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Avaliação Psicológica
versão impressa ISSN 1677-0471versão On-line ISSN 2175-3431
Aval. psicol. v.8 n.1 Porto Alegre abr. 2009
ARTIGOS
Escala de culpabilidade: construção e validação de construto
Sense of guilt scale: construction and validation of construct
Thiago Antônio Avellar de AquinoI, *; Bruno MedeirosII, **
I Universidade Estadual da Paraíba e Centro Universitário de João Pessoa (UNIPÊ)
II Universidade Federal da Paraíba
RESUMO
O objetivo do presente estudo foi construir e validar uma escala de culpabilidade. Para a confecção dos itens foi considerada a literatura pertinente. A escala foi aplicada em 241 estudantes universitários. A análise fatorial dos componentes principais mostrou KMO de 0,77. A análise fatorial dos eixos principais com rotação varimax indicou a existência de três fatores que juntos explicaram 57,6% da variância. O primeiro fator, denominado de culpa subjetiva (4 itens, a = 0,78), englobou aspectos como pensamentos e sentimentos de culpa. O segundo (4 itens, a = 0,75) foi nomeado de culpa objetiva e envolveu aspectos como arrependimento e remorso. O terceiro, culpa temporal (5 itens, a = 0,68), reuniu itens relacionados à culpa e à temporalidade. Destaca-se a relevância de estudos empíricos nesta área tendo em vista a escassez de estudos sobre a culpa. Recomenda-se que o instrumento seja aplicado em novas amostras.
Palavras-chave: Escalas, Validade, Culpa.
ABSTRACT
The purpose of this study was to construct and validate a scale of sense of guilt. The criterion used to choose the items was the literature related to this subject. The scale was applied in 241 university students. The factorial analysis of the main components demonstrated KMO of 0.77. The factorial analysis of the main axes with varimax rotation indicated the existence of three factors which together explain 57.6% of the variance. The first factor, denominated subjective guilt (4 items, a = 0.78), comprised aspects such as thoughts and feelings of guilt. The second (4 items, a = 0.75) was called objective guilt and involved aspects such as regret and remorse. The third, guilt related to time (5 items, a = 0.68), comprised items related to guilt and time. The relevance of empirical studies in this area was highlighted considering the lack of studies about sense of guilt. It is recommended that the instrument be applied in new samples.
Keywords: Scaling, Validatity, Guilt.
Introdução
A culpa foi um fenômeno debatido inicialmente pelas religiões judaico-cristãs relacionando-se com duas dimensões: o remorso e o arrependimento. Para a medicina, posteriormente, a culpa foi interpretada apenas como mais um sintoma da depressão e, na visão psicanalítica, como um epifenômeno do superego (Scliar, 2007; Tournier, 1985).
Freud (1930/1974) concebia o sentimento de culpa como a tensão entre o ego e o superego, cuja função seria frear o desejo de agressão do indivíduo. Como origem, este autor o atribui inicialmente ao medo de uma autoridade e, posteriormente, ao superego. O sentimento de culpa surgiria na medida em que uma pessoa realiza, ou mesmo intenciona, fazer algo mau, o que Freud considera de início como tudo aquilo que leva a "perda de amor e castigo de uma autoridade externa" (Freud, 1930/1974, p.151). Posteriormente, esta autoridade externa é substituída por uma autoridade interna denominada superego, da qual os desejos proibidos não podem se esconder.
Nesta perspectiva, muitos estudos se concentram em investigar a emergência do sentimento de culpa em crianças, como a pesquisa de Loos, Ferreira e Vasconcelos (1999), por exemplo. Na tentativa de mensurar a culpa, alguns pesquisadores utilizaram a Mosher Guilt Scales (Abramson, Mosher, Abramson & Wotchowski, 1977), que a focaliza como uma disposição de personalidade. Já Sigelmann e Fernandes (1986), baseados naquela escala, desenvolveram uma medida de culpa dentro do contexto brasileiro. Recentemente, um inventário de externalização, adaptado para o Brasil por Carvalho, Pinheiro, Patrick, Krueger e Markon (2007), apresenta uma subescala denominada culpa externalizante, que consiste no fato de negar a responsabilidade sobre atos, bem como o sentimento de ser injustamente culpado.
Entretanto, a escassez de instrumentos específicos nesta área dificulta o avanço de estudos sobre a culpa em adultos. Desta forma, o objetivo do presente trabalho foi construir e validar uma escala para aferir o construto culpabilidade baseado em pressupostos teóricos e empíricos. A hipótese básica foi de que a culpabilidade compreende três dimensões: a subjetiva (aspectos internos ao sujeito), a objetiva (algo pelo qual o sujeito se tornou culpado) e a temporal (como o sujeito lida com o tempo). A escolha de tais dimensões se baseia na literatura pertinente bem como nos estudos empíricos da área.
Aspectos teóricos da culpabilidade
Embora seja um construto subjetivo, a culpa pode ser investigada tendo em vista sua definição operacional. Autores como Wright (1971) definem a culpa como "uma condição emocional desagradável diretamente seguida à transgressão, que persiste até que algum tipo de equilíbrio seja restaurado por reparação ou confissão e perdão e que é independente que outros saibam da transgressão" (p. 103). Ros (2006) destaca que a falta de cumprimento dos valores pode levar ao sentimento de culpa. Alguns autores (Eisenberg & Valiente, 2002; Merton, 1949/1970) concebem que a sensação de culpa é resultante da transgressão das normas institucionais que foram assumidas previamente pelos indivíduos.
Eisenberg e Valiente (2002) consideram que a culpa se diferencia do medo da punição, pois esta requer um agente externo enquanto aquela é um sentimento intrínseco ao indivíduo e freqüentemente acompanha um desejo de reparação. Por sua vez, autores como Fedewa, Burns e Gómez (2005) costumam distinguir a vergonha da culpa. A partir de uma revisão da literatura esses autores concebem a vergonha como uma experiência do self resultante de uma transgressão feita em público, enquanto que a culpa, de uma forma geral, é uma experiência privada e diz respeito a uma ação específica.
De acordo com Lewis (1993), o estado emocional da culpa ou remorso ocorre quando indivíduos avaliam o seu comportamento como falho, enfocando características específicas ou ações da personalidade que levaram à falha. Esse autor faz ainda uma diferenciação entre vergonha e culpa, enfatizando que a primeira se refere a uma avaliação global da personalidade como sendo má, enquanto que a culpa se refere a uma característica ou ação específicas.
Nesse sentido, Tangney, Wagner e Gramzow (1992) já enfatizavam uma diferenciação entre culpa e vergonha, apesar de reconhecerem que esses sentimentos são difíceis de serem distinguidos. De acordo com estes autores, o sentimento de culpa origina-se de alguma ação específica ou da falha em agir, resultando em remorso ou arrependimento decorrentes de algum ato avaliado como sendo mau; e no qual, muitas vezes, o senso de tensão pode servir como uma motivação para a reparação da culpa. Dessa forma, a tensão, o remorso e o arrependimento que podem surgir decorrentes do sentimento de culpa tornam-se inconfortáveis, principalmente quando não há possibilidade de tentativa de reparação.
Por outro lado, o objeto da vergonha é o self. A partir da vergonha, a má ação realizada é percebida como um reflexo de um bad self. Sentimentos de baixa auto-estima, de desvalorização ou incapacidade, originam-se, pois, da experiência da vergonha. Além disso, a vergonha envolve também um senso de exposição, relacionando-se com uma dimensão social (Tangney, Wagner & Gramzow, 1992; Tangney, Wagner, Fletcher & Gramzow, 1992).
O sofrimento decorrente da percepção da culpa pode levar as pessoas ao anseio pelo perdão, fato este observado em diversas religiões, onde há muitos ritos específicos de redenção e perdão (Lukas, 1992). Segundo o mesmo autor, os indivíduos podem experimentar dois tipos de sentimentos de culpa: injustificados e justificados. Sentimentos de culpa injustificados podem ser originados em virtude de algum engano ou doença. Por exemplo, pacientes acometidos por um Transtorno Depressivo Maior (APA, 2002), podem apresentar inúmeros sentimentos de culpa, dentre os quais muitos podem ser irracionais e devidos ao próprio transtorno depressivo.
Já os sentimentos de culpa justificados são originados em situações reais, em que estão presentes a voluntariedade e o conhecimento das conseqüências da ação humana. Contudo, é importante ressaltar que tanto as culpas injustificadas como as justificadas muitas vezes se mesclam, sendo também difíceis de serem avaliadas objetivamente por quem as vivencia (Lukas, 1992).
Collins (2004) enfatiza que a culpa se relaciona com quase todas as problemáticas envolvidas no sofrimento humano, podendo ser considerada fator crucial dos problemas apresentados pelas pessoas em diversos contextos. Esse autor classifica vários tipos de culpa, agrupando-os em duas categorias fundamentais: culpa objetiva e culpa subjetiva.
As culpas objetivas ocorrem quando alguma lei é quebrada e o transgressor é considerado culpado, mesmo que não se sinta culpado. Já as culpas subjetivas podem ser consideradas os sentimentos de culpa, de remorso, de vergonha ou autocondenação, que geralmente surgem quando se pensa ou se faz alguma coisa considerada errada, ou até mesmo quando alguém deixa de realizar alguma ação que possa favorecer o próximo. Este sentimento de culpa vem, inúmeras vezes, acompanhado de desânimo, ansiedade, medo de punição, diminuição de auto-estima e senso de isolamento (Collins, 2004).
De acordo com Tournier (1985), uma área da vida humana que pode suscitar fortes sentimentos de culpa é a administração do tempo. A culpa experimentada pela perda de tempo em relação à realização de atividades diárias e profissionais pode tanto estimular como paralisar as pessoas em suas ações, trazendo conseqüências negativas à saúde psicológica. Há também a culpa sentida em virtude das muitas atividades realizadas diariamente pelas pessoas, que prejudicam o contato com a família ou com os amigos próximos. Em virtude disso, as pessoas podem tentar acobertar esses sentimentos realizando mais atividades ao invés de reconhecê-los e enfrentá-los.
O motivo dessa procura demasiada por trabalhos é devido muitas vezes a uma necessidade de revalorização de si mesmo, na tentativa de contrabalançar a desvalorização interior que a culpa acarreta. Observa-se ainda que as pessoas podem experimentar sentimentos de culpa ao realizarem atividades de lazer - quando resolvem descansar, meditar ou empregar tempo em contemplações da natureza ou religiosas (Tournier, 1985).
Tilich (1976), por sua vez, considera que há uma relação indissociável entre ansiedade e culpa. Para o autor, a ansiedade pode se relacionar como forma de ansiedade da culpa, inerente a todo ser humano, uma vez que este é responsável por suas ações na medida em que as julga, se percebendo culpado ao reconhecer a incerteza profunda entre o bem e o mal presente em tudo o que faz. Há, portanto, a presença de um juiz (o próprio indivíduo) que se coloca contra si mesmo e faz um julgamento negativo acerca de determinadas atitudes e ações que ele realiza, sendo esse julgamento experimentado como culpa.
Estudos empíricos
No que diz respeito à medida da culpabilidade, Tangney, Wagner, & Gramzow (1989) construíram o Teste de Auto-Consciência dos Afetos (TACA), constituído de 15 cenários de dilemas morais e 65 itens avaliados em cinco pontos da escala Likert. O respectivo instrumento contém seis subescalas: vergonha, culpa, externalização, indiferença/apatia, orgulho e arrogância. Na investigação da fidedignidade do instrumento foram verificados índices de Alfa de Cronbach variando de 0,52 a 0,77. O estudo de Woien, Ernst, Patock-Peckham e Nagoshi (2002), utilizando esse mesmo instrumento com 338 estudantes do ensino médio, constatou que a vergonha estava relacionada com um baixo nível de auto-estima, altos níveis de estresse e sintomas psicopatológicos, enquanto que a culpa não estava relacionada com essas mesmas variáveis. Os resultados desse estudo demonstraram ainda a validade do TACA como uma medida de culpa e vergonha, além de constatarem altos escores desses sentimentos entre a amostra feminina, bem como de afetos negativos como neuroticismo, depressão, ansiedade etc.
O estudo de Luyten, Fontaine e Corveleyn (2002) sobre a validade do TACA demonstrou que havia limitações nesse instrumento em avaliar aspectos mal-adaptativos relacionados com a culpa, como por exemplo, ansiedade, hostilidade e depressão. Por outro lado, os autores identificaram que essa escala se propõe a avaliar de forma mais clara aspectos mal-adaptativos da vergonha, como, por exemplo, avaliação negativa do self, auto-estima negativa e comportamento de esquiva.
Em outro estudo, realizado por Fedewa, Burns e Gomes (2005), com uma amostra de 230 estudantes universitários, foi verificada uma relação estatisticamente significativa (r = 0,36, p < 0,001) entre o estado de culpa e o perfeccionismo negativo, bem como foram constatadas diversas relações entre culpa e aspectos como ansiedade, hostilidade e vergonha. Verificou-se também em outras pesquisas (Gangemi, Mancini & Van Der Hout, 2007; Mancini, Gangemi, Perdighe & Marini, 2008) a relação entre traços de culpa e características obsessivo-compulsivas, o que demonstra a relação entre culpabilidade e aspectos psicopatológicos. Essa relação foi também verificada no estudo de Webb, Heisler, Call, Chickering e Colburn (2007) no qual, em uma amostra de 280 estudantes universitários, verificou-se que a culpa quando associada à vergonha se correlacionava positivamente com sintomas depressivos.
Os autores Fedewa, Burns e Gomes (2005), ao estudar o construto da culpa, utilizando os instrumentos TACA e Escala do Estado de Vergonha e Culpa, avaliaram respectivamente, as dimensões traços de culpa (propensão à culpa) e estado de culpa (sentimentos de culpa imediatos). Da mesma forma, os autores Gangemi, Mancini e Van Der Hout, (2007) e Mancini, Gangemi, Perdighe e Marini (2008) utilizando o TACA, avaliaram a dimensão traços de culpa. Mesmo reconhecendo que estes instrumentos apresentam uma única dimensão de culpa, percebe-se, por exemplo, que no TACA a culpa é avaliada através da apresentação de cenários (dimensão objetiva), com itens que avaliam construtos subjetivos (por exemplo, remorso e arrependimento). No que se refere à dimensão temporal, percebe-se que essa é concebida apenas como um construto teórico, visto que grande parte dos estudos empíricos não apresenta tal dimensão.
Diante dos estudos teóricos e empíricos apresentados, percebe-se a relevância que tem sido dada ao construto da culpabilidade, bem como se ressalta a necessidade de inúmeros outros estudos que possam aprofundar o conhecimento dos diversos aspectos envolvidos com a culpa. Neste sentido, o presente estudo teve como objetivo construir e validar uma escala para aferir o construto culpabilidade abarcando as dimensões objetiva, subjetiva e temporal.
Método
Participantes
Participaram do estudo 241 estudantes universitários, dentre os quais 52,7 % eram do sexo feminino, distribuídos nos seguintes cursos: 48 de Fonoaudiologia, 48 de Psicologia, 49 de Educação Física, 50 de Computação e 48 de Direito. A média de idade foi de 24,8 anos com amplitude de 17 a 53 anos. No que diz respeito ao estado civil dos respondentes, 83,0 % afirmaram serem solteiros, 15,8% casados, 0,4 % viúvos e 0,8% separados. Na auto-atribuição religiosa, 69,7% se disseram católicos, 15,4% evangélicos, 5,4% espíritas, 7,1% não se atribuíram nenhuma religião, 2,1% responderam outras e 0,4% deixaram em branco.
Instrumentos
Escala Multidimensional da Culpa (EMC)
Tendo em vista a literatura pertinente à culpabilidade e que a variável latente já era conhecida previamente em seu âmago teórico, foram identificados três traços latentes da culpa (culpa objetiva, subjetiva e temporal) para a construção de uma Escala Multidimensional da Culpa (EMC). De forma geral, a proposta da EMC está em acordo com a definição de Baumeister, Stillwell e Heatherton (1994), segundo a qual a culpa é um estado emocional desagradável que estaria associado à objeção, a uma ação ou a uma inação.
Em seguida, com a finalidade de construir a medida em foco, os autores do presente artigo, juntamente com três pesquisadores voluntários, que estavam cursando a graduação em psicologia, desenvolveram os itens que representaram estes traços seguindo os princípios da clareza, objetividade e simplicidade. Também foi considerado que todos os itens deveriam ser elaborados de forma clara e que deveriam ser curtos e breves. Adequando-se ao princípio da parcimônia, este procedimento permitiu reunir doze itens, que foram, posteriormente, submetidos a uma análise semântica. Esta análise semântica foi feita com a participação de cinco sujeitos, dois do sexo feminino e três do sexo masculino que cursavam o ensino superior. Durante esta análise os pesquisadores leram de forma coletiva item por item e questionaram a clareza e compreensão dos itens. Com base neste procedimento, percebeu-se a adequação do conjunto total dos itens propostos; o passo seguinte foi comprovar os parâmetros psicométricos da escala, o que será demonstrado mais adiante.
Após esta etapa, a versão final da escala foi constituída de 12 itens dispostos numa escala de 5 pontos no qual 1 = discordo totalmente a 5 = concordo totalmente. Como foi descrito anteriormente, pressupõe-se que esta escala possua três dimensões: culpa subjetiva (Ex.: Sinto-me culpado por ter maus pensamentos.), culpa objetiva (Ex: Existe algo que eu fiz a alguém e que, por isso, sinto-me culpado.) e temporal (Ex: Sinto-me culpado por não ter administrado melhor meu tempo.).
Dados sócio-Demográficos
Os sujeitos da pesquisa responderam a um conjunto de perguntas referentes a características pessoais, tais como: sexo, idade e estado civil e religião.
Índice de auto-percepção da consciência moral
Um item foi acrescido para mensurar a auto percepção da consciência: com relação a minha consciência, sinto-me tranqüilo, variando numa escala de 5 pontos, em que 1 = discordo totalmente e 5 = concordo totalmente.
Procedimentos para coleta de dados
O pesquisador deu instruções de como proceder ao responder o instrumento seguindo sempre o mesmo padrão de informações relevantes com o intuito de provocar o menor viés possível. Também foi enfatizado que os respondentes deveriam responder de acordo com suas próprias opiniões de forma individual. A aplicação foi coletiva, realizada sempre em sala de aula e com a permissão do professor, respondendo apenas aqueles que assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. O tempo médio para responder ao questionário foi de 15 minutos.
Procedimento para análise dos dados
Após a tabulação dos dados no programa SPSS for WINDOWS 15.0 verificou-se a fatorabilidade dos itens da escala através do teste de esfericidade de Bartlett (AIC) e do Kaiser-Meyer-Olkin (KMO). Para estabelecer o número de fatores da escala, além do critério de Cattel (1966) e o critério de Kaiser (1960), utilizou-se uma Análise Paralela com a ajuda do teste Minimum Average Partial (MAP), valendo-se da syntax no SPSS sugerida por O'Connor (2000). Por fim, a consistência interna das escalas foi aferida através do Alfa de Cronbach.
Resultados
A validade de construto da escala foi verificada através da análise fatorial. Inicialmente, constatou-se a adequação de se realizar uma análise fatorial no conjunto de 12 itens que compõe a escala - o que foi confirmado através dos índices de KMO = 0,78, e o teste de Esfericidade de Bartlett (?2[66] = 745,7; p < 0,001). Desta forma, procedeu-se a uma análise fatorial exploratória através do método fatorial dos eixos principais (PAF) com rotação varimax. O gráfico scree plot sugeriu a presença de 3 fatores, com eigenvalues superiores a 1, explicando 57,4% da variância total.
O critério da análise paralela (AP) foi utilizado para confirmar o número de fatores a extrair, o que, segundo Hayton, Allen e Scarpello (2004), constitui um procedimento mais confiável. Admitindo-se os parâmetros do banco de dados (241 participantes e 12 itens) foram efetuadas mil simulações. O passo seguinte foi comparar os eigenvalues da matriz empírica com os eigenvalues gerados aleatoriamente. O critério de corte para identificar o número de fatores da escala foi estabelecido a partir do momento em que o valor do eigenvalue dos dados aleatórios foi superior ao dos dados empíricos. Assim, como se observa na Tabela 1, o componente três é o último em que os eigenvalues empíricos são superiores aos aleatórios. Isso constitui um indicador de que a matriz fatorial apresenta inequivocamente a existência de três fatores (Tabela 2).
Culpa Subjetiva: O primeiro fator reuniu quatro itens, com saturação variando de 0,48 (sinto-me culpado quando tenho inveja) a 0,74 (sinto-me culpado por ter maus pensamentos). Apresentou valor próprio de 3,53, explicando 29,4% da variância total. A consistência interna desse fator foi aferida através do Alfa de Cronbach, que resultou num coeficiente de 0,77.
Culpa Objetiva: O segundo fator agrupou quatro itens, com saturação de 0,38 (sinto-me culpado por ter deixado de fazer algo) a 0,79 (estou arrependido por algo que eu não deveria ter feito). Seu valor próprio foi de 1,84 e explicou 15,4% da variância. A consistência interna desse fator (Alfa de Cronbach) foi de 0,75.
Culpa Temporal: Por fim, o terceiro fator agrupou cinco itens com saturação variando de 0,47 (sinto-me culpado por ter deixado de fazer algo) a 0,61 (quando não consigo fazer as minhas obrigações a tempo, sinto-me culpado). Seu valor próprio foi de 1,52 e explicou 12,7% da variância. A consistência interna (Alfa de Cronbach) foi de 0,68.
A pontuação total da culpa subjetiva correlacionou-se positivamente com a culpa objetiva (r = 0,25; p<0,001), com a culpa temporal (r = 0,34; p<0,001) e negativamente com a autopercepção da consciência (r = - 0,20; p< 0,001). Já a culpa objetiva apresentou esse mesmo padrão de correlação, como segue: culpa temporal (r= 0,46 p<0,001) e autopercepção da consciência (r= -0,34; p<0,001). Por fim, a culpa temporal seguindo o mesmo padrão, apresentou correlação com a autopercepção da consciência (r = - 0,20; p< 0,01), como pode ser visualizado na Tabela 3.
Discussão
O propósito deste estudo foi elaborar uma medida de culpabilidade multidimensional. A análise dos dados mostra que o instrumento apresenta validade de construto e possui bons coeficientes de fidedignidade. A fim de verificar as propriedades psicométricas da escala, a mesma foi submetida a uma análise fatorial. Esta última sustentou a validade de construto do teste, no qual foram observados três fatores relacionados à culpabilidade.
O primeiro fator encontrado refere-se à culpa subjetiva, a qual, segundo Collins (2004), refere-se ao sentimento de culpa, remorso, vergonha ou auto-condenação que geralmente surge devido a sentimentos, pensamentos e ações considerados errados. Verifica-se, portanto, que esta dimensão de culpa não se refere a ações concretas dos indivíduos, mas a aspectos da subjetividade, como pensamentos e sentimentos. Estudos empíricos como o de Fedewa e colaboradores (2005) dão suporte a esse fator quando encontraram associações positivas entre o perfeccionismo e o sentimento de culpa.
O segundo fator englobou a culpa em sua dimensão objetiva, ou seja, referente a ações concretas realizadas pelo sujeito. De acordo com Collins (2004) há uma dimensão de culpa objetiva que pode englobar uma culpabilidade pessoal, na qual um indivíduo viola os próprios padrões de conduta que adquiriu e estabeleceu, resistindo a apelos de sua consciência. Corroborando com essa idéia, Lukas (1992) concebe a existência de culpas justificadas, que são originadas em situações reais e subjazem nelas a voluntariedade e o conhecimento das conseqüências da ação humana. Essas culpas, portanto, podem também estar relacionadas a ações realizadas contra outras pessoas. Nesse sentido, essa dimensão dialoga com os achados das pesquisas que associam a culpa a ações específicas, como é o caso dos estudos de Luyten e colaboradores (2002), Tangney, Wagner e Gramzow (1992) e Tangney, Wagner, Fletcher e Gramzow (1992) que encontraram relações entre ações culposas e sentimentos de arrependimento ou remorso.
Entretanto, a presente escala considerou a culpa subjetiva como aquela que seria derivada de fatores subjetivos (pensamentos e sentimentos) produzidos pelo próprio sujeito. Já a culpa objetiva, embora apresente também elementos subjetivos - como o remorso e o arrependimento - foi relacionada a um outro objeto, resultante de uma decisão de ter feito ou ter deixado de fazer algo, como destacam Tangney, Wagner e Gramzow (1992).
Collins (2004) costuma dividir a culpa em subjetiva e objetiva, enfatizando a ruptura entre o sujeito (o culpado) e o objeto (aquilo que provocou a culpa). Lukas (1992), por sua vez, enfatiza que se pode atribuir culpa apenas quando existem liberdade e intencionalidade por parte do sujeito, compreendendo que os sentimentos de culpa originados de elementos subjetivos, como pensamentos e sentimentos, seriam classificados como injustificados.
O terceiro fator encontrado neste estudo refere-se à culpa relacionada ao tempo, que de acordo com Tournier (1985) encontra-se constantemente presente na vida dos seres humanos, relacionando-se ao grande acúmulo de atividades diárias, bem como à realização de atividades de prazer, percebidas como perda de tempo. Observa-se que o item 'Sinto culpa por ter deixado de fazer algo' saturou em dois fatores: culpa objetiva e culpa temporal. Isso pode ser explicado pelo fato de que a interpretação semântica do item permite extrair aspectos tanto objetivos como temporais, pois faz parte de uma decisão que se encontrava no passado, no momento do preenchimento do questionário.
Segundo Guberman e Soto (2005), a culpa seria sempre a conseqüência de uma decisão livre. Já Tillich (1976) concebe a culpa como resultante da incerteza das escolhas humanas, e a consciência dessa incerteza seria o sentimento de culpa. Para Bresser (1984/1990), a culpa se manifesta de forma consciente no sujeito, numa sensibilidade natural ou através de sansões sociais e jurídicas. O estudo de Tracy e Robins (2006) corrobora com as concepções daqueles teóricos quando identificou uma relação entre atribuição causal e culpa, especificamente as atribuições internas. Esta mesma relação foi confirmada no estudo de Tangney, Wagner e Gramzow (1992) quando identificaram empiricamente que indivíduos com uma propensão individual para a culpa tendem a fazer atribuições internas, específicas e instáveis.
Por fim, verificou-se a associação negativa entre as subescalas da EMC e a auto-percepção da consciência (com relação a minha consciência, sinto-me tranqüilo). Esse resultado sugere que a escala parece medir aquilo a que se propõe, pois quanto maior a percepção de culpa (objetiva, subjetiva e temporal) menos o indivíduo estará tranqüilo com a sua própria consciência. Russell (1991) já admitia que a culpa seria um dos elementos que retiram a felicidade do ser humano, o que é corroborado com a pesquisa de Webb e colaboradores (2007) que encontraram relações entre culpa e depressão.
Os índices de precisão observados para as subescalas podem ser considerados bastante aceitáveis considerando o baixo número de itens por fator. Aquela que apresentou índices de precisão maiores foi a de Culpa Subjetiva (quatro itens), seguida da Culpa Objetiva (quatro itens) e Temporal (cinco itens). Apesar do pequeno número de itens para a composição da escala como um todo, esta pode ser considerada promissora, visto que autores como Tangney e colaboradores (1989) admitem na subescala Culpa do instrumento TACA apenas quinze itens que juntos apresentam um Alfa de Cronbach de 0,68. Além do mais, a EMC também sugere a culpa como traço latente multi-fatorial, o que é compatível com outras medidas já elaboradas (Fehr & Stamps, 1979; O'Connor, Berry, Weiss , Bush & Sampson, 1997).
Considerações Finais
A EMC apresentou bons parâmetros psicométricos e tem sua aplicabilidade em investigações empíricas sobre a culpa. Tem a vantagem de ser baseada em pressupostos tanto empíricos quanto teóricos, além de considerar aspectos fundamentais para o homem atual, como sua relação com a temporalidade. Um outro aspecto relevante diz respeito à sua aplicabilidade: além de ser facilmente aplicável, a escala pode ser uma ferramenta útil para profissionais da área da psicologia clínica na identificação de sentimentos de culpa apresentados por pacientes, assim como na psicologia jurídica. Futuras pesquisas podem investigar de forma mais objetiva a relação entre a culpa e outras variáveis, como por exemplo, o bem estar psicológico, a ansiedade, a depressão, o desenvolvimento moral e os valores. Recomenda-se, entretanto, que novos estudos com a escala sejam realizados com outras amostras para melhor verificação da consistência dos fatores, bem como da validade preditiva e da estabilidade temporal (teste-reteste).
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Endereço para correspondência
E-mail: logosvitae@ig.com.br
Recebido em Junho de 2008
Reformulado em Fevereiro de 2009
Aceito em Março de 2009
Apoio institucional: Centro Universitário de João Pessoa - UNIPÊ.
Sobre os autores:
* Thiago Antônio Avelar de Aquino: Mestre pela Universidade Federal da Paraíba, Professor do Centro Universitário de João Pessoa - UNIPÊ e da Universidade Estadual da Paraíba, psicólogo clínico e Doutor em Psicologia Social pelo Programa Integrado de Doutorado em Psicologia Social (UFPB/UFRN).
** Bruno Medeiros: Graduado e Licenciado em Psicologia pelo Centro Universitário de João Pessoa - UNIPÊ, mestrando em Psicologia Social pela Universidade Federal da Paraíba.