últimas quatro décadas, de acordo com o Instituto Nacional do Câncer (Inca). Atualmente, 70% das crianças acometidas de câncer podem ser curadas, se diagnosticadas precocemente e tratadas em centros especializados. A maioria dessas crianças poderá ter uma vida praticamente normal (Instituto Nacional do Câncer, 2004 <www.inca.gov.br/conteudo_view.asp?id=343>).
Mesmo com este pressuposto de normalidade de vida, o termo já implica em algumas restrições que diferenciam estas crianças de outras. Uma dessas restrições é justamente a condição da doença propriamente dita e as diversas repercussões que isto pode ter na vida pessoal e familiar da mesma. Outro aspecto de destaque são os afastamentos temporários, seja eles breves ou prolongados, que a criança tem da escola o que muitas vezes pode fazer com que ela possa sentir excluída de umas das atividades de aprendizagem mais importante para o desenvolvimento cognitivo da criança: a escola (Vance & Eiser, 2002). Sobre este aspecto, Lopes e Bianchi (2000), em um estudo realizado com crianças portadoras de leucemia encontraram que 50% apresentavam problemas de aprendizagem após cinco anos do término do tratamento e 61% apresentavam dificuldades escolares devido a déficits nos processos de concentração. Afirmaram ainda que algumas manifestações tardias podem ocorrer precocemente ou em longo prazo, dependendo dos meios utilizados e da idade da criança quando foi exposta ao tratamento. Outros autores mostraram que, crianças com leucemia linfocítica em tratamento apresentavam déficits cognitivos e dificuldades escolares (Costa & Lourenço, 2002). Estes autores hipotetizaram que esses déficits ocorriam devido ao efeito da irradiação no sistema nervoso central ou problemas psicossociais que surgiram a partir das seqüelas produzidas pelos tratamentos, por exemplo, em relação a amputações em que surgem problemas funcionais além dos efeitos psicológicos e sociais que muitas vezes são associados.
Algumas drogas utilizadas no tratamento quimioterápico causam efeitos tardios no desenvolvimento da criança com câncer, como o uso de corticóides que podem vir a causar necrose avascular e osteoporose (Costa & Lourenço, 2002). O efeito adversativo sobre a capacidade intelectual de alguns tratamentos médicos tem ocasionado contra-indicação em alguns deles, no caso, a irradiação cerebral em crianças menores de três anos não é indicada, pois, o sistema nervoso central ainda não está totalmente desenvolvido, podendo causar déficits neurológicos tardios, com péssima qualidade de vida para esses pacientes, dando-se preferência nesses casos ao tratamento com a quimioterapia (Lopes & Bianchi, 2000).
Um dos fatos que mais contribuiu com a execução deste estudo foi a leitura na literatura sobre a área, de trabalhos que pressupõem que um dos fatores que mais contribui com esses déficits nas capacidades intelectuais é o afastamento da criança da escola devido a múltiplos fatores: à fragilidade corporal, à anemia, ao fato da saúde estar debilitada e em geral à falta de estimulação intelectual que, naturalmente, deveria ocorrer pelos processos regulares de escolarização (Lopes & Bianchi, 2000; Costa & Lourenço, 2002).
É conhecido que qualquer instrumento de mensuração da inteligência, na realidade, só mede algumas áreas de funcionamento em detrimento de outras. Um QI torna-se uma estimativa do nível atual de funcionamento, devido a que este é medido pelas várias tarefas requeridas num teste. Observe-se, como aponta Cunha (2000) que esta medida não é fixa, ela pode variar em função de muitas variáveis, algumas das quais estão presentes na problemática do presente trabalho, a saber, condição de saúde, efeitos adversos de tratamentos médicos quimioterápicos e também, obviamente, um fator ambiental relacionado com o afastamento da criança da escola.
Daí o objetivo geral do estudo, avaliar o desempenho intelectual com a aplicação do teste WISC-III, em dois grupos de crianças entre 7 e 11 anos; crianças com câncer que tem acompanhamento pedagógico e crianças que não apresentam a doença e freqüentam a escola regularmente.
Visto que os autores têm mostrado que crianças tratadas de câncer têm maior incidência de problemas relacionados à escolaridade, pretendemos como objetivo inicial explorar essas habilidades intelectuais em ambos os grupos, mantendo uma variável razoavelmente semelhante em ambos os grupos; um grupo freqüentava regularmente a escola e o outro, recebia esse acompanhamento pedagógico, mesmo sob a condição de tratamento médico.
Existem poucos dados na literatura efetuando estudos comparativos em relação a habilidades e desempenho intelectual entre crianças com câncer com acompanhamento pedagógico e crianças com a doença, porém sem o acompanhamento e, entre as mesmas e crianças não portadoras de doenças. Os estudos que tem focalizado esta temática nos últimos cinco anos apontam para a necessidade de que as crianças com câncer têm de uma escolarização naqueles períodos em que estão afastadas das escolas regulares e chamam a para que profissionais se conscientizem sobre a existência do problema. Por exemplo, Giannelli (2004), discutiu uma proposta concreta de escolarização para crianças e adolescentes portadores de câncer que tinham sido transplantados.
As complicações inerentes ao tratamento do câncer e, em sentido mais amplo, às próprias características de suas manifestações, correspondem a um espectro extremamente amplo de problemas, dividindo-se em agudas e tardias. Por complicações agudas entende-se as que oferecem risco imediato concomitante à apresentação ativa da moléstia ou durante seu tratamento, podendo depender de vários fatores. A saber, condições mecânicas relacionadas com o próprio tumor, (por exemplo, compressão ou obstrução de vias aéreas) e inclusive, citopenias induzidas pelo tratamento oferecido. Os efeitos colaterais tardios são menos suscetíveis a atitudes de prevenção e intervenção. Esses efeitos nem sempre são reconhecidos como fatores predisponentes. Os mesmos ocorrem durante o programa terapêutico e em situações, nas quais, o controle da doença de base parece estar solidamente estabelecido, embora, em ocasiões haja possibilidades de recidiva (Cristofani & Almeida, 2003).
A literatura aponta a existência de diversas seqüelas psicossociais em crianças com diferentes tipos de neoplasias. Dentre eles, crianças com leucemia têm recebido uma atenção especial, seja pela alta incidência da doença na população infantil, seja pelo aumento da expectativa de vida que essas crianças podem ter como resultado do avanço da medicina no oferecimento de tratamento de alta eficácia para a cura das leucemias e, em especial da leucemia linfocítica aguda. Muitos desses trabalhos apontam que essas crianças apresentam déficits cognitivos e dificuldades escolares em decorrência de efeitos iatrogênicos da irradiação no sistema nervoso central e, em alguns casos estudos recentes relacionam efeitos adversos da quimioterapia sobre o rendimento intelectual das crianças. Os tratamentos, assim como alguns efeitos secundários à medicação, costumam interromper severamente a assiduidade da criança na escola, especialmente como resultado das faltas freqüentes e de mudanças físicas (perda de cabelo, aumento ou diminuição de peso), que podem tornar o relacionamento com os colegas ou com outros grupos sociais de maneira diferente e em ocasiões com predomínio de dificuldades nas relações interpessoais. É possível que se a criança receber um apoio psicológico e familiar adequado, alguns dos efeitos secundários do tratamento, ou, inclusive, procedimentos cirúrgicos radicais (por exemplo, amputações), possam ser minimizados. Essa minimização poderia contribuir favoravelmente com o fato da criança poder continuar freqüentando a escola, isto contribuiria notavelmente com o desempenho acadêmico e intelectual das mesmas. Compartilhamos a mesma idéia que essa preparação deveria abranger, não só a família e a criança, como também, a escola que ela regularmente freqüenta. Como aponta Kazak (1995), é importante manter canais de comunicação entre os médicos e os outros membros da equipe de um lado, e professores e educadores de outro.
A atividade de estudo é um direito da fundamental de qualquer criança, ainda mais para uma criança afetada do ponto de vista da sua saúde. Neste último caso, além da criança aprender, essa atividade traz melhoria para qualidade de vida das mesmas tendo em vista que este investimento pode dispersar a perspectiva de morte, muitas vezes estereotipada, sobre este tipo de doença.
A falta do acompanhamento escolar durante o tratamento medicamentoso da doença, pode contribuir para o baixo rendimento nas atividades escolares, tendo em vista que a criança fica impedida de realizar atividades com as quais naturalmente se envolveria se estivesse sadia. Isso faz com que questionemos a hipótese que afirma que o tratamento por si só é o único fator causal de possíveis déficits, complementando a hipótese com a suposição de que, também, o afastamento do contexto escolar pode ser responsável por esses déficits. Portanto, ao realizar essa pesquisa objetivou-se identificar as diversas pontuações ponderadas em cada um dos subtestes do teste para detectar, se possível, diferenças entre as médias dessas pontuações entre os grupos de crianças participantes. Partiu-se do pressuposto que, caso as diferenças a favor das crianças sem câncer pudessem ser confirmadas, esses dados podem estar ligados a uma multiplicidade de fatores e não apenas à condição da doença isoladamente ou ás seqüelas da enfermidade ou a outros fatores muito complexos, por exemplo: hospitalizações recorrentes, afastamento da escola, afastamento do convívio social, falta de motivação para a escola e também, pela falta de estímulo dos pais da criança com câncer para que sejam feitas as tarefas escolares, uma vez que a maior preocupação desses pais, muitas vezes, se reduz à saúde do filho. Pesquisas futuras deverão ser realizadas para identificar a quais dessas variáveis mais comprometem o desempenho intelectual e como o fazem.
Método
Participantes
De acordo com os objetivos do trabalho, foram selecionadas intencionalmente para fazer parte da amostra 17 crianças, independentemente do sexo, todas na faixa etária de 7 a 11 anos. Dessas 17 crianças, 8 eram residentes da casa HOPE, que dá apoio à criança com câncer durante os tratamentos ambulatoriais medicamentosos. O apoio pedagógico oferecido pela Casa HOPE consiste em possibilitar ou até mesmo iniciar atividades escolares com as crianças durante o tratamento, tanto no ensino básico como no fundamental, adaptando-se à difícil rotina de seus hóspedes, motivada pela constante ida aos hospitais e respeitando as características individuais de cada aluno. Dessas 8 crianças, 3 eram do sexo feminino e 5 do sexo masculino. Sendo 1 criança de 8 anos; 3 crianças de 9 anos; 2 crianças de 10 anos, e por último, 2 crianças de 11 anos. Uma das crianças estava acompanhada pelo pai, o restante do grupo estava acompanhado pela mãe. No momento da coleta de dados estas crianças encontravam-se afastadas da escola entre 3 meses e 1 ano. Todas provinham de diversos estados brasileiros. As mesmas eram portadoras dos seguintes diagnósticos: Crânio Faringioma, Tumor de Ovário, Leucemia Mielóide Aguda, Tumor Osteossarcoma, Tumor Medular, Meduloblastoma e Tumor Linfático. Os tipos de tratamento também variavam entre quimioterapia, radioterapia, cirurgia de retirada de tumor e amputação.
O outro grupo que fez parte da amostra estava composto por 9 crianças selecionadas intencionalmente de uma Escola Municipal C. L. E. M (EMEF), localizada na zona oeste da cidade de São Paulo. O critério de inclusão na amostra destas últimas crianças foi o fato delas não serem portadoras de nenhum tipo de doença neoplásica e assistirem regularmente as aulas. Dessas 9 crianças, 7 eram do sexo feminino e 2 do sexo masculino. Sendo 1 criança de 7 anos, cursando a 2ª séria do Ensino Básico; 4 de 8 anos, sendo que 3 estavam cursando a 2ªsérie e 1 cursando a 3ªsérie; 1 criança de 9 anos que cursava a 3ªsérie; 2 crianças de 10 anos, ambas cursando a 4ªsérie; e 1 criança de 11anos, cursando a 4ªsérie. Todas essas crianças cursavam a escola no período matutino.
O fato de na Casa Hope já haver um acompanhamento pedagógico em que a criança, mesmo distante de sua rotina escolar, continua estudando de acordo com o que é esperado para sua idade, possibilitou a comparação entre os grupos, já que a princípio todas as crianças estavam passando pelo processo de escolarização. No caso das crianças da Casa Hope tratava-se de um programa de acompanhamento pedagógico que contribui com a reinserção escolar das mesmas e, no caso das crianças que não são portadoras da doença, o processo de escolarização é natural. A equipe de pesquisa teve cuidado de manter em sigilo a identidade dos sujeitos de pesquisa. Visto que a idade dos participantes não permitia que assinassem o termo de participação, foi levado aos pais, e a instituição que abriu o espaço para que pudesse ser feito a pesquisa, as cartas de informação e os termos de consentimento livre e esclarecido para que tomassem ciência da pesquisa e autorizassem a mesma. As pesquisadoras dispuseram-se para explicar qualquer dúvida que pudesse surgir sobre o procedimento de estudo. Só foram aplicados os testes nas crianças cujos pais concordaram da participação delas. Foi respeitada qualquer limitação que a criança pudesse vir a ter em realizar o teste, mas que não interferisse na coleta de dados necessária à pesquisa. Este trabalho foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade Presbiteriana Mackenzie, sob o processo CEP/UPM no. 755/11/04.
Material e procedimentos
Utilizou-se o teste WISC-III (Escala de Inteligência Wechsler para crianças - 3ª edição) para medir as habilidades verbais e de desempenho executivo, fornecendo escores separados para cada uma, bem como, um escore total. Cada subteste do WISC-III avalia diferentes habilidades da criança. Far-se-á uma breve descrição das habilidades que estão envolvidas nos subtestes do teste de acordo com Cunha (2002).
De modo geral a escala verbal envolve a capacidade de lidar com símbolos abstratos, a qualidade da educação formal e estimulação do ambiente, assim como a compreensão, memória e fluência verbal (Cunha, 2002). No subteste Informação é avaliada a extensão do conhecimento que foi adquirido e que o sujeito é capaz de lembrar após ter sido armazenado. Quando a criança não tem um conhecimento prévio, é provável que venha a apresentar maiores dificuldades para responder ao subteste. O subteste Dígitos avalia a habilidades relacionadas com a extensão da atenção, retenção da memória imediata, memória e capacidade de reversibilidade, concentração e tolerância ao estresse. No subteste Vocabulário, é avaliado o desenvolvimento da linguagem e o conhecimento semântico, a inteligência geral de tipo verbal, a estimulação do ambiente e/ou curiosidades assim como os antecedentes educacionais. No subteste Aritmética, são avaliadas capacidades para resolver operações matemáticas básicas de cálculo, memória auditiva, habilidade de resolução de problemas complexos, mede concentração, resistência, distratibilidade, raciocínio lógico, abstração assim como contato com a realidade. O subteste Compreensão avalia a capacidade de senso comum, o juízo social, conhecimentos práticos e de normas socioculturais, maturidade social, capacidade para avaliar experiências passadas, compreensão verbal, memória e atenção, assim como pensamento abstrato na interpretação de provérbios. O subteste Semelhanças avalia raciocínio lógico e formação conceitual verbal, habilidades de raciocínio indutivo e desenvolvimento da linguagem e fluência verbal.
Também conforme Cunha (2002), serão descritas brevemente as habilidades envolvidas nos subtestes da escala de execução do teste. Esta escala avalia o grau e a qualidade do contato não verbal do indivíduo com o ambiente, a capacidade de integrar estímulos perceptuais e respostas motoras pertinentes, capacidade de trabalhar rapidamente, assim como a capacidade de avaliar informações visoespaciais. O subteste Completar Figuras avalia habilidades relacionadas com o reconhecimento e memória visual, organização e raciocínio, interesse e atenção ao ambiente, concentração e percepção das relações todo-parte, discriminação de aspectos essenciais de não-essenciais. No subteste Arranjo de Figuras avaliam-se habilidades relacionadas com as capacidades para organizar e integrar lógica e seqüencialmente estímulos complexos, compreensão de significados de situações interpessoais em contextos culturais e organizadas em uma seqüência temporal, processamento visual. O subteste Cubos avalia a capacidade de análise e síntese, capacidade de conceitualização visoespacial, coordenação viso-motor-espacial, organização e velocidade perceptual, estratégias de solução de problemas. O subteste Armar Objetos, avalia a capacidade de síntese de um conjunto integrado, capacidade de reconhecer configurações familiares, antecipar relações parte-todo, processamento visual, velocidade peceptual e manipulativa. No subteste Código, além da concentração que é imprescindível, avalia-se a velocidade de processamento, a capacidade para seguir instruções sob pressão de tempo, a atenção seletiva, a persistência motora em tarefas seqüenciais, a capacidade de aprender, a eficiência mental e a flexibilidade mental. O subteste Procurar Símbolos avalia a atenção e rapidez de processamento. Este subteste não pode ser aplicado devido à falta de material para a realização do mesmo, implicando na queda da pontuação final dos domínios Velocidade de Processamento e QI de Execução para todas as crianças.
Foram seguidas todas as normas estabelecidas para a administração do teste. Depois da aplicação do mesmo, foram calculados os escores brutos de cada subteste e transformados, de acordo com a tabela, em percentil. Através desse percentil foram feitas as interpretações que permitiram classificar qualitativamente os desempenhos em conceitos de maior facilidade até dificuldade de maneira decrescente. O resultado de cada teste foi comparado com o de crianças do mesmo grupo de sujeitos e posteriormente foi calculada uma média de cada grupo. Depois houve uma análise qualitativa de cada subteste de acordo com o desempenho do grupo e comparados ambos grupos entre si.
Discussão de resultados
A seguir serão descritos e discutidos os resultados do presente estudo. A Tabela 1 mostra as classificações das habilidades em função da média ponderada dos subtestes em ambos grupos de crianças.
Observa-se na Tabela 1 que, com exceção do subteste de aritmética (classificação de desempenho de Certa Dificuldade), nos subtestes restantes do teste, as crianças da escola EMEF atingiram um desempenho classificado como de Capacidade. No grupo de crianças da Casa Hope, a classificação foi semelhante. Os mesmos, em todos os subtestes obtiveram uma classificação coerente com Capacidade, destacando como diferente e vantajosa em relação às crianças da escola EMEF, a classificação Facilidade nos subtestes de Semelhanças e Vocabulário. Em meio deste resultado obtido que favorece às crianças da Casa Hope devemos notar que este tipo de instituição está realizando um trabalho muito além de ser simplesmente assistencialista. Silva (2006), apontava que muitas vezes as dificuldades financeiras dos centros de saúde levam à primazia pelo atendimento médico e assistencial, relegando a um segundo plano aspectos psicossociais, sobretudo, àqueles que envolvem outras esferas institucionais, tal como a educacional. Neste caso, a Casa Hope está mostrando um forte comprometimento tanto com os aspectos de auxilio para a assistência médica propriamente dita, assim com aspectos de caráter psicossocial, nos quais, o acompanhamento pedagógico se torna fundamental.
No subteste Completar Figuras todas as crianças tiveram um desempenho classificado na Capacidade, sobre tudo no que se refere a diferenciar o que é essencial na figura e o que eram detalhes. Do ponto de vista qualitativo, cabe salientar que foi observado que as crianças da Casa Hope mostraram maior orientação temporal. Hipotetiza-se que, talvez devido aos períodos longos de internação e tratamentos, a criança conseguiu adquirir um maior controle do tempo, devido à espera do fim de tratamento, de internação ou pela espera da volta para casa. Percebeu-se que no subteste Semelhanças, os erros começaram a ocorrer quando a semelhança a ser encontrada exigia da criança raciocínio lógico abstrato, apenas, o que contribuiu com a classificação obtida de Facilidade tendo em consideração a idade das crianças. Se compararmos este resultado com os obtidos nas crianças da Escola Municipal- EMEF, obtivemos que os erros ocorreram ainda em nível concreto de raciocínio, classificando-os, apenas, na Capacidade.
As crianças com câncer por terem longos períodos de internação durante o tratamento, podem perder a noção de quando é dia ou noite, uma vez que fica fechada dentro de um hospital, essa possível perda pode ser umas das justificativas para as certas dificuldades ocorridas nos itens do subteste Arranjo de Figuras, obtendo assim a classificação Capacidade. Uma das crianças da Casa Hope apresentava dificuldades em notar detalhes das figuras devido a uma seqüela do tratamento que afetou sua visão. Ressaltamos que devido a o pequeno número da amostra este erro produziu uma diminuição considerável na pontuação média do grupo. No caso desta criança, por mais estimulada que estivesse, a seqüela física deixada pelo tratamento, impediu seu melhor desempenho, comprovando o que diz Kazak (1995), que o tratamento pode interromper severamente o progresso da criança na escola, especialmente por algumas mudanças físicas decorrente do tratamento. Daí que exista um consenso para muitos pesquisadores em compreender a escolarização da criança com câncer como um verdadeiro desafio para profissionais, pais, professores e sociedade em geral (Moreira &Valle, 2001).
O fato das crianças da Escola Municipal - EMEF terem apresentado certas dificuldades em itens que avaliam uma noção de tempo mais concreta pode ocorrer devido a uma falta de estimulação ambiental e familiar para desenvolver estas habilidades. Pode haver uma carência de estimulação advinda da própria escola ou até mesmo da família em casa.
Gonçalves e Valle (1999) afirmaram que o tratamento demorado que atinge áreas do sistema nervoso central podem causar déficit em aspectos da inteligência, como: função integradora, habilidade motora fina, e reprodução de material abstrato. Para evitar danos irreversíveis é importante estimular o paciente durante o tratamento. A amostra proveniente da Casa Hope confirmou a importância dessa estimulação, uma vez que o esperado teria sido um rendimento mais baixo em relação à média ponderada e isto não aconteceu.
Hipotetiza-se que a estimulação intelectual decorrente do acompanhamento pedagógico pode estar contribuindo com os bons resultados nas atividades contrariando nossa hipótese inicial. Silva (2006) realizou um estudo na ótica fenomenológica para compreender a escolaridade de crianças com câncer na visão de mães, professores e colegas assistidos por um programa de reinserção escolar. Neste estudo a autora ressaltou que há consonância entre o que é ressaltado na literatura e às necessidades das pessoas envolvidas no processo de reinserção escolar das crianças com câncer, já que as próprias crianças doentes, suas mães, professoras e colegas ressaltam a importância de programas de reinserção escolar na facilitação da tarefa de voltar às aulas durante o tratamento.
Destaca-se que as crianças da Casa Hope tinham em média 5 meses de tempo de tratamento, considerado curto em relação aos estudos de Gonçalves e Valle (1999) e Lopes e Bianchi (2000), em termos de afastamento da escola, já que para estes autores acima os problemas de aprendizagem ocorrem de maneira mais freqüente após longos períodos de tempo de tratamento. Inclusive no subteste de vocabulário as crianças da Casa Hope mostraram maior repertório de palavras que as crianças da escola municipal (tabela 1 - média de pontuação ponderada de 15.5). Tudo isto em relação à média ponderada. Daí a classificação que obtiveram de Facilidade. As crianças da Escola Municipal- EMEF, embora classificadas no nível de Capacidade, não mostraram um conhecimento semântico equivalente ao outro grupo (Tabela 1 - média de pontuação ponderada de 11), talvez devido à estimulação ambiental (família e escola) ou até por uma curiosidade pouco estimulada que torna-se deficitária e se reflete em testes deste tipo.
Mesmo que todas as crianças tenham atingido nível de Capacidade no subteste Armar Objetos, reparem-se diferenças nas médias da pontuação ponderada de ambos os grupos (tabela 1, 8,8 para as crianças da escola municipal - EMEF e 11,7 para as crinças da Casa Hope). As crianças da Casa Hope mostraram boa capacidade de percepção das partes e do todo. Infere-se que, talvez por essas crianças passarem por tratamentos agressivos a ponto de terem que amputar partes do corpo e enfrentar a queda do cabelo entre outras reações adversas, isto tudo pode contribuir para que eles consigam desenvolver de maneira mais acurada diversas capacidades relacionadas com o reconhecimento de configurações familiares e relações parte-todo.
A falta de conhecimento das crianças da escola quanto a alguns itens poderia interferir outro processo relacionado com leitura, compreensão de textos e cálculos. É provável que o maior convívio com adultos que as crianças com câncer têm durante o tempo de tratamento possa contribuir para uma melhor orientação pessoal, espacial e temporal, assim como para uma melhor compreensão sobre fatos do dia-a-dia. O bom desempenho destas crianças fica refletido nas pontuações obtidas nos subtestes de Informação, Semelhanças, Aritmética, Vocabulário e Compreensão, por exemplo. Em muitos desses subtestes a classificação de desempenho foi a mesma que a obtida pelas crianças da escola municipal, porém as médias das pontuações ponderadas forma superiores nas crianças da Casa Hope
Na realidade e contra a expectativa dos pesquisadores, as crianças da Escola Municipal - EMEF mostraram um desempenho abaixo do esperado, quer dizer, um desempenho que fosse igual ou melhor que a média ponderada. O baixo desempenho dessas crianças da Escola Municipal no teste poderia estar relacionado com algumas possíveis variáveis. A saber, problemas na qualidade do programa de aulas, pouca estimulação ambiental, dificuldades na assiduidade às aulas, greves e repetências, entre outros. No caso desse grupo de sujeitos houve a confirmação da variável greve, inclusive no tempo da colheita da amostra. Podendo assim inferir possíveis fatores envolvidos no baixo desempenho dessas crianças embora a identificação desses fatores não tenha sido objeto de estudo deste trabalho.
Considerações finais
Recentemente a Secretaria de Estado da Educação (SEESP) divulgou que existem no estado de São Paulo várias classes hospitalares que asseguram atendimento educacional a crianças internadas em diversos hospitais (www.educação.sp.gov.br). Na noticia foi salientado um número considerável de hospitais onde a prática docente está se tornando uma rotina. Trata-se de uma rotina já legislada na Lei Estadual 10685, de 30 de novembro de 2000. Dessas classes, 20 se localizam na capital do estado de São Paulo e 13 no interior. No Boletim da SEESP destacam-se algumas vantagens dessa implantação, já que a prática da escolarização dentro do hospital não ameaça, necessariamente, os rendimentos acadêmicos das crianças e adolescentes matriculados na Educação Básica que, por problemas de doença, afasta-se da escola regular. A manutenção dessas classes hospitalares parece assegurar o atendimento educacional a essas crianças.
Silva (2006), ressalta que a Sociedade Internacional de Oncologia Pediátrica (SIOP) tem defendido e implementado com resultados muito promissórios os programas de reinserção escolar para crianças com câncer. A autora destaca que a própria sociedade afirma que esses programas já são uma realidade nos países da Europa, nos Estados Unidos e no Canadá, sendo considerados essenciais no processo do cuidado em oncologia pediátrica.
No caso deste estudo o resultado geral obtido apontou para bom desempenho no teste em todas as crianças. Entretanto os valores das médias de pontuações ponderadas nas crianças portadoras de câncer da Casa Hope foram iguais ou acima das médias ponderadas. Entretanto, no grupo de crianças da Escola Municipal- EMEF, o resultado geral apontou para um desempenho igual ou menor que as médias ponderadas. O resultado também proporcionou uma análise mais acurada em relação ao desempenho das crianças da Escola Municipal, uma vez que essas obtiveram resultados inesperados, fazendo com que tais resultados possam levar a repensar a baixa qualidade e estimulação do ensino público em algumas escolas do Município de São Paulo.
Embora com certa lógica retrodutiva, formular-se-ão duas hipóteses explicativas sobre os dados de melhor desempenho das crianças doentes. Uma diz respeito aos possíveis benefícios que o acompanhamento pedagógico deve estar produzindo na manutenção e fomento de diversas habilidades cognitivas, e outra relacionada com o tempo de evolução da doença. Quando os dados foram coletados as crianças se encontravam afastadas da escola regular entre 3 meses e 1 ano, tempo que ainda pode não ter interferido em muitas das habilidades adquiridas anteriormente. Mesmo assim o desempenho destas crianças portadoras de doença se mostrou do ponto de vista numérico melhor que o desempenho das crianças sem câncer.
No Brasil não existe um acúmulo amplo de literatura em que sejam desenvolvidos estudos longitudinais sobre habilidades de desempenho intelectual antes, durante e após o diagnóstico e tratamento de crianças com câncer nas duas condições. Isto é na condição de participantes de programas de reinserção escolar e na condição de não participantes deste tipo de programas. Cabe salientar aqui uma pesquisa de tipo documental realizada por Silva, Teles e Valle (2005) em que foram identificados na literatura brasileira os estudos realizados sobre câncer infantil entre 1998 e 2004. Nesse sentido os autores destacaram que entre 1980 e 1997 foram encontrados 61 trabalhos sobre esta temática, nos quais o tema da escolarização já era citado e, entre 1998 e 2004 já esse número aumentou para 56 trabalhos o que indica um aumento nas pesquisas, porém ainda há necessidade de uma ampliação qualitativa e quantitativa de estudos sobre escolarização nos diversos temas que esta área exige, seja na área dos aspectos psicossociais, na área do rendimento escolar propriamente dito, na área de programas concretos de reinserção escolar e de alfabetização.
O presente estudo representa uma incipiente contribuição com esta área da escolarização que vai além de uma simples inferência sobre se a criança pode ou não ser escolarizada. O fato de ter podido pesquisar crianças com câncer que participam deste processo de escolarização e compará-las com crianças saudáveis nos permite, inferir, mesmo nas condições tão restritas da amostra estudada, que estas crianças doentes podem se desenvolver como seus pares sem chegar a verdades ilusórias. Ilusória no sentido de ter que aceitar a existência de certas limitações de conotação biológica que podem ocorrer e repercutir em vários aspectos psicológicos e psicossociais da criança que enfrenta a doença. Em hipótese alguma os dados encontrados aqui são passíveis de generalizações para outros grupos populacionais, entretanto o estudo pode auxiliar, mesmo de maneira muito modesta, a vários profissionais que agem em equipes na tarefa de educar e escolarizar a quem teve que se afastar abruptamente de uma das atividades mais importantes de uma criança: a escolarização e, inclusive, também pode se beneficiar quem freqüenta a escola rotineiramente.
Referências
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Endereço para correspondência
R. Victor Brecheret n520 Apt 1D T6 - Osasco-SP. CEP: 06026-000
E-mail: alinemag@terra.com.br
Recebido em junho de 2006
Reformulado em agosto de 2006
Aprovado em setembro de 2006
Sobre as autoras:
1 Aline Magalhães da Silva: Psicóloga pela Universidade Presbiteriana Mackenzie.
2 Elaine da Trindade Gallego: Psicóloga pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Aprimoramento em Psico-oncologia pelo Centro de Tratamento e Pesquisa do Hospital do Câncer e Aluna do curso de Especialização em Neuropsicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
3 Maria Cristina Triguero Veloz Teixeira: Psicóloga, Mestre em Psicologia Social e Doutor em Filosofia da Saúde na Universidade Federal de Santa Catarina. Docente do Curso de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie, campus São Paulo.