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Avaliação Psicológica

versão impressa ISSN 1677-0471versão On-line ISSN 2175-3431

Aval. psicol. v.7 n.1 Porto Alegre abr. 2008

 

ARTIGOS

 

Escala de investimento corporal (BIS): evidências de sua validade fatorial e consistência interna1

 

Body investment scale (BIS): Evidences of its factor validity and reliability

 

 

Valdiney V. Gouveia *; Carlos Antonio Santos **; Rildésia S. V. Gouveia ***; Walberto S. Santos ****; Sandra L. Pronk *****

Universidade Federal da Paraíba

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O objetivo do presente estudo foi adaptar uma medida de investimento corporal em uma amostra do sexo feminino. Especificamente, buscou-se conhecer evidências de validade fatorial e consistência interna da Body Investment Scale (BIS). Participaram da pesquisa 317 mulheres, estudantes da última série do ensino médio de escolas públicas da cidade de João Pessoa, PB. Estas tinham idade média de 22,9 anos (DP = 6,87). Elas responderam a versão em português da BIS e perguntas de natureza demográfica. Através de uma análise de Componentes Principais (rotação varimax) foram identificados claramente três componentes que explicaram conjuntamente 36,3% da variância total, a saber: imagem corporal (a = 0,81; 6 itens), cuidado corporal (a = 0,70; 8 itens) e toque corporal (a = 0,66; 6 itens). Estes resultados indicam que esta medida reúne evidências de validade fatorial e consistência interna, podendo ser empregada adequadamente em pesquisas acerca do investimento corporal. Entretanto, reconhece-se a necessidade de novos estudos, que considerem amostras maiores e diversificadas de participantes que possam ser representativas da população geral.

Palavras-chave: Corpo, Imagem corporal, Cuidado, Escala.


ABSTRACT

This study aimed at adapting a measure of body investment for Brazilian context. Specifically, it searched to know evidences of factor validity and reliability of the Body Investment Scale (BIS). Participants were 317 women, students of public high schools from João Pessoa, PB, with a mean age of 22.9 years old (SD = 6.87). They answered the Portuguese version of the BIS and demographic questions. A Principal Component analysis, with varimax rotation, was performed. It resulted in three components, which accounted for 36.3% of the total variance, named as following: body image (a = 0.81; 6 items), body care (a = 0.70; 8 items), and body touch (a = 0.66; 6 items). These findings support evidences of factor validity and reliability for the BIS, suggesting this measure can be adequately used in body investment researches. However, new researches that consider larger and diverse samples are also recommended, in order to represent the general population.

Keywords: Body, Body image, Care, Scale.


 

 

Introdução

É impressionante nos dias de hoje a busca por uma imagem corporal estereotipada, que sofre influências diversas e produz resultados que divergem opiniões (Giordani, 2006). Neste contexto, é destacada a coisificação do corpo que, tratado como mercadoria, é modelado, exposto e exibido, seguindo padrões físicos influenciados pela mídia e praticamente inalcançáveis pela população em geral (Halliwell & Dittmar, 2005; Kakeshita & Almeida, 2006). Para isso, também concorrem a hipocinésia provocada pela tecnologia e as novas formas de produção e relação homem-trabalho, onde o indivíduo é visto como produto de mercado (Saikali, Soubhia, Scalfaro & Cordás, 2004).

Vilela, Lamounier, Dellaretti Filho, Barros Neto e Horta (2004) reconhecem a pressão cultural para a manutenção de um corpo magro (esbelto, sarado), afirmando que até mesmo a percepção da forma corporal pode ser distorcida, levando a estados patológicos de anorexia ou bulimia. De acordo com estes autores, os transtornos de alimentação são mais comuns em países industrializados. Entretanto, as estatísticas atuais apontam igualmente cifras de casos crescentes em países em desenvolvimento, notadamente na população feminina (Almeida, Loureiro & Santos, 2002; Giordani, 2006).

Barros (2005) indica que o conceito de imagem corporal ganhou denominações diferentes em diversas áreas da saúde, passando-se a utilizar termos como esquema corporal e imagem corporal para referir-se a processos muito similares. Portanto, assume-se aqui o uso indistinto de ambos. A imagem corporal representa a relação entre o corpo e alguns atributos cognitivos, a exemplo das crenças, dos valores e das atitudes, podendo ser entendida como uma representação interna mental ou um auto-esquema da aparência física de uma pessoa (ver Ferreira & Leite, 2002; Rosen, Srebnik, Saltzberg & Wendt, 1991). Esta se organiza de forma a transcender a base fisiológica e neurológica, cabendo às emoções desempenhar um papel de destaque ao influenciar decisivamente na sua elaboração (Shontz, 1990).

Howard (2000), com base na teoria do Interacionismo Simbólico, afirma que o esquema corporal constitui-se numa organização psicomotriz global, que compreende todos os mecanismos e processos dos níveis motores, tônicos, perceptivos, sensoriais e expressivos resultantes da experiência corporal de cada pessoa. Considera ainda que este depende de aspectos afetivos, constituindo-se na base de referência que cada um possui acerca do seu eu pensante, corpóreo e fisiológico. Nesta linha, reconhece-se que a imagem corporal é um construto multifacetado, cuja avaliação tem sido feita por meio de diferentes recursos, como os desenhos, as escalas e os questionários (Almeida & cols., 2002; Ferreira & Leite, 2002). A partir da leitura destes autores, percebe-se que os estudos sobre este construto destacam problemas relacionados à insatisfação, depreciação, distorção e preocupação, todos fortemente influenciados por fatores sócio-culturais (ver também Vilela & cols., 2004).

Davison e McCabe (2006) argumentam que as medidas mais comuns de imagem corporal focam na avaliação que os indivíduos fazem com respeito à sua própria aparência, como a satisfação ou insatisfação com atributos físicos ou atratividade geral. As pesquisas podem também considerar o nível de investimento em aparência como um aspecto da imagem corporal em adição à avaliação física. Isso inclui o quanto importante um indivíduo considera sua aparência e os comportamentos destinados ao seu cuidado, tal como o tempo total e o esforço que investe em manter ou melhorar sua "performance".

Saikali e cols. (2004) informam que a imagem corporal reflete a imagem do próprio corpo formada na mente ou o modo como o corpo se apresenta. Para Thompson (1996) o conceito de imagem corporal está relacionado com três componentes principais. O primeiro é a precisão da percepção da aparência física que envolve uma estimativa do tamanho do próprio corpo e do seu peso; o segundo é um componente subjetivo que envolve satisfação e aparência, bem como o nível de preocupação e ansiedade; e o terceiro é um componente comportamental seletivo que focaliza as situações evitadas pelo indivíduo em função de desconforto associado à aparência pessoal. Estes componentes podem ter lugar em um contexto saudável, em que se admite e aceita o próprio corpo, ou que se busque definir uma imagem corporal condizente com a própria estrutura fisiológica. Contudo, a exacerbação de um destes componentes pode implicar patologias relacionadas com a imagem corporal, carecendo este aspecto breve consideração.

Aspectos Patológicos da Imagem Corporal

A associação entre a preocupação com a auto-imagem e a auto-estima pobre entre mulheres tem levado ao entendimento de que a auto-imagem é um aspecto global importante da sua auto-estima. Neste sentido, existem evidências de que há uma relação entre a imagem corporal e os afetos negativos. Contudo, ao passo que alguns estudos têm indicado uma correlação direta entre preocupações com a auto-imagem e sintomas de depressão e ansiedade entre adolescentes de ambos os sexos (Ghaderi, 2005; O'Dea, 2006; Rosen & cols., 1991), outros têm indicado que apenas as mulheres com insatisfações corporais encontram-se sob risco crescente de vivenciar sintomas de afeto negativo (Davison & McCabe, 2006).

Partindo da teoria da Comparação Social de Leon Festinger, Davison e McCabe (2006) sugerem que as avaliações que as mulheres fazem do seu corpo são adversamente afetadas por comparações que fazem da sua própria aparência com aquelas de seus pares. No estudo destes autores aventou-se a hipótese de que um alto nível de engajamento em comparações na aparência está relacionado a um funcionamento psicossocial pobre durante a adolescência, explicando-se em razão do desejo comum de conformar-se aos pares do grupo, da importância das avaliações realizadas e do atributo de popularidade, bastante comum e preterida na vida dos jovens.

De acordo com Orbach e Mikulincer (1998), a relação do corpo com o self mental é evidente em distúrbios que envolvem o dano físico contra a própria pessoa. Nota-se, contudo, uma maior presença do papel da percepção corporal distorcida nas desordens de alimentação (Grogan, 2006; Kakeshita & Almeida, 2006; Saikali & cols., 2004). Da mesma forma, o desconforto psicológico (distress) pode ser expresso através de injúrias corporais que, em troca, supostamente resultam em alívio mental. Coerente com estes indícios, Orbach e Mikulincer (1998) assinalam que as atitudes e os sentimentos negativos em direção ao próprio corpo e a auto-imagem pobre têm sido empiricamente encontrados na caracterização de jovens suicidas, adolescentes e adultos deprimidos, tanto quanto em indivíduos com baixa auto-estima.

Orbach e Mikulincer (1998) têm dado uma contribuição expressiva acerca do conhecimento da imagem corporal. A propósito, propõem uma ênfase no estudo de comportamentos patológicos que ocorrem, particularmente, a partir das experiências corporais. Neste marco, estimam que os ataques ao próprio corpo físico resultam de percepções e atitudes distorcidas acerca deste, o que os leva a recomendar a necessidade de mais estudos a respeito. Não obstante, advertem também, são raros os instrumentos disponíveis para medir o empenho das pessoas em promover sua imagem corporal, o que poderia facilitar o avanço de conhecimentos desta temática. Partindo destas considerações, decidiram construir e reunir evidências de validade de uma medida específica para este fim: a Body Investiment Scale. Este compreende um instrumento capaz de refletir o envolvimento emocional do indivíduo com o seu próprio corpo.

Em busca realizada no Index Psi (www.bvs-psi.org.br), nenhum artigo foi encontrado com as expressões "imagem corporal", "auto-esquema corporal" ou "investimento corporal". Portanto, não se encontraram quaisquer publicações em que se procurassem medir estes atributos no contexto brasileiro. Ampliando a busca, isto é, realizando-a através do Google Acadêmico (www.scholar.google.com.br), considerando os mesmos descritores, encontraram-se ao menos dois instrumentos construídos e/ou adaptados ao contexto brasileiro: o Questionário de Imagem Corporal (Cordás & Neves, 1999) e a Escala de Avaliação da Satisfação com a Imagem Corporal (Ferreira & Leite, 2002). Embora ambos apresentem parâmetros psicométricos satisfatórios, são predominantemente mais dirigidos a compreender distorções da imagem corporal e associá-las com problemas de peso ou alimentares. Nenhuma delas avalia a dimensão de envolvimento com ou investimento no próprio corpo, como procuram medir Orbach e Mikulincer (1998). Este parece um aspecto igualmente relevante a considerar, tendo recebido pouca atenção na literatura. Permite entender, por exemplo, o descuido ou as agressões cometidas com o próprio corpo. Estes aspectos motivaram o presente estudo, que objetivou adaptar a Escala de Investimento Corporal em uma amostra do sexo feminino, procurando conhecer evidências de sua validade fatorial e consistência interna. Procura-se a seguir descrevê-la.

Escala de Investimento Corporal

A Body Investiment Scale (BIS; Escala de Investimento Corporal) foi originalmente elaborada em língua inglesa e validada em Israel (Tel Aviv). Ao proporem esta medida, Orbach e Mikulincer (1998) tiveram em conta os comportamentos patológicos que ocorrem, particularmente, a partir das experiências corporais. Seu desenvolvimento considerou quatro estudos, resumidos a seguir, procurando avaliar imagem corporal, cuidado corporal, proteção corporal e toque corporal.

Estudo 1. Este teve como propósito a elaboração do banco de itens e logo a validade fatorial do instrumento, sendo realizado em duas fases. Na primeira fase, foi gerada inicialmente uma lista de 280 afirmações obtidas a partir de entrevistas com pacientes de ambos os sexos com histórico de suicídio (n = 113) e pessoas da comunidade (n = 102), todos com idades variando entre 13 e 19 anos. Destas afirmações, 169 foram eliminadas pelos autores devido à redundância, falta de clareza e irrelevância. As restantes 111 foram organizadas para serem respondidas em escala de cinco pontos, variando de 1 (Discordo totalmente) a 5 (Concordo totalmente). Esta versão foi apresentada a uma nova amostra de pacientes hospitalizados com diagnósticos diversos (n = 69) e jovens da população geral (n = 89). As pontuações destes participantes foram submetidas a uma análise fatorial que produziu quatro fatores: imagem corporal, cuidado corporal, proteção corporal e toque corporal, reunindo 61 itens. Na segunda fase, procurou-se conhecer a validade fatorial e consistência interna desta versão com 61 itens, tendo em conta uma amostra nova, constituída por pacientes de centros de saúde mental (n = 74) e voluntários da comunidade (n = 80). Uma análise fatorial com rotação varimax permitiu identificar quatro fatores com valores próprios superiores a 1, explicando conjuntamente 47% da variância total, como seguem: imagem corporal (24 itens), toque corporal (13 itens), cuidado corporal (12 itens) e proteção corporal (12 itens). Os Alfas de Cronbach destes fatores variaram de 0,80 a 0,95. Finalmente, os autores decidiram reduzir o conjunto de itens, fixando que cada item deveria apresentar saturação mínima de |0,50| em um único fator e menor que |0,25| nos demais. Isso permitiu reduzir esta medida para 24 itens, seis por fator.

Estudo 2. Este teve como finalidades (a) confirmar a estrutura fatorial previamente descrita, (b) conhecer a correlação entre tendência suicida e investimento corporal e (c) testar a hipótese de que os participantes suicidas apresentariam um grau menor de investimento corporal do que aqueles não-suicidas. Considerou-se uma amostra de 206 pacientes de um centro de saúde mental de Tel Aviv, sendo 104 com histórico de comportamentos suicidas e 102 sem qualquer indício de comportamentos ou ameaças suicidas, e também participaram 115 jovens da comunidade local. Tomou-se o cuidado de que fossem grupos equivalentes quanto ao sexo e à idade. Todos responderam a Escala de Investimento Corporal (BIS), resultante do estudo prévio (24 itens), e a Escala Multi-atitudinal de Tendência Suicida (MAST), composta por 30 itens respondidos em escala de 5 pontos, variando de 1 = Discordo totalmente a 5 = Concordo totalmente, avaliando quatro fatores: atração frente à vida, repulsa pela vida, atração frente à morte e repulsa pela morte (Orbach & cols., 1991). Os quatro fatores teorizados da BIS emergiram, explicando 55% da variância total, como seguem: imagem corporal (26% da variância, a = 0,75), toque corporal (12% da variância, a = 0,85), cuidado corporal (10% da variância, a = 0,86) e proteção corporal (7% da variância, a = 0,92). Coerente com o hipotetizado, constatou-se que os pacientes potenciais suicidas pontuaram mais baixo nos quatro fatores do que os participantes não-psiquiátricos da comunidade local. Os primeiros também pontuaram mais baixo em imagem corporal, cuidado corporal e proteção corporal do que os pacientes que não tinham histórico de comportamentos suicidas. Finalmente, de forma consistente, imagem corporal e proteção corporal se correlacionaram positivamente com atração frente à vida e repulsa pela morte; o fizeram negativamente com relação à atração frente à morte e repulsa pela vida. O fator cuidado corporal apresentou o mesmo padrão de correlação, embora não tenha sido estatisticamente significativo com atração frente à morte; e no caso do fator toque corporal, a exceção ficou por conta da repulsa pela morte, que apresentou correlação negativa, embora não significativa.

Estudo 3. Este visou conhecer a validade de construto da BIS, avaliando sua correlação com tendências suicidas, anedonia física e depressão, supostamente, relacionadas à diminuição da capacidade de sentir prazer sensual e corporal. Participaram jovens de ambos os sexos, sendo 25 pacientes com histórico de suicídio, idade média de 16,7 anos (DP = 2,05), 27 pacientes não-suicidas com idade média de 17,4 anos (DP = 2,14) e 25 pessoas da comunidade local com idade média de 15,3 anos (DP = 0,99). Os resultados indicaram que os pacientes com histórico de suicídio obtiveram maior pontuação na BIS do que aqueles não-suicidas ou da população geral. Além disso, comprovaram-se correlações significativas (p < 0,01) da anedonia com os quatro fatores desta medida: imagem corporal (r = -0,32), toque corporal (r = -0,48), cuidado corporal (r = -0,63) e proteção corporal (r = -0,32). Finalmente, comprovou-se que pacientes suicidas e não-suicidas pontuaram mais em depressão do que os participantes da comunidade local.

Estudo 4. Este procurou conhecer outros aspectos da validade de construto da BIS, avaliando sua correlação com cuidados corporais anteriormente percebidos, auto-estima e comportamento suicida. Foi utilizada uma amostra de pacientes com histórico de suicídio (N=57; idade média de 16,6 anos e DP = 1,91) e outra de não-suicidas (N=47; idade média de 17,7 anos e DP = 1,92), todos de um mesmo hospital; os participantes do grupo controle foram 46 indivíduos com idade média de 16,4 anos (DP = 2,43), recrutados na comunidade em que os demais participantes estavam inseridos. O procedimento de coleta dos dados foi idêntico ao do Estudo 2; adicionalmente à MAST e à BIS, foi solicitado aos participantes que respondessem a dois questionários: (1) Parental Bonding Instrument, que mede os cuidados e a super-proteção percebida dos pais em relação aos seus filhos, e a (2) Self-esteem Scale, que avalia a auto-estima dos participantes. Corroborando as hipóteses do estudo, consistentemente as maiores pontuações dos participantes em cuidados maternos e super-proteção parental se correlacionaram direta (rmédio = 0,23, p < 0,01) e inversamente (rmédio = -0,25, p < 0,01), respectivamente, com todos os fatores de investimento corporal; estes, por sua vez, correlacionaram-se positivamente com a auto-estima (rmédio = 0,41, p < 0,001). Por outro lado, as pontuações altas em repulsa pela vida (rmédio = -0,37, p < 0,001) e repulsa pela morte (rmédio = 0,26, p < 0,001) (MAST) estiveram correlacionadas de forma negativa e positiva, respectivamente, com maiores pontuações nos fatores da BIS.

Em resumo, a BIS compreende uma medida específica que procura contemplar facetas ou dimensões do envolvimento com o próprio corpo, tendo apresentado parâmetros psicométricos satisfatórios no contexto em que foi elaborada. Embora outras medidas sobre imagem corporal estejam disponíveis no Brasil, não foi encontrada uma específica destinada a avaliar o investimento ou envolvimento corporal. Este pode ser diferente, e provavelmente é menos dependente de medidas antropométricas, como o IMC (Índice de Massa Corporal; Damasceno, Lima, Vianna, Vianna & Novaes, 2005; Ferreira & Leite, 2002). Portanto, o presente estudo parece pertinente, descrevendo-se a seguir o método.

 

Método

Participantes

A amostra foi composta por 317 mulheres estudantes da última série do ensino médio de escolas públicas da cidade de João Pessoa, Paraíba. Estas, majoritariamente solteiras (69%), tinham idades compreendidas entre os 15 e 58 anos (M = 22,9; DP = 6,87). Um percentual de 19,6% indicou ser de classe baixa; 46,3% indicaram ser de classe média-baixa e 31,8% de classe-média. Tratou-se de uma amostra não probabilística, isto é, de conveniência, tendo participado pessoas que, inquiridas, estiveram de acordo em colaborar.

Instrumento

Os participantes responderam a Escala de Investimento Corporal (BIS; Orbach & Mikulincer, 1998), descrita anteriormente. Compreende 24 itens que cobrem aspectos da avaliação da auto-imagem corporal (por exemplo, Acredito que cuidar bem do meu corpo vai melhorar meu bem-estar; Gosto de contato físico com outras pessoas; Na minha opinião, é muito importante ter cuidado com o corpo), respondidos em escala de cinco pontos, variando de 1 = Discordo Totalmente a 5 = Concordo Totalmente. Foram incluídas ao final deste instrumento cinco perguntas, três de natureza demográfica (idade, estado civil e classe sócio-econômica) e duas referentes a dados antropométricos (peso e altura).

A tradução deste instrumento do inglês para o português foi efetuada por dois psicólogos bilíngües, submetida à apreciação de um terceiro psicólogo também bilíngüe com o fim de avaliar a adequação dos termos para o contexto do estudo. Sua validade semântica foi então comprovada, considerando um grupo de 20 estudantes da última série do ensino médio de uma escola pública da cidade de João Pessoa (PB). Na oportunidade, sugeriu-se às participantes que assinalassem os itens que lhes parecessem problemáticos ou ambíguos e que opinassem sobre sua melhor redação; também foram solicitadas a avaliar as instruções sobre como respondê-los e a escala de resposta em que deveriam se expressar. Nenhuma modificação substancial foi demandada, mantendo-se o mesmo número de itens, instruções e formato de respostas quando de sua elaboração. O leitor interessado poderá escrever para um dos autores deste artigo a fim de obter uma cópia desta versão da BIS.

Procedimento

As participantes responderam ao instrumento individualmente, porém em ambiente coletivo de sala de aula. Três colaboradores devidamente treinados ficaram responsáveis por sua aplicação. Após a autorização do professor da disciplina, estes se apresentavam e solicitavam a colaboração das estudantes presentes, sendo-lhes informado que se tratava de uma pesquisa sobre atitudes das pessoas no seu dia a dia, não havendo respostas certas ou erradas. Uma vez tendo concordado em participar, estas preencheram um termo de consentimento livre e esclarecido. A todas foi enfatizado o caráter voluntário da sua participação e confidencial dos dados obtidos, seguindo o que estabelecem os procedimentos éticos em vigor. Em média, 15 minutos foram suficientes para concluir sua participação.

 

Resultados

Estrutura Fatorial da Medida de Investimento Corporal

Os dados foram analisados com o SPSSWIN (versão 13). Inicialmente, comprovou-se a fatorabilidade dos itens da escala através do KMO = 0,79 e Teste de Esfericidade de Bartlett, X² (276) = 1633,07; p < 0,000 (ver Tabachnick & Fidel, 2001). Efetuada uma PC (Principal Components), sem fixar número de componentes a extrair ou tipo de rotação, foi possível encontrar até seis componentes que atenderam ao critério de Kaiser, isto é, valor próprio (eigenvalue) igual ou superior a 1 (os valores foram: 4,71, 2,13, 1,87, 1,55, 1,31 e 1,04). Contudo, a inspeção da distribuição gráfica dos valores próprios (critério de Cattell; Figura 1) revela a pertinência de extrair cinco componentes.

 

 

Os dois critérios antes adotados, não obstante, são pouco robustos para definir o número de fatores. Neste sentido, decidiu-se efetuar uma análise paralela, que compreende um procedimento mais confiável (Hayton, Allen & Scarpello, 2004), admitindo-se os parâmetros do banco de dados (317 participantes e 24 itens) e efetuando 1.000 simulações. Os resultados desta análise indicaram que apenas os quatro primeiros valores próprios observados empiricamente foram superiores àqueles gerados aleatoriamente (os seis primeiros valores próprios médios foram: 1,54, 1,45, 1,38, 1,33, 1,27 e 1,23). Portanto, de acordo com estes resultados, parece mais justificável fixar a extração de quatro componentes, coerente com o que foi observado quando da elaboração da BIS. Deste modo, decidiu-se realizar uma nova PC, estabelecendo este número de componentes e adotando a rotação varimax, como fizeram seus autores. A solução fatorial convergiu em cinco iterações e explicou 36,3% da variância total. Os resultados desta análise são mostrados na Tabela 1 a seguir.

Com o fim de interpretar cada um dos componentes extraídos, tomaram-se como referência os itens com maiores saturações. Em todo caso, decidiu-se não ter em conta aqueles itens que apresentassem saturação inferior a |0,40|. A descrição dos componentes é apresentada a seguir:

Componente I. Este reuniu seis itens, com saturações variando de 0,47 (Gosto da minha aparência, apesar das imperfeições) a -0,76 (Odeio o meu corpo). Seu valor próprio foi 4,71, explicando 19,6% da variância total. Apresentou consistência interna (Alfa de Cronbach, a) de 0,81. A leitura do conteúdo dos seus itens permite claramente defini-lo como imagem corporal.

Componente II. Um total de oito itens compôs este componente, cujas saturações variaram de 0,40 (Acredito que cuidar bem do meu corpo vai melhorar meu bem-estar) a 0,66 (Quando me machuco, procuro cuidar imediatamente do ferimento). Este apresentou um valor próprio de 2,13, sendo responsável pela explicação de 8,9% da variância total. Seu Alfa de Cronbach (a) foi 0,70. Considerando os principais itens que o representam, pode-se nomeá-lo como cuidado corporal.

Componente III. Seis itens foram reunidos por este componente, apresentando saturações entre -0,55 (Não gosto quando as pessoas tocam em mim) e -0,62 (Sinto-me desconfortável quando as pessoas se aproximam fisicamente de mim). Este obteve valor próprio de 1,87, correspondendo à explicação 7,8% da variância total. Sua consistência interna (a) foi de 0,66. Procurando apreender o conteúdo dos principais itens que o representam, entende-se que este pode adequadamente ser denominado de toque corporal.

Componente IV. Este último componente reuniu três itens, com saturações que foram de 0,48 (Algumas vezes, me machuco de propósito) a 0,68 (Fazer algo perigoso faz com que eu me sinta bem). Com um valor próprio de 1,55, este componente explicou 6,5% da variância total. Seu Alfa de Cronbach ficou em 0,37. Embora incipiente, poder-se-ia denominá-lo de proteção corporal.

 

 

Em resumo, claramente pode-se identificar a estrutura fatorial teorizada para a BIS, compreendendo quatro fatores (componentes) de primeira ordem. O último componente, não obstante, embora reunindo itens que relevam consistentemente a idéia de proteção corporal (ou sua ausência), não apresentou consistência interna que possa justificá-lo. Portanto, em princípio, poder-se-ia unicamente falar em três componentes para esta medida. Contudo, antes mesmo de eliminar este último componente, procurou-se conhecer seu padrão de correlação com os demais. Neste caso, observou-se que não se correlacionou (p > 0,05) com nenhum dos três primeiros. Estes, entretanto, correlacionaram-se entre si, como segue: imagem corporal se correlacionou com cuidado corporal (r = 0,44, p < 0,001) e toque corporal (r = 0,19, p < 0,01); este último o fez também com cuidado corporal (r = 0,18, p < 0,01).

Investimento Corporal e Índice de Massa Corporal

Procurou-se inicialmente conhecer a pontuação média dos participantes nos três primeiros componentes de investimento corporal. No caso, realizou-se uma MANOVA para medidas repetidas (interdepententes). O Lambda de Wilks ficou em 0,59 [F (2, 295) = 102, 25, p < 0,001; d = 0,41]. O teste post hoc de Bonferroni revelou diferença estatisticamente significativa entre as pontuações dos três componentes, como seguem: cuidado corporal (M = 4,4), imagem corporal (M = 4,1) e toque corporal (M = 3,8).

Finalmente, não foi elaborada qualquer hipótese sobre a correlação das pontuações nos componentes de investimento corporal com o Índice de Massa Corporal (IMC), que tem em conta o peso da pessoa dividido pelo quadrado da sua altura. Em todo caso, esperar-se-ia que as pessoas com maior IMC pontuassem menos no componente imagem corporal, que diz respeito a como estas se percebem, com maiores pontuações indicando uma percepção mais positiva, favorável. Efetivamente, a correlação encontrada a respeito foi na direção esperada (r = -0,23, p < 0,001); os outros dois componentes da medida de investimento corporal (cuidado corporal e toque corporal) não se correlacionaram com este indicador de "bem-estar físico" (p > 0,05).

 

Discussão

O objetivo principal deste estudo foi adaptar, em uma amostra do sexo feminino, a Escala de Investimento Corporal (BIS), reunindo evidências de sua validade fatorial e consistência interna. Confia-se que este tenha sido alcançado. Contudo, parece pertinente assinalar suas limitações potenciais. No caso, destaca-se o fato de a amostra ter sido específica e não-probabilística, composta por estudantes matriculadas em escolas públicas de João Pessoa. Neste sentido, os resultados não podem ser generalizados para o país, nem mesmo para a cidade em que se realizou o estudo. Resta, entretanto, ponderar que esta não era a pretensão dos autores; pretendia-se unicamente contar com uma versão brasileira deste instrumento, avaliando se era possível identificar a estrutura fatorial teorizada e se os fatores resultantes apresentavam consistência interna adequada para justificar seu uso em pesquisas futuras. Seguramente, estes aspectos foram salvaguardados, sendo os resultados principais tratados a seguir.

Quanto à estrutura fatorial, através da análise paralela, uma técnica mais robusta para definir o número de componentes a extrair (Hayton & cols., 2004), foi possível identificar quatro fatores, correspondendo aos teoricamente propostos por Orbach e Mikulincer (1998). Não obstante, metade dos itens pertencentes ao quarto componente, proteção corporal, apareceu no componente cuidado corporal. Isso não é necessariamente incoerente; ambos componentes consideram aspectos inerentes ao tratar do corpo versus simplesmente não ter qualquer atenção ou cuidado. Uma hipótese provável seria agrupá-los em um único componente. Porém, se for pretendido manter a estrutura inicialmente observada por estes autores, talvez valesse a pena redigir itens adicionais para este último componente, procurando maximizar sua diferença em relação ao cuidado corporal.

No que se refere à consistência interna dos componentes observados, constataram-se Alfas de Cronbach próximos àqueles relatados para a versão original de 24 itens (Estudo 2). Especificamente, a consistência interna dos dois primeiros componentes foram iguais ou superiores ao coeficiente 0,70, comumente recomendado (rule of thumb) na literatura (Nunnally, 1991; Oviedo & Campo-Árias, 2005; Pasquali, 2003). Não obstante, os outros dois não alcançaram este valor, sendo que o terceiro componente (toque corporal) obteve um Alfa de Cronbach muito próximo (0,66), que pode ser pensado com otimismo quando se considerar esta medida com o propósito de pesquisa (Clark & Watson, 1995), como é o presente caso; o último componente (proteção corporal), contudo, apresentou consistência interna não recomendável, reforçando a necessidade de repensar sua pertinência ou redefinir o conjunto de itens que o representam, sobretudo em razão de este ter apresentado o maior Alfa na versão original (Orbach & Mikulincer, 1998).

Como foi constatado, apesar dos componentes de cuidado corporal e toque corporal da BIS se correlacionarem com a dimensão de imagem corporal, parece haver suficiente evidência de que esses dois componentes têm uma natureza particular (Orbach & Mikulincer, 1998). A propósito, constatou-se que não estavam associados, por exemplo, ao Índice de Massa Corporal, que pode influenciar a imagem corporal da pessoa (Damasceno & cols., 2005; Ferreira & Leite, 2002).

Em resumo, a versão brasileira da BIS é mais curta que àquela original, que estava formada por 24 itens (Orbach & Mikulincer, 1998). A presente versão compreende um total de 20 itens, distribuídos em três componentes que foram previamente identificados por seus proponentes. Tais componentes reúnem evidências de consistência interna, favorecendo que sejam adequadamente empregados com o propósito de pesquisar acerca dos antecedentes e conseqüentes do investimento corporal.

Em termos de estudos futuros, é preciso que se teste esta versão brasileira, preferentemente considerando participantes de cidades e grupos diversos, como os presentes na população geral. Levando em conta a natureza exploratória das análises efetuadas para conhecer sua estrutura fatorial, caberia testar a adequação do modelo multifatorial resultante (três componentes), contrastando-o com um modelo alternativo unifatorial. Neste caso, por exemplo, considerar-se-iam recursos de modelagem por equações estruturais (AMOS, LISREL). A verificação da validade preditiva seria algo também recomendável, o que poderia ser empreendido através de medidas de ideação suicida, como as empregadas por Orbach e Mikulincer (1998) ou Osman, Barrios, Panak e Osman (1994). Finalmente, cabe pensar na possibilidade de elaborar itens adicionais para tentar representar a dimensão de proteção corporal, que no presente estudo não apareceu nitidamente. Nesta linha, poder-se-ia testar um modelo em que este componente se correlacionasse diretamente com aquele de cuidado corporal, resultando em um componente / fator novo de segunda ordem.

 

Referências

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Endereço para correspondência
E-mail: vvgouveia@pesquisador.cnpq.br

Recebido em Agosto de 2007
Reformulado em Abril de 2008
Aceito em Abril de 2008

 

 

Sobre os autores:

* Valdiney V. Gouveia: professor adjunto na Universidade Federal da Paraíba, Doutor em Psicologia Social pela Universidade Complutense de Madri. Coordenador do Doutorado Integrado (UFPB / UFRN) em Psicologia Social. Pesquisador 1C do CNPq.
** Carlos Antonio Santos: mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba.
*** Rildésia S. V. Gouveia: doutoranda do Programa de Doutorado Integrado em Psicologia Social da Unviersidade Federal da Paraíba. Bolsista do Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (REUNI/CAPES/UFPB).
**** Walberto S. Santos: doutor em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba.
***** Sandra L. Pronk: nutricionista e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Unviersidade Federal da Paraíba. Bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Demanda Social, CAPES).
1 Durante o processo de coleta de dados e preparação do presente artigo, o primeiro e o segundo autores contaram, respectivamente, com bolsa de Produtividade em Pesquisa e Mestrado do CNPq; o quarto autor contou com bolsa de Doutorado da CAPES. Os autores aproveitam para agradecer as duas instituições.

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