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Avaliação Psicológica
versão impressa ISSN 1677-0471versão On-line ISSN 2175-3431
Aval. psicol. v.7 n.3 Porto Alegre dez. 2008
ARTIGOS
O genograma como recurso no espaço conversacional terapêutico
Genogramm as a resource in the therapeutic conversational space
Liara Lopes KrügerI, *; Blanca Susana Guevara WerlangII, **
I Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul
II Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
RESUMO
O genograma, definido como um desenho gráfico da vida em família, é um instrumento de avaliação e intervenção que proporciona uma aproximação com o tecido de transmissão familiar tramado de geração em geração. O genograma, inserido na conversação terapêutica, transcende suas origens funcionalistas, para transformar-se num recurso de compreensão colaborativa. O estudo apresentado relata a construção do genograma, na qual a ênfase na informação é substituída pela busca de oportunidades para re-historiar as experiências vividas por dois grupos familiares que vivenciaram uma crise gerada pela tentativa de suicídio de um dos seus membros. Como resultado deste trabalho, os participantes foram abrindo portas que auxiliaram a tecer novas narrativas de si mesmos e de suas famílias. Assim, o recurso do genograma no espaço conversacional permitiu a co-exploração, clarificação e expansão dos significados que emergem das histórias que as famílias contam e que afetam a dinâmica do relacionamento familiar.
Palavras-chave: História familiar, Tentativa de suicídio, Intervenção.
ABSTRACT
The genogram, defined as a graphic design of family living, is an assessment and intervention systemic instrument that provides an approximation to the system of family transmission, woven generation after generation. This instrument, inserted in the therapeutic conversation, transcends its functioning origins, in order to transform itself in a resource of collaborative comprehension. The present study of two family groups that experienced a crisis following the suicide attempt of one of their members, reports the construction of the genogram in which the emphasis on information is replaced by the search of opportunities in order to retell their life experiences. Results show that participants opened doors that helped them to weave new narratives of themselves and their families. Thus, the genogram, as a resource in the conversational space, allowed co-exploitation, clarification and expansion of meanings emerging from the stories told by the families which affect the family relationship dynamics.
Keywords: Family history, Suicide attempt, Intervention.
Introdução
O genograma tem sido descrito como um instrumento de avaliação e intervenção que proporciona uma aproximação com o "tecido de transmissão familiar" (Vitale, 2004, p. 234), ou seja, com as heranças simbólicas recebidas e transformadas pelas novas famílias, que vão sendo levadas de geração em geração. As histórias contadas, através do genograma, integram o patrimônio relacional das famílias (Vitale, 2004). Assim, o trabalho com o genograma possibilita a criação de um espaço dialógico e relacional propício à transformação das histórias familiares. Neste artigo, aborda-se a utilização do genograma como recurso conversacional, por meio da apresentação de duas histórias clínicas de famílias que estruturaram narrativas em torno de temas de morte e morrer. O trabalho realizado, através da construção do genograma familiar, busca deslocar o foco do levantamento de informações e de dados para a geração de novos significados nas experiências vividas que possam ser agregadas às histórias da família.
Na concepção de White e Epson (1990), os acontecimentos são pontuais na vida das pessoas, ou seja, limitados a um contexto, tempo e espaço específicos. No entanto, os significados atribuídos a estes acontecimentos são duradouros, permanecem na história das famílias. As pessoas conferem maior ou menor relevância aos significados atribuídos às experiências vividas, conforme a coerência que estes assumem nas narrativas atuais. Desta forma, agregam à sua história aqueles elementos da experiência que fazem sentido à "história oficial", que está construída com base nos diversos discursos que circulam em nosso contexto cultural. Assim, as histórias que contam de si mesmos estão estruturadas também por conceitos culturais, ou seja, pelos sistemas sociais nos quais estão inseridos.
Pode-se considerar, então, que a função limitadora dos sistemas sociais, por um lado, contribui para o senso de continuidade dos indivíduos e comunidades, através do reconhecimento do familiar, do sentimento de pertencer, de fazer parte. Por outro, em função de não conseguir dar conta de significar todas as contingências que aparecem na vida das pessoas, propicia o aparecimento de lacunas e inconsistências que geram as contradições, através das quais os sujeitos inventam e reinventam a suas histórias (White, 1994), atualizando, também, as histórias que suportam a existência dos sistemas sociais dos quais estes sujeitos participam.
Igualmente, os sistemas familiares elegem algumas histórias e abandonam outras para construir o contexto histórico intrínseco da família através das gerações. Uma vez que a história da família esteja configurada em torno de um problema, ao selecionar partes da experiência que tenham sentido nesta narração, as pessoas vão incrementando a narrativa que mantém o significado problemático. Neste processo, as famílias tendem a confundir a sua própria história com a história de seus problemas, de forma que, com o passar do tempo, não conseguem mais discriminar uma da outra. A possibilidade de uma história que foi abandonada (marginal) emergir das experiências vividas reside na ocorrência de um incidente que possa produzir um acontecimento extraordinário, que constitua uma oportunidade para colocar dúvidas, para desestabilizar o relato que a família conta e que a define. Acessar estas histórias que, com o passar do tempo, foram marginalizadas nas narrativas familiares, constitui um caminho para a elaboração de histórias alternativas que possam fazer sentido na experiência vivida pelas pessoas. White e Epson (1990) consideram ser este o fundamento da abordagem terapêutica: através de encontros conversacionais, auxiliar as pessoas a vislumbrar novas histórias. Não qualquer história, mas sim uma nova narrativa que encontre sentido no contexto histórico daquela família.
As idéias apresentadas neste texto buscam inserir o trabalho com o genograma no espaço conversacional terapêutico. Ao serem descritas na perspectiva das práticas construcionistas (Anderson, 2001, Anderson & Goolishian, 1988; Gergen, 1999; White & Epson, 1990), realiza-se uma escolha, entre muitas outras possibilidades de abordagem teórica, ou seja, elege-se determinados aspectos desta complexa prática e deixa-se de lado outros. As noções que fundamentam esta abordagem propõem o diálogo como gerador de uma ação compartilhada na prática do encontro terapêutico. No fluxo desta interação, os participantes deste diálogo convidam um ao outro para interagir de certa maneira, por meio de um silencioso e implícito entendimento, no qual as regras de conduta e de expectativas são criadas na prática. As formas como o terapeuta e a família se encontram neste diálogo é um reflexo das negociações sobre regras da conversação que, segundo Rober (2005), constroem-se em torno de questões como: quem fala e quem mantém o silêncio, o que é dito e o que fica sem ser dito, qual o propósito da conversação, quem corre o risco de começar a falar sobre temas difíceis, quem se responsabiliza pelo aumento da tensão, o que é aceitável e o que é inaceitável, entre outras. Todas estas questões vão sendo respondidas, implicitamente, à medida que as pessoas vão lidando com os significados que emergem na interação.
Assim como a família se apresenta ao diálogo trazendo consigo suas intenções, também o terapeuta se coloca como alguém que deseja compreender o sistema de significados que emerge nesta conversação dialógica. Terapeuta e família vão construindo caminhos para inserirem-se no domínio de compreensão criado por eles, ou seja, buscam transformar em familiar o não-familiar. Na relação dialógica que se estabelece, a linguagem da família e seus significados são precedentes à linguagem do terapeuta, o que quer dizer que a linguagem da família é o substrato no qual os novos significados serão gerados por meio do diálogo. Neste sentido, pode-se pensar que o terapeuta se insere na conversação como um aprendiz (Anderson, 2005).
A prática do trabalho com famílias ensina que, na reconstrução de suas histórias, as famílias atribuem determinados significados aos acontecimentos que fortalecem os sentidos que já trazem de suas famílias anteriores. Alguns destes relatos se entrelaçam, organizam-se, de forma a preencher todos os espaços, restringindo sobremaneira o movimento necessário para o surgimento de histórias alternativas. Em decorrência do sofrimento gerado pela impossibilidade de atualização, as famílias, imersas em suas histórias problemáticas, buscam ajuda.
O genograma, neste espaço conversacional, é capaz de transcender suas origens funcionalistas, a fim de transformar-se num recurso para a compreensão colaborativa de novas possibilidades de ser, de se relacionar e de viver no mundo. Iversen, Gergen e Fairbanks (2005) afirmam que o genograma pode ser congruente com a prática dialógica, na medida em que se avança criticamente de forma que os dispositivos desenhados sejam reapropriados para fins generativos. Propõem que é possível trocar a ênfase na informação pela busca de novas oportunidades para re-historiar as experiências vividas.
O genograma tem sido definido como um desenho gráfico da vida familiar com o objetivo de levantar informações sobre os seus membros e suas relações, através de gerações, constituindo-se numa ferramenta de avaliação muito utilizada pela terapia sistêmica de família. A teoria sistêmica aborda os problemas humanos, considerando o indivíduo como um ser em interação interpessoal, inserido num determinado contexto, tendo produzido conhecimentos que auxiliaram no trabalho terapêutico com enfoque nas interrelações familiares. Grandesso (2000) expõe com propriedade um panorama detalhado do desenvolvimento dos distintos modelos terapêuticos sistêmicos e da história da terapia familiar ilustrando os diferentes conjuntos de idéias que resultaram em distintas escolas.
Desde muitos anos, o genograma tem sido amplamente utilizado na área da saúde como auxiliar na elaboração de hipóteses diagnósticas, mas somente na década de 80, Murray Bowen (1978) e Jack Medalie (1987) viriam a definir, de forma mais estruturada, os símbolos do genograma, que são amplamente utilizados na atualidade. Os traçados básicos do genograma, identificados inicialmente por Gerson e McGoldrick (1993), foram definidos utilizando figuras que representam as pessoas e linhas que descrevem suas relações. As primeiras referem-se a símbolos para representação de gênero (masculino e feminino), datas de nascimento e falecimento, gravidez e abortos- espontâneo e provocado-, conforme pode ser visualizado na Figura 1.
A Figura 2 mostra como estes símbolos estão conectados através de linhas que indicam as relações de parentesco. A conexão por linha horizontal contínua, com a figura masculina à esquerda e a figura feminina à direita, indica indivíduos casados. Quando esta linha aparece tracejada, indica união estável. A ruptura do vínculo conjugal é representada por dois traços paralelos e inclinados sobre a linha horizontal. Acima desta linha, coloca-se a letra "M" com a data de casamento/união e a letra "S" ou "D" com a data da separação ou divórcio. A idade das pessoas é colocada dentro das figuras; e o nome, na parte inferior. Os filhos são representados numa linha abaixo, conectados com o traço horizontal do casamento por linhas verticais, sendo o mais velho à esquerda. A representação é distinta para os filhos adotivos, com linhas pontilhadas, e para filhos gêmeos, cujo ponto de conexão é um só. As diversas gerações, ascendentes e descendentes, são representadas cada uma em um nível horizontal da figura, podendo-se distinguir, ao olhar, a geração dos avós, dos pais, dos netos entre outras. A linha pontilhada em torno de alguns símbolos representa os membros da família que moram numa mesma casa e são de especial importância, no caso de famílias reconstituídas, para localizar com quem vivem os filhos.
Diante da complexidade intrínseca às relações familiares, não se pode esperar que o desenho gráfico tenha suficientes propriedades para representá-las adequadamente. A cada trabalho realizado, terapeuta e família vão elegendo aqueles elementos que são considerados relevantes para cada história específica. Desta forma, informações sobre atividades profissionais ou de estudo, eventos e outras datas importantes, bem como características específicas dos indivíduos e de seus relacionamentos, identificadas pela família, podem também ser anotadas no desenho do genograma.
O terceiro nível de construção do genograma refere-se ao traçado da qualidade das relações entre os membros da família. As linhas básicas referem-se a pautas vinculares que incluem relações: íntimas, muito íntimas, íntimas e conflitivas, pobres e conflitivas, distantes e rompidas, conforme a legenda apresentada na Figura 3.
As enormes mudanças pelas quais as famílias têm passado nas últimas décadas, expressas através de diferentes configurações dos grupos familiares, implicaram na necessidade de atualizações dos símbolos e convenções para o trabalho com o genograma, que possam incluir as modificações reivindicadas por diferentes grupos culturais ao redor do mundo. Estas atualizações podem ser encontradas no trabalho desenvolvido recentemente por McGoldrick, Gerson e Petry (2008). Nesta produção, foram mencionadas apenas as convenções que fundamentaram o desenvolvimento deste instrumento de avaliação.
Gerson e McGoldrick (1993) propõem que a construção do genograma seja realizada por meio de entrevistas, cujo fluxo obedeça a uma dimensão temporal e a uma dimensão de complexidade, partindo-se da situação atual para o passado; e de questões mais simples e menos ameaçadoras, para as mais complexas que provocam maior desconforto e ansiedade. Ao final, segundo estes autores, podem-se extrair do genograma informações sobre a estrutura da família, sua adaptação às etapas do ciclo vital, repetição de pautas interativas, pautas vinculares, capacidade de enfrentamento de eventos estressantes, exploração de crenças e legados, viabilizando uma compreensão destes elementos em interação. Recomendam, ainda, o genograma como recurso de intervenção para o desenvolvimento de uma responsabilidade compartilhada sobre os rumos da vida familiar, viabilizada através do envolvimento de todos com o que acontece com cada um, tanto no passado, quanto no presente e futuro.
Vitale (2004) lembra também que a introdução de vivências familiares anteriores pode trazer consigo outras formas de encarar os problemas, abrindo possibilidades de novos entendimentos sobre as experiências familiares, assinalando novas possibilidades para o futuro. Para White (1994), "as pessoas vivem as suas vidas de acordo com as histórias que contam e estas histórias têm efeitos reais e estruturam a vida das pessoas" (p. 29). Quando uma família recorre ao trabalho terapêutico, traz consigo uma história para contar, que é uma seleção de aspectos (vividos) que se podem verbalizar e de outros aspectos (vividos), que permanecem não ditos. A possibilidade de ajuda está, sem dúvida, em criar um espaço para o não-dito (Anderson, 2001). A experiência presente de contar a história num contexto diferente (num espaço terapêutico) abre a possibilidade de incluir aquelas partes do relato que haviam sido deixadas para trás. Neste sentido, o trabalho com o genograma pode proporcionar um contexto estético original para a família. Ver-se, através de uma história desenhada graficamente, num espaço constituído entre o narrador e a história narrada, produz um estranhamento capaz de abrir possibilidades para explorar outras idéias sobre si mesmo, podendo incorporar novidades a suas vidas. Ao localizar elementos de suas histórias que foram deixados para trás, abrem-se portas para "territórios alternativos" (White, 1994, p. 35), revelando narrativas que estavam marginalizadas.
Segundo Anderson e Goolishian (1998), nos espaços terapêuticos ocorrem a expansão e a expressão daquilo que não se fala. As mudanças, neste contexto, são derivadas das possibilidades de alteração dos significados através do historiar e re-historiar das experiências. Nesta trajetória, por meio dos sinais descontínuos da narração, não se pode ir a qualquer direção, "há caminhos privilegiados, há caminhos dificilmente transitáveis e há caminhos que necessitam ser desbravados para que abram novas passagens" (Ramos, 2001, p.121).
Com base nas idéias expostas, este trabalho apresenta o genograma como um recurso terapêutico que auxilia na construção de um ambiente propício a introdução de novas possibilidades para recontar as histórias familiares, ampliando assim, oportunidades de enfrentamento dos problemas. O estudo insere-se num trabalho de investigação mais amplo (apreciado e aprovado pelo Comitê de Ética da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul), que, por meio de uma intervenção sistêmica breve, buscou tanto compreender a dinâmica familiar no contexto da crise suicida, como a busca de alternativas para o enfrentamento da crise e encaminhar recursos terapêuticos. Especificamente, este trabalho, desenvolvido com famílias que passaram pela experiência da crise gerada pela tentativa de suicídio de um dos seus membros, busca inserir a construção do genograma como recurso para o estabelecimento de um contexto propício ao diálogo generativo.
Método
O estudo foi desenvolvido com dois grupos familiares (os nomes adotados na descrição dos relatos a seguir são fictícios), identificados como família "S" e família "B". As famílias foram localizadas por meio do integrante que tentou suicídio quando do ingresso em um pronto socorro ou unidade de emergência de hospital geral, com internação de no mínimo 24h, ou ainda, numa unidade de internação psiquiátrica para onde tivesse sido encaminhado após o atendimento de emergência. No caso da primeira família, Sônia realizou a tentativa de suicídio com ingestão de ansiolíticos e Liane, membro da família "B", usou como método letal o corte nos pulsos. Obtida a permissão de Sônia e Liane, foi realizado contato com os demais membros da família que também receberam esclarecimentos sobre os objetivos e procedimentos da investigação. Todos os integrantes do grupo familiar assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, antes de ingressar no atendimento por meio de uma intervenção sistêmica breve.
A intervenção breve com as famílias (grupo de pessoas com uma dinâmica relacional organizada em torno de significados compartilhados) foi realizada em quatro sessões, cada uma com objetivos específicos, definidos previamente, com a duração aproximada de 90 minutos e desenvolvidas no período de quatro semanas. Na segunda sessão, foi proposto à família trabalhar na construção do genograma, incluindo até três gerações, cujo enfoque move-se da constituição das famílias para a co-exploração, clarificação e expansão dos significados que emergem das histórias que as famílias contam sobre a dinâmica do relacionamento familiar. A proposta de inserir o genograma no contexto de uma intervenção terapêutica breve justifica-se pela possibilidade gerada por este recurso terapêutico de abrir portas entre as gerações, o que auxilia os diferentes membros da família a se perceberem co-autores na narrativa que permitiu a inserção da experiência suicida em suas vidas. Assim, percebendo como a história atual faz parte da história passada, os movimentos em busca de mudanças na história futura passam a ser, também, responsabilidade de todos.
O desenho do genograma é iniciado com a história da família atual, que impulsiona o fluxo da conversação. O terapeuta, com interesse e curiosidade, vai convidando a família a compartilhar os questionamentos em torno dos temas que aparecem. Neste sentido, terapeuta e família começam a perguntar sobre os acontecimentos na vida familiar e sobre a forma como aparecem e influenciam as relações da família com o problema que motivou a participação no atendimento. As lacunas, incongruências, que vão aparecendo no relato, constituem possibilidades de geração de um novo conhecimento sobre as histórias que contam. Durante a construção do genograma, o terapeuta oferece à família uma perspectiva diferenciada sobre as experiências contadas, tornando públicas as suas idéias. Propõe caminhos e recua, quando o estranhamento da família, ao invés de constituir-se num convite para a busca da novidade, aponta para a recusa em prosseguir.
Resultado e discussão
Histórias Familiares
As narrativas da Família "S", presentes no espaço conversacional, gerado na construção do genograma, mostram como as incertezas e ambigüidades reveladas deram oportunidade ao surgimento de novas alternativas. O historial clínico desta família foi obtido uma semana depois da alta hospitalar de Sônia, em decorrência de sua segunda tentativa de suicídio por ingestão de medicamentos e é aqui re-narrado, de forma simplificada, não revelando completamente os altos e baixos do complexo caminho percorrido no encontro terapêutico.
Sônia, 45 anos, e Sílvio, 49 anos, estão casados há 27 anos. Contam que estavam namorando há um ano, quando Sônia engravidou, precipitando o casamento. Consideram que a gravidez precoce teria trazido maior dificuldade de aceitação para os pais de Sílvio do que para os de Sônia. Esta situação teria causado, posteriormente, certo constrangimento na relação de Sônia com o sogro e a sogra e, por conseqüência, um afastamento de Sílvio de sua família, após o casamento. Os filhos do casal, Maria, Carla e Ricardo, referem que não possuem uma convivência próxima com a família do pai. Sílvio concorda que sua família de origem não teria conseguido manter um vínculo de proximidade. Ao fazer este relato, Sílvio emociona-se e chora, referindo a saudade que sente dos pais. Seu pai teria falecido há vinte e cinco anos, e a mãe há dezesseis. Atribui a morte destes ao afastamento entre os seus quatro irmãos. Conta que seu pai era um boêmio e pouco se envolvia com a vida familiar, deixando esta questão aos cuidados de sua mãe. A relação dos pais seria bastante tumultuada; percebia que eles não tinham muita intimidade, mas não se falava sobre isto. Quando os pais eram vivos, a família se reunia na casa deles, mas evitavam temas que pudessem gerar qualquer conflito. Sua mãe não permitia qualquer questionamento ao pai, exigindo respeito. Em relação aos filhos, o pai era carinhoso, atencioso, mais afetivo do que a mãe; por isso, talvez, ele fizesse tanta falta em casa. Maria, Carla e Ricardo, ao ouvir a história dos avós, percebem alguma semelhança com os seus próprios pais. Contam que Sílvio trabalha muito e por isso quase não está em casa. Porém, quando ele está presente, é carinhoso e demonstra disponibilidade para envolver-se em atividades domésticas. Sônia, por outro lado, está sempre com os filhos. Estes consideram que a mãe é extremamente cuidadosa com eles; daquele tipo que revisa a lição escolar, que auxilia os professores na organização de festas no colégio. Por um lado, os filhos pensam que foi bom assim, porque, atualmente, todos são ótimos estudantes; por outro, lembram que não se sentiam bem com a presença da mãe na escola todos os dias e com a responsabilidade que tinham: de ser sempre "certinhos". Sônia concorda com a descrição dos filhos. Ela refere que entendia que este era o seu papel: estar sempre disponível para os filhos. Considera que, até o final do período escolar, envolvia-se vinte e quatro horas por dia com eles. Carla e Maria lembram à mãe, dizendo que até hoje é assim. Carla está com 24 anos, é professora e passa o dia todo fora de casa. A mãe aproveita a sua ausência e entra no seu quarto, arrumando da maneira que considera adequado, mesmo que não seja do gosto de Carla. Maria, 26 anos, residente de Medicina, mora sozinha, e sua mãe, quando vem visitá-la, também interfere na organização do seu apartamento, ainda hoje. Sônia menciona que se acostumou a ser a responsável pelos cuidados dos outros e pela organização doméstica, inclusive na casa de seus pais. Sônia é a terceira filha de uma prole de seis irmãos. A segunda filha teria falecido ainda bebê, e sua mãe teria apresentado um quadro depressivo muito intenso, que viria a se repetir ciclicamente até os dias de hoje. Com a dificuldade da mãe de se envolver efetivamente nos cuidados dos filhos, seu pai passou a tomar conta da casa, das crianças e da mãe. Lembra que o pai tinha muito medo de que qualquer alteração pudesse piorar a situação emocional de sua mãe; então todos eram muito cuidadosos uns com os outros e com a vida doméstica. Sônia sempre se sentiu muito responsável pelo bem-estar da mãe; auxiliava a mãe, durante as crises, acompanhando-a quando ela saía à rua. Quando se casou com Sílvio, até o nascimento de Carla, teria morado na casa da mãe e considera ter sido muito difícil a decisão de ter a sua própria casa, pois se sentia abandonando a mãe. Hoje, ainda, Sônia administra a casa dos seus pais, faz compras e os acompanha ao médico. Sílvio lembra que a saída do casal da casa dos pais de Sônia teria sido realmente difícil e que, inicialmente, os sogros estavam sempre em sua casa. Ricardo refere que gostava muito da presença do avô, que era divertido e atencioso. Carla e Maria pensam ter sido um período de vida muito bom, pois a mãe gostava de reunir a família nos almoços e nas festas de final de ano. Sônia considera que após o nascimento de Ricardo, o atendimento aos cuidados de sua própria mãe também a sobrecarregavam, mas não conseguia se afastar. Lembra que, assim como na sua adolescência, neste período em que seus filhos eram pequenos, chegou a desejar que sua mãe morresse para que pudesse viver a sua vida. Carla, ao ouvir a mãe fazer este relato, emociona-se e chora. Os irmãos a acolhem e contam que percebem a irmã muito sobrecarregada com toda a situação da família, especialmente com a mãe. Narram, então, as suas experiências nos últimos seis anos. Os problemas começaram quando o pai foi dispensado do emprego. Maria estava saindo de casa para ingressar na faculdade de Medicina e Carla na faculdade de Pedagogia. As despesas da família eram muitas. Os filhos teriam se envolvido, intensamente, nos problemas financeiros, dividindo com os pais as decisões sobre os rumos da vida doméstica. Carla trancou a faculdade para trabalhar e permitir que Maria continuasse estudando. Sílvio relata ter se sentido muito fragilizado pela dificuldade de reingressar no mercado de trabalho. Sônia mostrou-se forte e decidida, tendo sido ela a pessoa a buscar ajuda financeira com familiares. Quando consideraram que a vida familiar havia se reorganizado, e que cada um poderia cuidar de sua própria vida, Sônia fez a primeira tentativa de suicídio e, de lá para cá, especialmente Carla considera que não tem mais vida própria. Agora, a segunda tentativa de auto-agressão de Sônia teria trazido para Carla um sentimento de revolta, e ela havia pensado, assim como a mãe em relação à avó, que, talvez se a mãe tivesse morrido, ela poderia começar a cuidar de sua própria vida. Sônia se surpreende com o relato da filha, porque não havia se dado conta que poderia estar prendendo Carla, assim como sua mãe a prende. Sônia se solidariza com o sentimento da filha, quando ela conta que está sempre com a cabeça na mãe. Sônia lembra que se sentia assim em relação a sua própria mãe e, com o passar do tempo, começou a sentir muita raiva pela forma como sua mãe ocupava espaço em sua vida. Sílvio, Ricardo e Maria dizem que não haviam percebido que Carla estava desta forma, sobrecarregada. Ao lembrarem como têm sido os dias, desde a saída de Sônia do hospital, percebem que, de fato, é Carla quem toma para si a responsabilidade de incentivar a mãe a reagir. Sílvio considera que tem procurado envolver-se intensamente no trabalho, para poder desligar-se de sua preocupação com Sônia. Sente que a presença de Carla em casa lhe dá segurança. Maria percebe que tem feito o mesmo movimento, evitando ir à casa dos pais, pois sabe que, ao chegar lá, vai ver a mãe deitada, o que não lhe faz bem. Ricardo tem procurado distrair a mãe, através de brincadeiras, mas não se envolve com as questões práticas dos cuidados cotidianos, deixando estes, também, ao encargo de Carla. Sônia comenta que esta dedicação intensa à mãe e aos filhos lhe deixou um vazio; percebe, agora, que os planos que tinha para a sua vida foram deixados para trás. Hoje seus filhos reclamam do excesso de cuidado com eles; sua mãe tem sido atendida por uma de suas irmãs; e Sônia não sabe quem ela é. Vem o cansaço, a vontade de morrer. Carla emociona-se com o relato da mãe, olha para o desenho gráfico da história da família e comenta que, se as coisas não mudarem, ela pode ser a próxima a desejar morrer.
Na Figura 4, apresenta-se o desenho do genograma ao final do trabalho com a Família "S". A imagem gráfica da história familiar, em três gerações, representa os significados atribuídos por esta família às interações familiares, iluminando, especialmente, os triângulos constituídos entre "Carla, Sônia, Silvio" e "Sônia, Vera, José". O desejo de morte surge em Sônia como um caminho na busca de um si mesmo, abandonado na história de dedicação à família. Carla, ao olhar o genograma, percebe semelhança com sua experiência atual, mobilizando em si mesma, nos seus irmãos e pais o desejo de mudança.
A construção do genograma apresentou-se na família "S" como um recurso para a criação de um contexto propício à exploração, expansão e ao esclarecimento do "não dito". O terapeuta contribuiu para o surgimento deste espaço de conversação colocando-se como um ouvinte interessado, guiado pelo evento conversacional imediato e por uma curiosidade genuína pelas histórias contadas, expressando também seus pensamentos. Neste processo, que envolve uma relação de colaboração, assume-se uma posição de "não saber" (Anderson & Goolishian, 1998), o que implica não reivindicar para si um ponto de vista privilegiado para o entendimento da história. Busca-se, então, aprender e entender a perspectiva da família por um lado e, por outro, explorar, com as pessoas, os novos significados que emergem neste ambiente singular para a conversação.
A Família "S", ao revisitar a sua história envolvendo três gerações, percebe como algumas relações podem limitar as opções de "ser em si mesmo", ao ponto de surgir o desejo desesperado de morrer como uma escolha libertadora. A capacidade de cuidar, de atender a necessidade do outro, de enfrentar os problemas da família, reveste as identidades de Carla e Sônia inscrevendo-as na história familiar. A asfixia, provocada pela impossibilidade de ser diferente, aparece no desejo de morte e de morrer.
O estranhamento da família, ao ouvir o relato da mãe e da irmã revela a percepção de alternativas que estavam marginalizadas, provocando um desejo de revisão do roteiro da história familiar, para incluir possibilidades de explorar outras idéias sobre si mesmos, sobre o que gostariam de ser, podendo, assim, agregar novidades em suas vidas. Sônia não está, apenas, ressentindo-se do processo de adultez dos seus filhos, mas especialmente sofre com a dificuldade de relatar a si mesma de forma diversa. Carla acolhe a história da mãe como parte de sua própria história: está abrindo mão de projetos de vida para manter viva uma parte da vida da mãe. A busca do novo pode ser a procura dos selves com os quais se sintam mais confortáveis. Este é um dos capítulos da história "não dita" que abre espaço para um território alternativo (White, 1994), revelador de outras possíveis histórias marginalizadas. Os territórios alternativos se revelam por meio da fala, da catarse, da compreensão - libertadores de narrativas limitadoras passadas e presentes. O silêncio, o segredo, implica não-falar. Ambos são conceitos lingüísticos, socialmente elaborados com diferentes significados, em diferentes culturas e contextos, mantendo, no entanto, alguns temas comuns. Dizem respeito a um conhecimento e ao poder de dizer ou não dizer. Assim, o silêncio compartilhado através de gerações, nomeado aqui de segredo, não se refere ao desconhecido, mas à impossibilidade de significar uma experiência, um vazio presente no relato. Desta forma, o processo de construção do segredo envolve uma negociação implícita na família sobre o silêncio em torno de aspectos da experiência vivida, que pode, para alguns, significar proteção, para outros, constituir-se numa traição. Os múltiplos significados do segredo não podem ser compreendidos fora do contexto no qual são expressos, com especial atenção aos valores daqueles envolvidos no processo de formação do significado.
A segunda história clínica a ser apresentada é a da Família "B". A construção do genograma se deu após um atendimento em uma unidade de emergência hospitalar em função da tentativa de suicídio de Liane, que cortou os pulsos, depois de uma briga com o namorado. A Família "B" é um exemplo de como uma conversação cujo fluxo segue de forma indeterminada em torno dos temas que vão surgindo, muitas vezes de forma desordenada, pode auxiliar a família a decidir falar de questões difíceis. O genograma começou a ser construído a partir da história do casamento dos pais de Liane e foi tomando forma a partir dos relatos que foram surgindo na conversação, dando origem à história que é aqui contada.
Marília inicia contando sobre o seu casamento com Ricardo. Refere que tinha 18 anos e ele 23 quando casaram. Tiveram dois filhos: Liane e Júnior. Marília se descreve como muito inexperiente para cuidar dos filhos, o que é atribuído a sua pouca idade e despreparo ao usar de castigos físicos, especialmente na educação de Liane. Quando nasceu o segundo filho, Júnior, ela procurou ser diferente, evitando machucá-lo da forma como fazia com Liane. Contam que Marília se descontrolava e maltratava Liane, quando ela era pequenininha, tendo ocorrido, em duas ocasiões, necessidade de atendimento médico. Marília considera que Ricardo a ajudava bastante com as crianças. Liane discorda da mãe, dizendo que o pai bebia muito e também batia nela. Júnior relata uma experiência diferente na relação com o pai e com a mãe, lembrando momentos de bem-estar na companhia deles. A separação do casal teria ocorrido após 13 anos de casados. Marília diz que a iniciativa teria sido sua, em função dos problemas com as bebedeiras de Ricardo. Ela já havia pensado, muitas vezes, na separação, mas considera que a escolha de romper teria acontecido após uma surra que Ricardo teria dado em Liane. Marília decidira que não deixaria mais Ricardo machucar a filha. Comentam sobre a família do pai, dizendo que os avós já faleceram. O pai de Ricardo fora um homem muito violento com os filhos e também alcoolista. Ricardo tem outros dois irmãos, também com problemas com o álcool. Atualmente, apenas Júnior mantém contato com o pai, visitando-o com freqüência. Marília conta que teria procurado Ricardo quando Liane engravidou aos dezesseis anos. Ele teria negado a ajuda, dizendo que a responsabilidade era exclusivamente dela. Liane esclarece que engravidou do seu primeiro namorado, o que resultou-lhe uma filha, Gisela, com oito anos de idade. Sua relação com o pai de Gisela seria muito tumultuada, mas a menina teria uma relação próxima com o pai. Marília retoma o relato da história do ponto em que considerou ter interrompido, falando sobre sua união com Luis, um ano após a separação de Ricardo. Liane diz que com esta nova união teria recomeçado o inferno em suas vidas. Primeiro o pai bebia e não deixava ninguém em paz; depois Luís perdia todo dinheiro no jogo, não pagava o aluguel; por isso mudavam constantemente de casa, deixando a mãe zangada e agressiva novamente. Neste momento, a situação está melhor porque a avó, Lia, mãe de Marília, teria cedido uma casa para eles morarem. Júnior comenta que esta questão de briga é a maior dificuldade de Liane e de Marília. Liane lembra que ele também teria agredido a namorada; conversam sobre como aconteceu a situação e concluem que a responsabilidade não foi de Júnior, mas das provocações da namorada. Marília e Liane comentam que não são os homens com os quais elas se relacionam que são agressivos; eles reagem à provocação delas, porque as mulheres da família são descontroladas. Liane relata algumas situações nas quais foi agredida pelo namorado atual, Celso. Marília lembra Liane que não é apenas um descontrole, já que ela chega em casa toda roxa. Liane concorda que, de fato, Celso exagera, mas que ela provoca. Pensa um pouco e complementa dizendo que, na verdade, ele é louco e a leva à loucura, como no dia em que ela quebrou a janela e cortou os pulsos. Liane sente-se tão louca que tem vontade de sumir, de morrer. Liane olha para o genograma e diz que "parece um carma", que nenhuma delas tem sorte com os homens. Ao ouvir a filha, Marília agrega algumas histórias de sua família de origem, para mostrar o quanto a vida das mulheres é difícil. Marília tem cinco irmãs. O pai, Airton, era um homem muito violento e todos tinham muito medo dele. Lembra-se de ver o pai machucar a mãe. Ela e as irmãs, quando pequenas, se escondiam, mas, à medida que foram crescendo, começaram a tentar interferir e acabavam sendo machucadas também. A mãe teria tentado fugir do pai várias vezes, mas ele sempre a buscava de volta, até que uma vez ela tomou veneno de rato; queria morrer, mas não conseguiu. Marília emociona-se ao contar a historia e os filhos a acolhem, mostrando surpresa com o relato. Ao receber a solidariedade dos filhos, conta que as agressões não eram apenas físicas, mas que seu pai havia molestado sexualmente todas as irmãs. Marília diz que a família só teve descanso quando o pai morreu. Liane comenta, com tristeza, a história, dizendo agora compreender porque as irmãs de Marília são tão revoltadas. Contam que três das quatro irmãs romperam seus casamentos em função de situações de violência. Liane refere novamente a idéia de que "só pode ser um carma, pois se tem dez homens num lugar, a gente vai lá e escolhe a maçã podre, sempre a maçã podre... A gente precisa se livrar disto". Na sessão seguinte, conversando sobre como haviam passado a semana, Marília expressa: "Pra mim é muito bom, foi muito bom, aproveitei bastante". Liane enfatiza: "... se eu e a mãe não tivesse vindo aqui, a gente ia ficar de mal, daí se a gente conversa assim, parece que melhora, sabe, aí eu desabafo, parece que sai uma coisa de dentro." Finalmente Marília diz: "Né, Liane, que depois que a gente veio aqui a gente até conversa mais em casa, né?".
Na Figura 5, pode-se ver o desenho gráfico da história relatada pela Família "B". As linhas que representam as relações familiares expressam, simbolicamente, o sentimento das mulheres da família de viverem em relações intensas e conflituosas com os homens, as quais redundam em separação e morte.
Os participantes de um diálogo terapêutico estão realizando constantes escolhas sobre manter e romper o silêncio. Laird (1994) refere que, como este processo de seleção é dependente do contexto da conversação, editam-se as histórias pessoais tentando-se pensar no que se quer transmitir, como se imagina que o outro vai responder, tentando-se apresentar a história de uma forma que soe coerente e apropriada ao contexto. A troca que se estabelece nesta conversação pode contribuir para que possam emergir aquelas histórias que tinham sido deixadas para trás, em decorrência de um repertório limitado de palavras para expressá-las, ou por uma aliança com um conjunto particular de textos e significados anteriores. Assim compreendida a decisão sobre a liberação de um segredo, a transformação do silêncio em um relato audível, não faz parte de uma estratégia terapêutica, mas da qualidade do espaço criado no diálogo terapêutico: do espaço que é concedido pelo silêncio do outro, do encorajamento obtido para explorar e expressar idéias, para alongar e criar novas histórias, permitindo que novos significados sejam considerados, desafiando o silêncio da opressão e o desconhecimento (Iversen & cols., 2005).
A história da Família "B" aponta para um sistema de crenças, pautado na desqualificação das figuras femininas, que alimentam idéias sobre impedimentos acerca de amar e ser amado, cuidar e ser cuidado, de estabelecer vínculos. A experiência da opressão, vivenciada com intenso sofrimento, apresenta-se como uma situação limite, em que a possibilidade de renarrá-las, de forma a incluir as competências, passará a ser possível quando a Família "B" conseguir negociar cooperativamente a necessidade de incluir novas definições de si mesmos, da família e de suas relações sociais.
Considerações finais
As histórias clínicas das famílias "S" e "B" retratam acontecimentos restritos a um contexto, facilitadores da inserção da crise suicida na história destas pessoas, cujos significados, sem dúvida, transpõem os limites do tempo e espaço. Não se pode mudar o acontecimento, mas é possível, na linguagem, revê-los por meio de outras lentes, de outras emoções, experimentando-os de forma diferente e transformando a maneira como eles afetarão as vidas destas famílias no futuro.
Cabe lembrar que as questões que envolvem o comportamento suicida estão intimamente relacionadas às idéias das pessoas acerca da morte e que, no mundo contemporâneo ocidental, o morrer é uma experiência indesejável. Neste ambiente, o tema do suicídio transforma o desejo de morrer em um mistério para todos, uma vez que os sentimentos da pessoa que atenta contra a sua vida se contrapõem à luta da própria humanidade na busca incessante pelo aumento da longevidade, aparecendo como um ato de rebeldia e agressão àqueles que desejam viver. Envolta nestes sentimentos, a pessoa que deseja morrer defronta-se com os canais, para se falar da morte, fechados, tornando inviável comunicar o desejo de morrer. Os sentimentos que envolvem a família, nestas circunstâncias, constroem um espaço de silêncio, que pode se tornar intransponível.
A utilização do genograma, no espaço conversacional, apresenta-se, desta forma, como um recurso estético, facilitador do processo de contar histórias que possam incluir o não-dito. Com este fim, as informações passam a ser secundárias, não devendo ter uma preocupação com a precisão dos dados, nem tampouco com a exploração inesgotável de cada narração. O respeito à privacidade e às escolhas das famílias em relação aos caminhos trilhados são elementos que auxiliam no diálogo.
Os genogramas das duas famílias afirmam a relevância do trabalho de reconstrução das histórias transgeracionais. O diálogo fundamentado na reciprocidade, como suporte para famílias que experimentam a crise gerada pelo comportamento suicida de um dos seus membros, na medida em que permite agregar o não dito, liberta as novas gerações de histórias restritivas que impulsionam a repetição das mesmas pautas de relacionamento e das mesmas alternativas de enfrentamento dos problemas através das gerações.
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Endereço para correspondência
E-mails: liara.kruger@terra.com.br e/ou bwerlang@pucrs.br
Recebido em Abril de 2008
Reformulado em Setembro de 2008
Aceito em Outubro de 2008
Sobre as autoras:
* Liara Lopes Krüger: Doutora em Psicologia pelo Programa de Pós-Graduação da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Mestre em Psicologia Social, Terapeuta de Família e Casais, Coordenadora do Serviço Social Judiciário do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJRS), Assistente Social Judiciária.
** Blanca Susana Guevara Werlang: Doutora em Ciências Médicas - Saúde Mental - UNICAMP, Psicóloga Clínica, Professora Adjunta do Programa de Pós-Graduação e Diretora da Faculdade Psicologia (FAPSI) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), Membro do Grupo de Trabalho para implantação de Estratégia Nacional de Prevenção ao Suicídio - Ministério da Saúde - Secretaria de Atenção à Saúde. é analista de informática legislativa - Câmara dos Deputados.
Apoio Financeiro: Capes: Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.