A violência contra meninas e mulheres constitui um grave problema de saúde pública no Brasil e no mundo ( Muñoz & Echeburúa, 2016 ). A Organização Mundial de Saúde define a violência de gênero como qualquer ato de violência contra mulheres que resulte em danos ou sofrimentos físicos, sexuais ou psicológicos e inclui ameaças, coerção ou privação arbitrária da liberdade ( World Health Organization [WHO], 2017 ). Evidências demonstram que a população jovem, entre 16 e 24 anos, é a mais vulnerável ao fenômeno ( Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 2019 ; Harris & George, 2015 ). O Brasil apresenta altas taxas desta violência em decorrência das desigualdades estruturais de poder que se baseiam em gênero, raça e classe e que foram agravadas pela COVID-19 ( WHO, 2021 ).
Para compreender a dinâmica da violência contra meninas e mulheres, é preciso considerar fatores socio-culturais. Dentre estes, encontra-se o gênero, elemento central nas relações sociais e que é compreendido como conceito, categoria de análise e categoria histórica ( Saffioti, 1999 ). Enquanto conceito, pode ser entendido como o conjunto de comportamentos, atitudes, valores, estereótipos e expectativas que são relacionados com a feminilidade e a masculinidade, sendo que essa compreensão se faz a partir de uma determinada cultura e um determinado tempo histórico ( Saffioti, 1999 ). Cabe ressaltar que se trata de um conceito enraizado em construções sociais, políticas, culturais e ideológicas e, desse modo, não há uma definição única do termo ( Davis, 2016 ). A categoria gênero compreende as normativas e papéis relacionados à masculinidade e à feminilidade, os quais fazem parte desse complexo sistema de dominação que contribui para que a violência ocorra.
Entende-se que o período da adolescência e das primeiras vivências de relacionamentos afetivo-sexuais é crucial para a internalização de normativas de expressão de gênero bem como para a construção de modelos de relacionamentos com base nestas normativas ( Murta et al., 2020 ; Oliveira et al. 2014 ). Logo, existe uma importante relação entre crenças e atitudes frente ao gênero e violência. Assim, identificar e analisar crenças que naturalizam e responsabilizam a mulher pela violência sofrida na população adolescente é essencial para construir estratégias de combate ao fenômeno ( Albuquerque, 2019 ). Estudos indicam que indivíduos que aderem mais aos papéis de gênero tendem a demonstrar menos atitudes direcionadas à equidade ( Murnen, 2015 ). E, por consequência, meninos que se engajam menos nessas atitudes e aderem aos papéis de gênero são mais propensos a perpetrar violência sexual, violência no namoro e outras agressões ( Feder et al., 2007 ; Klein et al., 2006 ; McCauley et al., 2014 ; Reidy et al., 2015 ). Além disso, crenças legitima-doras de violência em adolescentes estão associadas com a perpetração de atitudes agressivas ( Anand et al., 2019 ).
Outro fator que se intersecciona com a violência é a faixa etária. Meninas adolescentes estão em maior risco de experienciar violência de gênero, seja em relacionamentos íntimos ou no contexto familiar (FBSP, 2019). Em um estudo realizado por Borges e colaboradores (2020) com a população brasileira, encontrou-se que 76,43% da amostra reportou ter perpetrado alguma expressão de violência no namoro. Já no que diz respeito à vitimização, outro estudo nacional desenvolvido por Arnoud e colaboradores (2023) encontrou que 48% da amostra reportou ter sofrido algum tipo de violência em seus relacionamentos íntimos. Ainda, os estudos indicaram que adolescentes apresentam dificuldade em reconhecer comportamentos abusivos e tendem a legitimar o uso de violência em relações íntimas ( Borges et al., 2020 ; Arnoud et al., 2023 ). E, nesse processo de legitimação, entende-se que a compreensão das normativas referentes à feminilidade e à masculinidade desempenham um papel importante na normalização do fenômeno entre adolescentes brasileiros ( Murta et al., 2020 ).
Apesar disso, existe uma escassez de instrumentos psicométricos que tenham como objetivo investigar o fenômeno na população adolescente. Na literatura internacional, encontrou-se o Questionário de Atitudes frente ao Gênero e à Violência que foi desenvolvido por Díaz-Aguado e Arias (2001) com o objetivo de avaliar as atitudes frente ao gênero e à violência dos adolescentes espanhóis. O instrumento possui quatro dimensões, sendo elas: crenças sexistas sobre diferenças psicossociais e justificação de violência como reação, crenças sobre a fatalidade biológica do sexismo e da violência, conceitualização da violência doméstica como um problema privado e inevitável e, por fim, valorização do acesso das mulheres ao trabalho remunerado fora de casa e às posições de poder e responsabilidade.
O questionário foi utilizado em outros estudos e foram encontradas propriedades psicométricas adequadas. A pesquisa desenvolvida por Macías Seda et al. (2012) , por exemplo, teve como objetivo investigar crenças e atitudes de alunos de Enfermaria de Sevilha sobre a violência de gênero e utilizou o instrumento. As análises de confiabilidade do QAGV encontraram um alpha de Cronbach de 0,87. Além disso, a subescala de crenças sexistas apresentou alpha de 0,92, indicando que esta poderia ser utilizada sozinha como instrumento de investigação deste tópico em específico. Já o estudo desenvolvido por Sosa-Rubi et al. (2017) , que teve como objetivo avaliar o impacto de curto prazo de um programa de prevenção à violência no namoro, encontrou um alpha de 0,80 no pré e no pós teste.
A delegação do governo espanhol contra a violência de gênero realizou um estudo sobre a situação da violência contra as meninas adolescentes no país. Participaram da coleta de dados 13.087 adolescentes, sendo que 6742 se identificavam como meninos e 6345 como meninas. Neste estudo, a estrutura da escala foi dividida em dois fatores: justificação da violência de gênero e justificação da violência reativa e sexismo. Foram encontradas diferenças estatisticamente significativas ( p <0.001) em função do gênero em todas as dimensões da escala, sendo que os meninos apresentaram maior concordância com as colocações sexistas e de justificação da violência, ainda que ambos os grupos tenham apresentado baixas pontuações médias (eta quadrado de 0,03 e 0,07, respectivamente. O alpha na primeira dimensão na amostra foi 0,83 (IC 95%: 0,83−0,84) e na segunda foi 0,75 (IC 95%: 0,74-0,76) ( Díaz-Aguado et al., 2021 ).
Um instrumento psicológico que se propõe a investigar atitudes frente ao gênero e à legitimação de violência nas relações íntimas pode auxiliar a construção de um corpo mais robusto de evidências científicas na população adolescente. Explorar suas percepções a partir de diferentes metodologias pode contribuir para uma compreensão mais aprofundada de como o fenômeno se manifesta e os estudos sobre violência de gênero e adolescência podem contribuir para ações mais efetivas de enfrentamento e prevenção. Instrumentos psicológicos que avaliem construtos associados à perpetração e vitimização podem, inclusive, auxiliar como medidas de acompanhamento e avaliação de efetividade de intervenções preventivas com adolescentes. Apesar disso, não existem instrumentos validados para o contexto brasileiro sobre a temática, o que dificulta a construção de evidências científicas acerca das relações entre atitudes frente ao gênero e legitimação, aceitação, vitimiza-ção e perpetração de violência.
O QAGV foi amplamente utilizado no contexto espanhol ( Díaz-Aguado & Arias, 2001 ; 2021 ; Sosa-Rubi et al., 2017 ), entretanto, suas evidências de propriedades psicométricas fundamentam-se apenas nos índices de confiabilidade, o que indica que outras evidências podem ser investigadas. Considerando que não há, até o presente momento, artigos nacionais sobre a adaptação do QAGV, e tendo em vista seu potencial uso em diversas áreas, o presente estudo teve como objetivo adaptar o instrumento. Para isso, foram investigadas suas propriedades psicométricas, considerando a validade de construto por meio de análises fatoriais confirmatórias e das relações com um construto correlato – os índices de sexismo ambivalente.
Método
Participantes
Participaram do estudo 550 adolescentes com idades entre 16 e 19 anos, sendo que a idade média foi 17 anos ( DP =1 ano). Destes, 66,4% identificavam-se como mulheres cis ( n =362), 22,2% como homens cis ( n =121), 6,6% como pessoas não binárias ( n =36), 2,01% como homens trans ( n = 11), 0,36% como mulheres trans ( n =2) e 2,38% como outros ( n = 13), tais como, gênero fluído, agênero. A idade média daqueles que participaram foi 17 anos ( DP =1,035). A maior parte da amostra se autode-clarou branca (64,3%, n =354), residia em zona urbana (95%, n = 523) e estudava em colégio particular (53,6%, n =295). Em relação à orientação sexual, 34,1% da amostra se identificava como heterossexual, 35,4% como bissexual, 9,8% como indefinido, 6,7% como homossexual, 4,74% como lésbica e 9,8% como outra orientação não citada no questionário sociodemográfico.
Instrumentos
A. Questionário de dados sociodemográficos: composto por perguntas sobre idade, estado de residência, cidade de residência, identidade de gênero, orientação sexual, cor ou raça, nível de escolaridade, classe social de acordo com IBGE, bem como perguntas sobre situações de violência psicológica, física, verbal, sexual e virtual no namoro.
B. Questionário de Atitudes frente ao Gênero e à Violência (QAGV): desenvolvido por Díaz-Aguado e Arias (2001) , consiste em 47 itens nos quais se incluem afirmações sexistas e de justificação da violência. Os adolescentes devem pontuar cada item de acordo com uma escala Likert de 1 a 7, sendo 7 “máximo acordo” e 1 “mínimo acordo”. O questionário divide-se em quatro fatores e no fator 1, no qual encontram-se 28 afirmativas, o alpha encontrado foi 0,9330. No fator 2, composto por oito afirmativas, o alpha foi 0,6932. No fator 3, composto também por oito elementos, o alpha encontrado foi 0,5599. Por fim, no último fator, no qual encontram-se apenas três afirmativas, o alpha foi 0,5458. Alguns exemplos de itens são: “O homem que parece agressivo é mais atraente” e “Ser forte e corajoso é mais importante para os meninos que para as meninas”.
C. Inventário de Sexismo Ambivalente: objetiva avaliar o sexismo ambivalente a partir das subescalas de sexismo hostil e de sexismo benevolente. O inventário é composto por 22 itens e foi originalmente elaborado em língua inglesa por Glick e Fiske (1996) . Foi adaptado para o contexto brasileiro por Formiga et al. (2002) . O instrumento é respondido por meio de uma escala Likert de concordância com os itens a qual varia de 1 (discordo totalmente) a 4 (concordo totalmente). Exemplos de itens são: “Mulheres devem ser queridas e protegidas pelos homens” e “Mulheres procuram poder controlando aos homens”. A escala apresentou índices de ajuste (χ2=( p <0,001); χ2/ gl =25,6; CFI=0,511; TLI=0,44; RMSEA (90% I.C.)=0,310 (0,30 – 0,32)) e confiabilidade satisfatórios na presente amostra (sexismo hostil, α=0,96; ω =0,93; f.c. =0,92; sexismo benévolo, α=0,88, ω =0,82; f.c. =0,94).
Procedimentos
A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética em Pesquisa da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e aprovada sob parecer nº 39455120.9.0000.5336. A coleta foi divulgada a partir das redes sociais ( Instagram e Facebook ) e todos os participantes responderam aos questionários na plataforma Qualtrics. Os indivíduos com 18 e 19 anos preencheram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, já os com 16 ou 17 anos participaram da pesquisa após responderem ao Termo de Assentimento Livre e Esclarecido e seus responsáveis preencherem o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Os dados foram coletados entre maio e junho de 2021. Por se tratar de uma temática sensível, adolescentes e responsáveis foram informados que haveria perguntas sobre violência e que o questionário poderia causar reações psicológicas. Foram informados também que poderiam interromper a participação no estudo a qualquer momento e que eles poderiam contatar a responsável pela pesquisa em busca de suporte psicológico. Ao final do protocolo de coleta, indicou-se a importância de buscar auxílio caso a pessoa participante tenha vivenciado uma situação de violência. Foram listados diferentes serviços gratuitos nacionais a fim de oferecer suporte aos participantes de pesquisa.
O processo de adaptação do QAGV foi realizado a partir das recomendações de Borsa et al. (2012) , de modo que incluiu as seguintes etapas: 1. tradução do instrumento do idioma de origem para o idioma-alvo; 2. síntese das versões traduzidas; 3. avaliação do instrumento pelo público-alvo; 4. avaliação por juízes experts; 5. tradução reversa; 6. estudo-piloto. Na etapa 1, o instrumento foi traduzido do espanhol para o português por dois tradutores bilíngues, sendo um com maior familiaridade com o construto do instrumento e o outro com conhecimento técnico em tradução. Na etapa 2, uma síntese das duas versões elaboradas pelos tradutores foi feita. Na etapa 3 o instrumento foi avaliado pelo público-alvo da escala, ou seja, por adolescentes. O objetivo foi avaliar se os itens do instrumento estavam compreensíveis e adequados e se existia a necessidade de inclusão de novos itens. Essa avaliação foi realizada a partir de entrevistas com cinco adolescentes de diferentes regiões do Brasil. Com base nos comentários dos adolescentes, foram propostos oito itens novos. Um exemplo de item adicionado: “Meninas conseguem mudar meninos agressivos ou violentos se há amor na relação”.
A seguir, na etapa 4, a síntese, bem como as possíveis sugestões de novos itens foram encaminhadas a três experts na área. Os experts avaliaram aspectos como a clareza, a relevância e a representatividade das afirmações que compõem o instrumento, e a necessidade ou não de inclusão de novos itens. Os experts sugeriram algumas mudanças no questionário de modo a torná-lo mais acessível. Um exemplo de item que foi alterado após essa etapa foi: “É aceitável que meninos saiam com muitas meninas, mas não o contrário” para “É aceitável que meninos fiquem com muitas meninas, mas não o contrário”. Na etapa 5, foi conduzida uma tradução reversa da versão em português para o espanhol. Essa tradução foi feita por um tradutor independente e enviada à autora do instrumento original a fim de assegurar a equivalência do conteúdo proposto e a inclusão dos novos itens. A autora do instrumento indicou que os itens foram corretamente traduzidos, autorizou a inclusão dos novos itens adicionados e sinalizou que eles poderiam ser adicionados à versão Espanhola numa possível atualização do questionário. Por fim, no estudo-piloto, 10 adolescentes responderam à versão atualizada do questionário e todos indicaram boa compreensão dos itens.
Análise de dados
Inicialmente, foi realizada uma análise fatorial exploratória, com objetivo de investigar a dimensionalidade da versão brasileira QAGV e avaliar a contribuição dos 47 itens da escala original, assim como dos nove itens desenvolvidos neste estudo. A fim de manter a parcimônia do manuscrito, os resultados da AFE estão disponíveis no material suplementar que pode ser encontrado no repositório OSF, no seguinte link: https://osf.io/crdm8/?view_only=56e30e7b14514c919902c93abccdadc1 . As análises exploratórias foram realizadas com uma parte independente ( n 1 = 276) da amostra total ( n =550).
Após investigar a estrutura fatorial do QAGV de forma exploratória, foram realizadas duas AFC com o objetivo de identificar o modelo mais adequado para o questionário. O primeiro modelo investigou a solução observada na AFE de sete fatores oblíquos de primeira ordem. O segundo modelo investigou o modelo unifatorial, embasado no referencial teórico do QAGV. Considerando que os dados utilizados são ordinais, foi aplicado o método de estimação Weighted Least Squares Mean and Variance-Adjusted (WLSMV). Todas as análises confirmatórias foram realizadas utilizando uma parte independente ( n 2=274) da amostra total ( n =550).
A confiabilidade do QAGV foi avaliada após ter sido identificada a solução fatorial mais adequada para a versão brasileira do questionário. A consistência interna do questionário foi investigada por meio do alpha de Cronbach (α), do ômega (ω) e da fidedignidade composta ( f.c. ).
As evidências de validade externa foram investigadas por meio da modelagem de equações estruturais com as dimensões do Inventário de Sexismo Ambivalente. A fim de demonstrar as evidências de validade convergente, os escores do QAVG devem apresentar relações positivas de magnitude moderada a alta com as dimensões de sexismo hostil e benévolo. Foi avaliado também se o QAVG apresentava evidências de validade discriminante com o Inventário de Sexismo Ambivalente. A evidência de validade discriminante do QAGV seria observada se os valores da Variância Média Extraída (VME) de cada dimensão (QAGV, sexismo hostil, sexismo benévolo) fossem superiores às relações ao quadrado entre os construtos.
Os modelos analisados neste estudo (AFE e AFC) foram avaliados com base nos seguintes índices de ajuste: 1. Qui-quadrado absoluto dividido pelos graus de liberdade (χ2/gl) deve possuir valor inferior a 3; 2. O Comparative Fit Index (CFI) e o Tucker-Lewis Index (TLI) devem apresentar valores superiores a 0,90; 3. Os valores do Root Mean Square Error of Approximation (RMSEA) devem ser inferiores a 0,08, com intervalo de confiança de 90% inferior a 0,10. Todas as análises apresentadas neste estudo foram desenvolvidas por meio do software R Studio versão 1.4.1717 ( R Core Team, 2021 ), utilizando o pacote psych para as análises paralelas e AFE ( Revelle, 2020 ), lavaan ( Rossel, 2012 ) para as análises de modelagem de equações estruturais e o MBESS ( Kelley, 2020 ) para investigar os índices de confiabilidade da escala.
Resultados
A análise da dimensionalidade do QAGV foi realizada em duas etapas. Na primeira etapa, foram desenvolvidas análises exploratórias (Análise Paralela e AFE) para identificar a estrutura mais adequada na escala e a contribuição dos 47 itens da escala original e dos nove itens desenvolvidos neste estudo. Na segunda etapa, foram realizadas AFC para verificar qual solução era mais adequada ao QAGV.
Os achados da análise paralela e da AFE evidenciaram a manutenção de 37 itens, mas a solução de oito fatores de primeira ordem foi considerada inadequada, porque os fatores apresentaram níveis de explicação do construto variando de 5% a 22% (Material Suplementar) e o modelo era inconsistente teoricamente. As análises do conteúdo dos itens e das cargas fatoriais corroboraram que a versão brasileira deveria ser constituída por 37 itens, sendo 29 itens da escala original e oito itens propostos neste estudo. Devido a inconsistência dos resultados da AFE, os baixos níveis de explicação dos fatores, na sobreposição do conteúdo das dimensões e análise teórica dos itens, foi analisado se a estrutura unifatorial seria adequada para o QAGV.
A AFC avaliou a adequação do modelo unidimensional para os 37 itens do QAGV. Os achados demonstraram que os índices de ajuste do modelo unidimensional foram adequados [χ2(629) 887,9 ( p <0,001); χ 2/ gl =1,4; CFI = 0,94; TLI = 0,94; RMSEA (90% I.C.) = 0,039 (0,033 – 0,044)] e a carga fatorial de todos os itens foi superior a 0,40 ( Tabela 1 ), com exceção do item 8. Referente ao item 8, este apresentou baixa carga fatorial e seu conteúdo estava fortemente associado a violência doméstica. Na versão brasileira da QAGV foi observado que os itens com conteúdo fortemente associados às agressões intrafamiliares não foram representativos das atitudes de violência contra o gênero. Desta forma, foi investigado se a solução unidimensional de 36 itens da QAGV apresentaria melhores índices de ajuste, sendo 28 itens da escala original e oito itens propostos neste estudo. Foi observado que os índices de ajuste deste modelo foram satisfatórios (χ2(594) 854,2 ( p <0,001); χ2/ gl =1,4; CFI = 0,94; TLI = 0,94; RMSEA (90% I.C.)=0,040 (0,034 – 0,046)) e que todos os itens apresentaram carga fatorial superior a 0,40 ( Tabela 1 ). A solução unidimensional, portanto, se constitui como a estrutura adequada para a versão brasileira da QAGV de 36 itens.
Tabela 1 Resultados das duas AFC realizadas
M1 - 37 itens | M2 - 36 itens | M1 - 37 itens | M2 - 36 itens | ||
---|---|---|---|---|---|
I. | C. F. | C. F. | 31 | 0,68 | 0,68 |
3 | 0,60 | 0,60 | 33 | 0,88 | 0,88 |
4 | 0,56 | 0,56 | 36 | 0,56 | 0,56 |
6 | 0,47 | 0,47 | 38 | 0,71 | 0,71 |
8 | −0,18 | 39 | 0,84 | 0,84 | |
11 | 0,83 | 0,83 | 40 | 0,55 | 0,55 |
13 | 0,64 | 0,64 | 41 | 0,86 | 0,86 |
14 | 0,50 | 0,50 | 42 | 0,85 | 0,85 |
17 | −0,5 | −0,50 | 44 | 0,81 | 0,81 |
18 | 0,43 | 0,43 | 45 | 0,90 | 0,90 |
19 | 0,77 | 0,77 | 46 | 0,46 | 0,46 |
20 | −0,57 | −0,50 | 48 | 0,52 | 0,52 |
21 | 0,83 | 0,83 | 49 | 0,83 | 0,83 |
22 | 0,81 | 0,81 | 50 | 0,41 | 0,41 |
24 | 0,37 | 0,37 | 52 | 0,72 | 0,72 |
27 | 0,93 | 0,93 | 53 | 0,85 | 0,85 |
28 | 0,85 | 0,85 | 54 | 0,53 | 0,53 |
29 | 0,91 | 0,91 | 55 | 0,15 | 0,15 |
30 | 0,74 | 0,74 | 56 | 0,57 | 0,57 |
Foi observado que os índices de confiabilidade da solução unidimensional da QAGV são satisfatórios. Os valores do alpha de Cronbach foi 0,95, o ômega obteve o valor de 0,88 e a fidedignidade composta 0,96. Nesta solução, os itens 48, 49, 50, 51 e 52, incluídos para adequação cultural do instrumento, se mantiveram. As evidências de validade externas demonstraram que o QAGV apresentou relações positivas de magnitude moderada a alta com as dimensões de sexismo hostil e benevolente ( Tabela 2 ). Foi observado que o instrumento apresentou validade discriminante em relação aos níveis de sexismo hostil e benevolente, tendo em vista que os valores da VME de todas as variáveis foram maiores do que suas correlações quadradas. Esses achados evidenciam que o construto avaliado pelo QAGV se diferencia do sexismo benevolente e hostil.
Tabela 2 Relações entre Atitudes Frente ao Gênero e Violência, Sexismo Benevolente e Sexismo Hostil
Variáveis | M (DP) | VME | 1 | 2 |
---|---|---|---|---|
1. QAGV | 1,7 (0,5) | 0,86 | 0,34 | 0,53 |
2. SB | 2,0 (0,6) | 0,79 | 0,59* [0,53 - 0,65] | 0,34 |
3. SH | 1,6 (0,7) | 0,93 | 0,73* [0,69 - 0,77] | 0,59* [0,53 - 0,65] |
Nota. * p <0,001; M =Média; DP =Desvio-padrão; VME=Variância Média Extraída; QAGV=Questionário de Atitudes Frente ao Gênero e Violência; SB=Sexismo Benevolente; SH=Sexismo Hostil; [ ]=Intervalo de Confiança de 90% das correlações entre os construtos
Discussão
O objetivo deste estudo foi adaptar o Cuestionario de Actitudes Hacia el Género y la Violencia (CAGV) para o contexto brasileiro com base em sua estrutura interna e análise de suas relações com construtos a ele correlatos, bem como a precisão do instrumento. Os resultados encontrados demonstraram que o questionário é um instrumento adequado para avaliar as atitudes frente ao gênero e à violência da população adolescente entre 16 e 19 anos no país.
Foram sugeridos 11 novos itens no processo de adaptação transcultural, sendo que oito deles constituíram a versão final da QAGV tendo em vista que as altas cargas fatoriais evidenciam a contribuição destes na explicação do construto investigado. Os itens dizem respeito às situações de assédio, ciúmes, mitos sobre amor romântico e também manifestações de controle a partir das redes sociais e celular. Tais aspectos têm se mostrado relevantes para a compreensão do fenômeno da violência segundo evidências empíricas nacionais ( Oliveira, 2014 ; Murta et al., 2020 ). Assim, os novos itens tiveram como objetivo considerar o contexto brasileiro e expressões culturais mais recentes do fenômeno, considerando a avaliação dos experts e sugestões dos próprios adolescentes (público-alvo da escala).
Ainda, a versão brasileira do questionário apresentou uma estrutura unifatorial, de modo que se diferenciou do modelo proposto no estudo original que era de quatro fatores de primeira ordem ( Díaz-Aguado & Arias, 2001 ). Esse resultado indica que o instrumento não diferenciou as especificidades das dimensões do construto atitudes frente ao gênero e à violência, compreendendo-o como um construto único e geral. Da escala original, foram excluídos 19 itens. As alterações e exclusões de itens foram validadas pela autora do instrumento original, que autorizou a nova estrutura proposta para a versão brasileira do Questionário de Atitudes frente ao Gênero e à Violência. Além disso, uma versão reduzida do instrumento facilita sua ampla aplicação em diferentes contextos.
Entende-se que mudanças nos itens que compõem a escala, correspondem a diferenças socioculturais entre Espanha e Brasil, tendo em vista que crenças sobre gênero e violência refletem condições históricas, econômicas e sociais ( Saffioti, 1999 ). No Brasil, o patriarcado é, como diz Lélia Gonzalez (2020) , capitalista, dependente, racista e heterossexual. Isso indica que a opressão das meninas e mulheres brasileiras e latinoamericanas é atravessada pela raça, classe e orientação sexual e que tudo isso se dá numa região periférica ao capitalismo e marcada pela colonização e exploração decorrente do norte global. A Espanha, por outro lado, se trata de um país europeu com um histórico colonizatório que ainda atravessa a sua constituição enquanto nação. Assim, ainda que ambos os países vivenciem as consequências materiais e simbólicas decorrentes do patriarcado, estas não se expressam da mesma maneira. As crenças sobre gênero e violência se constituem a partir do contexto sociocultural e econômico, de modo que, apesar de existirem semelhanças nas experiências espanholas e brasileiras, os valores patriarcais são experienciados de modos diferentes.
A partir dos achados das análises fatoriais exploratórias e da análise teórica dos itens, chegou-se a uma estrutura unidimensional, a qual foi testada a partir de Análises Fatoriais Confirmatórias (AFC). A solução unidimensional de 36 itens encontrada na versão brasileira apresentou índices de confiabilidade satisfatórios, bem como uma boa consistência teórica. Atitudes frente ao gênero e violência são fortemente associadas teoricamente: espera-se que a maneira a qual uma pessoa compreende e se porta frente ao gênero influencie também suas atitudes em relação à violência contra meninas e mulheres. A literatura sobre a temática aponta que indivíduos que concordam com normativas tradicionais de gênero, os quais contribuem para a manutenção da subordinação feminina, tendem a engajar mais em atitudes violentas ( Feder et al., 2007 ; Klein et al., 2006 ; McCauley et al., 2014 ; Murnen, 2015 ; Reidy et al., 2015 ). Ainda, no Brasil, a Lei Maria da Penha compreende a violência doméstica contra mulheres a partir de uma compreensão de gênero, ou seja, levando em consideração o papel que as iniquidades de gênero desempenham na manifestação da violência ( Brasil, 2006 ). As relações de gênero (e as compreensões que se constituem a partir destas) subsidiam definições e marcos legais acerca da violência. Logo, faz sentido com a compreensão teórica dos fenômenos que o instrumento adote uma estrutura unifatorial.
Além disso, as relações encontradas nas análises de validação convergente externa das atitudes frente ao gênero e à violência e o sexismo ambivalente (hostil e benevolente) se mostraram condizentes ao encontrado no restante da literatura científica. De um modo geral, adolescentes com índices mais elevados de sexismo hostil e benevolente, apresentam atitudes menos equânimes frente ao gênero ( Feder et al., 2007 ; Klein et al., 2006 ; McCauley et al., 2014 ; Reidy et al., 2015 ) e maiores índices de legitimação de violência e comportamentos agressivos ( Anand et al., 2019 ). As normativas referentes à feminilidade e à masculinidade desempenham um papel importante na normalização do fenômeno entre adolescentes brasileiros ( Murta et al., 2020 ), de modo que a concordância com crenças sexistas pode ser um fator de risco relevante para perpetração e vitimização de violência.
O presente estudo contribui à literatura científica ao apresentar evidências iniciais de validade do QAGV Os resultados encontrados indicaram que o instrumento está adaptado para o contexto sociocultural brasileiro e possui propriedades psicométricas adequadas para avaliar atitudes frente ao gênero e à violência na população adolescente de 16 a 19 anos. O instrumento pode contribuir para a identificação de fatores de risco frente à violência no namoro e nas relações íntimas na adultez em adolescentes. Estudos nacionais encontraram altos índices de perpetração e vitimização ( Borges et al., 2020 ; Arnoud et al., 2023 ), entretanto, ainda existe escassez no que diz respeito à compreensão de pre-ditores da violência. Compreender melhor as atitudes relacionadas às concepções de gênero e de legitimação da violência pode subsidiar intervenções de enfrenta-mento e prevenção ao fenômeno na adolescência, o qual se configura como um importante problema de saúde pública ( Muñoz & Echeburúa, 2016 ). Nesse sentido, o instrumento também pode ser utilizado para a investigação da efetividade de intervenções preventivas com adolescentes, monitorando alterações nas crenças legitimadoras de violência antes e após participação em programas específicos.
Apesar disso, apontam-se algumas limitações referentes à amostra. Os participantes que responderam ao questionário são predominantemente brancos, o que indica que não são representativos de toda a população brasileira. Assim, os achados encontrados neste estudo devem ser considerados com cautela e não generalizados de maneira indiscriminada. Além disso, o questionário, por ser uma medida de autorrelato e investigar uma temática sensível, pode ter sofrido vieses relacionados à desejabilidade social. Estudos futuros podem investir em uma amostra ainda mais diversa, na investigação de outros componentes do questionário, como a sua invariância frente a diferentes grupos de comparação e no controle da desejabilidade social. Além disso, também é possível realizar estudos que tenham como objetivo investigar o comportamento do instrumento em grupos de outras faixas etárias, como a população adulta.
O Questionário de Atitudes frente ao Gênero e à Violência pode ser utilizado por pesquisadores com a finalidade de explorar as atitudes dos adolescentes frente ao gênero e à violência em diferentes contextos. O formato de questionário facilita a aplicação em locais coletivos como escolas, serviços de saúde, assistência, justiça, de modo que não demanda uma coleta individual. A escala também pode ser utilizada em estudos mistos, de modo a triangular dados encontrados com metodologias qualitativas e/ou fornecendo um panorama geral das atitudes dos adolescentes que depois pode ser mais bem aprofundado a partir de entrevistas e grupos focais. Além disso, profissionais das áreas da saúde e educação também podem fazer uso do questionário a fim de subsidiar intervenções com adolescentes sobre violência interpessoal e seus atravessamentos com as desigualdades de gênero.