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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.16 no.2 Belo Horizonte ago. 2010

 

ARTIGOS

 

A teoria da autodeterminação e as influências socioculturais sobre a identidade

 

Self-determination theory and sociocultural influences on identity

 

La teoría de la autodeterminación y las influencias socioculturales en la identidad

 

 

Marli Appel-Silva*; Guilherme Welter Wendt **; Irani Iracema de Lima Argimon ***

 

 


RESUMO

A teoria da autodeterminação (self-determination theory – SDT) foi elaborada em 1981, por Richard M. Ryan e Edward L. Deci, para estabelecer uma psicologia com responsabilidade social e política, de maneira a delinear variáveis que pudessem ser operacionalizadas, inclusive em nível de políticas públicas, com foco em saúde e bem-estar psicológicos. O objetivo desse estudo é apresentar os conceitos principais da SDT e as pesquisas realizadas com base nela. A análise de publicações encontradas ao longo de 30 anos comprovaram a hipótese principal de que um comportamento autodeterminado é fator de saúde psicológica. Por fim, conclui-se que os conceitos dessa teoria podem ser aplicados com relativa facilidade e baixo custo em meios educacionais ou que operem com os cuidados com a saúde da população.

Palavras-chave: teoria da autodeterminação; bem-estar psicológico; motivação; internalização; cultura.


ABSTRACT

The self-determination theory – SDT was elaborated by Richard M. Ryan and Edward L. Deci in 1981, aiming at establishing a psychology with social and political responsibility, so as to define variables to be operated, including public policies purposes, focused on psychological health and well-being. This article presents the main concepts of SDT and some studies based on that theory. The basic hypothesis of STD of a self-determined behavior being a factor of psychological health was confirmed by research conducted for more than 30 years. One concludes that those theoretical concepts could easily be applied, at low cost, to educational institutions or public health agencies.

Keywords: self-determination theory; psychological well-being; motivation; internalization; culture.


RESUMEN

La Teoría de la Autodeterminación (SDT), elaborada en 1981 por Richard M. Ryan y Edward L. Deci, con el objetivo de establecer una psicología con responsabilidad social y política, a fin de definir las variables que pudieran ponerse en práctica, incluso por políticas públicas, con fines de salud y de bienestar psicológico. En este artículo, presentamos los conceptos principales del SDT y las investigaciones realizadas con base en esta teoría. El análisis de las publicaciones encontradas, a lo largo de 30 años, confirmaron la hipótesis principal de que el comportamiento de autodeterminación es un factor de salud pública. Se obtiene como conclusión que los conceptos de esta Teoría pueden aplicarse con relativa facilidad y bajos costes en los medios educacionales que trabajen con los cuidados de la salud de la población.

Palabras clave: teoría de la autodeterminación; bienestar psicológico; motivación; internalización; cultura.


 

 

Introdução

A teoria da autodeterminação (SDT) foi elaborada no ano de 1981 por Richard M. Ryan e Edward L. Deci, atuais professores do Departamento de Clínica e Ciência Social, do Departamento de Psicologia da Universidade de Rochester, Estados Unidos, com a finalidade de responder às questões epistemológicas e éticas do paradigma eudaimônico, que considera a saúde e o bem-estar psicológicos como consequentes do compromisso com os desafios e propósitos da vida.

Segundo Wehmeyer (1992), a autodeterminação representa um conjunto de comportamentos e habilidades que dotam a pessoa da capacidade de ser o agente causal em relação ao seu futuro, ou seja, de ter comportamentos intencionais. Dessa maneira, essa teoria tem como objeto de estudo as condições do contexto social que facilitam a saúde psicológica, bem como apresenta como hipótese principal a noção de que o bem-estar psicológico pode ser alcançado a partir da autodeterminação (Ryan & Deci, 1987).

Nesse sentido, um comportamento, para ser considerado autodeterminado, necessita estar acompanhado de quatro premissas básicas: ser autônomo, autorregulado, ser expressão de um empoderamento psicológico e resultar em autorrealização (Wehmeyer, 1999).

O comportamento autônomo diz respeito às necessidades, aos interesses e às habilidades da pessoa. A autorregulação referencia ao uso de estratégias para o alcance de objetivos, da resolução de problemas e da tomada de decisões, bem como estratégias para uma aprendizagem contínua. O empoderamento psicológico relaciona-se ao controle percebido em domínios cognitivos, da personalidade e motivacionais. Por sua vez, a autorrealização é a tendência de formar um curso significante de vida com base em propósitos pessoais (Wehmeyer, 1999).

Além de atender ao paradigma eudamônico, a SDT procurou suplantar uma visão individualista ao estudar a pessoa em uma cultura através das gerações; estabeleceu-se como uma teoria ecológica por enfocar a pessoa em interação ativa com o ambiente; denominou-se como dialética pelo fato de priorizar o vínculo pessoa e contexto como fator da promoção da saúde ou mesmo da vulnerabilidade desta (Deci & Ryan, 1991).

A SDT pautou-se, ainda, em uma visão de ser humano tanto heterodeterminado como autodeterminado, ou seja, influenciado pelas condições biológicas e socioculturais, porém capaz de modificar o contexto em que se insere (Deci & Ryan, 1991; Ryan & Deci, 2000a; Deci & Ryan, 2002). A SDT opera com quatro miniteorias desenvolvidas através por pesquisas em laboratório e de campo: teoria das necessidades básicas, teoria da avaliação cognitiva, teoria das orientações de causalidade e teoria da integração organísmica (Deci & Ryan, 2002). Vamos, a seguir, apresentar os conceitos principais da SDT, bem como divulgar alguns estudos orientados por ela.

 

Teoria das necessidades básicas

A SDT parte do pressuposto de que a pessoa é, quando bem constituída biologicamente, propensa ao desenvolvimento; à integração dos elementos psíquicos, de forma a surgir um senso de eu (self); e à interação com uma estrutura social maior. Essas propensões surgem das necessidades intrínsecas de autonomia psicológica, competência pessoal e vínculo social (Ryan & Deci, 2000b).

A necessidade de autonomia é definida como o imperativo de ações e decisões em conformidade com os valores pessoais e com um nível alto de reflexão e consciência. A autonomia, para a SDT, não tem relação com o sentido semântico usado no senso comum, mas se traduz em um “senso de eu”, que diz respeito à noção da pessoa individual, singular e distinta das outras (Sheldon, Ryan, Deci & Kasser, 2004).

A necessidade de competência pessoal, por sua vez, está relacionada à adaptação ao ambiente e se refere à aprendizagem de um modo geral e também ao desenvolvimento cognitivo. Essa necessidade engloba desde a procura da sobrevivência, a execução de atividades práticas, a exploração do ambiente até a competência em uma participação social efetiva (Deci & Ryan, 2000; Sheldon & Bettencourt, 2002).

Da necessidade de vínculo social, origina-se a procura por relacionamentos com outras pessoas, grupos ou comunidades, em busca da atividade de amar e ser amado. Dessa necessidade, origina-se, também, a preocupação, a responsabilidade, a sensibilidade e o apoio nos relacionamentos afetivos. Essa necessidade é importante para a aquisição dos regulamentos sociais (normas, regras e valores), pois é pelos vínculos com os outros que ocorre a aprendizagem (Deci & Ryan, 2000).

O objetivo final das necessidades intrínsecas é a integração da pessoa ao ambiente social, porém de maneira coerente com os valores culturais em que ela se insere. Porquanto, essas necessidades levam a pessoa a lidar com as múltiplas variáveis do contexto; ter segurança e intimidade com os outros; auto-organizar o seu comportamento, o que inclui uma tendência à coerência interna (Deci & Ryan, 1990).

As três necessidades intrínsecas apresentam equifinalidade, ou seja, elas são interdependentes e o desenvolvimento de uma gera o desenvolvimento das outras (Deci & Ryan, 2002). Para que as necessidades intrínsecas possam se desenvolver adequadamente, é necessário um contexto cultural suportivo, que disponha de nutrientes para o atendimento sistemático dessas necessidades ao longo da vida, principalmente na infância, bem como uma constituição biológica adequada (Ryan & Deci, 2000a). Um contexto suportivo representa o apoio requerido ou os recursos retirados do ambiente, chamados de nutrição: o que deve ser obtido por um organismo vivo para manter o crescimento, a integridade e saúde (Ryan & Deci, 2000a).

 

Teoria da integração organísmica

Para a SDT, o processo de socialização ocupa papel central e ocorre desde o processo de internalização. A socialização é um processo global pelo qual os regulamentos externos tornam-se internos à pessoa pela aprendizagem, permitindo a participação e a pertença em determinada cultura (Maccoby, 1984). O processo de internalização é uma aquisição dos regulamentos do meio sociocultural por parte da pessoa (Ryan, 1993).

A SDT tem como hipótese que a internalização ocorre com base em processos que vão diferenciar o tipo de internalização e de regulamentos internos, que são a introjeção e a integração (Sheldon, Ryan & Reis, 1996). “A introjeção refere-se a uma parcial ou subotimização da internalização, resultando em um controle regulatório interno; e a integração é uma ótima internalização, resultando em um comportamento autodeterminado” (Deci, Eghrari, Patrick & Leone, 1994, p. 120) (tradução do autor).

A integração é um processo proativo e racional, pela qual a pessoa precisa significar os regulamentos externos apreendidos (Deci et alii, 1994). Assim, um contexto propício para a socialização da criança e do jovem, a fim do desenvolvimento de comportamentos autônomos, é o que demonstre o comportamento desejável, mantenha a possibilidade de reflexão e considere a perspectiva deles sobre os valores implícitos a esses comportamentos (Assor, Vansteenkiste & Kaplan, 2009; Deci & Ryan, 1990).

Para a SDT, a linguagem que faz pensar e refletir é também comportamento, porque é ação, transforma o contexto. Como todo comportamento, a linguagem também carrega um juízo de valor, mesmo que implicitamente. Portanto, não existe comportamento sem juízo de valor associado, bem como todo juízo de valor só tem sentido dentro da cultura na qual a pessoa está inserida (Brown & Ryan, 2003).

Contemporaneamente, as sociedades são complexas e apresentam diversidades de juízo de valores, muitos deles contraditórios entre si, dificultando o processo de internalização (Gagné & Deci, 2005). Nem sempre os regulamentos externos são adequadamente internalizados e, muitas vezes, uma gama de valores adquiridos pode ser dissonante cognitivamente, ou seja, contraditórios entre si (Deci & Ryan, 1991).

De acordo com Assor, Roth e Deci (2004), as pesquisas realizadas pelos fundadores da SDT e respectivos seguidores mostraram tendências preditivas entre o desempenho com fracassos e o processo de dissonância cognitiva. Este pode ocasionar consequências na atribuição de valor próprio pela pessoa (autoestima), com possíveis repercussões em saúde e bemestar psicológicos (Deci & Ryan, 1995; Ryan & Brown, 2003).

Além do mais, quando os valores não são consistentemente internalizados, os comportamentos tendem à heterodeterminação, ou seja, a serem executados apenas quando existir a regulação externa (Deci & Ryan, 1990). Para que o processo de internalização ocorra a partir da integração, é necessário que os valores associados aos regulamentos externos sejam congruentes e tenham coerência com os demais valores e necessidades da pessoa, evitando a dissonância cognitiva, a fim de conferir sentido a esses regulamentos. A coerência é a conexão de um valor com um conjunto de outros valores pessoais e a congruência é a vinculação com as necessidades pessoais (Sheldon & Kasser, 1995).

Portanto existe um contínuo possível de internalização dos regulamentos externos que pode marcar estilos comportamentais específicos à pessoa, desde autodeterminados até heterodeterminados. Porém uma única pessoa pode ter regulamentos externos internalizados a partir da integração, que se tornarão valores pessoais dela, acreditando neles; como também podem existir regulamentos externos não estão bem internalizados, a partir da introjeção, que se traduzirão em comportamentos através do controle externo, causando dissonância cognitiva. Além dessas duas possibilidades, é passível a existência de regulamentos externos não internalizados da cultura de pertença da pessoa, em que ela não acreditará neles e não se comportará facilmente de acordo com esses preceitos (Deci & Ryan, 2002).

Dessa forma, o processo de internalização tem modalidades reguladoras, a saber: não regulação, regulação externa, regulação introjetada, regulação identificada, regulação integrada e regulação intrínseca (Assor, Vansteenkiste & Kaplan, 2009; Deci & Ryan, 2000). A não regulação é consequência da falta da internalização de reguladores externos específicos ao comportamento a ser desempenhado. Essa forma de regulação suscita comportamentos desorganizados, impulsivos, ou à passividade, com o alcance de resultados insatisfatórios para a pessoa, podendo associar-se a sentimentos de frustração e depressivos (Deci & Ryan, 1990).

A regulação introjetada é uma parcial a internalização dos regulamentos externos, que não foram integrados ao self e, portanto, não motiva a pessoa. Esse tipo de regulação ocorre devido ao fato de que o contexto não propiciou a pessoa uma efetiva agregação dos regulamentos externos ao seu self, ou melhor, ao conjunto de outros valores internalizados e integrados por ela, por diversos motivos que compreendem pressões ou sanções para a aquisição dos regulamentos (Williams & Deci, 2004). Os comportamentos relacionados aos valores introjetados só ocorrerão enquanto houver um controle externo que leve a pessoa à ação (Deci & Ryan, 2000).

A regulação identificada é também uma parcial à internalização dos regulamentos externos, porém melhores integrados ao self da pessoa do que a regulação introjetada. Essa forma de regulação faz com que a pessoa se comporte a partir de situações internas, tais como sentimentos de culpa, vergonha e orgulho, geradas quando a pessoa decide tomar determinadas ações devido a situações contingenciais, pelas quais os valores associados não são os acreditados pela pessoa (Deci & Ryan, 2000).

Na regulação integrada, a pessoa internalizou e integrou completamente os regulamentos externos, que passaram a fazer parte de seu self, com concordância com outros valores pessoais. Essa regulação gera motivação e comportamentos autodeterminados. Porém os comportamentos relacionados, mesmo não gerando satisfação em si, poderão trazer benefícios que estejam em consonância com os valores pessoais. Por exemplo, o aluno que estuda com afinco para tirar uma boa nota em um prova. Ele considera os valores associados ao estudo importantes, mas o seu objetivo, e a satisfação concomitante, não são com o ato de estudar em si, mas se relaciona ao seu desempenho acadêmico (Deci & Ryan, 2000).

A regulação intrínseca refere-se a valores internalizados e integrados satisfatoriamente e de forma congruente com os demais valores da pessoa. O comportamento é intencional, e a própria ação gera satisfação para a pessoa, não sendo necessários reguladores externos para que ocorra ação. Essa regulação está diretamente associada às necessidades intrínsecas (Assor, Vansteenkiste & Kaplan, 2009; Deci & Ryan, 2000).

Uma vez que o processo de socialização é um dos aspectos constituintes do desenvolvimento das necessidades intrínsecas, os valores pessoais representam a base orientadora da expressão dessas necessidades em forma de objetivos pessoais. Podemos dizer, de uma maneira geral, que os grandes objetivos pessoais se pautam na busca de competência, autonomia e vínculo social (Sheldon, Ryan, Deci & Kasser, 2004). Entretanto, esses objetivos se transformam em ações a partir do processo de motivação, conceito que abordaremos a seguir.

 

Teoria de avaliação cognitiva

Essa miniteoria estuda as motivações básicas e as diferenças individuais nas motivações. Para a SDT, a motivação é a força que mobiliza a pessoa a interagir no ambiente. Portanto as necessidades básicas impulsionam a pessoa, pela motivação, a ação no contexto em que vive (Ryan & Deci, 2000).

Existe a motivação extrínseca e intrínseca. A motivação extrínseca é aquela em que a pessoa é movida por condições externas a ela, sejam benefícios ou punições, mas que a ação por si só não a satisfaça. A motivação intrínseca é quando o que move a pessoa para a ação são motivos internos baseados em necessidades intrínsecas e a gratificação da pessoa é pela ação em si, sem que sejam necessários benefícios externos como impulsionadores (Assor, Vansteenkiste & Kaplan, 2009).

A motivação intrínseca e a extrínseca formam um contínuo, que vai desde a falta de motivação, passando por vários níveis da motivação extrínseca, até chegar à motivação intrínseca (Deci & Ryan, 1985), conforme mostra a figura 1 (contínuo dos estilos regulatórios). A diferenciação das modalidades de motivação se dá pelo processo de internalização, por meio da introjeção e da integração dos regulamentos externos.

Quando um regulamento externo não foi internalizado, ele não forma um valor interno que motive a pessoa à ação. Assim, a pessoa não sente motivação para ter os comportamentos relativos a esse regulamento, pois este não tem sentido e significado para ela. Esse estado de falta de intenção para agir é denominado de amotivação. Nele, a ação é realizada apenas contingencialmente para cumprir demandas externas. A amotivação relaciona-se ao processo de não regulação (Deci & Ryan, 2002).

Entretanto quando os regulamentos externos são internalizados por introjeção, tornando-se valores pessoais acreditados ou relativamente acreditados, haverá diferenciadas modalidades de motivação extrínseca. A primeira delas denomina-se motivação extrínseca com regulação introjetada e ocorre quando a ação é realizada sem que esteja em consonância com os valores da pessoa, mas para agradar alguém ou mesmo para evitar maiores aborrecimentos ou punições (Deci & Ryan, 2002).

A motivação extrínseca com regulação por identificação é a segunda modalidade de motivação extrínseca e ocorre quando houve uma avaliação prévia, por parte da pessoa, das condições do contexto e ela então decidiu que a ação era momentaneamente conveniente. Essa motivação vincula-se à regulação identificada (Deci & Ryan, 2002).

Como terceira modalidade de motivação, temos a motivação extrínseca por integração. Nesta, a ação é habitualmente tomada pela pessoa e interpretada como consonante com seus valores. Ainda é considerada extrínseca porque a ação em si não tem significado para a pessoa, mas sim o que ela alcançará com a ação. A regulação associada a essa forma de motivação é a integrada (Deci & Ryan, 2002).

Por fim, temos a motivação intrínseca. Esta acontece quando a pessoa age em consonância com motivos internos baseados nas necessidades intrínsecas (autonomia, competência e vínculo social). Essa modalidade de motivação ocorre desde objetivos estipulados como significativos para a pessoa, sendo que a ação em si é percebida como recompensadora para ela, tendendo a gerar satisfação e bemestar. Essa motivação relaciona-se à regulação intrínseca (Assor, Vansteenkiste & Kaplan, 2009; Assor, Roth & Deci, 2004).

A importância do estudo dessas modalidades de motivação, segundo a SDT, é pelo fato de que a pessoa com uma internalização de valores mais consistente demonstra uma motivação mais integrada ao seu self e, portanto, revela comportamentos mais efetivos, melhor inserção grupal, maior persistência, bem como lida melhor com os fracassos eventuais, além da tendência em apresentar maior saúde e bem-estar psicológico (Ryan & Deci, 2000a, 2000b).

 

Teoria das orientações de causalidade

A SDT delineia um modelo teórico para estilos reguladores (figura 1: contínuo dos estilos regulatórios), com divisões que são baseadas na integração entre as necessidades básicas e a internalização dos regulamentos sociais, de forma a definir domínios entre os tipos de motivação, de regulação e causalidade, que formam estilos reguladores ou que orientam o grau de comportamento autodeterminado da pessoa (Couchman & Ryan, 1999).

Existem três desses estilos reguladores, propostos por Ryan e Deci (1987), conforme indica a figura 1. A primeira delas é a orientação impessoal, há tendências a comportamentos sem orientação intencional. No contínuo da autodeterminação, remete-se ao comportamento sem intencionalidade, amotivado, à não regulação e ao lócus de controle impessoal. Pessoas com alta orientação impessoal tendem à ansiedade e a sentimentos de ineficácia, não acreditando que possam mudar o contexto (Kasser & Ryan, 1996).

Já no segundo estilo regulador proposto, ou seja, a orientação controlada, o comportamento é dirigido por controle externo, e a ação é conduzida para adquirir benefícios ou até mesmo para fugir de consequências avaliadas como aversivas. Esse estilo regulador remete a comportamentos com um nível mais baixo de autodeterminação, à motivação extrínseca, à convicção de que a pessoa nem sempre pode dominar os resultados dos fatos e à regulação introjetada e externa. As pessoas com alta orientação controlada, de acordo com Kasser e Ryan (1996), tendem a focar-se mais no sucesso financeiro, na promoção da autoimagem e na popularidade, podendo agir mais em consonância com o que o meio social determina.

Já na orientação autônoma, por sua vez, o comportamento é norteado por valores endossados por interesses pessoais e pela motivação intrínseca. Esse estilo regulador abarca a motivação extrínseca com regulação integrada (portanto bem-integrada) e a motivação intrínseca com a regulação intrínseca. Uma pessoa com uma alta tendência à orientação autônoma está propensa a maior iniciativa, a busca de atividades que lhe pareçam interessantes e desafiadoras, à consecução de objetivos pessoais, além de apresentar convicção de que pode controlar os resultados dos fatos (lócus de controle interno) e um maior nível de responsabilidade com a própria ação (Kasser & Ryan, 1996). Observamos que esse estilo regulador apresentou nas pesquisas um indicador positivo de saúde mental e bem-estar psicológico (Sheldon & Elliot, 1999).

 

Self

Para a SDT, não existem estruturas mentais, mas um self que tem origem orgânica, junto com as necessidades intrínsecas, e que tem a função de organização dos processos cognitivos, afetivos e comportamentais, além de integração entre as necessidades intrínsecas e a internalização dos regulamentos sociais. Os regulamentos que não foram integrados não são considerados pertencentes ao self (Deci & Ryan, 2002).

Como parte do self, o ser humano desenvolveu um aparato diferencial denominado de consciência. Esta permite o controle dos sentimentos e comportamentos; a procura pela melhor nutrição; a responsabilidade com consigo mesmo, com os outros e com a sociedade (Brown e Ryan, 2003).

Assim, o self confere significado às informações que tenham consonância com os conteúdos internalizados e integrados pela pessoa. Para a SDT, o processo de conferir significado não é estruturalmente configurado; é um jogo de conteúdos, com base na consciência, no qual há uma verificação das informações e uma busca de coerência entre elas de acordo com as crenças e os valores da pessoa (Deci & Ryan, 2002).

Quanto maior é a análise e inspeção dos conteúdos internalizados, mais a pessoa encontrará significados entre eles, baseada em sensos de vinculação com grupos de pertença e até com a humanidade de forma geral; realização pessoal, que pauta o projeto de vida; e agência pessoal, que diz respeito à capacidade de mudanças do contexto e dos vínculos sociais; bem como a tomada de decisões e sua respectiva valoração das consequências (Ryan & Deci, 2000b; Devine, Camfield & Gough, 2006). Portanto o self é um construto fundamental para a SDT, pois é base da personalidade e da autodeterminação.

 

Contextos de suporte à autonomia e à autodeterminação

Podemos considerar que, para a SDT, o ser humano é um organismo que só pode sobreviver e se desenvolver de uma maneira ótima em um contexto sociocultural (Devine, Camfield & Gough, 2006). Se esse contexto responder às suas necessidades de nutrientes de maneira satisfatória ao longo da vida e ele congenitamente tiver tendência a um ótimo desenvolvimento, ele o terá. Nessa perspectiva, a pessoa só pode fazer frente ao contexto se tiver tido oportunidades prévias suficientes (Deci et alii, 2001).

A cultura, portanto, é uma das fontes de nutrientes centrais, já que ela é o conjunto de regulamentos da sociedade que será internalizado pela pessoa. São os regulamentos que darão suporte e orientação para a expressão da motivação e das necessidades intrínsecas, propiciando com que a pessoa desenvolva objetivos pessoais para a sua vida (Ryan et alii, 2005).

Um contexto suportivo à autonomia significa um ambiente em que a pessoa possa exercitar as próprias escolhas, bem como internalizar e integrar os regulamentos externos (Deci & Ryan, 1985; Brown & Ryan, 2004). De acordo com Reeve (2004, 2006), um contexto suportivo à autonomia engloba baixo nível de controle, tais como recompensas e castigos; possibilidade de participação; compreensão sobre os sentimentos negativos que surgem quando é necessário realizar uma tarefa difícil; e o desenvolvimento de um sentido, de razões para que as pessoas se engajem em comportamentos esperados, adquiridos quando a pessoa negocia e escolhe os valores grupais e sociais a serem seguidos.

De tal modo, para um ambiente ser suportivo, os controles têm que, em algum nível, serem negociados entre as pessoas do grupo de pertença (Vansteenkiste, Sierens, Soenens, Luyckx & Lens, 2009; Assor, Roth & Deci, 2004; Williams & Deci, 2004). Segundo Deci e Ryan (1991), para que a necessidade de vínculo social seja atendida, a pessoa precisa perceber que há um real interesse do grupo em relação a ela e um genuíno apoio às dificuldades dela, seja no contexto familiar, do trabalho, do lazer, etc.

A pessoa saudável é, então, aquela que nasceu propensa ao autodesenvolvimento (Powelson & Ryan, 1991); teve um ambiente suportivo; adquiriu os valores socioculturais; estabeleceu objetivos pessoais para a sua vida; desenvolveu autodeterminação para perseguir os próprios objetivos com vitalidade; obteve momentos frequentes de satisfação e bem-estar, aspecto que gera um sentido de autorrealização; e conseguiu reformulação contínua dos objetivos pessoais em consonância com o contexto (Deci & Ryan, 2002).

 

Estudos com a teoria da autodeterminação

Estudos recentes podem ser encontrados relacionando os conceitos da SDT em diversas dimensões, tais como lazer, aprendizagem, trabalho, etc. Alguns estudos são multiculturais e visam a demonstrar que os conceitos da SDT estão presentes no ser humano em contextos distintos.

Em relação à motivação, um estudo multicultural analisou as diferenças dos aspectos motivacionais com base na aprendizagem em sala de aula e revelou que a motivação atravessava todas as culturas estudadas e tinha sua expressão no contexto dirigida pela regulação social intersubjetiva (Walker, Pressick- Kilborn, Arnold & Sainsbury, 2004). Esse estudo sugeriu que a motivação pode ser encontrada em múltiplos contextos, diferenciadamente quanto à sua canalização e expressão, conforme estas ocorrem segundo as normas e regras sociais específicas e, com isso, modificam a expressão do self (Ryan & Deci, 2000a, 2000b).

Segundo a SDT, um contexto suportivo à autonomia será propício à aprendizagem e ao desempenho (Deci & Ryan, 2000). Um contexto suportivo à autonomia, conforme a SDT, tem efeitos diretos na motivação e são importantes para a internalização de valores e regras, que propiciarão às pessoas maior autodeterminação.

Dois estudos efetuados exemplificam a premissa citada acima. Um desses estudos mostrou que professores mais suportivos em relação à autonomia e menos controladores tendiam a ter alunos mais autônomos e autodeterminados para a aprendizagem em sala de aula (Pelletier, Séguin-Lévesque & Legault, 2002). O outro, realizado por Reeve (2006), indicou que um ambiente suportivo à autonomia beneficiou o nível de aprendizagem e de interação.

Outro estudo avaliou a incorporação dos conceitos da SDT por parte de professores. Um grupo de professores foi treinado e orientado para ser suportivo à autonomia dos estudantes e um grupo controle não recebeu tais orientações. Os professores treinados apresentaram comportamentos mais significativos no encorajamento dos alunos, e estes se revelaram com maior empenho e desempenho acadêmico (Reeve, Jang, Carrell, Jeon & Barch, 2004).

Para a SDT, pessoas com estilos motivacionais intrínsecos tendem ao melhor ajustamento ao ambiente, com uma participação mais satisfatória (Vansteenkiste et alii, 2009). Walls e Little (2005) pesquisaram a motivação intrínseca e a relação com um ajustamento adaptativo no ambiente escolar. Esses autores encontraram uma tendência preditiva direta entre as variáveis. Esse estudo indicou que um contexto suportivo à autonomia propiciou níveis satisfatórios de motivação com repercussões no ajustamento ao ambiente.

A participação no contexto é um fator que se relaciona diretamente com a saúde e o bem-estar psicológicos, segundo as premissas da SDT. A autodeterminação motivacional (autonomia, competência e vínculo social) revelou-se preditiva quanto às intenções de participação nas práticas de atividades físicas no tempo livre e amotivação foi um preditor negativo (Standage, Duda & Ntoumanis, 2003). Ntoumanis (2005) vinculou tipos de motivação e experiências cognitivas e afetivas positivas para uma ótima participação em Educação Física durante um estudo. A motivação apresentou tendências preditivas diretas com as experiências positivas e levaram a participação ativa nas atividades interacionais.

Um estudo multicultural (Coreia do Sul, Rússia, Turquia e Estados Unidos) indicou que a possibilidade de desenvolver práticas com autonomia individual teve tendências preditivas com o bem-estar (Chirkov, Ryan, Kim & Kaplan, 2003). A satisfação das necessidades de autonomia, competência e vínculo social se mostrou mediadora da depressão e ansiedade como consequência do estresse crônico em adultos no estudo de Meifen, Shaffer, Young e Zakalik (2005). Esse estudo indicou que a satisfação das necessidades básicas foi um aspecto importante para a saúde e bem-estar das pessoas, inclusive, com o poder de atenuar a vulnerabilidade psicológica ou mesmo sintomatologias de estados patológicos.

Vários estudos realizados mostraram que uma intervenção clínica suportiva à autonomia vinculou-se a maior motivação autônoma e maior aderência aos tratamentos (Curry, McBride, Grothaus, Lando & Pirie, 2001; Georgiadis, Biddle e Stavrou, 2006; Williams, McGregor, Zeldman, Freedman & Deci, 2004). Portanto, os estilos motivacionais e autorreguladores foram importantes na predição da aderência aos tratamentos.

Os conceitos da SDT foram aplicados em pesquisas a todas as faixas etárias. Um exemplo destes foi o estudo efetuado por Deci, La Guardia, Moller, Scheiner e Ryan (2006). Nesse estudo, a disponibilização de suporte entre adolescentes amigos pôde predizer uma percepção mais positiva da qualidade do relacionamento através de maior vínculo emocional, sentimento de segurança, ajustamento e inclusão da amizade na ideia de self.

A classe social também apareceu como um fator que teve vinculações com os níveis motivacionais e o bem-estar. Em uma pesquisa de Ryan e Deci (2000b), relacionou-se a motivação intrínseca e indicadores de desenvolvimento social ao sentimento de bem-estar. A motivação teve tendências preditivas em ambos os aspectos. Essa pesquisa revelou que a vulnerabilidade social foi um fator que pôde ser prejudicial a uma motivação satisfatória para a busca de autorrealização.

Por fim, as várias pesquisas realizadas com os conceitos da SDT mostraram que estes puderam ser corroborados. Tal aspecto revela a importância dessa teoria como um campo teórico dentro da Psicologia e também sinaliza alguns aspectos importantes quando se propõe pensar na saúde da população e, inclusive, em formas de psicoterapia (Ryan e Deci, 2008).

 

Considerações finais

A SDT tem se empenhado em compreender processos psicológicos em uma perspectiva de saúde e bem-estar, levantando hipóteses e sugerindo medidas que garantam as pessoas iguais possibilidades de desenvolvimento. O campo conceitual da SDT permite parâmetros para a elaboração de programas educacionais e clínicos com vistas à saúde e ao bem-estar das pessoas. Inclusive, a partir dos anos 90, surgiu um movimento educacional nos Estados Unidos, Canadá e Europa com base nos preceitos da SDT. Esse movimento aplicou os conceitos da SDT em níveis de políticas públicas educacionais, com base no treinamento de professores e na aplicação dos conceitos em sala de aula. Essas ações mostraram resultados positivos para a aprendizagem (Wehmeyer, 1999).

No Brasil, essa teoria ainda não conta com linhas de estudo específicas, existindo muito poucas pesquisas realizadas com essa abordagem, além de não termos registros de que ela possa ter sido aplicada a algum domínio escolar ou com objetivos clínicos.

A SDT conta com um endereço na Internet (www.psych.rochester.edu/ SDT/), onde estão disponíveis algumas pesquisas realizadas pelos fundadores, além de ter uma série de artigos completos, bem como questionários gratuitos para pesquisa, desde que solicitada a autorização necessária.

Observamos que a limitação dessa teoria reside exatamente em seu objetivo relativamente restrito, que é delinear conceitos operacionalizáveis com a perspectiva da promoção da saúde e bem-estar psicológicos. Entretanto acreditamos que essa teoria tem muito a contribuir com o campo da Psicologia brasileira e que pesquisas com suas premissas, em grande medida, podem contribuir para o conhecimento acadêmico em nosso País.

 

 

Referências

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* Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Ria Grande do Sul (PUC RS), bolsista CNPq. E-mail: mappel@uol.com.br.

** Graduado em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC RS), bolsista CNPq. E-mail: guilhermewendt@hotmail.com.

*** Doutora em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC RS), coordenadora do Grupo de Pesquisa Avaliação e Intervenção no Ciclo Vital, do PPGP da PUC RS, bolsista em Produtividade em Pesquisa do CNPq. E-mail: argimoni@pucrs.br.

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