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Avaliação Psicológica
versão impressa ISSN 1677-0471
Aval. psicol. vol.9 no.3 Porto Alegre dez. 2010
Estudos de adaptação do Montreal Cognitive Assessment (MoCA) para a população portuguesa
Adaptation studies of the Montreal Cognitive Assessment (MoCA) to the portuguese population
Sandra Freitas1; Mário R. Simões; Cristina Martins; Manuela Vilar; Isabel Santana
Universidade de Coimbra
Resumo
O Montreal Cognitive Assessment (MoCA) é um instrumento de rastreio cognitivo mais sensível que o Mini-Mental State Examination (MMSE) aos estádios mais ligeiros de declínio, nomeadamente ao Défice Cognitivo Ligeiro (DCL), que frequentemente progride para Demência. Este trabalho descreve as etapas do processo de adaptação transcultural do MoCA para a população portuguesa e analisa a equivalência entre a versão original e a versão final portuguesa. O processo envolveu a tradução, retroversão, aperfeiçoamento linguístico do instrumento e manual, estudos com a versão experimental, revisão e ajustamentos necessários para finalizar a versão portuguesa, e análise da equivalência com a versão original. Os estudos realizados evidenciam as boas propriedades psicométricas dos resultados com a versão portuguesa do MoCA, a sua validade, utilidade clínica e equivalência com a prova original, nos diversos níveis considerados. O MoCA é um instrumento privilegiado na detecção precoce do declínio cognitivo e está convenientemente adaptado para a população portuguesa.
Palavras-chave: Montreal Cognitive Assessment (MoCA); Rastreio cognitivo; Défice Cognitivo Ligeiro; Doença de Alzheimer.
Abstract
The Montreal Cognitive Assessment (MoCA) is a cognitive screening instrument with greater sensitivity than the Mini- Mental State Examination (MMSE) to milder stages of cognitive decline, especially to Mild Cognitive Impairment (MCI), which often progresses to Dementia. This paper describes the stages of cultural adaptation of MoCA to the Portuguese population and analyzes the equivalence between the original and the Portuguese final version. The process involved translation, linguistic improvement of the instrument and manual, studies with the experimental version, revision and adjustments required to finalize the Portuguese version, and analysis of equivalence to the original version. Studies corroborate MoCAs good psychometric properties, its validity, clinical utility, and equivalence to the original instrument in various levels considered. The MoCA is a privileged instrument for early detection of cognitive decline that is properly adapted to the Portuguese population.
Keywords: Montreal Cognitive Assessment (MoCA); Cognitive Screening; Mild Cognitive Impairment; Alzheimer´s Disease.
Introdução
O Défice Cognitivo Ligeiro (DCL) é uma entidade clínica intermédia entre as alterações cognitivas do envelhecimento e as primeiras manifestações clínicas da demência. Esta concepção reúne o consenso da maioria dos investigadores e encontra sustentação empírica em numerosos estudos (e.g., Gauthier e colaboradores, 2006; Petersen & O´Brien, 2006; Cargin e colaboradores, 2005; Winblad e colaboradores, 2004; Petersen, 2003/2004, 2007).
Originalmente, os critérios diagnósticos para o DCL focavam os défices de memória e a esta condição estava associado um elevado risco de progressão para a Doença de Alzheimer (DA) (Petersen e colaboradores, 1999). Contudo, o drástico aumento da investigação no âmbito do DCL (Petersen & O´Brien, 2006) conduziu à crescente evidência de que alguns pacientes progrediam para outros tipos de demência, surgindo a necessidade de tornar o conceito de DCL mais abrangente, de forma a incluir outros perfis de défice cognitivo que tendiam a preceder outros tipos de demência (e.g., Winblad e colaboradores, 2004; Petersen, 2004, 2007; Gauthier e colaboradores, 2006).
Assim, de acordo com os actuais critérios internacionais, adoptados pelo National Institute on Aging Alzheimer´s Disease Centers Program e pela Alzheimer´s Disease Neuroimaging Initiative, o diagnóstico de DCL implica a existência de queixas cognitivas e de um défice objectivo, ou seja, um desempenho em testes de avaliação inferior ao esperado para a idade e/ou escolaridade; este défice não é suficientemente severo para o estabelecimento do diagnóstico de uma demência, nem para interferir de modo significativo na capacidade funcional do indivíduo que mantém as suas actividades de vida diária praticamente normais (Petersen, 2004; Petersen & O´Brien, 2006). Mais acresce a consensualidade na subdivisão do DCL em DCLamnésico e DCL-não-amnésico (de acordo com a presença ou não de défice de memória), sendo que cada um destes subtipos se subdivide ainda em domínio único ou múltiplos domínios (de acordo com a presença de um ou mais domínios cognitivos afectados), perfazendo assim a existência de quatro subtipos de DCL: DCL-amnésico domínio único, DCL-amnésico múltiplos domínios, DCL-nãoamnésico domínio único e DCL-não-amnésico múltiplos domínios. Nestes moldes e com base numa vasta matriz de evidências clínicas, o DCL tem sido proposto como entidade diagnóstica para o DSM-V (Petersen & O´Brien, 2006).
Com uma taxa de conversão anual para a demência de cerca de 12% (Petersen e colaboradores, 1999), muito superior à encontrada na população normal, de cerca de 1 a 2% (Petersen, 2000), e com estudos longitudinais que revelam que cerca de 80% dos indivíduos com DCL progrediram para demência ao fim de 6 anos (Petersen & Morris, 2003/2004), o DCL tem-se consagrado como uma entidade clínica de elevado risco para a demência. Deste modo, actualmente, o DCL assume um papel central na identificação precoce da demência (Mueller e colaboradores, 2005) e tende a assumir o papel preferencial, comparativamente com a DA, de objecto de estudo dos investigadores no espectro do Alzheimer, um facto que resulta da relativa falência das estratégias de tratamento na fase já sintomática de demência (Santana, 2003, p.99).
Caracterização do Montreal Cognitive Assessment (MoCA)
O Montreal Cognitive Assessment (MoCA; Nasreddine e colaboradores, 2005) constitui um instrumento breve de rastreio cognitivo. Originalmente desenhado para o rastreio do DCL, o processo de construção do teste prolongou-se ao longo de cinco anos, tendo sido efectuados sucessivos aperfeiçoamentos à sua estrutura (e.g., exclusão de 5 itens que não se revelaram discriminativos, redução do número de domínios cognitivos, ajuste da pontuação dos itens de modo a valorizar mais os itens mais discriminativos Nasreddine et al., 2005).
A versão final deste instrumento representa um método rápido, prático e eficaz na distinção entre desempenhos de adultos com envelhecimento cognitivo normal e adultos com défice cognitivo, para além de se mostrar útil na avaliação de estádios intermédios de défice cognitivo, nomeadamente do DCL e da DA ligeira e moderada. Deste modo, o MoCA apresenta potencial utilidade na elaboração de directrizes para futuras investigações acerca do DCL (Nasreddine e colaboradores, 2005).
O MoCA é constituído por um protocolo de uma página, cujo tempo de aplicação é de aproximadamente 10 minutos, e por um manual onde são explicitadas as instruções para a administração das provas e definido, de modo objectivo, o sistema de cotação do desempenho nos itens. Com uma pontuação máxima de 30 (pontos), o MoCA avalia oito domínios cognitivos contemplando diversas tarefas em cada domínio, de acordo com a estrutura descrita na Tabela 1 (Nasreddine e colaboradores, 2005). No conjunto de itens que constituem este instrumento estão incluídas 5 das 6 tarefas mais frequentemente usadas no rastreio da demência, de acordo com o resultado da pesquisa do IPA (Shulman e colaboradores, 2006).
Comparativamente ao conhecido Mini- Mental State Examination (MMSE; Folstein, Folstein & McHugh, 1975; Guerreiro, 1998), o MoCA avalia mais funções cognitivas e apresenta itens com maior nível de complexidade. Efectivamente, a tarefa de memória do MoCA implica mais palavras e maior intervalo de tempo precedente à evocação. No mesmo sentido, deve ser referida a presença de tarefas de avaliação das funções executivas, a maior exigência ao nível das aptidões linguísticas, do processamento visuoespacial complexo, e da atenção, concentração e memória de trabalho (áreas de potencial deterioração nos pacientes com DCL). Deste modo, O MoCA configura-se como um instrumento mais sensível aos estádios de défice mais ligeiros e mais adequado ao rastreio cognitivo da população com escolaridade mais elevada. (Freitas, Simões & Santana, 2008a; Freitas, Simões & Santana, 2008b; Freitas, Pinto, Duro, Santiago, Simões & Santana, 2009; Lee e colaboradores, 2008; Luis, Keegan & Mullan, 2009; Nasreddine e colaboradores, 2005; Trenkle, Shankle & Azen, 2007).
Levey, Lah, Goldstein, Steenland e Bliwise (2006) acrescentam que o MoCA pode auxiliar na diferenciação entre subtipos de DCL, na medida em que inclui itens como a aprendizagem da lista de palavras e respectiva evocação diferida, que seriam mais sensíveis ao DCL tipo amnésico, mas também avalia outros domínios cognitivos (e.g. função executiva, linguagem, capacidade visuoespacial) que podem contribuir para a avaliação de outros subtipos de DCL.
O teste pode, ainda, fornecer uma estimativa quantitativa da capacidade cognitiva, e não apenas qualitativa (no sentido de identificar um desempenho normal ou a presença de défice), ampliando e potenciando deste modo a sua utilidade para monitorizar a magnitude das alterações das capacidades cognitivas associadas à evolução da patologia ou resultantes de estratégias de intervenção (Koski, Xie & Finch, 2009).
O MoCA tem sido considerado como um teste de rastreio cognitivo privilegiado (Gauthier e colaboradores, 2006), uma vez que constitui um método eficaz para rastrear o Défice Cognitivo Ligeiro e distingui-lo [do perfil cognitivo] de idosos com função cognitiva intacta, estando em boa posição para se impor, uma vez que recolhe a informação necessária através de um instrumento de rastreio eficaz e prático (Ismail & Shulman, 2006, p.525). Neste sentido, o MoCA é referido, nas recomendações do Third Canadian Consensus Conference on the Diagnosis and Treatment of Dementia, como o instrumento a usar em caso de suspeita de DCL (Jacova, Kertesz, Blair, Fisk & Feldman, 2007). Na revisão de Lonie, Tierney e Ebmeier (2009), o MoCA surge como um dos quatro instrumentos mais sensíveis na detecção do DCL e da DA Ligeira. Relevância semelhante é concluída na revisão de Ismail, Rajji e Shulman (2009) que consideram que o MoCA tem ganho credibilidade, devido à sua elevada sensibilidade ao DCL, ao facto de avaliar o funcionamento executivo e ao reduzido enviesamento cultural dos seus itens.
O presente trabalho tem por objectivo central descrever as etapas do processo de adaptação transcultural do MoCA para a população portuguesa. Pretende-se ainda analisar a equivalência entre a versão original e a Versão Final Portuguesa.
Estudos Internacionais
Os estudos originalmente realizados (Nasreddine e colaboradores, 2005) indicam que o MoCA possui boa consistência interna (α Cronbach = 0,83), elevada fiabilidade teste-reteste (r =0,92, p<.001, ± 26 dias), equivalência linguística (nas versões em inglês e em francês), utilidade em contexto hospitalar, comunitário e de investigação. Relativamente à validade concorrente, os seus resultados apresentam uma correlação elevada com os obtidos no MMSE (r = 0,87, p<.001). Neste estudo, o MoCA revelou-se, ainda, eficaz na distinção entre os grupos Controlo, DCL e DA (F(2,274)=232.91, EPM=12.84, p<.001), diferença que se manteve significativa mesmo depois de controlados os efeitos das variáveis idade e escolaridade (Covariância: F(2,269)=183.32, EPM=11.18, p<.001). Esta capacidade de diferenciação é, aliás, superior à observada com o MMSE. Assim, o MoCA possui uma excelente e 100%, respectivamente), comparativamente aos resultados modestos do MMSE (18% e 78%). No que respeita à especificidade, o MoCA possui uma boa a muito boa especificidade, tendo identificado correctamente 87% dos controlos (indivíduos normais), ainda que o MMSE apresente resultados de 100%.
Os estudos de adaptação e validação do MoCA decorrem, actualmente, em 30 países (www.mocatest.org), o que reflecte bem a utilidade e importância reconhecida a este instrumento. Os diversos estudos internacionais comprovam as boas propriedades psicométricas da prova [e.g.: α Cronbach (0,90), correlação com resultados no MMSE (r =0,83, p<.0001) (Fontini e colaboradores, 2007); α Cronbach (0,83), estabilidade temporal teste-reteste r =0,92 [p<.001; 35.0 (± 17.6) dias] (Rahman & Gaafary (2009)] e a sua sensibilidade ao declínio cognitivo, corroborando a sua eficácia enquanto teste de rastreio cognitivo, não só para o DCL e DA (cf. Tabela 1) mas, também, para o declínio cognitivo associado a outros quadros clínicos, verificando-se uma crescente generalização da utilização clínica da prova [e.g.: Doença de Parkinson (Gill, Freshman, Blender & Ravina, 2008; Nazem e colaboradores, 2009; Wilner, 2008; Zadikoff e colaboradores, 2008); Doença de Huntington (Corey-Bloom, Goldstein, Lessig, Peavy & Jacobson, 2009); Doença Cerebrovascular (Martinic-Popovic, eric & Demarin, 2006; Martinic-Popovic, eric & Demarin, 2007); Metástases Cerebrais (Olson, Chhanabhai & McKenzie, 2008)].
Método
O processo de adaptação transcultural do MoCA para a população portuguesa passou por diversas etapas, até à obtenção da Versão Final Portuguesa (Simões, Freitas, Santana, Firmino, Martins, Nasreddine & Vilar, 2008). A figura 1 ilustra as etapas deste processo.
Fase 1: Autorização
A autorização para a realização de estudos de adaptação, validação e aferição do MoCA para a população portuguesa foi solicitada e concedida em 2006, pelos autores da prova original. A tradução para português da prova e do respectivo manual de instruções de administração e cotação (Versão Experimental) foi realizada nesse mesmo ano.
Fase 2: Tradução e Retroversão
Inicialmente, duas traduções, do original em inglês para o português, foram realizadas independentemente por psicólogos fluentes na língua inglesa e com experiência nas tarefas de adaptação de testes de avaliação cognitiva. De seguida, a equipa responsável pelos estudos do MoCA em Portugal avaliou e discutiu tais traduções, chegando a uma versão única. Posteriormente, um tradutor bilingue, sem conhecimento da versão original da prova, efectuou a retroversão para inglês da versão portuguesa. A tradução e retroversão foram discutidas e comparadas com o original para identificar discrepâncias entre a fonte e o alvo e se incrementar a equivalência entre as versões. Procurou-se obter equivalência semântica (equivalência entre as palavras quanto ao sentido que veiculam e à abrangência do mesmo), idiomática (equivalência de expressões típicas, cujo significado não pode ser depreendido literalmente) e experimental (adequação de palavras ao contexto cultural alvo), tendo-se, através deste processo, chegado à Versão Experimental Portuguesa do MoCA (Simões, Firmino, Vilar & Martins, 2007).
Fase 3: Estudos com a Versão Experimental Portuguesa
A Versão Experimental Portuguesa do MoCA foi alvo de diversos estudos que procuraram averiguar a aplicabilidade da prova na população portuguesa, respectivas qualidades psicométricas e capacidade diagnóstica. Estes estudos tiveram ainda por objectivo salientar aspectos passíveis de aperfeiçoamento.
Num primeiro trabalho, Martins (2007) analisou o desempenho de 325 adultos idosos, divididos em três grupos: I) 153 adultos saudáveis (critérios de inclusão: função cognitiva global normal, independência funcional e comportamento social adequado), II) 72 pacientes com Défice Cognitivo Ligeiro (critérios diagnósticos: Petersen e colaboradores, 1999) e III) 100 pacientes com Demência (critérios diagnósticos: queixas mnésicas, confirmadas pelo cuidador e por testes de avaliação neuropsicológica; défices cognitivos que incluem afasia, apraxia, agnosia e/ou perturbação na capacidade de execução; e impacto significativo dos défices na vida social e ocupacional do idoso). A autora concluiu que o MoCA (Versão Experimental Portuguesa) apresenta boas características psicométricas e é adequado ao rastreio do défice cognitivo. Os resultados revelaram uma excelente consistência interna (α Cronbach = 0,94), excelente estabilidade temporal dos resultados teste-reteste [r = 0,85 (p<.01; intervalo médio de 33.5 dias)], e correlações variando entre modestas (r = 0,59) a perfeitas (r = 1,00) para o acordo inter-avaliadores, consoante os itens em questão. Na análise dos itens, foram encontrados os seguintes resultados: correlações inter-item significativamente positivas entre todos os itens sendo, de acordo com o esperado, superiores entre os itens constituintes de um mesmo domínio cognitivo; correlações item-total sempre superiores a 0,20, sugerindo assim que todos os itens do teste apresentam poder discriminativo; e um índice de dificuldade dos itens adequado para sujeitos com DCL (média do índice de dificuldade dos itens = 0,56). O MoCA revelou-se eficaz na diferenciação dos três grupos entre si [F(2,324) = 295.037, p<.0001; Grupo controlo com média de pontuações mais elevada (M=22.46; DP=5.08) do que os grupos clínicos, seguindo-se o grupo com DCL (M=15.86; DP=4.03) e, por fim, o grupo com Demência (M=8.69; DP=3.53)].
Freitas e colaboradores (2008a; 2008b) analisaram as características psicométricas da Versão Experimental do MoCA num grupo de idosos saudáveis (n=80), residentes na comunidade [Idade = 50 anos (M=62.91; DP=9.39; Min=50; Máx=84)]. Os critérios para a inclusão no grupo de idosos saudáveis foram: a) consentimento informado; b) português como língua materna e escolaridade realizada em Portugal; c) idade = a 50 anos; c) pontuação normal no MMSE, de acordo com os dados normativos para a população portuguesa (Guerreiro, 1998); d) independência e funcionalidade preservadas; e) ausência de sintomatologia depressiva grave (pontuação na GDS < 20); f) ausência de perturbações psiquiátricas ou neurológicas, ou outras patologias com impacto na cognição; g) ausência de medicação susceptível de alterar a função cognitiva; h) ausência de défices motores, visuais ou auditivos significativos, susceptíveis de influenciar o desempenho nas provas; i) ausência de história de alcoolismo ou consumo de substâncias. Os resultados são sugestivos de adequada consistência interna do teste (α Cronbach = 0,71) e as boas correlações interitem (superiores entre os itens que constituem um determinado domínio do MoCA) e item-total [à excepção de dois itens, onde a amostra normativa obteve uma taxa de acertos mais elevada, correspondentes às tarefas de atenção sustentada (M=0.95, DP=0.219; pontuação máxima de 1 ponto) e de orientação (M=5.91, DP=.396; pontuação máxima de 6 pontos), todos as outras tarefas obtiveram correlações entre 0,44 e 0,60 (p<.01) com o total do teste] são indicativas de validade interna. Os resultados no MoCA e no MMSE apresentaram uma correlação excelente (r = 0,66, p<.01), o que evidencia uma boa validade concorrente. A correlação com os resultados na Geriatric Depression Scale (r = -0,33, p<.01) foi sugestiva de validade à semelhança da observada noutros estudos (e.g., Borges, Benedetti & Mazo, 2007).
Simões e colaboradores (2008) realizaram um estudo de validação do MoCA com recurso a três grupos: I) Controlo (critérios de inclusão: função cognitiva global normal, independência funcional e comportamento social adequado), II) DCL (critérios diagnósticos: Petersen, 2004) e III) Demência Ligeira (critérios diagnósticos: queixas mnésicas, confirmadas pelo cuidador e por testes de avaliação neuropsicológica; défices cognitivos que incluem afasia, apraxia, agnosia e/ou perturbação na capacidade de execução; e impacto significativo dos défices na vida social e ocupacional do idoso). O protocolo de avaliação incluía o MoCA, o MMSE e as Matrizes Progressivas Coloridas de Raven (MPCR). Os valores de precisão teste-reteste encontrados foram: MoCA r =0,85 [p<.01; 33.47 (± 14.65) dias]; MMSE r =0,65 [p<.0001; ± 37.0 dias]; MPCR r =0,73 [p<.0001; 36.47 (± 14.33) dias]. Quanto à consistência interna dos instrumentos, os valores do α Cronbach foram: MoCA α=0,92, MMSE α=0,87, MPCR α=0,92. Ao nível da validade concorrente, os resultados no MoCA apresentaram boas correlações com os do MMSE (r = 0,83, p<.0001) e com os das MPCR (r =0,78, p<.0001).
Noutro estudo, Duro (2008)2 procedeu ao exame da validade discriminante dos resultados no MoCA, considerando os seguintes grupos: DCL (n=82), Doença de Alzheimer (DA) (n=70), Outras Demências Degenerativas (ODD) (n=35) e Demência Vascular (DV) (n=25). Para além de corroborar informação anterior relativa às boas propriedades psicométricas do teste (α Cronbach =0.90), o estudo constata uma boa validade discriminativa das pontuações, tendo-se observado diferenças significativas entre os quatro grupos clínicos [(F(3,208) = 45,619, p ≤ .001); por ordem decrescente: DCL (M = 19,62, DP = 5,49), DV (M = 13,48, DP = 5,35), ODD (M = 11,14, DP = 5,27) e, com o pior desempenho, DA (M = 10,23, DP = 5,07); de acordo com o teste post-hoc, as diferenças estatisticamente significativas ocorrem entre os grupos DCL e DA (I.C. a 95% ] 7,16; 11,63[; p ≤ .001), DCL e DV (I.C. a 95% ] 3,01; 9,28[; p ≤ .001), DCL e ODD (I.C. a 95% ] 5,71; 11,25[; p ≤ .001) e DV e DA (I.C. a 95% ] 0,05; 6,45[; p < .05)]. Neste estudo, considerando o ponto de corte original de 26 pontos, o MoCA demonstrou uma sensibilidade de 84,1% na detecção de DCL e 100% para Demência, contra os modestos valores do MMSE (9,9% para DCL e 56,2% para Demência). As correlações entre o MoCA e os outros instrumentos foram elevadas [r(MMSE) = 0,82; r(ADAS-Cog) = -0,76], corroborando, uma vez mais, a validade concorrente dos seus resultados.
A identificação da estrutura factorial da versão experimental do MoCA (Duro, Simões, Ponciano & Santana, 2009)3, com recurso à Análise Factorial Confirmatória (ACF), realizada a uma amostra clínica de 212 pacientes com DCL ou Demência, sugere um modelo com uma estrutura de dois factores, com índices de ajustamento muito bons: um Factor Memória, que envolve as tarefas de Memória, Linguagem e Orientação (estando esta última mais estreitamente relacionada com a dimensão Memória); e um segundo Factor, denominado Atenção/Funções Executivas, composto pelas tarefas de Atenção, Concentração e Memória de Trabalho, Funções Executivas e Capacidades Visuo-espaciais. A capacidade discriminativa desta estrutura factorial foi explorada, obtendo-se dois resultados principais: 1) ambos os factores discriminam entre DCL e Demência; 2) o factor Memória permite discriminar os sujeitos com DA e DV. Atendendo ao segundo resultado referido, os autores deixam em aberto a possibilidade de os resultados no MoCA diferenciarem patologia degenerativa primária (nomeadamente DA) de patologia de etiologia vascular, hipótese cuja comprovação requer, no entanto, a realização de mais estudos.
Fase 4: Meta-análise do Instrumento e do Manual
Paralelamente aos estudos supracitados, o teste e o respectivo manual de administração e cotação foram objecto de sucessivas análises e aperfeiçoamentos pela equipa responsável pelos estudos portugueses com o MoCA.
Numa fase inicial da aplicação à população portuguesa da Versão Experimental do MoCA, foram solicitados a todos os participantes comentários e relatos de quaisquer dificuldades tidas na compreensão das instruções das tarefas. Para além disso, reuniu-se o conjunto de psicólogos com formação/treino e experiência na aplicação do teste para examinar as dificuldades sentidas ao nível das instruções de administração e cotação dos itens. Uma vez identificadas as dificuldades mais frequentes, procedeu-se a uma revisão do manual com o objectivo de aumentar a compreensibilidade das instruções e a clareza dos procedimentos de administração e cotação.
Questões pontuais foram sempre esclarecidas junto dos autores do instrumento original e as alterações efectuadas ao teste e respectivo manual foram debatidas com estes, procurando-se sempre minimizar as diferenças entre a versão original e a Versão Final Portuguesa. Neste processo de adaptação do MoCA, foi igualmente útil a análise das versões existentes noutros países, com realidades culturais e geográficas mais próximas da Portuguesa, nomeadamente, Espanha, Itália, França e Brasil (cf. www.mocatest.org).
Vejamos, de seguida, as alterações introduzidas no teste e no manual.
A) Alterações efectuadas ao teste
A.1) Alteração da lista de palavras da tarefa de Memória
A lista de palavras que constava da Versão Experimental Portuguesa resultou da tradução das palavras da versão original do MoCA. Ainda que as palavras traduzidas respeitassem os critérios tidos em conta pelos autores para a selecção das palavras na língua inglesa (frequência de uso intermédia, ligeira a média complexidade, culturalmente aceites), verificou-se que: i) a extensão das palavras não era equivalente (e.g., red é uma palavra monossilábica, ao passo que vermelho é uma palavra trissilábica); ii) na lista de palavras traduzida ocorria repetição fonológica, o que não ocorria na versão inglesa (e.g., veludo e vermelho); e iii) algumas palavras traduzidas apresentavam início silábico idêntico, o que também não sucedia na versão original (e.g., veludo e vermelho). Acresce ainda que Martins (2007) apontou as palavras malmequer e vermelho como possuindo um menor índice de discriminação. Deste modo, procurando respeitar os critérios originais de selecção das palavras, superar as diferenças supracitadas, manter a equivalência semântica e evitar palavras polissémicas, ponderaram-se várias alternativas, tendo a lista final de palavras sido avalizada por um especialista em Linguística, para assegurar que constituía a melhor opção.
A.2) Alteração das frases para repetição
De modo similar, as frases presentes na Versão Experimental do MoCA resultaram da tradução das frases incluídas na versão original do instrumento. Os critérios tidos em conta pelos autores para a selecção das frases foram: i) complexidade moderada; ii) culturalmente aceites; e iii) conterem entre 7 e 11 palavras (idealmente 9). A frase 2 da Versão Experimental Portuguesa não cumpria o critério de extensão mencionado pelos autores, sendo constituída por 13 palavras. Tal facto pode justificar a menor correlação deste item com o total da prova, encontrado por Martins (2007). Com o contributo de um especialista em Linguística, ambas as frases foram alteradas, no sentido de cumprirem o critério da extensão da frase (em termos de palavras gramaticais e de grupos acentuais), mantendo, contudo, uma boa fluência e um valor semântico similar ao das frases em inglês presentes na prova original.
B) Alterações efectuadas ao manual
O manual do MoCA contempla as instruções para a administração das tarefas e os critérios para a cotação dos itens. No que diz respeito às instruções fornecidas aos indivíduos, foram realizados sucessivos aperfeiçoamentos entre a Versão Experimental e a Versão Final do manual, que visaram sempre uma maior compreensibilidade e adequação à realidade cultural portuguesa (e.g. palavras exemplo incluídas na instrução da tarefa de fluência verbal).
As instruções de cotação da Versão Final do Manual são mais compreensíveis e objectivas, incluindo mais exemplos e clarificando aspectos não expressos na versão original do manual, que foram esclarecidos junto dos autores da prova. De salientar que para a tarefa de Subtracção em série de 7 se apresentavam critérios pouco específicos que deixavam margem a alguma subjectividade (e.g. penalizar ou não a pontuação por: recurso a estratégias como contar pelos dedos, relembrar valor da última subtracção efectuada, relembrar o valor a subtrair). Deste modo, foi considerada oportuna uma maior especificação dos critérios de cotação, tendo sido consultados, para esse efeito, diversos especialistas em avaliação neuropsicológica3.
Resultados e Discussão
Em Portugal, a escassez de instrumentos objectivos para a avaliação neuropsicológica do défice cognitivo é significativa. Tal realidade acarreta consequências, quer ao nível do diagnóstico e detecção precoce do défice cognitivo, quer na elaboração de planos de intervenção, podendo comprometer o rigor e eficácia da actividade clínica.
Uma forma de amenizar este problema é adaptar instrumentos já disponíveis noutras línguas e utilizados com distintas populações, ao invés de criar novos instrumentos. Com longa história na avaliação psicológica, esta prática tem vindo a aumentar nos últimos anos. Para além de serem, assim, já conhecidos resultados da utilidade e validade dos instrumentos em causa, tal procedimento é susceptível de contribuir para a realização de estudos transculturais, que podem permitir um melhor conhecimento acerca dos quadros clínicos e suas especificidades nas diferentes populações (Cook & Schmitt-Cascallar, 2005; Giusti & Befi-Lopes, 2008).
Não obstante, é frequente que o processo de adaptação de um teste para outra língua sofra a influência de diversas fontes de erro, pelo que é essencial que esse processo adopte procedimentos metodológicos rigorosos. Neste contexto, a tradução e adaptação de um instrumento reveste-se de uma importância similar à da construção de um novo instrumento. A procura do máximo de equivalência entre o instrumento original e a versão traduzida deve conduzir todo o processo, de modo a evitar formas, muitas vezes subtis, de distorção (Giusti & Befi- Lopes, 2008; Hambleton, 2005; Hill & Hill, 2005; International Test Commission, 2001).
A utilização de um instrumento numa determinada população sem a conveniente adaptação coloca em risco a validade e precisão dos resultados. Apesar da importância de todo este processo, é muito rara a referência explícita e detalhada aos procedimentos e análises envolvidas na adaptação dos instrumentos.
O processo de adaptação do MoCA para a população portuguesa, descrito neste trabalho, procurou seguir as linhas orientadoras propostas na literatura (Hambleton & Patsula, 1999; Hambleton, 2005; Herdman, Fox-Rushby & Badia, 1998; Hill & Hill, 2005; International Test Commission, 2001; Vijver & Poortinga, 2005): tradução, retroversão, realização das correcções necessárias na primeira adaptação linguística do instrumento, estudos com a primeira versão resultante da adaptação, aplicação do teste a uma amostra representativa das populações alvo, análise das características psicométricas do instrumento na nova população, revisão e ajustamentos necessários para finalizar a versão do instrumento, e análise da equivalência entre a versão original e a versão adaptada.
Quanto à questão da equivalência entre o instrumento original e a versão adaptada, Herdman e colaboradores (1998) apresentaram um modelo de avaliação da equivalência da adaptação transcultural de instrumentos, que tem vindo a ser empregue em diversos estudos internacionais. Os autores consideram que a equivalência deve ser avaliada a seis níveis: conceptual, de item, semântica, operacional, de mensuração e funcional, tendo operacionalizado as estratégias de avaliação para cada um dos níveis. Atendendo a este modelo, é possível averiguarmos que o processo de adaptação do MoCA para a população portuguesa respeitou os diferentes níveis apontados, pelo que se pode concluir que a Versão Final Portuguesa do MoCA apresenta equivalência com a versão original do instrumento.
Conclusão e Considerações Finais
A Versão Final Portuguesa do MoCA resulta de um longo processo de adaptação transcultural, que procurou ser o mais rigoroso possível, de forma a maximizar a sua adequação à realidade portuguesa, mantendo, ao mesmo tempo, a equivalência com a versão original. Deste complexo processo resulta um teste melhor adaptado para o rastreio cognitivo da população portuguesa, o que se reveste de especial importância, num contexto de escassez de instrumentos de avaliação neuropsicológica devidamente adaptados e validados.
Os estudos com a população portuguesa, aqui descritos, demonstram que o MoCA possui boas qualidades psicométricas, incluindo indicadores de validade e utilidade diagnóstica, discriminando os desempenhos de indivíduos cognitivamente saudáveis ou com envelhecimento normativo dos quadros clínicos de DCL ou DA ligeira e moderada. São necessários mais estudos para averiguar a utilidade do MoCA na diferenciação entre diferentes tipos de demência. Contudo, os resultados preliminares são bastante promissores.
Embora constitua um importante parâmetro no processo de validação de um instrumento, a adaptação transcultural e a avaliação da equivalência são apenas o primeiro passo.
O MoCA é presentemente objecto central de um programa sistemático de trabalhos que inclui os seguintes estudos: 1) Estudo normativo para a população portuguesa (Freitas, Simões, Alves & Santana, 2010, Junho); 2) Estudos psicométricos no âmbito da validade concorrente e precisão (Freitas e colaboradores, 2009, Junho); 3) Estudos de validação clínica e exploração da capacidade diagnóstica: Défice Cognitivo Ligeiro, Doença de Alzheimer, Demência Vascular, Demência Frontotemporal, Demência com Corpos de Lewy (Freitas, Simões & Santana, 2010, Fevereiro); 4) Estudo longitudinal com pacientes com DCL e DA (Freitas, Santana & Simões, 2010, Julho); 5) Análise dos itens com recurso à Teoria de Resposta ao Item (TRI) (em fase de preparação); 6) Análise da estrutura factorial do MoCA em grupos clínicos e normativos (em fase de preparação).
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Recebido em março de 2010
Reformulado em julho de 2010
Aceito em agosto de 2010
Sobre os autores:
Sandra Freitas: Psicóloga a realizar Doutoramento em Psicologia, especialidade de Neuropsicologia, na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra. Bolseira de Doutoramento da Fundação para a Ciência e Tecnologia (SFRH/BD/ 38019/2007) Portugal.
Mário R. Simões: Professor Catedrático. Director do Serviço de Avaliação Psicológica da Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra. Responsável por vários projectos na área da adaptação de testes neuropsicológicos para a população portuguesa.
Isabel Santana:Professora Auxiliar Convidada da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra. Neurologista responsável pela Consulta de Demências do Serviço de Neurologia dos Hospitais da Universidade de Coimbra.
Cristina Martins: Professora Auxiliar e membro do Centro de Estudos de Linguística Geral e Aplicada da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.
Manuela Vilar: Docente e aluna de doutoramento em Avaliação Psicológica na Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade de Coimbra.
1Contato:
E-mail: sandrafreitas0209@gmail.com
2Critérios diagnósticos para a constituição dos grupos: a) DCL: Petersen e colaboradores (1999) e de acordo com as guidelines internacionais para o diagnóstico de DCL (Petersen, 2007); b) DA: DSM-IV-TR (APA, 2000) e National Institute of Neurological and Communicative Disorders and Stroke Alzheimers Disease and Related Disorders Association (McKhann e colaboradores, 1984); c) grupo ODD: Consenso para a Degeneração Lobar Frontotemporal (Neary e colaboradores, 1998) e Consórcio Internacional para a Demência com Corpos de Lewy (McKeith e colaboradores, 2005); d) DV: National Institute of Neurologic Disorders and Stroke Association Internationale pour la Recherche et lEnseignement en Neurosciences (Roman e colaboradores, 1993).
3Agradecimentos: Professor Alexandre Mendonça, Professora Manuela Guerreiro, Professora Isabel Pavão Martins, Professora Rosa Novo, Professor Óscar Ribeiro e Professora Salomé Pinho.