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Avaliação Psicológica
versão impressa ISSN 1677-0471versão On-line ISSN 2175-3431
Aval. psicol. v.5 n.1 Porto Alegre jun. 2006
ARTIGOS
Avaliação psicológica em crianças e adolescentes em situação de risco
Psychological assessment of at risk children and adolescents
Circe Salcides Petersen1; Sílvia Helena Koller2
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
RESUMO
A Psicologia e a pesquisa científica não oferecem respostas satisfatórias para várias questões relativas à avaliação psicológica de crianças e adolescentes em situação de risco social e pessoal. Esta revisão visa a apresentar um breve apanhado sobre a adolescência e a infância no contexto brasileiro atual e a pertinência do uso de instrumentos e técnicas de avaliação psicológica neste contexto, bem como a necessidade do desenvolvimento e difusão de novas formas de investigação com estas populações.
Palavras-chave: Avaliação psicológica, Desenvolvimento humano, População em situação de risco, Crianças, Adolescentes.
ABSTRACT
Psychology and scientific research do not seem to offer satisfactory answers to many issues regarding the psychological assessment of at risk children and adolescents. This essay aim to present a brief review on adolescence and childhood in the current Brazilian context and the pertinence of the use of psychological instruments and techniques for evaluation in this context, as well as the need of the development and diffusion of new research and methods with these populations.
Keywords: Psychological assessment, Human development, At risk population, Children, Adolescents.
Esta revisão visa a apresentar um breve apanhado sobre a adolescência no contexto brasileiro atual e a pertinência do uso de instrumentos e técnicas de avaliação psicológica neste contexto, bem como a necessidade do desenvolvimento e difusão de novas formas de investigação com estas populações. São apresentadas algumas possibilidades com relação à avaliação psicológica de crianças e adolescentes em situação de risco social e pessoal. Embora tenha havido recentemente um certo avanço na regulamentação de instrumentos psicológicos pelo Conselho Federal de Psicologia, muitos deles não são especialmente preparados para trabalhar com esta população (Resoluções CFP n° 025/2001 e n.º 002/2003). Crianças e adolescentes em situação de risco social e pessoal têm sido definidos, genericamente, como populações que podem apresentar defasagem em seu desenvolvimento (físico, cognitivo e/ou sócio-emocional) por estarem expostos a condições de miséria econômica e/ou afetiva (Alves & cols., 1999; Hawkins, 1986).
A infância e a adolescência podem ser definidas como fenômenos plurais e em permanente evolução, atravessado por diferentes categorias: geográfica, histórico-culturais, socioeconômica, étnica, gênero, religião e fatores psicofisiológicos. Conseqüentemente, discutir fatores de risco nestas fases do ciclo vital implica uma abordagem contextualista, multifatorial e dialeticamente orientada.
No contexto bioecológico, em que a pessoa em desenvolvimento - criança e adolescente - se inscreve, ocorrem múltiplos eventos que serão interpretados como de risco ou proteção, resultando em vulnerabilidade ou acionando processos de resiliência e precisam ser cuidadosamente avaliados. Bronfenbrenner (1979/1996) usou a metáfora das bonecas russas (Figura 1) para caracterizar este ambiente ecológico de desenvolvimento como uma série de estruturas encaixadas, uma dentro da outra.
No ambiente ecológico, o primeiro nível corresponde à pessoa e sua família (microsistema). Este sistema é diretamente conectado ao mesossistema, que compreende as relações existentes entre os diferentes microssistemas. No mesosistema encontram-se os efeitos experimentados pelas relações (escola, creches, parentes, vizinhos, praça). O exossistema abrange as articulações entre pessoas envolvidas nos sistemas em que a pessoa circula e que a afetam indiretamente (trabalho, clubes de lazer, administração escolar, assistência à saúde, serviços públicos municipais, organizações de bairro, empresas privadas).
Todos os níveis compõem o macrossistema em que estão contidos os valores, crenças, recursos, idéias, classes sociais, estilos de vida, enfim, relações com a cultura. Todos os níveis sofrem influência do tempo que inclui os eventos históricos e mudanças econômicas (Bronfenbrenner, 1979/1996, 1999). A Figura 2 ilustra a abordagem bioecológica, que pode servir como moldura para avaliar psicologicamente uma pessoa em desenvolvimento, pois contempla o contexto, o processo, a pessoa e o tempo.
As variáveis tempo e espaço devem, fundamentalmente, ser consideradas no estudo da adolescência, uma vez que esta se constitui diferentemente ao longo da história da humanidade. Por exemplo, o cenário no qual estava inserido um adolescente dos anos oitenta era completamente distinto da nova ordem social que se estabeleceu após a queda do muro de Berlin, em 1989. Os anos 90 foram marcados pela globalização, as "tribos" adolescentes ficaram destituídas do seu sentido inicial, como aquele em que ser punk tinha a conotação de luta operária inglesa por emprego. Ser punk é um estado passageiro caracterizado por adereços sem uma ideologia subjacente. Os movimentos culturais passam a ter um caráter mundial como, por exemplo, o movimento Hip-hop que abriga o rap, o break e o grafite e se estende pelo mundo ocidental, quase que como gerando uma cópia de um mesmo adolescente com diferentes idiomas em diversos países. As "tribos" adolescentes caracterizam-se pelo aspecto camaleônico de fim de século, em que as iniciativas culturais locais perdem espaço para a globalização, que também é um fenômeno cultural, mas muito mais acelerado.
A avaliação de risco nas fases de desenvolvimento infantil e adolescente devem levar em conta o panorama multidimensional do desenvolvimento e suas conseqüências para o método de investigação. Tal ênfase requer protocolos de avaliação que contemplem a dinamicidade das dimensões ao longo do tempo. Para abarcar fenômenos culturais e individuais, os protocolos híbridos são os mais indicados, pois podem acessar resultados quantificáveis e, ao mesmo tempo, descrever fenômenos que fazem parte do processo de avaliação. Esta, então, toma uma dimensão multifacetada aplicável em planejamentos e avaliação de programas sociais. Um protocolo longitudinal com três coortes, por exemplo, pode contemplar três dimensões bem definidas: diagnóstico, feed back para a equipe ao longo da intervenção e avaliação de impacto, ao término do período. Dessa forma a avaliação abrange as esferas de avaliação individual, da equipe e, finalmente, do programa de intervenção (National Council of Juvenile and Family Court Judges, 2002).
O conceito de risco é originário do campo econômico e tem suas raízes no comércio por via marítima. Este fato desencadeou a necessidade de quantificar o risco de perdas para seguradoras.
Atualmente, é feita referência ao Risco Brasil, parâmetro internacional para avaliar o risco e o beneficio de capitais internacionais migrarem para países em desenvolvimento, em busca de elevadas taxas de juros, levando em conta indicadores políticos e econômicos. Há, no entanto, outra faceta do Risco Brasil, que é o risco social. Historicamente, a privação econômica tem sido vista como uma das principais fontes de fatores de risco sociocultural para pessoas em desenvolvimento. Para atingir este objetivo, os indicadores de exclusão social apresentados por Pochmann e Amorin (2003), no Atlas da Exclusão Social no Brasil, mostram-no como um país de excluídos. Há ilhas de inclusão em um mar de exclusão social que agrega modelos da velha exclusão com a nova exclusão, fruto do desemprego, especialmente aquele decorrente da globalização e da reestruturação produtiva.
O mapa da Figura 3 mostra o retrato de um país de desigualdades, em que as áreas que apresentam melhores condições de vida estão, predominantemente, abaixo do Trópico de Capricórnio. Os índices de alto grau de exclusão predominam nas regiões Norte e Nordeste. O indicador de violência ancora-se na lógica social e territorial diferente da exclusão social. Os índices de Risco Juvenil pode ser encontrado a partir dos indicadores de participação de jovens de zero a 19 anos na população e taxa de homicídios por 100 mil habitantes. Estes captam uma realidade caótica em que vivem muitos jovens brasileiros. A superposição dos índices de Risco Juvenil, conhecimento, medido pela taxa de alfabetização de pessoas acima de cinco anos, média dos anos de estudo do chefe de domicílio, aspectos de padrão de vida medido pela pobreza dos chefes da família no município, desigualdades de renda e emprego formal constroem o índice de exclusão social.
No estudo conduzido por De Antoni e Koller (2000), meninas adolescentes institucionalizadas identificam em suas famílias os seguintes indicadores de proteção: apoio emocional, práticas disciplinares, atividades em conjunto e presença de rede de apoio. Por outro lado, os fatores de risco revelados abarcavam: violência doméstica, violência na comunidade, descontrole emocional, falta de responsabilidade, culpa, drogas, falta de dialogo, ausência dos pais, transição da infância para adolescência e ausência de rede de apoio social eficaz. A avaliação psicológica deve contemplar fatores sociais, além das variáveis individuais de vulnerabilidade.
O uso de entrevistas tem se mostrado mais eficaz do que escalas e inventários de risco, pois é possível definir o período sob investigação, bem como o impacto subjetivo de caráter negativo ou positivo determinado pela interpretação individual. Nesses termos, podem ser utilizadas como métodos adicionais para acessar, por exemplo, o nível global de stress. Diferentes parâmetros, como níveis de ansiedade, introversão x extroversão, graus e possibilidades de coping têm sido apontados como preditores das respostas psicofisiológicas ao stress. Nesse contexto, o que determina a interpretação do evento como estressor não será unânime, mas singular a cada indivíduo. O evento que resultará em estresse está estreitamente ligado à capacidade de coping da pessoa.
Para avaliação das diferentes dimensões envolvidas nos processos de stress/coping e saúde/doença, há vários instrumentos disponíveis, que podem ser aplicados aos adolescentes. Para variáveis como depressão e ansiedade, que podem se constituir em situação de vulnerabilidade, têm sido usadas as Escalas Beck (Nunes, & Petersen, 2004; Petersen, Guimarães, Svirsk, & Shaefer, 2001; Petersen, & Nunes, 2002). Afetos negativos, como a raiva, têm sido avaliada com o STAXI (Biaggio, 1992/2003).
Os instrumentos projetivos também têm se mostrado úteis, particularmente, na avaliação de pacientes com vulnerabilidade somática, como o TAT. O laboratório de Psicologia de Paris utiliza o TAT como um indicador de capacidade simbólica em seus pacientes com desequilíbrios somáticos (Brelet-Foulard, & Chabert, 2005). Estes pacientes têm tendência a descrever as lâminas em lugar de imaginar histórias. A precariedade na capacidade imaginativa denota tendência à somatização, bem como à atuação. Além da função clássica de avaliação, o TAT tem se mostrado útil como mediador para pacientes com dificuldades de verbalização. As lâminas podem ser utilizadas no contexto da intervenção, a fim de facilitar a verbalização de afetos e idéias as quais os pacientes temem acessar ou por precariedade da capacidade associativa. O desenho da casa-árvore-pessoa (HTP) também é um instrumento que auxilia na elaboração de estudos de caso. O HTP pode ser empregado na tarefa de aquecimento inicial para avançar na direção de uma entrevista clínica completa (Buck, 2003; Shentoub, Chabert, & Shretien, 1990).
A avaliação psicológica de crianças e adolescentes deve envolver pais e professores. Estes últimos são bastante importantes, particularmente quando é necessário realizar screening em grupos numerosos. A avaliação através de questionários dirigidos a professores ou protocolos observacionais permite dirigir a atenção àqueles adolescentes que, se incluídos em projetos preventivos, teriam esquemas de proteção acionados, minimizando efeitos negativos futuros.
A relevância de elaboração de projetos de intervenção psicosocial atrelados a delineamentos de avaliação de resultados deve ser considerada. Os programas deveriam ter seu planejamento e execução, simultâneos à avaliação. A avaliação de projetos e de programas psicossociais, organizada com métodos híbridos, contempla o processo e os resultados do programa. O mais importante da avaliação pode ser implementar melhoras, a provar algo. Alguns elementos podem ser considerados chave para avaliações efetivas de programas sociais, como por exemplo, auxiliar no cumprimento de missões; guiar desenvolvimento interno e oferecer auditoria externa; pesquisar com visão holística do programa; contextualização; comunicação e cooperação; relações participativas e solução de problemas produzindo resultados mais eficazes (National Council of Juvenile and Family Court Judges, 2002).
Pesquisadores que se interessam por crianças e adolescentes, que vivem em condições precárias de desenvolvimento, querem mais do que apenas entender os efeitos psicológicos do risco social e pessoal em suas vidas. Visam, por terem vocação acadêmica, a produzir conhecimento que se mostre válido em seu contexto, apropriando teorias e métodos para a realidade estudada. Mas aqueles que além de cientistas também estão comprometidos com a realidade social almejam, mais do que isto. Sua pesquisa envolve a busca por impacto e relevância social, a fim de reduzir os efeitos negativos destas condições de vida. Modificar efetivamente tal realidade também é um de seus objetivos, pois reconhecem que estudar em profundidade aspectos psicológicos em pessoas em situações especiais de vida permitirá subsidiar políticas públicas.
Cuidados metodológicos em estudos de avaliação psicológica devem ser tomados, para garantir que os achados de uma pesquisa sejam realmente efetivos e válidos. Mas a realidade de crianças e adolescentes em situação de risco social e pessoal nem sempre propicia a execução de um estudo planejado com delineamento apropriado, procedimentos rigorosos de amostragem, acesso a grupos de comparação e medidas adequadas (Hutz & Koller, 1999). Mesmo sendo experts em avaliação, profissionais da Psicologia utilizam, comumente, medidas com validade e fidedignidade padronizadas para outras populações e outras culturas. E muitas vezes, tais características são desconhecidas para a população investigada. A utilização de testes psicológicos e outras técnicas não adaptadas para algumas crianças e adolescentes pode gerar um conjunto de resultados não significativos, ou até mesmo, impossíveis de avaliar dentro de parâmetros estandardizados. Este erro de mensuração não significa ausência de efeito, portanto é fundamental ter em mente que o uso de um instrumento precisa ser contextualizado e buscar o sentido que o dado tem para aquele grupo, que enfrenta condições diferenciadas de desenvolvimento.
Embora a Psicologia esteja acumulando conhecimento, há uma lacuna em estudos sobre condições de risco pessoal e social, conforme salientam Hutz e Koller (1996). Tal lacuna é ampliada tanto pela ausência ou inadequação de modelos teóricos importados e transplantados para outra realidade quanto pela pesquisa empírica realizada sem rigor metodológico e uso de instrumentos apropriados (Emde, 1994; Fischer, 1993; Huston, McLoyd, & Coll, 1994; Jessor, 1993). A maioria dos estudos sobre desenvolvimento humano normativo tem sido feita com crianças e adolescentes norte-americanos, brancos de classe média, que tem acesso a escolarização. As patologias, como apontam Hutz e Koller, são estudadas, principalmente, com participantes pobres, negros, hispânicos e imigrantes. Tal visão enviesada e importada para o Brasil desqualifica a utilização de instrumentos, gerando necessidade de estudos e adaptação. Além de muitos deles não possuírem normas específicas, em muitos casos, o conteúdo e a forma de apresentação são os aspectos mais problemáticos.
O conteúdo dos testes, em geral, consistem em itens que envolvem contextos padrão, como relações com pais, professores, hábitos rotineiros e estruturados. Entre alguns grupos de populações em situação de risco, estes aspectos absolutamente não fazem parte da vivência cotidiana. Para executar uma pesquisa científica e/ou uma avaliação psicológica com estas crianças e adolescentes várias modificações devem ser feitas. A linguagem utilizada deve ser mais acessível para permitir a compreensão, mas com cuidado para não modificar o conteúdo básico que elicia as respostas. Os protagonistas, o contexto e as relações interpessoais devem ser substituídos por entidades que façam parte das suas experiências diárias. No entanto, a questão mais importante é garantir que o instrumento utilizado tem validade de constructo, pois uma atribuição de significado a uma variável nem sempre é compartilhada em culturas diferentes.
Várias escalas e questionários não podem ser adaptados, simplesmente porque envolvem aspectos conceituais que têm influência cultural muito expressiva. Por exemplo, uma escala norte-americana para avaliar autonomia de adolescentes não pode ser importada para uso com jovens brasileiros. Mesmo respeitando todos os procedimentos padrão de adaptação e tradução, o problema não está na estrutura do idioma ou na forma de confecção dos itens, mas nos significados e valores que perpassam a realidade da vida destes nas diferentes culturas. Avaliar a perspectiva de tempo de crianças em situação de rua, por exemplo, pode ser um desafio, desde a mensuração do tempo métrico às perspectivas de presente, passado e futuro. Previsões e formalizações estruturadas da dimensão do tempo pode fugir ao entendimento da criança, com relação à expectativa do teste (ver Neiva-Silva, Alves, & Koller, 2004). Alguns instrumentos podem ser utilizados sem que sejam necessárias mudanças de linguagem ou de contexto, especialmente aqueles que envolvem aspectos mais subjetivos ou apenas gráficos.
A forma de aplicação de um instrumento também deve ser considerada. No caso de aplicar um instrumento a uma criança que está na rua, por exemplo, deve ser levada em conta a sua luta diária pela sobrevivência e segurança (ver Paludo & Koller, 2004, para maiores detalhes). A presença de estímulos e perigos variados não configura um setting de aplicação esperado. Portanto antes de escolher um instrumento, os pesquisadores devem avaliar custo-benefício de tal aplicação.
Outro aspecto relevante são os procedimentos para o preenchimento - coletivo, individual, auto-relato -, que também devem ser adaptados ao contexto, ao nível de entendimento e de interesse do participante. Uma aplicação de um instrumento que se apresente como um jogo ou com ludicidade pode, certamente, ser mais atrativo. No entanto, nem sempre é possível usar estes recursos em uma avaliação psicológica sem violar o objetivo do instrumento e do estudo. Ainda um aspecto que deve ser levado em conta é o tempo de reação e duração de uma aplicação em contextos menos estruturados. O empenho dos pesquisadores deve ser redobrado para manter a sua própria atenção e a do participante à tarefa, em contextos ruidosos, inseguros e sem privacidade. Estudos pilotos são imprescindíveis para avaliar o método proposto e o grau de investimento que os pesquisadores deverão fazer para garantir a obtenção de dados válidos.
Algumas técnicas e instrumentos psicológicos têm sido criados e/ou adaptados para utilização no Brasil, com populações em situação de risco social e pessoal, especialmente crianças e adolescentes em situação de risco, vítimas de violência, institucionalizadas e de rua. Diferentemente da idéia de estudar patologias com crianças pobre e excluídas, os estudos no país têm focado em abordagens para a saúde e a superação da vulnerabilidade. Os modelos teóricos que embasam a maioria das pesquisas brasileiras são principalmente a ecologia do desenvolvimento humano (Bronfenbrenner, 1979/1996, Bronfenbrenner & Morris, 1998) e a Psicologia Positiva (Seligman & Csikszentmihalyi, 2000), com estudos sobre resiliência, qualidade de vida, bem-estar, emoções morais, entre outros, enfatizando os aspectos psicológicos sadios preservados no desenvolvimento de crianças. Sob este prisma apareceu a necessidade de criação de novos métodos e instrumentos planejados a partir da experiência dos próprios participantes. Estes devem se basear em investigações que envolvam o contexto, valores e o cotidiano e é fundamental que o método psicológico capture a realidade da pessoa avaliada. Urge, no entanto, que estas pesquisas sejam continuamente realizadas com crianças e adolescentes em situação de risco social e pessoal, a fim de produzir ainda mais conhecimento e de melhor qualidade, refinando assim também os métodos de avaliação psicológica.
Algumas métodos foram desenvolvidas para facilitar o trabalho, criar ou transformar o instrumental existente em algo mais lúdico e atrativo para ser utilizado em espaços cuja diversidade e adversidade se faz presente constantemente. Em estudos com crianças e adolescentes vítimas de violência, métodos qualitativos têm sido mais utilizados. De Antoni e Koller (2000a, 2000b) investigaram, usando o método de grupos focais, a visão de meninas institucionalizadas por vitimização sobre suas famílias de origem e suas expectativas para o futuro. O uso da técnica levou a elaboração de um artigo sobre a grupos focais que têm sido amplamente utilizado como referência (De Antoni et al., 2001). Estudo de caso de profundidade para estudar violência de gênero e disciplinamento corporal em diálogo com o feminismo foi utilizado por Narvaz e Koller (2004a, 2004b), possibilitando a produção de uma série de artigos sobre estas temáticas (Narvaz & Koller, 2006a, 2006b).
Estudos envolvendo métodos quantitativos também estão sendo utilizados para avaliar vitimização. Habigzang (2006) avaliou a efetividade de um modelo de grupoterapia cognitiva-comportamental para meninas vítimas de abuso sexual intrafamiliar, que foram clinicamente avaliadas com instrumentos psicológicos adaptadas para uso no país. Usou uma entrevista semi-estruturada baseada no The Metropolitan Toronto Special Committee on Child Abuse (1995), traduzida para o Português e adaptada por Kristensen (1996); o Inventário de Depressão Infantil (CDI), elaborado por Kovacs (1992) e adaptado, para uso no Brasil, por Gouveia, Barbosa, Almeida e Gaião (1995); a Escala de Estresse Infantil (ESI) das autoras brasileiras Lipp e Lucarelli (1998); o Inventário de Ansiedade Traço-Estado para crianças (IDATE-C), elaborado por Spielberger em 1970, e adaptado para uso no Brasil por Biaggio e Spielberger, em 1983; e, uma entrevista estruturada com base no DSM IV/SCID para avaliação de transtorno do estresse pós-traumático também adaptada para o Brasil por Del Ben, Vilela, Crippa, Hallak, Labate, e Zuardi (2001). Adaptou o Children's Attributions and Perceptions Scale (CAPS), desenvolvido para mensurar questões específicas do abuso em crianças sexualmente abusadas por Mannarino, Cohen, e Berman (1994), utilizando estudo piloto rigoroso para antecipar possíveis problemas em sua pesquisa.
O método de estudo por análise documental também foi utilizado para avaliar questões relacionadas à vitimização de crianças e adolescentes, com vistas a subsidiar políticas públicas. Habigzang, Koller, Azevedo e Machado (2005, no prelo) examinaram processos jurídicos, identificando a necessidade de estabelecer uma rede mais efetiva, em termos de estrutura e funcionamento. A análise serviu para propor capacitação de profissionais para lidar com a temática e melhoria dos recursos e condições de atendimento.
Para estudar aspectos psicológicos de crianças em situação de rua, Alves e colaboradores (1998) elaboraram um método de observação de crianças no espaço da rua, para investigar as atividades cotidianas, propiciando assim subsidiar, com rigor, a realização de novos estudos da equipe (ver também Cerqueira-Santos, 2004 e Cerqueira-Santos & Koller, 2003). Em 2002, Alves validou este método de observação com a utilização de figuras que apresentavam as atividades mais freqüentes de seu estudo de 1998, para identificação pelas crianças. Outra contribuição metodológica foi a proposição do uso do jogo de sentenças incompletas, por Raffaelli e colaboradores (2000, 2001), que tem sido utilizado em inúmeras pesquisas (Alves, 2002; Cerqueira-Santos, 2004). A apresentação de sentenças curtas e incompletas que o participante deve finalizar com idéias que surjam imediatamente após a apresentação do estímulo, facilita a expressão de conteúdos na forma de uma atividade lúdica. É mais fácil para crianças e adolescentes no espaço da rua completarem as sentenças, como uma brincadeira do que precisarem estruturar uma resposta a uma questão fechada que lhes é apresentada (Koller, 2004).
Outros métodos têm sido utilizados para avaliar expectativas de futuro e representação de si com jovens em situação de rua e ou de risco gerada por pobreza familiar. Neiva-Silva e Koller (submetido) e Neiva-Silva, Borowsky e Koller (2004) utilizaram o método autofotográfico, para que crianças e adolescentes em situação de risco e de rua fotografassem a sua realidade cotidiana. Este método exigiu o estabelecimento de forte relação de confiança, com vínculo afetivo e acompanhamento durante um extenso período de tempo, até o fornecimento de máquinas fotográficas, que eles levavam para suas casas ou utilizavam na rua. Na construção do livro individual com imagens obtidas por eles, os pesquisadores avaliaram contextos familiares, escola e instituição. Riscos como a presença da droga, da precariedade das relações e do desejo não atendido de superação das condições limitantes de desenvolvimento ficaram evidentes. O aspecto mais difícil de superar no uso deste método foi o convencimento da polícia de que as máquinas não haviam sido roubadas. Etiquetas enormes com os dados da equipe e telefone de contato foram colocadas nas câmeras, com o objetivo de proteger os participantes de possíveis suspeitas e acusações de roubo.
Um dos instrumentos que tem recebido maior adesão e interesse, por parte de pesquisadores é o Mapa dos Cinco Campos, que foi adaptado por Hoppe (1998) para estudar redes de apoio social e afetivo de crianças em situação de pobreza (ver também Mayer, 2003). A proposta original de Samuelsson, Thernlund, e Ringström (1996) consistia em aplicar o teste em papel e lápis. Hoppe transformou o instrumento em uma atividade lúdica, na qual as crianças e adolescentes preenchem em um quadro de feltro, com bonequinhos de velcro coloridos, que configuram as suas relações familiares, de amizade, na escola, contatos formais, entre outros. Este instrumento na forma proposta tem despertado o interesse também de participantes de pesquisa adultos. Poletto (1999; Poletto & Koller, 2002) comparou a visão de pais com as de seus filhos sobre a rede e contextos de desenvolvimento, identificando fatores de risco e proteção. Coerências, divergências e desconhecimento sobre a real importância e influência das redes entre adultos e crianças revelavam que estas valorizavam suas escolas como apoio social mais do que seus pais supunham. Este resultado serviu como subsídio para um programa de intervenção que visava a aproximar os pais da escola. Ainda, com relação à avaliação da rede de apoio social e afetivo, Brito (1997) adaptou o instrumento Modelo de Escolta (Kahn & Antonucci, 1980) para utilização no espaço da rua com usuários de drogas. Este é menos complexo que o mapa utilizado por Hoppe (1998) e por Poletto (1999), adaptando-se melhor ao espaço da rua. Os recursos e a qualidade das redes disponíveis, especialmente da parte das instituições de atendimento às crianças e adolescentes de rua evidenciou-se como fator de proteção para a busca de desintoxicação e aderência ao tratamento. A revelação ou confirmação do papel fundamental no desenvolvimento destes participantes, apresentada na etapa de devolução da pesquisa por Brito às instituições, foi primordial para melhoria da qualidade de vida dos meninos(as) e dos profissionais.
Cecconello e Koller (2003a) avaliaram resiliência de crianças pobres utilizando o Teste das Histórias Incompletas (Mondell & Tyler, 1981) para avaliar a competência social, e a Escala de Empatia (Bryant, 1982; adaptada para a utilização no Brasil com crianças de nível sócio-econômico baixo por Ribeiro, Koller, & Camino, 2001). Avaliaram, ainda, a representação mental da relação de apego e qualidade do relacionamento mães-filhos através de desenhos da família, seguinte proposta por Fury, Carlson, e Sroufe (1997). Fatores de risco, de proteção e mediadores foram levantados em entrevistas com as mães e cuidadoras sobre o desenvolvimento das crianças em uma convivência de proximidade da equipe de pesquisa com os participantes. Além de criar um instrumental lúdico para a realização desta pesquisa, Cecconello e Koller (2003a) propuseram com a continuidade de seus estudos, a operacionalização do modelo teórico da abordagem ecológica do desenvolvimento humano (Bronfenbrenner, 1979/1996). Esta nova metodologia, denominada inserção ecológica (ver Cecconello & Koller, 2003b), vem servindo de método principal de investigação para outros estudos em andamento (Morais, 2004; Narvaz, 2004; Paludo, 2004).
A escola tem sido um contexto de desenvolvimento importante no nosso trabalho. Lisboa (2000) construiu um instrumento de avaliação da agressividade de crianças, a partir da visão de seus professores. Além disto, identificou estratégias de enfrentamento (coping) e padrões de comportamento agressivo em escolares, que apresentavam histórias de vitimização intrafamiliar.
Este contexto de inserção da avaliação psicológica possibilita uma prática comprometida com a inclusão social. O fazer psicológico necessita manter sua interlocução com as políticas públicas, ampliando o campo de ação da avaliação psicológica para a avaliação de processos e de impacto dos programas sociais. Enquanto pesquisadores e educadores sociais há o compromisso de alinhar a formação às necessidades do contexto e de construir no país uma cultura de uso de instrumentos adaptados culturalmente, criados por estudiosos locais, e de avaliação de programas de intervenção e prevenção. A avaliação da avaliação está na agenda nacional desde o início do processo de avaliação dos instrumentos pelo CFP, que amplia o espaço de ação da avaliação psicológica, congruente à necessidade social do Brasil. Cabe ainda ampliar o campo de construção de novos instrumentos de medida e métodos de investigação. A avaliação continuada de programas e projetos sociais garante a continuidade de ações eficazes e finda iniciativas sem impacto, propondo novas soluções. A avaliação também contribui com subsídios para o controle social de projetos. É preciso atrelar pesquisa e intervenção para nortear políticas publicas. Sem contextualização e aspectos operacionais, idéias não conseguem chegar ao plano da ação. Há necessidade de manter a constante busca de ações direcionadas para a construção de uma realidade social mais justa e de uma ciência psicológica mais embasada em rigor metodológico. É preciso tomar o lugar de pesquisadores ativos e engajados em produção de conhecimento e transformação.
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Endereço para correspondência
CEP-RUA/UFRGS, Instituto de Psicologia
Rua Ramiro Barcelos, 2600/104
90035.003 Porto Alegre-RS
Tel.: +55-51 316 5150
Fax: +55-51 334 1328
E-mail: cep_rua@ufrgs.br
Recebido em dezembro de 2005
Reformulado em fevereiro de 2006
Aprovado em maio de 2006
Esse estudo faz parte dos estudos de Doutorada da primeira autora em Psicologia (UFRGS), orientados pela segunda autora.
Sobre as autoras:
1 Circe Salcides Petersen: Psicóloga graduada pela PUCRS. Mestre em Psicologia Clínica pela PUCRS e Doutoranda em Psicologia do Desenvolvimento e da Personalidade/UFRGS. Membro do Centro de Estudos Psicológicos sobre Meninos e Meninas em Situação de Rua (CEP-RUA/Psicologia/UFRGS). Docente do Curso de Especialização em Psicologia Clínica - Saúde Comunitária/UFRGS. E-mail: circe@terra.com.br.
2 Sílvia Helena Koller: Psicóloga, Doutora em Educação (PUCRS), Pesquisadora do CNPq, Professora do Curso de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Coordenadora do Centro de Estudos Psicológicos sobre Meninos e Meninas de Rua (CEP-RUA/Psicologia/UFRGS). E-mail: kollersh@ufrgs.br.