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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.16 no.2 Belo Horizonte ago. 2010

 

RESENHA

 

MIRANDA JUNIOR, Hélio C. (2010). Um psicólogo no Tribunal de Família: a prática na interface Direito e Psicanálise. Belo Horizonte: Artesã. 301 p.

 

A psychologist in Family Courts: practice in the Law-Psychoanalysis interface

 

Un Psicólogo en el Tribunal de Familia: la práctica en el interfaz derecho y psicoanálisis

 

 

Carla Abreu Machado Derzi *

 

 

Desde a aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), cresceu a participação de psicólogos na lida com os desafios de nossa infância e juventude.

O livro de Hélio C. Miranda Junior parte da localização dessa inserção institucional, fundamentalmente em Direito de Família, para propor a existência de uma diferença importante entre a inserção na perícia e a inserção pela via da equipe interdisciplinar do ECA. Tal diferença pode proporcionar um trabalho em que a vertente da intervenção seja privilegiada em relação à vertente meramente pericial.

Grande parte do material produzido até então, na interface Direito de Família e Psicanálise, enfatizava a articulação teórica em detrimento da prática, mesmo se considerando que havia nele articulações conceituais relevantes. Para contribuir nessa lacuna, o autor do livro propõe articular Psicanálise e Direito de Família contemporâneo, por meio da apresentação de casos atendidos e acompanhados no Tribunal de Justiça.

O autor teceu um texto que procura apresentar, de forma distinta, os dois campos (Psicanálise e Direito de Família), para articulá-los quando apresenta os casos. Isso imprimiu um caráter didático ao texto, pois os dois campos são tratados extensamente no princípio do trabalho. Nesse ponto, também se articulam os dois conceitos-chave que servirão para a proposta do autor: demanda e desejo.

Retirada da proposição lacaniana, a diferença entre demanda e desejo é fundamental na clínica psicanalítica e serve também à proposta de atuação do psicanalista na instituição. Nesse sentido, o autor propõe compreender as petições que dão origem aos processos em Direito de Família e as respostas formais correspondentes como formas de endereçar um pedido de solução ao judiciário. Este ocupa o lugar de terceiro termo na relação que se estabelece entre as pessoas envolvidas e transformadas em “partes processuais” de um litígio. Contudo a verdade que ali está latente refere-se à outra dimensão da palavra e do sujeito: o desejo, questão que nos marca e nos constitui ao nos ser apresentada pelo Outro e que endereçamos ao Outro no movimento dialético que constitui o falta-a-ser.

Tendo essa diferença como ponto de apoio da prática, o psicanalista convocado a trabalhar com os conflitos de família, em meio aos processos judiciais, pode tentar deslocar o lugar de endereçamento da palavra, para que uma intervenção no sofrimento experimentado pela família possa ser produzida.

De acordo com o autor, tal possibilidade implica ainda duas questões importantes. A primeira diz respeito à diferença entre o procedimento pericial e esse outro que o autor propõe. O procedimento pericial, definido em lei, tem limites mais rígidos e se baseia em uma concepção científica e técnica que elimina o sujeito da questão abordada pelo perito. O perito stricto sensu avalia e informa. Para questionar o uso da Psicologia dessa forma, o autor faz referência aos estudos de Michel Foucault e suas críticas sobre a relação entre saber e poder, cujos efeitos são a normatização e a alienação. Diferentemente, a proposta do autor é a de intervir no conflito, o que implica distanciar-se dos procedimentos meramente periciais e abrir a palavra dos entrevistados para a escuta de outras questões.

Evidentemente tal atuação não é importante em todas as situações. Contudo, em muitos casos, o trabalho sobre o litígio é o que pode produzir modificações no arranjo sintomático de certas famílias e intervir no sofrimento que ali se cristalizou no gozo que insiste em se repetir, por vezes em novos processos das mesmas famílias.

Para demonstrar isso, Hélio C. Miranda Jr. usa diversos casos colhidos em sua prática de mais de 15 anos no Tribunal de Justiça. Alguns casos são tratados em fragmentos, outros, com mais detalhes. O que fica evidente no texto é a possibilidade de atuar de forma diferenciada da perícia, porém ficam evidentes também os efeitos e as dificuldades disso na interface com o discurso jurídico e institucional, em que o tempo para o trabalho, por exemplo, não corresponde ao tempo do sujeito. A segunda questão diz respeito ao que é chamado de “psicanálise aplicada”, quer dizer, a psicanálise fora de seu setting próprio. Essa é uma questão bastante atual quando muitos psicanalistas estão inseridos em instituições diversas (como as judiciárias e de saúde mental) e se esforçam por exercer ali uma escuta que privilegie o sujeito em detrimento da reificação própria aos objetos científicos. Hélio Miranda Jr. trata dessa questão, localizando o problema da psicanálise aplicada e propondo que o trabalho na instituição jurídica pode contar com a possibilidade de manejo transferencial dos casos em Direito de Família, desde que o deslocamento de endereçamento da fala, citado antes, seja produzido.

Por fim, é preciso registrar que o texto deixa de tratar algumas questões também importantes, como a proximidade de trabalho com os assistentes sociais e a questão do trabalho com a psicose, que se supõem estarem presentes também nos casos de conflito familiar e que, provavelmente, exigem manejo e encaminhamento diferentes, suscitando outras interrogações.

Apesar desses problemas, o livro traz contribuição interessante ao campo da interface Psicanálise e Direito, especificamente Direito de Família, e movimenta questões que permanecem como desafios nessa interface. Questões que aproximam e diferenciam os campos de saber e de prática e que indicam perguntas instigantes para a consecução de uma prática cada vez mais aprimorada.

 

 

* Doutora em Psicanálise pela Université de Paris VIII, professora da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). E-mail: carladerzi@gmail.com.

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