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Avaliação Psicológica
versão impressa ISSN 1677-0471
Aval. psicol. vol.12 no.2 Itatiba ago. 2013
Adaptação brasileira das Escalas de Self Autônomo, Relacionado e Autônomo-Relacionado de Ç. Kağitçibaşi1
Brazilian adaptation of Ç. Kağitçibaşi’s Scales of Autonomous, Related and Related-autonomous Self
Adaptación brasileña de las Escalas de Self Autónomo, Relacionado y Autónomo-Relacionado de Ç. Kağitçibaşi
Maria Lucia Seidl-de-MouraI,2; Ana Carolina Fioravanti-BastosI; Rafael Vera Cruz de CarvalhoI; Cílio ZivianiII
IFaculdade de Ciências Humanas e Sociais
IIPontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
RESUMO
O desenvolvimento do self assume diversas trajetórias de acordo com modelos culturais, que se constroem em reação a contextos específicos. Este trabalho como objetivo apresentar a adaptação de um instrumento de avaliação dessa variedade de trajetórias de desenvolvimento, desenvolvido por Ç. Kağitçibaşi. O instrumento é composto de três escalas: Autonomia, Interdependência e Autonomia-relacionada. As escalas foram traduzidas, adaptadas e aplicadas em 207 participantes adultos de ambos sexos. A Análise de Componentes Principais e a Análise Fatorial Exploratória sugerem, com ressalvas, a unidimensionalidade de cada escala. O Alfa de Cronbach revelou consistência interna moderada para todas as três escalas. Os resultados foram discutidos em relação ao modelo teórico. O instrumento pode ser útil em estudos brasileiros de sistemas de crenças e modelos culturais, mas suas limitações foram ponderadas, assim como a necessidade de estudos futuros para o desenvolvimento de um instrumento que avalie as dimensões de agência e distância interpessoal.
Palavras-chave: autonomia; interdependência; autonomia-relacionada.
ABSTRACT
Self development follows diverse trajectories according to cultural models, which are build in relation to specific contexts. This study aims to present the adaptation of an instrument for the assessment of those developmental trajectories’ variety, created by Ç. Kağitçibaşi. It is composed by three scales: Autonomy, Interdependence and Autonomy-related. The scales were translated into Brazilian Portuguese, adapted and administered to 207 adult participants of both sexes. The Principal Components Analysis and Exploratory Factor Analysis suggest that each scale is one-dimensional, although with caveats. The Cronbach’s Alpha revealed moderate internal consistency for the three scales. Results were discussed in relation to the theoretical model. The instrument can be useful for Brazilian studies on systems of beliefs and on cultural models. However, we have pondered about its limitations, as well as about the need of future studies for the development of an instrument that evaluates the dimensions of agency and interpersonal distance.
Keywords: autonomy; interdependence; related-autonomy.
RESUMEN
El desarrollo del self asume diversas trayectorias de acuerdo con los modelos culturales que se generan en respuesta a contextos específicos. Este trabajo tiene como objetivo presentar la adaptación de un instrumento de evaluación de esta variedad de trayectorias del desarrollo, elaborado por Ç. Kağitçibaşi. El instrumento se compone de tres escalas: Autonomía, Interdependencia y Autonomíarelacionada. Se han traducido, adaptado y aplicado las escalas en 207 participantes adultos de ambos sexos. El Análisis de Componentes Principales y el Análisis Factorial Exploratorio sugirieron, con reservas, la unidimensionalidad de cada escala. El Alfa de Cronbach reveló una consistencia interna moderada en las tres escalas. Los resultados fueron discutidos con relación al modelo teórico. El instrumento puede ser útil en los estudios brasileños de sistemas de creencias y modelos culturales, pero sus limitaciones fueron ponderadas, así como la necesidad de estudios futuros para la elaboración de un instrumento que evalúe las dimensiones de la agencia y la distancia interpersonal.
Palabras-clave: autonomía; interdependencia; autonomía-relacionada.
Autonomia e relação são tendências universais e são desenvolvidas na ontogênese. Somos membros de uma espécie com uma organização social complexa, e tanto a capacidade de agência como a relação com nossos coespecíficos são essenciais para a nossa sobrevivência tanto física como psicológica (Seidl-de-Moura, 2009). Pesquisas empíricas mostram a grande variedade de formas que o “desenvolvimento sadio” pode assumir em diferentes culturas, envolvendo um equilíbrio entre a aquisição da autonomia e a capacidade de relação, com variações na extensão em que cada dimensão é enfatizada (Kağitçibaşi, 2005, 2007, 2012).
Para compreender a dinâmica do desenvolvimento desses dois aspectos em diversos contextos culturais, algumas tendências têm sido observadas. Greenfield, Keller, Fuligni e Maynard (2003) revisaram a literatura na área, usando tarefas universais de desenvolvimento como eixo de organização: formação de relacionamentos, aquisição de conhecimento e equilíbrio entre autonomia/relação. Para essas autoras, essas tarefas são relevantes em momentos diversos da ontogênese, a primeira desde o nascimento, a segunda na infância inicial e a terceira na adolescência. Embora se possa concordar com a importância relativa que cada tarefa assume nesses momentos, podemos pensar que elas são construídas ao longo do ciclo vital. Desenvolvemos relações, construímos conhecimento e desenvolvemos um self em que a autonomia e a relação são diferencialmente valorizadas ao longo de nossa vida e em contextos culturais específicos.
São propostas duas vias ou trajetórias gerais de desenvolvimento nos diversos contextos por essas autoras (Greenfield e cols., 2003). A via interdependente ou da relação, segundo Kağitçibaşi (2007, 2012), consiste na resposta adaptativa a condições de pequenas comunidades em que predomina uma economia de subsistência. Nelas, a tradição é valorizada e as mudanças em sistemas de crenças são mais lentas. As etnoteorias ou teorias parentais locais são transmitidas principalmente de forma vertical (entre gerações) e, com isto, a continuidade histórica é maximizada. Em contraste, na via independente ou de autonomia, a adaptação é a comunidades urbanas grandes, anônimas e com economia de comércio e serviços. O mesmo comportamento pode também ser valorizado em diferentes trajetórias, mas com prioridades relativas diversas. A inovação é valorizada e as mudanças são rápidas. Assim, as ideias, que são balizadas no discurso público por meio da mídia e pela opinião de especialistas, mudam entre gerações e são negociadas horizontalmente, dentro de uma mesma geração.
Keller (2007) vem investigando essas duas trajetórias, cujas bases são as experiências sociais iniciais, organizadas por crenças e práticas, tanto individuais como compartilhadas, dos cuidadores. A partir dessas diferentes trajetórias, o desenvolvimento do self se orienta, segundo ela, para direções diversas: de self independente, interdependente ou autônomo-relacionado, que são derivados dos modelos diferenciados de contato/cuidado de pais frente a seus filhos. No primeiro, são privilegiadas a autonomia e a separação, caracterizando um tipo de relacionamento distal considerado como característico de famílias de classe média, urbanas e educadas do Ocidente. O segundo modelo, interdependente, privilegia a heteronomia e a relação, caracterizando um tipo de relacionamento próximo, característico de famílias rurais com baixos níveis socioeconômicos e educacionais. No terceiro, autônomo-relacionado, são priorizadas tanto a autonomia quanto a relação. Esse modelo é característico de famílias urbanas educadas, de classe média, que vivem em sociedades tradicionalmente interdependentes. Apesar dessas tendências, independência ou autonomia e interdependência coexistem na mesma cultura, com formas de expressão diferentes. O mesmo comportamento pode também ser valorizado em diferentes trajetórias, mas com prioridades relativas diversas:
“[...] a concepção de caminhos de desenvolvimento implica uma organização coerente e significativa de tarefas de desenvolvimento ao longo de todo curso da vida. [...] Diferenças individuais e interculturais existem na maneira como cada tipo de via cultural é negociada. Cada via pode ser vista como um tipo de canalização do desenvolvimento de um significado cultural profundo. Práticas culturais específicas tornam-se, então, operacionalizações desse significado. Diferentes práticas culturais podem ser usadas para operacionalizar a mesma via cultural, tanto através como dentro das culturas” (Sang, 2009, p. 19).
Greenfield (2009) considera que as trajetórias de desenvolvimento devem ser concebidas como um continuum, do modelo de autonomia, em um dos extremos, ao de relação no outro, com o de autonomia relacionada em um ponto intermediário. Kağitçibaşi (2005, 2007, 2012) desenvolveu o modelo teórico de mudança familiar “Model of Family Change” (MFC), buscando integrar perspectivas de mudanças socioeconômicas e desenvolvimento humano. Seu modelo se opõe à concepção de um continuum unidimensional de autonomia a interdependência. Alternativamente, são propostas duas dimensões de necessidades básicas humanas: agência, variando de autonomia a heteronomia, e distância interpessoal, variando de separação a ligação estreita. Para ela, as duas dimensões são ortogonais e coexistem, o que quer dizer que um modelo de self autônomo não é necessariamente separado, assim como um modelo de self conectado não é necessariamente heterônomo. Cruzando as duas dimensões, como pode ser observado na Figura 1, quatro tipos mais gerais de selves podem ser descritos: autônomos separados, típicos de sociedades mais individualistas, autônomos relacionados, heterônomos separados e heterônomos relacionados.
Estudos transculturais têm sido desenvolvidos com base nessas perspectivas teóricas (por exemplo, Keller e cols., 2006). Muitos deles utilizam amostras de contextos que são considerados prototípicos, como mães de Berlim, na Alemanha, de uma comunidade rural da República de Camarões, na África, e de São José, na Costa Rica. No entanto, consideramos que, além da importância de estudarmos as características dos contextos considerando-os como homogêneos e prototípicos, também é relevante o estudo da diversidade em cada cultura. Nesse caso, é particularmente relevante estudarmos a dinâmica da valorização das dimensões de autonomia e relação em um país como o Brasil. Essa relevância se dá-se só para o conhecimento de características dos contextos de desenvolvimento no país, mas também pelo que pode contribuir para a literatura internacional, especialmente por suas dimensões continentais e diversidade populacional.
Devemos ainda considerar os fluxos migratórios ocorridos no Brasil de regiões onde se valoriza mais a relação para regiões onde valoriza mais a autonomia. Toda a mescla do nosso país gerou contextos bastante diversos, inclusive ambientes dentro de cidades grandes como o Rio de Janeiro, em paralelo com a definição de Keller (2012), que considera “ambiente” uma combinação particular de características sociodemográficas. O estudo desses ambientes nos permite explorar a peculiar diversidade da população brasileira e as variações dos modelos de desenvolvimento do self pelo país.
Estudos anteriores (Seidl-de-Moura e cols., 2008; Seidl-de-Moura e cols., 2009) indicaram que mães da cidade do Rio de Janeiro tendem a privilegiar um modelo de autonomia relacionada na importância que atribuem a práticas e metas diversas de socialização. Outras investigações com amostras brasileiras mostram a mesma tendência em geral. O mesmo ocorreu quando foram comparadas respostas de homens e mulheres (mães e pais) da mesma cidade.
Estudos diversos em diferentes regiões e cidades brasileiras usando instrumentos diversificados têm demonstrado a mesma tendência, com variações no equilíbrio da valorização das duas dimensões: autonomia e relação. Em Salvador, Moinhos, Lordelo e Seidl-de- Moura (2007) encontraram a valorização de metas para autonomia e para a relação com outros. O mesmo foi observado com uma amostra de 350 mães primíparas de cinco regiões geográficas do país (Seidl-de-Moura e cols., 2008). Variações intraculturais foram verificadas. Vieira, Seidl-de-Moura, Rimoli e cols. (2010) investigaram dimensões de crenças sobre práticas de cuidado de crianças até três anos em mães de capitais de sete estados brasileiros. Observaram que práticas que promovem a autonomia foram valorizadas, junto com aquelas que favorecem a autorregulação e respeito a regras, características de contextos em que a interdependência é valorizada.
Vieira, Seidl-de-Moura, Mafioletti e cols. (2010) analisaram crenças de 600 mães de crianças até seis anos de idade de 12 localidades, seis capitais e seis cidades de menos de 20 mil habitantes. Os resultados indicaram que, embora as mães de ambos os contextos (capital x interior) valorizarem autonomia, uma diferença foi observada: mães de cidades pequenas valorizaram mais a relação e as de capitais deram a mesma importância às duas dimensões, tanto em suas metas de socialização, como suas crenças sobre práticas.
Os estudos que vêm sendo desenvolvidos no Brasil têm utilizado instrumentos diversos, como as Escalas de Práticas e Metas de Keller (2007), o Inventário de Crenças sobre Práticas (Martins e cols., 2010) e uma adaptação da Entrevista de Metas de Socialização de Harwood (1992). Outros instrumentos vêm sendo empregados na literatura de crenças parentais, como a Escala de Alocentrismo-Ideocentrismo familiar de Lay e cols. (1998), recentemente adaptada para uso no Brasil (Seidl-de-Moura e cols., no prelo). Smith (2009) revê e comenta tentativas anteriores de desenvolver escalas para avaliar modelos de self, inclusive uma de sua autoria. Em geral, segundo ele, as escalas apresentam problemas de consistência, com alfas em torno de 0,70. Para Smith, um desafio é a medida de agência e lidar com efeitos de aquiescência e de desejabilidade social. Ele considera promissora a tentativa de Kağitçibaşi (2007).
Kağitçibaşi (2007, 2012) desenvolveu dois conjuntos de três escalas para avaliar as características de indivíduos com base em sua concepção de duas dimensões de agência e distância interpessoal, focalizando três tendências de desenvolvimento do self: de autonomia, de relação e de autonomia relacionada. Um dos conjuntos se refere a tendências gerais e outro em relação à família. Este estudo focalizou o primeiro conjunto, pelo interesse em aplicá-lo em uma amostra de estudo em andamento com famílias do Rio de Janeiro. Com autorização da autora, realizamos adaptação das escalas para uso no Brasil. O objetivo deste trabalho é apresentar os procedimentos e resultados deste processo.
Método
Participantes
Participaram do estudo 207 sujeitos, 31,40% do sexo masculino, com média de idade de 31,58 anos (DP = 16,64) e 68,60% do sexo feminino, com média de idade de 26,63 anos (DP = 12,49), da cidade do Rio de Janeiro. A maioria dos sujeitos tinha curso superior completo (57%).
Instrumento
As três escalas de Kağitçibaşi (2007) para avaliar Self Autônomo, Self Relacionado e Self Autônomo Relacionado foram desenvolvidas com base em seu modelo teórico (MFC) a partir de um pool de 40 itens (Kağitçibaşi, 2011, comunicação pessoal aos autores em visita ao Brasil). A versão inicial da escala foi aplicada a uma amostra de 117 jovens universitários de Istambul, Turquia. Uma análise fatorial indicou três fatores, 27 itens com carga acima de 0,45, com nove itens em cada fator. Alguns deles são invertidos. Essa versão de 27 itens foi submetida a uma análise de validade concorrente e de construto em uma amostra de 677 sujeitos, mostrando- se válida para a avaliação dos três modelos de self, de forma consistente com a teoria. Finalmente, análises de aplicações transculturais foram feitas com as Escalas de self Autônomo e Relacionado, em sujeitos de seis países (Bélgica, Alemanha, Hong Kong, Turquia, Reino Unido e Estados Unidos). Essas análises confirmaram os padrões ideais de self previstos pela teoria. Constituem a escala de Self Autônomo os itens 1, 2, 3, 4, 5, 13, 20, 25 e 27 de nossa escala compósita. Os itens da subcategoria constituinte da escala de Self Relacionado são 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 14 e 15. A escala de Self Autônomo Relacionado é composta dos itens 16, 17, 18, 19, 21, 22, 23, 24 e 26. São relatados alfas de Cronbach de respectivamente, 0,74, 0,78 e 0,84 para as três escalas (Kağitçibaşi, 2007). Smith (2009) recomenda o uso de itens reversos em escalas de modelos de self. Verifica-se que isso foi observado pela autora. A escala de autonomia tem seis itens reversos, a maioria. A de self relacionado e a de self autônomo relacionado têm cada uma quatro itens reversos, pouco menos da metade de seu total de itens.
Procedimento de tradução e adaptação
A escala foi traduzida pelo primeiro autor que trabalha diretamente com a abordagem de Kağitçibaşi em suas investigações. Após a primeira tradução, foi submetida à tradução reversa por dois juízes. As traduções reversas foram confrontadas e uma primeira versão da escala em português foi preparada. Essa primeira versão foi, então, submetida a juízes de um grupo de pesquisas em família e ajustes foram feitos, chegando-se à versão final, que foi aplicada na amostra. Um exemplo dos passos do procedimento pode ser observado abaixo para o Item 3 da Escala de Self Autônomo:
• Item original – I feel independent of the people who are close to me.
• Tradução inicial – Sinto-me independente de pessoas próximas.
• Tradução reversa – I feel myself independent of close people.
• Tradução final – Sinto-me independente de pessoas que são próximas a mim.
Os itens são apresentados em um só instrumento de 27 itens misturados para serem respondidos em uma escala Likert de cinco pontos: “Nem um pouco”; “Um pouco”; “Mais ou menos”; “Muito”; “Completamente”.
Coleta de dados
O instrumento foi aplicado como parte de um estudo mais amplo aprovado no Comitê de Ética da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (protocolo 010.3.2010). Os participantes foram convidados a participar e responderam individualmente ao instrumento, preenchendo também um formulário de dados sociodemográficos com itens sobre idade, sexo e escolaridade.
Análise de dados
A análise de dados envolveu dois estágios para cada uma das três escalas. Com objetivo de explorar a dimensionalidade dos dados, as escalas de Self Autônomo, Self Relacionado e Self Autônomo-Relacionado foram primeiramente examinadas por uma Análise de Componentes Principais (Principal Component Analysis – PCA) com o IBM SPSS 19. Essas análises foram seguidas por uma análise fatorial (Principal Axis Factoring – PAF) com rotação Varimax.
Resultados
Estatística descritiva
A média total de cada escala foi M = 26,66, DP = 4,23, variando de 17 a 42, para escala de Self Autônomo; M = 31,74, DP = 5,16 variando de 13 a 43, na escala de Self Relacionado e M = 39,81, DP = 4,85 variando de 24 a 45 na escala de Self Autônomo-Relacionado. Com exceção do item 2 “Ao tomar uma decisão, consulto aqueles que me são próximos.” (r = -0,19; p = 0,006) todos os itens da escala de Self Autônomo apresentaram correlação item-total favorável, variando de r= 0,36 a r=0,67; p<0,005. Na escala de Self Relacionado todos os itens também apresentaram correlação item-total favorável, variando de r = 0,37 a r = 0,67; p<0,005; assim como na escala de Self Autônomo-Relacionado, variando de r = 0,28 a r =0,74; p<0,005. O Alfa de Cronbach da consistência interna indicou um valor de 0,69 para escala de Self Autônomo, 0,67 para a escala de Self Relacionado e 0,73 para a escala de Self Autônomo-Relacionado, indicando consistência moderada das três escalas.
Análise de Componentes Principais (ACP)
Na escala de Self Autônomo, a ACP apresentou os dois primeiros componentes com autovalores de, respectivamente, 2,89, explicando 32% da variância (2,89/9=0,32), e 1,15, explicando 13% (1,15/9=13%). Na escala de Self Relacionado, o primeiro componente apresentou autovalor de 2,61, explicando 28,95% da variância. O segundo apresentou 1,50 explicando 16%. Um terceiro componente, embora tenha apresentado autovalor pouco acima de 1, não foi considerado.
Na Escala de Self Autônomo Relacionado, o primeiro componente apresentou autovalor de 3,05 explicando 34% da variância. O segundo componente apresentou autovalor de 1,41 explicando 16%. Assim, apenas os dois primeiros componentes foram suficientes para explicar pelo menos 50% da variância.
Nas três escalas, o primeiro componente explicou uma proporção substancial da variância. Além disso, o reexame dos itens com as maiores cargas no segundo componente, à luz da teoria, sugere a hipótese de unidimensionalidade de cada uma das escalas. Para avaliar melhor essa proposta, recorremos à Análise Fatorial Exploratória, Principal Axis Factoring (PAF) e rotação Varimax.
Análise fatorial exploratória (PAF)
Tanto a Análise de Componentes Principais quanto a Análise Fatorial Exploratória – Principal Axis Factoring maximizam a variância extraída por meio de componentes ortogonais. Entretanto, enquanto que, na primeira (ACP), há uma solução matematicamente determinada, com as variâncias comum, única, e de erro misturadas com os componentes, na segunda (PAF) há uma estimativa inicial do que as variáveis têm em comum, isto é, das comunalidades, como uma tentativa de eliminar das variáveis a variância única, individual de cada item, bem como a variância de erro (Tabachnick & Fidell, 2007).
A Tabela 1 apresenta as cargas fatoriais dos itens agrupados de modo a enfatizar os fatores das três escalas separadamente. Observamos que, em sua maioria, os itens que tiveram seu conteúdo semântico invertido, agruparam-se formando um fator, o que favorece a interpretação de escalas unidimensionais, com itens diretos e invertidos. Tal padrão se repetiu nas três escalas estudadas, com poucas exceções.
Como se pode observar na Tabela 1, na escala de Self Autônomo o segundo fator é representado por apenas um item, resultado que dificilmente justifica chamar- se de “fator”, pois os itens 27 e 13 não carregaram expressivamente nem no primeiro nem no segundo fator. Já os itens da escala Self Relacionado se agruparam formando dois fatores bem definidos, não obstante o item 6 ter apresentado crossloading, isto é, correlação alta tanto com o primeiro quanto com o segundo fator. A escala de Self Autônomo Relacionado apresentou o mesmo padrão com dois fatores bem estabelecidos e apenas o item 26 apresentando crossloading. Observe-se que a rotação Varimax minimiza a complexidade dos fatores ao simplificar as colunas de cargas fatoriais por meio da maximização das variâncias das cargas em cada variável, isto é, “cargas altas após a extração dos fatores tornam-se ainda mais altas após a rotação” e, inversamente, “cargas mais baixas tornam-se ainda mais baixas” (Tabachnick & Fidell, 2007, p. 638).
A diferença entre as análises ACP e PAF, no que diz respeito às posições das correlações, poderá ser examinada por meio do contraste entre a Figura 2 (com os resultados da ACP) e a Figura 3 (com os resultados da PAF com rotação Varimax). No exame dessa diferença, destaca-se na Figura 3, como merecedor de atenção, o reposicionamento de cargas negativas no segundo componente (os itens 5, 20, 3 e 4, abaixo da linha horizontal no gráfico da Figura 2) passarem todos a apresentar cargas positivas (acima da linha horizontal no gráfico da Figura 3); ao mesmo tempo, os três itens de maior carga no segundo componente (itens 1, 13 e 27, os mais próximos da linha vertical do gráfico na Figura 2), diminuíram maximamente suas cargas no primeiro componente ao se aproximarem ainda mais da linha vertical, de forma que o item 1 ficasse exatamente sobre ela (e portanto com carga zero no primeiro componente, na linha horizontal, e carga máxima no segundo, na linha vertical). Mas claro está que a posição relativa de cada carga face às demais não muda da Figura 2 para a Figura 3 – a hierarquia das cargas permanece intacta.
Discussão e considerações finais
O presente estudo foi o primeiro a traduzir e validar uma versão para a cultura brasileira das escalas Kağitçibaşi (2007) de Self Autônomo, de Self Relacionado e de Self Autônomo Relacionado. Trata-se de instrumentos que focalizam aspectos importantes para a realização de pesquisas no Brasil sobre trajetórias de desenvolvimento, de desenvolvimento do self, de identidade e de outros construtos afins. Apesar de as escalas originais terem sido construídas com base em sólida base teórica (sintetizada em Kağitçibaşi, 2005), e de terem sido seguido todos os cuidados de tradução e adaptação, os resultados merecem discussão e alguma reflexão. As escalas apresentaram consistência apenas moderada, na mesma direção dos resultados obtidos com escalas anteriores, segundo Smith (2009). Em segundo lugar, a estrutura unidimensional de cada uma das escalas não foi evidente. Houve o agrupamento de itens reversos na escala de Self Autônomo, por exemplo, e alguns itens apresentaram crossloading ou não contribuíram para a escala.
Esses resultados nos fizeram retornar ao modelo teórico e ao procedimento de adaptação. Em relação ao primeiro aspecto, pensamos em, o quanto as dimensões de agência e distância interpessoal, propostas pela autora, estão adequadamente contempladas nas escalas. As escalas são de três dos modelos ideais propostos, mas cada um desses modelos existe pelo cruzamento das duas dimensões. Como pode ser visto na Figura 1, o modelo de autonomia separada está teoricamente presente em pessoas que apresentam alto grau de agência e, ao mesmo tempo, de distância interpessoal. Examinando os itens da escala de Self Autônomo (vide Tabela 1), percebe-se que todos os itens se referem a “pessoas próximas” e, ao mesmo tempo, tratam de agência, de autonomia, da tomada de decisão ou ação por si só. Na escala de Self Relacionado, a tendência não é tão clara. Há itens de distância interpessoal, como o item 7, que é reverso: Prefiro manter certa distância em minhas relações íntimas. Ao mesmo tempo, há itens sobre sentir-se bem com pessoas próximas e não há itens sobre o pólo de heteronomia, da dimensão de agência. Apenas na escala de Self Autônomo Relacionado parecem estar sendo contempladas conjuntamente as duas dimensões como no item 26, Para ser autônoma, a pessoa não deveria desenvolver relações próximas.
Um segundo aspecto que merece reflexão é o dos itens reversos. Na escala de Self Autônomo prevalecem itens deste tipo. Embora concordemos que é necessário usar estratégias para evitar efeitos de aquiescência na resposta de escalas dessa natureza, podemos pensar se negar autonomia é o mesmo que afirmar heteronomia e vice-versa.
Para melhor esclarecer este ponto, trazemos para esta discussão resultado observado por Ziviani, Féres- Carneiro e Magalhães (2011) em relação a itens sistematicamente contrastados como opostos por meio do segundo componente em análise de componentes principais. Esse resultado pode ser generalizado e estendido para a presente situação a partir das observações de Kağitçibaşi (2005) acerca da confusão entre “conceitualização e mensuração” (p. 408), pois “assim o problema conceitual é também refletido na mensuração [...] a mesma escala incluindo itens medindo autonomia e proximidadeafastamento [...] contribuindo para resultados empíricos inconsistentes” (p. 409). Além disso, há itens nas escalas que não atendem ao que se segue, não obstante a teoria da autonomia relacionada de Kağitçibaşi seja suficientemente refinada, fornecendo todos os elementos para a elaboração de itens muito mais rigorosamente próximos de sua teoria do que alguns dos itens analisados.
Trata-se de se procurar fazer presente, a partir da teoria, da oposição contraditória na formulação dos itens. Em relação à autonomia, afirmam-se os itens de conteúdo positivo (por exemplo, “sinto-me independente de outras pessoas”). Afirmam-se também os itens de conteúdo negativo (“posso mudar minhas decisões de acordo com os desejos de outros”), ao invés da formulação que nega o positivo (“não me sinto independente de outras pessoas”) ou da formulação que nega o negativo (“não posso mudar minhas decisões de acordo com os desejos de outros”). Isso também ocorre em relação à heteronomia, na condição de polaridade oposta à autonomia. Mutatis mutandis, o mesmo se pode dizer em relação à polaridade proximidade-afastamento, na condição de dimensão ortogonal à agência. No caso, apresentar opostos psicologicamente válidos para quem responde depende, em grande medida, do refinamento teórico de quem pergunta – e isto não falta, absolutamente, à teoria de Kağitçibaşi. Ela permite a criação de itens que não misturem as duas dimensões teoricamente ortogonais de agência e distância interpessoal. A questão da tradução e adaptação nos leva aos itens que não apresentaram carga alta no fator na escala de Self Autônomo: 13 e 27. No caso do item 13, pensamos que a tradução final não reflete o significado original do item. O item original é “I don’t like interference in my life by anyone even if the person is close to me”. Nossa tradução foi: Não gosto de interferência de nenhuma pessoa em minha vida, ainda que seja uma pessoa próxima a mim. Parece-nos agora que há uma diferença que pode ter afetado os resultados. Esse não é o caso do item 27. Aqui fica a hipótese do que pode significar em diferentes culturas afirmar que a pessoa se sente “independente”. Uma questão que transcende nossa adaptação é a da dificuldade de se adaptar um instrumento que trata de crenças e significados de culturas diversas. O instrumento original foi desenvolvido em turco e traduzido para diversas línguas. A versão divulgada em Kağitçibaşi (2007) que empregamos é em inglês.
Apesar dessas reflexões e inquietações, resultados preliminares da aplicação das escalas com uma amostra de 50 famílias do Rio de Janeiro (pai, mãe, filho ou filha de 17 a 25 anos) são consistentes com o modelo e estudos brasileiros. Nessa amostra, elas permitiram a identificação dos modelos diferenciados de self propostos na teoria. Foram encontradas evidências de que os pais, mães e os filhos apresentam escores significativamente mais altos na escala de Self Autônomo-relacionado, confirmando uma série de investigações brasileiras (para uma revisão vide Seidl-de-Moura, Vieira e Carvalho, no prelo).
Consideramos, assim, que as versões adaptadas das escalas de Kağitçibaşi (2007) podem ser utilizadas em investigações sobre trajetórias de desenvolvimento do self em contextos brasileiros, levando-se em conta seus índices moderados de consistência. No entanto, ficou evidente para os autores a necessidade de estudos teóricos na direção da construção de um instrumento que contemple as duas dimensões de agência e distância interpessoal, para ser possível identificar modelos de self autônomo, relacionado e autônomo-relacionado com maior consistência.
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Recebido em maio de 2012
Reformulado em fevereiro de 2013
Aprovado em março de 2013
Sobre os autores
Maria Lucia Seidl-de-Moura: é doutora em psicologia, Livre-docente e realizou estágio de pós-doutoramento na USP/SP em Psicologia Experimental e na PUC/RJ em Psicologia Clínica. Atualmente é Professor Titular do Instituto de Psicologia da UERJ, atuando no Programa de Pós-graduação em Psicologia Social e coordenando o grupo de pesquisas Interação Social e Desenvolvimento.
Ana Carolina Fioravanti-Bastos: é psicóloga, Mestre e Doutora em Psicologia pela PUC/RJ. Atualmente realiza estágio pós-doutoral na UERJ, Instituto de Psicologia, no grupo de pesquisas Interação Social e Desenvolvimento.
Rafael Vera Cruz de Carvalho: é doutorando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, bolsista da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa no Estado do Rio de Janeiro (Faperj). É Mestre pelo mesmo Programa e psicólogo formado pela mesma universidade.
Cílio Ziviani: é psicólogo, Mestre em Psicologia e PhD. Atualmente é pesquisador na PUC/RJ, onde atua no Grupo de Pesquisas de Família e Casal.
1Os autores agradecem à professora Çigdem Kagitçibasi pela cessão do material necessário para a adaptação brasileira das escalas. Projeto fi nanciado por Edital Cientista do Nosso Estado da FAPERJ à primeira autora, apoio CNPq à primeira autora (Bolsa de Produtividade 1A) e à segunda (Bolsa de Pósdoutorado Junior), além do apoio da International Society for the Study of Behavioural Development / Jacobs Foundation através da Mentored Fellowship e à FAPERJ (Bolsa de doutorado), concedidos ao terceiro autor
2Endereço para correspondência: Rua Fritz Feigl, 465, 22750-600, Rio de Janeiro-RJ. Tel.: (21) 2447-1588. E-mail: mlseidl@gmail.com