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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.18 no.3 Belo Horizonte dez. 2012

 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2012v18n3p420

 

Mulher e trabalho: visibilizando o tecido e a trama que engendram o assédio moral

 

Women and work: viewing the tissue and the trap around mobbing

 

Mujeres y trabajo: haciendo visible el tejido y las tramas del asedio moral

 

 

Bruna Meurer Antunes;* Mary Sandra Carlotto;** Marlene Neves Strey***

 

 


Resumo

O artigo tem como objetivo desvelar as múltiplas formas de influência na vida de mulheres que vivenciaram o assédio moral em seu contexto de trabalho. Participaram do estudo seis mulheres. Trata-se de um delineamento qualitativo, com coleta dos dados realizada por meio de entrevistas individuais e submetidas à análise de discurso. A produção discursiva em torno do assédio moral revelou significações perpassadas pelos discursos psicológicos, acadêmicos e midiáticos produzidos sobre assédio moral. Esses discursos, na maioria das vezes, deslocam o foco de análise do coletivo para o individual e tendem a adentrar no território normativo da patologização dos sujeitos. O assédio moral pode ser compreendido como uma tecnologia contemporânea de exclusão social, ao ser utilizado como mecanismo gerencial. As condições de constante hostilidade, perseguição, difamação, o desgaste psicoemocional e a inexistência de regulação trouxeram implicações negativas às trabalhadoras, tanto na rotina ocupacional quanto na saúde física e psicológica.

Palavras-chave: Assédio moral, Saúde, Produções discursivas.


Abstract

The text aims at unveiling multiple ways on how bullying affects women lives who have experience this inside their workplace. The participants of this study are 6 women over 25 years old who live in Porto Alegre city. Data collection was conducted by means of deep individual interviews. After they were submitted to Discourse Analysis. The discursive production around bullying showed deriving from psychological, academic, and media meanings. Most of these lectures focused on the analysis from collective to individual and tended to get into normative territory of the subjects pathologization. We showed that such lectures directly affect victim (s) and society as a whole, in the way they subjectivate and mean the experience of such humiliations. Bullying can be understood as a contemporary technology of social exclusion. The conditions of constant hostility brought negative implications to these workers.

Keywords: Bullying, Health, Discursive productions.


Resumen

El artículo tiene como objetivo tornar visible las distintas maneras como el asedio moral en el trabajo influencian en la vida de las mujeres. Participaron en este estudio cualitativo seis mujeres, que fueron entrevistadas individualmente. Los datos fueron sometidos a un análisis de discurso. La producción discursiva sobre el asedio moral ha revelado significados atravesados por los discursos psicológicos, académicos y de los medios de comunicación producidos por el asedio moral. Casi todos eses discursos dislocan el foco del análisis del colectivo para el individual, tendiendo adentrar en el territorio normativo de la patología de los sujetos. El asedio moral puede ser comprendido como una tecnología contemporánea de exclusión social cuando es utilizado como mecanismo gerencial. Las condiciones de constante hostilidad, persecución y desgaste psicoemocional y la inexistencia de regulación han traído implicaciones negativas a las mujeres trabajadoras, en rutina ocupacional y en la salud física y psicológica.

Palabras clave: Asedio moral, Salud, Producciones discursivas


 

 

Introdução

O assédio moral nos locais de trabalho envolve atos, palavras e comportamentos hostis e prejudiciais contra uma ou mais pessoas. Pode ser praticado de diversas maneiras e por diferentes meios. O abuso do poder de forma repetida e sistematizada por um longo tempo constitui-se a principal característica desse fenômeno (Barreto, 2000).

O trabalho e o assédio moral devem ser analisados com base na maneira como os sujeitos vivenciam e dão sentido às suas experiências de trabalho. Estas podem variar conforme o contexto social, histórico e econômico, apontando para diferentes processos de produção de subjetividade e a diferentes sujeitos trabalhadores (Nardi, 2006).

Referente ao assédio moral,Hirigoyen (2001) afirma que o ambiente laboral, quando apresenta esse fenômeno, torna-se insuportável e prejudicial à saúde de todos. As atitudes hostis, como a deterioração proposital das condições de trabalho, atentados contra a dignidade e o uso da violência verbal, física ou sexual, constituem os meios pelos quais os agressores atingem as vítimas. Desse modo, sua ocorrência no trabalho se manifesta, de acordo com Ferreira e Soboll, mediante diversos indícios:

    [...]isolamento e incomunicabilidade física com a vítima; proibição de conversar com os companheiros de trabalho; exclusão de atividades sociais da empresa; comentários maliciosos e desrespeitosos; atitudes e referências maldosas sobre aspectos físicos, caráter, costumes, crenças, condutas, família dentre outros; culpabilização por erros de outras pessoas; transmissão de informações erradas ou sonegação de informações com o intuito de prejudicar o desempenho profissional do trabalhador; divulgação de rumores impróprios sobre a vida privada; designação de tarefas pouco relevantes, degradantes ou impossíveis de serem cumpridas; mudança de mobiliário sem aviso prévio; mudança arbitrária do horário do turno de trabalho; manipulação do material de trabalho como apagar arquivos do computador; colocação de um trabalhador controlando o outro, fora do contexto da estrutura hierárquica da empresa; violação de correspondências; rebaixamento de função de forma injustificada; contagem do tempo ou a limitação do número de vezes e do tempo em que o trabalhador permanece no banheiro; advertência em razão de atestados médicos ou de reclamação de direitos, entre outros (Ferreira & Soboll, 2007, p. 6).

Para Barreto (2000), as pessoas mais susceptíveis a se tornarem vítimas do assédio moral são aqueles empregados que apresentam algumas diferenças com respeito aos padrões estabelecidos. Hirigoyen (2002) destaca ainda os motivos raciais ou religiosos; em razão de deficiência física ou doença; de orientações sexuais e de gênero; e discriminação de representantes de funcionários e representantes sindicais. Pessoas atípicas, "excessivamente competentes" ou que "ocupem espaço demais", aliadas a grupos divergentes da administração, "improdutivas" ou temporariamente fragilizadas por licenças de saúde.

Desse modo, é justamente na importância de desvelar vozes, sentimentos e percepções que argumentamos o ponto central de discussão deste texto: por meio da análise dos discursos de mulheres que entrevistamos, interrogamo-nos: quais sentimentos perpassam essas mulheres, como enfrentaram tal momento, quais implicações e rumos dados a suas vidas após essa dolorosa experiência? Haja vista que, particularmente no Brasil, devido à herança cultural deixada pelo regime escravocrata, o bullying tende a ser considerado como comportamento "normal" no cotidiano das organizações, dificultando as reações por partes das vítimas, bem como o seu reconhecimento pela Justiça do Trabalho (Aguiar, 2005).

Nesse sentido, este estudo buscou desvelar as múltiplas formas de afetação do assédio moral na vida de mulheres que vivenciaram esse fenômeno em seus contextos de trabalho, haja vista que se configura por uma experiência subjetiva que acarreta danos à saúde dos trabalhadores.

 

Método

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, pertinente à investigação de significados, sentimentos, pensamentos, crenças e valores acerca do processo de significação de fenômenos complexos, tal e como define Minayo (2000). Foram realizadas entrevistas individuais em profundidade com seis mulheres de diferentes idades (entre 25-56 anos) e estados civis: Paula (36, nutricionista, casada), Béti (42, administradora, divorciada), Verônica (56, engenheira, solteira), Silvia (47, licenciada em Matemática e Biologia, casada), Suzana (30, administradora, casada) e Eleonora (25, vendedora, casada), que não tinham mais vínculo com a organização (ou já haviam mudado de setor após os episódios de assédio moral) e desempenhavam diferentes funções ou cargos em organizações públicas e privadas na cidade de Porto Alegre-RS. As entrevistas foram gravadas e transcritas após a concordância, por meio de termo de consentimento livre e esclarecido.

O processo de seleção das participantes foi realizado por meio da técnica de amostragem "bola de neve" (snowball technique), método usado em estudos qualitativos em populações escondidas ou de difícil acesso. O acesso a tais populações requer o conhecimento de pessoas que possam localizar indivíduos de interesse da pesquisa (Biernacki & Walford, 1981). O contato inicial com as participantes foi realizado via telefone, e as entrevistas foram agendadas em horários e locais que mais lhes conviessem. Em quase todos os casos, as entrevistas foram realizadas nas residências das participantes, com exceção de dois casos, em que o escolhido foi um lugar público, entretanto, calmo e sem interferências, atendendo ao desejo das entrevistadas. Levou-se em consideração o critério de saturação dos dados, que considera a qualidade das informações obtidas em cada depoimento, assim como a profundidade e o grau de recorrência e divergência das informações para o encerramento deste processo (Duarte, 2002; Minayo, 2000).

Para a análise dos dados, usamos a análise de discurso de base foucaultiana, que busca nas formações discursivas os significados construídos entre sujeito e contexto. Para Foucault (2005, p. 171), "O discurso é o caminho de uma contradição a outra: se dá lugar às que vemos, é que obedecem à que oculta".

Analisar o discurso é fazer com que desapareçam e reapareçam as contradições, é mostrar o jogo que nele elas desempenham; é manifestar como pode exprimi-las, dar-lhes corpo, ou emprestar-lhes uma fugidia aparência. Assim, ao se buscar conhecer os discursos das mulheres que experienciaram o assédio moral nos espaços organizacionais, por exemplo, torna-se importante compreender que este funcionamento da linguagem se assenta nesta tensão entre os sentidos estabilizados e os possíveis deslocamentos. São os significados contidos no discurso que nos constituem e constituem o mundo de determinada maneira, dotando-o de determinado significado, de uma determinada "economia interna" (Foucault, 1993). Isso pertence a cada indivíduo e vai sendo alterado dependendo das circunstâncias, das relações que são estabelecidas, da capacidade de produzir ditas verdades e de elas serem reconhecidas como tal.

 

Resultados e discussão

Seguindo a trajetória metodológica, para entendermos as múltiplas formas de afetação do assédio moral na vida das participantes (bem como os discursos que atravessam e engendram suas falas), buscou-se estabelecer uma relação tomando por referência a totalidade, a historicidade e a contradição. Segundo Guedes (2004, p. 37), se, por um lado, "O abuso de poder que normalmente descamba para a administração por estresse pode ser facilmente desmascarado, no entanto a manipulação insidiosa do assédio moralcausa maior devastação, porque é sub-reptícia e, na fase inicial, até mesmo a vítima não enxerga o que se passa", conforme enunciados de algumas das participantes:

    As pessoas não sabem perceber quando é violência, quando é tortura. Por que eu que estava dentro do problema e não me caía a ficha, até que pessoas foram me alertando que isso não era normal. E eu acho que isso foi uma defesa enorme minha [...] (Verônica).

    Então eu entrei praticamente verde nessa questão, pois antigamente eu era estagiária, não trabalhava como efetiva. Então, sempre acreditando no melhor, no bem, nas pessoas, que elas não vão fazer aquilo para os outros que elas não querem que façam para elas. E tu entra assim, mas o jogo é outro (Suzana).
    Esse lado da empresa, eu não via maiores problemas, pois tudo o que a empresa está exigindo de todos hoje, tu tem que dar resultado, dar produtividade, mas só depois que eu fui entendendo o resultado disso [...] (Paula).

Diante de tal realidade, reconhecemos que o assédio moral é pouco compreendido e discutido nas empresas e na sociedade brasileira. As participantes não conseguiam compreender o que se passava e, no início, naturalizavam tais atos ou abuso de poder de suas chefias. Nesse sentido, Barreto (2000) destaca que as vítimas se sentem, em geral, culpadas e responsáveis pela agressão. Não conseguem entender os fatos, pois o agressor não lhes dá satisfações e as ignora; passa a hostilizá-las, ridicularizá-las e inferiorizá-las, até que se sintam confusas e desestabilizadas emocionalmente. Desse modo, como aponta Burlae (2004), muitas mulheres não têm consciência do que aquilo que experienciam, na realidade, é violência, até que sintam seus efeitos daninhos, que vão desde sintomas de ordem psicológica até doenças físicas.

Passado esse momento de negação, surge então o reconhecimento de que as constantes perseguições e críticas não davam trégua, extrapolavam o limiar do eventual e se tornavam contínuas, rotineiras e cada vez mais envoltas em comportamentos hostis:

    Daí eu comecei a chorar, porque eu não aguentei mais, pois era tanta pressão. Eu não podia ir ao banheiro, que ela reclamava. Eu não podia trocar alguma coisa do lugar, que ela reclamava, de tudo, de qualquer coisa que eu fizesse, eu atingia ela de uma forma que eu não sabia o porquê. Eu não sabia. Então, eu falei, olha, sinto muito, eu não sei o que eu devo fazer ou devo não fazer, por que, de qualquer forma, eu te atinjo. Qualquer coisa que eu faço aqui dentro, você não gosta. Mas, não adiantou muito [...](Suzana).

Entre os principais comportamentos hostis vivenciados, segundo algumas participantes, estava o ato de atribuir propositalmente tarefas inferiores à capacidade técnica ou ao cargo a que estavam destinadas:

    Encerraram nosso departamento, e fomos parar na contabilidade. Eu sou administradora e fazia serviços de secretária [...]. Então, o que acontecia, ela me chamava na sala dela, porque eu chegava sempre cedo, e me fazia sentar do lado dela para apreender a trabalhar! Ela me botava para ler contratos em voz alta. Eu não conseguia trabalhar, porque eu ficava só corrigindo erros de português que vinham dos meus colegas [...]. Onde estava a vírgula, como tinha que ser o uso da abreviatura. Eu tinha que arrumar as capas que tinham orelha de burro, e colar uns adesivos! [...] Na verdade, ela não me respeitou como profissional. Ela menosprezava a minha capacidade, como de qualquer um. (Béti).

No entanto o inverso também é relatado pelas participantes. Quem pratica o assédio moral pode exigir da vítima tarefas cuja execução se torna e impossível, tendo em vista que estas extrapolam a dimensão temporal e espacial, e estão relacionadas a uma pressão exagerada para cumprir metas, conforme descrito por Verônica:

    Por exemplo, numa sexta à tarde, ela pediu para mim fazer laudos de avaliação de seis cidades e entregar na segunda. Só que eu teria que viajar nas seis cidades, da sexta à tarde até a segunda de manhã. Coletar dados de campo, fazer um laudo de cada uma delas e pegar as imobiliárias abertas, por que eu precisaria pegar dados de mercado. Ou seja, eu pegaria todo o comércio fechado. Então é uma coisa quase absolutamente impossível de fazer. É certo que, na segunda-feira, eu não teria pronto o trabalho. E aí ela podia aplicar o tal estatuto disciplinar, dizendo que eu não correspondi. E eu demorei muito tempo para entender que isso era um artifício dela, que isso era premeditado (Verônica).

A desqualificação das características pessoais, físicas e de vestimenta, como estratégia do bullying,é descrita por uma das participantes como a principal arma de que a agressora tinha para atingi-la. Nesse processo, tudo pertinente à entrevistada se transformava em matéria-prima para a agressão, conforme relato:

    Ela se utilizava de coisas pessoais minhas para me atingir e me atingia. Vivia debochando das minhas roupas... que eu me vestia muito mal. Vivia dizendo que eu era gorda. Chamava de gorda na frente de todo mundo, assim. Digamos, me ridicularizava a todo o momento. Por qualquer coisa [...]. Tipo, nada que eu fizesse estava bom. Tinha ofícios que eu digitava e que eu tive que refazer por mais de sete vezes (Suzana).

Nesse sentido, a agressora se utilizava majoritariamente das características das quais a sociedade contemporânea tem "certos preconceitos ou considera inferiores" (como ser negro, mulher, nordestino, gordo, homossexual, etc.) e transformava em "defeitos" e "armas". Segundo Souza (2008), dessa forma, a humilhação ganha concretude, pois, ao olhar para si mesmo, o sujeito reconhece a "qualidade" que lhe foi atribuída. Não é falso que esse sujeito esteja acima do peso, o que se esconde para o próprio sujeito é que essa é uma característica humana e não um defeito que possa ser utilizado para atingi-lo.

O uso de mecanismo como a exclusão, para desestabilizar a vítima e forçar sua saída é descrito por uma das participantes:

    Ela me desprezava, quando tinha festinha de aniversário, ela fazia só a rodinha dela sempre. Teve um aniversário de uma colega que se aposentou, ela conversando com a outra, disse assim: só vai o estagiário, a Silvia não vai! Ela vai ficar aí! Só nós é que vamos, ouviu! Então, ela fazia de tudo para me colocar para baixo e me deixar de fora (Silvia).

Além disso, nos relatos, as entrevistadas destacam as constantes intrigas nas quais tinham seus nomes utilizados, como forma de criar competição e desavença entre os colegas do setor:

    Tu não sabia quem ela era. Ela me chamava na sala dela para falar mal dos colegas, e ficava: fulano é isso, fulano é aquilo, tu é a melhor. Tentando me manipular, para que eu fosse contra os colegas, do tipo assim, para que eu fosse testemunha para que se ela fizesse algo contra eles. Então, ela me usava como arma de pressão. Dizia na frente de todos que eu era a melhor funcionária que tinha ali [...] (Béti).

Práticas empregadas pelas agressoras, como retirar os meios de trabalho, não fornecer as informações ou condições de exercício profissional, "constroem a incompetência" do trabalhador: se o chefe não fornece os meios necessários para o exercício do trabalho, mas o faz de forma sutil, sem que os demais membros da equipe se apercebam, o que "aparece" para a equipe é o fato de que o trabalho não está sendo executado. Vejamos um depoimento que ilustra esse fato:

    Assim, nós fomos proibidos... por que, assim, a gente trabalha no Estado todo, então se mantém contato direto com os colegas do interior quando a gente está trocando informações sobre o trabalho. Aí nós fomos proibidos de mandar qualquer e-mail de trabalho, para qualquer pessoa do Estado sem mandar cópia para ela. Proibido literalmente. Sob o risco de ter aplicado o estatuto disciplinar. Aí nós fomos proibidos de fazer qualquer telefonema para os nossos colegas do interior, isso a trabalho, é claro. E, qualquer saída da sala, nós tínhamos que assinar uma lista, colocando nome, a hora de entrada e de saída, a hora que saía, a hora que voltava e aonde a gente tinha ido [...]. Então, não tinha meios de a gente realizar o trabalho, pois ela não autorizava nada, e tudo que nós encaminhávamos ia para a mesa dela e empacava. [...] Mas, depois, quando ela resolvia vinha cobrar [...](Verônica).

Entre o uso de diversas outras atitudes hostis, foi possível compreender que as agressoras sabiam exatamente como atingir cada sujeito, principalmente com base nas características de personalidade:

    Se a pessoa é mais calada, não é de rebater tipo eu, ela utilizava um meio. Mas, se era uma pessoa que batia de frente, a agressividade dela era no mesmo tom. Então, assim, sempre dependia da outra pessoa. Mas, tinha o contraponto dela. É que é assim, eu sou muito brincalhona para lidar com as pessoas. Mas, quando é para bater de frente, já não é da minha personalidade [...]. Ela se utilizava das características de cada um para poder massacrar. Massacrar é a palavra mais certa para isso (Béti).

Em suma, são muitos os fatores que podem caracterizar o assédio moral no ambiente de trabalho. De acordo com Vaz-Serra (2005), o assédio moral tem habitualmente um antecedente conflituoso que progride em termos de cinco fases que não necessariamente seguem esta ordem de descrição: a) o conflito; b) as provocações psicológicas, rumores e a hostilidade; c) o envolvimento da administração; d) a classificação como pessoa difícil; e e) o surgimento de sintomas físicos e psicológicos.

De modo geral, as participantes comentam que, entre os primeiros sinais de que algo as atingia profundamente, estava o de não conseguirem se desvencilhar de certos sentimentos e emoções que perduravam mesmo quando não estavam mais em seus postos de trabalho, como expresso por uma das participantes:

    Eu sentia angústia. Ficava com um aperto, assim, por dentro. Enquanto eu estava lá dentro, eu estava angustiada. Quando tocava o meu telefone interno, eu tinha pavor, pânico. Porque eu sabia que era ela. Ela ligava, assim, de cinco em cinco minutos. Eu chorava. Mas eu tentava chorar de modo aos meus funcionários não verem. Então, eu não conseguia trabalhar, eu tinha que estar à disposição dela. Eu ia para casa, e aquilo ia comigo [...](Paula).

Dando continuidade às reflexões, nos é sabido que o trabalho é uma das principais fontes de reconhecimento social e realização pessoal. O ser humano se identifica pelo trabalho e constitui-se por este também (Guedes, 2004). No entanto, conforme as participantes foram perdendo sua identidade social, sua capacidade de projetar-se para o futuro, aparece então um misto de afetos, tomados por uma crise existencial de grande magnitude. Os afetos revelam aspectos, características e comportamentos subjetivos dos sujeitos. Sua análise ajuda ampliar o entendimento de como o bullying é experienciado por suas vítimas. Campos (1996) ressalta que o termo afetividade é genérico, compreendendo várias modalidades de vivências afetivas dentro delas, destacando-se, o humor, as emoções, os sentimentos, os afetos e as paixões.

Nesse contexto, fez-se presente nos depoimentos o que Sawaia (2001, p. 6) chama de sofrimento ético-político, "Que retrata a vivência cotidiana das questões sociais dominantes em cada época histórica, especialmente a dor que surge da situação social de ser tratado como inferior, subalterno, sem valor, apêndice inútil da sociedade". Segundo essa autora, é a dor mediada pelas injustiças sociais. É o sofrimento de estar submetida à opressão e a tantas outras injustiças que, por vezes, não são sentidas como dor por todos. Vejamos um desses recortes:

    Eu sentia tristeza por aquela agressão ser gratuita. Uma agressão que provoca várias reações na pessoa, porque tu não merecia. Se ela via alguém entrando de bom humor, aquele dia era o dia da pessoa. A hora que eu via ela, dava uma vontade sair, de ir embora. E, depois de um tempo, eu comecei a contar os minutos. Já começava a contagem regressiva dos minutos do dia. Imagina eu ficava às oito horas contando o tempo [...] porque lá o meu trabalho não tinha mais sentido, tudo não funcionava (Verônica).

Boa parte do discurso das participantes faz referência ao sentimento de humilhação que, na voz de Paula, tomou sentido e sombras: "Eu me sentia após esses episódios, literalmente, humilhada, [...] assim eu não me via como uma profissional de curso superior. Eu era uma subordinada dela. E isso, eu que me fazia ficar sem saber o que fazer [...]" (Paula). Como refere Barreto (2000), os humilhados enfrentam situações múltiplas e ambíguas, por vezes contraditórias. Ora se sentem esvaziados, perdidos, desamparados, incompreendidos e culpados. Ora reagem e resistem à procura de saídas que devolvam a dignidade perdida e restabeleçam o que se perdeu, o que dificilmente ocorre isoladamente. A humilhação, portanto, pode ser compreendida como um fenômeno que imobiliza e despotencializa.

O ser humano, no entanto, não consegue ser passivo a tudo, e quando faz esse movimento contrário, pode estar sentindo a indignação, que pode gerar potência de ação. Para Espinosa, citado por Gesser (2004, p. 151), "a indignação é o ódio para com alguém que fez mal a outrem" (Ética III, Proposição LIX). Dejours (1999) também define indignação como um sentimento causado pelo reconhecimento de uma injustiça. Sendo assim, é a indignação o sentimento que essas mulheres descrevem como aquele que as fez lutar e sair do estado de silêncio: "Eu sentia um mal-estar generalizado, uma coisa muito ruim, parecia que tinham me batido, não sei, uma sensação ruim. Sentimento de indignação, que poderia nada daquilo ter acontecido. Pois eu me senti usada, apunhalada pelas costas, traída, bá, foi horrível" (Silvia). Ainda de acordo com esse relato, Gesser (2004) analisa a indignação como um sentimento que faz o sujeito se sentir magoado, revoltado, injustiçado e raivoso por uma causa exterior que procura desqualificar as suas qualidades e potencialidades humanas, atribuindo-lhe uma condição de inferioridade, inutilidade, incapacidade e deslegitimidade. Logo, a situação de bullying é sentida como se fosse uma batalha, ou literalmente uma forma de tortura, pesadelo (Tracy, Lutgen-Sandvik & Alberts, 2007), como aponta uma das participantes:

    Para mim, ir para o trabalho de manhã era uma tortura. E daí essas sensações começam a te acompanhar de manhã, de tarde e de noite, final de semana, e a gente não se livra mais daquelas lembranças de humilhação, daquele horror. Quando tu vivencia isso, é impossível tu falar sem se emocionar. Porque é muito grave. É muito sério. É muito tempo de tortura (Verônica).

Entretanto se destaca, assim, que tal possibilidade de superação desses sentimentos pelas participantes, que são consequência do assédio moral, dependerá da potência de ação ou da capacidade de resiliência dessas mulheres. Walsh (2005) ressalta que a resiliência diz respeito à capacidade de as pessoas não só resistirem às adversidades mas de a utilizarem em seus processos de desenvolvimento pessoal e crescimento social. A resiliência determina o grau de esquemas de defesa e cria barreiras para a vulnerabilidade às inúmeras pressões do ambiente social. Sendo assim, os processos de adoecimento físico e mental por parte do assédio moral são, por muitas vezes, redimensionados graças a essa capacidade humana de superação. Percebemos, assim, que a superação dos sentimentos gerados pelo assédio moral, por algumas dessas mulheres, ainda não ocorreu totalmente, que permaneceram por muito tempo em suas mentes. Mas, como sugere Barreto (2000), tal processo dependerá dos encontros e dos afetos que se estabeleceram a partir dessa experiência, das ideias que se formam, do desejo e vontade de superação, mas que, em nível individual, devido às experiências traumáticas únicas, subjetivas e singulares, tal processo é difícil de ser dimensionado.

Quanto às produções discursivas relatadas sobre os motivos que levaram ao bullying, para algumas das participantes, as perseguições eram intencionais e relacionavam-se a incompatibilidades pessoais:

    Eu acho que foi assim, eu não tinha dúvida que a coisa era comigo. E grande parte das coisas aconteceu quando eu não estava lá. Acho que foi aquela situação, ou ela queria o meu lugar ou ela tinha alguém para colocar no meu lugar. Acho que foi por aí (Paula).
    E ela disse que ninguém tinha ido reclamar, mas que ela não tinha ido com a minha cara desde o dia que eu entrei. Ela falou isso para mim. Pois, digamos, isso é péssimo. Você não deve dizer jamais para um funcionário que você não foi com a cara dele, desde o dia em que ele entrou. Então, ela não tinha motivos para fazer isso. Fez simplesmente para me ofender, sei lá, para me deixar mal e, a partir daí, tudo ela implicava comigo. Nada que eu fizesse estava bom (Eleonora).

Desse modo, com base nesses enunciados, é possível perceber a ênfase do assédio moral, perpassada pelos discursos acadêmicos e psicológicos que, segundo Garbin (2009), relacionam esse fenômeno principalmente a algo intencional e de cunho pessoal e particular entre os envolvidos (agressores e vítimas). Nas palavras desse autor, embora haja falta de consenso conceitual e os instrumentos e métodos de pesquisa sobre o tema apresentem imprecisão na sua validade, em pesquisas que são mencionadas pelas mídias, existe uma tendência de colocar o fenômeno como se tratasse somente de problemas de relacionamento entre duas pessoas: uma que agride e submete, e outra que é agredida. Para tal, são indicadas características tais como "habitualidade, ataques psicológicos, a intenção de prejudicar e pessoalidade" (Garbin, 2009, p. 94). Os aspectos coletivos e institucionais são negligenciados como explicação. Segundo Faulx e Delvaux, citado por Garbin (2009), esse olhar individualizante trata do eixo central firmado entre psicólogos, legisladores, advogados e profissionais da saúde mental, e tem intervindo na forma como a população significa tais ações. Tal fato reflete também a tendência da produção acadêmica no Brasil e em outros países, que defende que o bullying, ou assédio moral, é guiado pela intencionalidade dos agressores, no entanto, como nos mostra Garbin (2009, p. 93), esse olhar "se difere da descrição de trabalhadores ao relatarem situações de assédio moral que permeiam o cotidiano de trabalho de modo que todos se sintam humilhados". Em suma, Rey (2006, p. 144) destaca que "colocar a figura da agressão no agressor é uma forma de naturalizar e individualizar a violência, que tem por detrás um paradigma que tem servido de base para o senso comum nos últimos quatro séculos". A lógica dessas relações contribui para a invisibilidade dessa situação, mascarando situações discriminatórias, porém não percebida pelas mulheres.

Uma das participantes, no entanto, descreve que não se tratava apenas de motivos individuais, mas de algo que perpassa o sistema organizacional como um todo:

    E a C., não sei, ela era aquele funcionário público enraizado assim, acho que era a forma que ela tinha... Uma coisa importante que eu não falei ainda, a C. sofreu muito preconceito lá também. Porque, ela era negra e, por várias vezes, ela deixava claro que, por ela ser negra, ela não tinha conseguido algumas coisas dentro da organização, que só a Dr.ª A. tinha deixado ela como chefe. Foi a primeira pessoa que reconheceu o serviço dela e colocou ela como chefe. Então, eu não sei, era a forma dela se defender, porque, lá dentro, a coisa era meio assim. Por que o sistema, às vezes, faz tu ser assim, o que não justificaria para mim [...] (Suzana).

Tal enunciado vai ao encontro do que mostra Bradaschia (2007): o assédio ocorre no cotidiano do trabalho como um mecanismo de gestão, de controle do trabalho e não necessariamente como algo de cunho pessoal entre agressores e vítimas.

Nessa perspectiva, foi possível compreender que a leitura do fenômeno por algumas das participantes estava atravessada pelos discursos psicopatologizantes que tinham, na sua estrutura discursiva, interpretações ligadas à ordem do patológico para tentar compreender os motivos que levavam suas agressoras a agir de tal modo. Algo como interpretar esses comportamentos por razões concretas e objetivas, com justificativas psicológicas, de desequilíbrio mental ou no âmbito do comportamento histérico, como nestes depoimentos: "Ela não consegue ter outro tipo de relação. Eu vejo ela como uma pessoa doente realmente. Ela é literalmente descompensada! Tem um problema grave de doença... ela causa um prejuízo enorme para a empresa" (Verônica). "Nós chamávamos ela de bipolar, pois eu acho que eu era mais forte do que ela" (Suzana).

Desse modo, essas falas ilustram como algumas das participantes aderiram aos discursos que buscam naturalizar a associação da violência a patologias. Para Garbin (2009), a intensificação dos dispositivos de culpabilização e psicologização relativos ao assédio moral contribui para o reducionismo na compreensão dos fatores envolvidos no processo de trabalho. Nesse sentido, é possível compreender o fato de que a atribuição de tais perfis ("doentes", "perversas", "descontroladas") para os funcionários que realizam tais atos contribui para a preservação da imagem das empresas, pois deslocam o foco da violência exercida no local de trabalho para a figura das chefias (seus funcionários) (Garbin, 2009).

Ainda sob essa perspectiva, Garbin (2009, p. 103) aponta que a concepção psicopatologizante do assédio "é utilizada pelas organizações para se desresponsabilizar de eventuais ações judiciais. Incute-se nos sujeitos envolvidos uma responsabilidade de ordem pessoal, contribuindo para estigmatizar o indivíduo". De acordo com Rosa, toda ciência tem compromissos com interesses sociais determinados, especialmente com os da classe social que detém o poder político. Percebe-se que, entre tantas, a Psicologia, assim como as demais áreas científicas,

    Já nasceu comprometida com a burguesia ascendente e que suas abordagens acerca do psiquismo individual produziram uma dicotomização entre sujeito e objeto, oscilando em um movimento pendular entre um subjetivismo fechado em si mesmo e um objetivismo de caráter normativo e sempre idêntico (Rosa, 2008, p. 7).

Passamos reconhecer, assim, que as mudanças organizacionais e as ameaças de mercado de trabalho levam à intensificação de estratégias de poder, como o assédio moral,na busca por garantir espaços profissionais/manutenção do nível hierárquico no centro das ações na empresa (Aguiar, 2005). Para as participantes, tais pressões e conflitos eram permeados por inseguranças por parte das agressoras, haja vista as competências, qualificações e qualidades pessoais que enxergavam em suas subordinadas. Esses enunciados são consoantes aos estudos realizados no Brasil por Barreto (2000) e Hirigoyen (2000), que assinalam que a vítima do assédio moral não é o trabalhador preguiçoso ou negligente, mas sim aquele que, de um modo ou de outro, tornou-se incômodo. Essas mulheres foram vítimas justamente por serem trabalhadoras com um senso de responsabilidade ou iniciativa. Eram líderes informais entre seus companheiros, possuidoras de qualidades profissionais e morais, pessoas questionadoras, competentes e capacitadas, conforme relatos:

    Ela se sentia inferior, e ela não consegue lidar com a falta de capacidade dela e ver como outras pessoas têm tanta facilidade pra atender, para fazer, até para resolver coisas rápidas (Béti).

    E aí, a Dr.ª A. cobrava dela, que ela tinha que aprender a mexer nos programas do computador, só que ela não conseguia aprender [...]. Eu sabia que eu tinha mais competências em relação a ela em algumas coisas e eu comecei a perceber claramente a chefia dela. Eu tenho certas qualidades em relação aos sistemas de informática e tudo mais, era a minha área antes de eu entrar nesse setor. E isso atingia muito ela [...] (Suzana).

Logo, como destacam Guareschi e Silva (2008), os pressupostos que permeiam a nossa cultura, como o capitalismo e o individualismo, são refletidos no âmbito laboral, materializando-se em comportamentos de competição e nas exigências que essa competição traz, ganhando, assim, força nas formas de relação entre trabalhadores. Desse modo, o assédio moral vem sendo utilizado como um mecanismo gerencial ante a presença das tecnologias disciplinares nos relatos das participantes. Os discursos destacam que as empresas se utilizavam de operadores disciplinares, como a vigilância e a punição, como modo de reiterar que estavam no "controle" para aqueles que ousassem não aceitar ordens. Nas narrativas, essas mulheres representam, por meio de suas lembranças e memórias desse momento de suas vidas, a sensação de que estavam sendo vigiadas constantemente, conforme relatos:

    Ela era uma coordenadora extremamente controladora [...]. Ela dizia: digam para todo mundo aonde vocês estão, pois, se eu precisar de ti, eu quero ir lá ao banheiro atrás de ti. Ficava vigiando mesmo. Então, eu levantava e dizia bem alto: ‘To indo lá no banheiro’, para todo mundo ouvir, e ia. Teve uma vez que [...] ela colocou o setor todo atrás de mim, porque eu não avisei (Suzana).

Ou de forma especial, conforme a seguinte fala:

    Daí eu disse para ela: por que dessa discriminação? Por que só eu sentada lá na superintendência e os outros aqui? Aí ela disse que eu era a única engenheira e tal, e não tinha por que eu não trabalhar lá com elas. Mas, na realidade, era uma vigilância especial que ela queria fazer comigo (Verônica).

Dessa forma, a vigilância era excessiva, incomum, e em momento algum se relacionava à vigilância que superiores exercem sobre seus subordinados. Logo, por meio de Foucault (1995), é possível compreender o motivo pelo qual esse mecanismo era um entre os mais utilizados, haja vista que "a vigilância serve como um ato de salvaguardar a disciplina, de viabilizá-la e de manter o controle do subordinado pelo superior. Ele não amarra as forças para reduzi-las; procura ligá-las para multiplicá-las e utilizá-las num todo" (p. 14).

As tecnologias punitivas, expressivamente comuns nos ambientes organizacionais, faziam-se presentes mediante ameaças de demissão e aplicação de estatutos disciplinares:

    Ela dizia, que em qualquer ato de insubordinação, tido como insubordinação, seria rigorosamente aplicado o estatuto disciplinar da empresa [...]. Então, ato de insubordinação seria não fazer o que ela mandava, da forma como ela mandava, não se submeter a ela. E uma reincidência disso poderia gerar uma demissão a mim e as outras pessoas. Isso era falado por ela frequentemente (Verônica).

Entende-se que as organizações desconhecem esse reflexo cultural do uso dos processos disciplinares e reproduz automaticamente esse processo, aumentando, assim, a probabilidade da ocorrência de assédio moral no seu contexto. Esse sistema que visa apenas à produtividade e à submissão, e não ao "ser humano trabalhador", aumenta o sentimento insegurança/pressão dos trabalhadores em relação aos outros, fazendo-os sentirem-se desiguais e, ao mesmo tempo, são reforçados por esse modelo. Logo, quanto aos agressores impondo-se de forma hostil, acabam unindo-se aos objetivos organizacionais ao supervalorizar o uso dessa prática, como forma de obtenção de poder e sobrevivência nesses espaços.

Os custos do assédio moral começaram então a perpassar todos os domínios da vida, inclusive na família. Essas mulheres descrevem certa intolerância e desinteresse em relação aos problemas familiares:

    Por que tu saía angustiada, com aquela coisa presa assim. E até, às vezes, eu acabava levando isso para casa, por que eu chegava muito agressiva com os meus filhos e acaba descontando neles. Porque quem diz que tem como dissociar a vida pessoal da profissional, fala porque não passou por isso (Béti).

    No começou disso tudo, passou a ser um ambiente assim, que eu chegava em casa chorando todos os dias. E eu tenho marido, eu tenho filhos que precisam de mim, que querem minha atenção, que querem o meu carinho. E eu não tava conseguindo mais passar isso (Paula).

O assédio moral passou a gerar alterações nas relações interpessoais das participantes, devido à perda da autoconfiança e da autoestima. Com uma diminuição da intimidade e com o estabelecimento de uma inconstância, tais comportamentos eram difíceis de serem compreendidos pelos amigos e até mesmo pelas próprias participantes (Pagès, Bonetti, Gaulejac & Descendre, 1987), como expresso:

    Daí assim, né, no meu aniversário, no domingo, fizeram um churrasco lá na minha casa. Ficou todo mundo no churrasco, e eu fui para a sala ver tevê, porque aquilo, para mim, não tinha graça. Aquele sentimento lá do trabalho permanecia mesmo quando eu estava longe dele. Eu saía, teve amigos que vinham aqui me buscar para sair, mas eu não achava graça nenhuma naquilo. Então, afeta assim, o tempo todo, a tua vida toda. O meu colega começou a ter problemas com os filhos. Ele chegava em casa, e os filhos dele diziam assim: o pai não fala do trabalho! Isso um filhinho de três anos! (Verônica).

Passamos, neste momento, a reconhecer as implicações na saúde das participantes, gerados pelo assédio moral.Entretanto mostramos brevemente esses relatos que traduzem a dimensão do sofrimento vivenciado por essas mulheres, pois atentamos para o fato de que não é nosso objetivo realizar, neste estudo, uma análise desveladora dos principais comportamentos hostis direcionados às vítimas ou mesmo realizar uma investigação clínica ou classificatória das principais doenças geradas por esse fenômeno. Haja vista que estaríamos descontextualizando toda a processualidade, historicidade, subjetividade, causas e contextos sociais e organizacionais envolvidos nesse fenômeno. Desse modo, não se trata de desconsiderar as consequências do bullying e o sofrimento gerado em suas vítimas, no entanto, quando verificados em demasia os sintomas, estimula-se o enquadramento do bullying como uma patologia e se acaba por extrair o caráter social e histórico presente no processo de adoecimento. Em outras palavras, passamos a desconsiderar, assim, as condições degradantes de trabalho geradas por esse sistema que normatiza, esquadrinha e mutila seus trabalhadores.

Nas palavras de Hirigoyen (2001, p. 143), "O corpo acusa a agressão antes que o cérebro, que se nega a ver o que não consegue compreender". Desse modo, algumas participantes relatam que, somados a alguns sintomas de ordem física, sobressaíam-se os sintomas de ordem psicológica, como falta de concentração, insônia, pesadelos, irritação, melancolia, apatia, tristeza, depressão, indo a ideias suicidas, que, para Leymann (1996), nada mais são do que uma das consequências mais graves desse fenômeno. Podem ser interpretados como um último ato de rebeldia, resposta ao não conseguir mais lidar com a situação ou uma acusação póstuma, como expresso pelas participantes:

    Então eu tive muitas reações ligadas ao psicológico. Ou seja, somatizei todas essas emoções ruins. Eu tinha dois, três pesadelos, e acordava de manhã chorando que eu não queria ir trabalhar [...]. Eu tive muitas alterações de sono, eu emagreci quatro quilos, perdia a fome. Eu tive mais reações assim. Por vezes, ficava apática [...]. Aí então eu ficava contando o tempo. E eu ficava olhando e só pensando em sair pela janela. Só que sair pela janela era 19º andar. Aí o meu amigo de São Paulo ficou assustado e disse: Verônica, isso aí são pensamentos suicidas. Aí eu disse: eu sei que são pensamentos suicidas, mas eles vêm! (Verônica).

    E a minha colega começou a perceber, antes de mim, que eu não estava bem. Muito irritada ou, às vezes, triste. E eu não sei o que era, vontade de chorar [...]. Daí, eu acabei entrando em depressão por causo disso (Suzana).

Logo, a procura por auxílio médico e psicológico durante o período em que estavam sendo alvos de assédio se fez presente em quase todos os relatos:

    Teve uma situação que foi assim, bá, eu me senti mal, só chorava e vomitava, sendo que eu não tinha mais o que botar para fora. Aí meu pai chegou e disse, vamos num médico. Fiz tudo quanto é que é exame, e esses exames deram tudo bem. Aí a médica de lá disse que eu precisava ir numa psiquiatra, que não tinha nada físico. Aí a psiquiatra mandou eu tomar remédios e procurar uma psicóloga que eu estou indo até hoje (Silvia).

As relações de trabalho, portanto, são agora substituídas por relações médico-paciente, numa rotina de consultas médicas e psiquiátricas (Einarsen, Hoel, Zapf & Cooper, 2003; Brant & Minayo, 2004). A partir daí, começou a se formar o que podemos chamar de processo de produção da identidade de doente por algumas dessas mulheres, pelo afastamento no trabalho e os agravos na saúde. As relações sociais, antes estabelecidas pelo seu papel profissional, agora se dão pelo lugar de adoecido, excluído das relações daqueles que antes eram seus pares (Brant & Minayo, 2004).

Desse modo, é possível compreender que, mesmo após o reconhecimento do assédio moral,tais alterações nas condições de saúde do sujeito passam a reforçar uma leitura culpabilizante do bullying, calcada nos discursos psicológicos que se centram na personalidade dos sujeitos e na investigação da patologia clínica. Esses discursos são fruto das produções, principalmente de algumas linhas da Psicologia, que buscam no indivíduo as causas de todos os males e desconsideram o coletivo. Como decorrência dessa concepção, o indivíduo se torna o maior responsável por sua condição de vida e saúde, e as circunstâncias sociais e de trabalho têm influência mínima (Einarsen & Nielsen, 2004; Garbin, 2009).

Nesse sentido, Roudinesco, citado por Garbin (2009), tece crítica à suposta sociedade "depressiva", que caracteriza e diagnostica todo e qualquer sofrimento de ordem psicológica como "depressão e estresse", e relega à subjetividade. Ainda para Garbin (2009, p. 110), essa tendência se consolida na busca por padronização comportamental que se impõe nos contextos de trabalho.

Passamos, neste momento, a compreender que a pessoa vítima de atos negativos por parte de pessoas ou organizações desenvolve problemas severos que a afastam do posto de trabalho, levando a que esta se demita, mude de setor ou que seja pela dispensada organização, tendo sido isso que aconteceu com todas as participantes desse estudo (Leymann, 1992). Na decisão entre ficar e sair do emprego, sem poder se desvencilhar da situação, sobretudo por dependência financeira, as participantes foram submetidas, por meses e anos, a constrangimentos de diversas ordens (Rodrigues, 2009). Entretanto, uma vez adoecidas e extremamente abaladas, no caso das entrevistadas que trabalhavam em empresas privadas, e sem nenhuma alternativa, a renúncia ao posto de trabalho foi a única saída, como exemplifica a narrativa de Eleonora:

    A partir do momento que ela me falou aquelas coisas que não ia com a minha cara e eu já estava tendo essas crises de choro, eu coloquei na minha cabeça que eu ia sair de lá, e só esperei mais uns dois meses porque eu precisava daquele dinheiro. Senão eu tinha saído a partir daquele momento, porque foi a gota d’água (Eleonora).

Diante desse contexto, Guareschi (2001, p. 147) nos ajuda a compreender que a exclusão tem ainda fatores psicossociais decisivos para a sua criação e perpetuação: a competitividade e a culpabilização. Tais mecanismos são extremamente eficientes e, sem eles, dificilmente a exclusão permaneceria hegemônica nas sociedades atuais. Entre esses, esse autor destaca a competitividade que, segundo nosso modo de compreensão, é também fator essencial ao assédio moral. O pressuposto neoliberal hegemônico dos dias atuais, tanto no plano econômico, filosófico e social, é de que o progresso e o desenvolvimento só são possíveis mediante a competitividade. Logo, essa competitividade não se restringe ao mercado, mas se estabelece também entre os seres humanos.

Ultrapassado esse período de desligamento do cargo ou da empresa, surgiu então uma fase de balanço para essas mulheres, que envolveu o pensar em recorrer ou renegar a indenização pelas injustiças sofridas. Nesse contexto, todas relatam que optaram por não ir adiante. As participantes apresentam assim discursos múltiplos, nos quais elas próprias acreditavam na impunidade do sistema judicial e na luta desigual, em se tratando de um processo contra o Estado, a exemplo das funcionárias públicas. Nesse sentido, o receio, o medo de perder o emprego e a cautela se fazem presentes em narrativas como de Béti, que expõe claramente esse fato:

    A partir do momento em que eu me transferi, a única coisa que eu fiz foi falar para as outras pessoas que estão se sentindo mal também para sair dali também. Porque, assim, eu acho que tem alguma maneira de a empresa ver que tem alguma coisa errada ali. Se está todo mundo pedindo para sair, tem alguma coisa que não está certa, não está bem. E se nós tentássemos algo, a empresa, com certeza, tentaria barrar. Porque teria uma repercussão muito grande. Por que tem outros interesses, né. Porque a iniciativa privada está de olho nesse filão. Porque qualquer escândalo que ocorra corre o risco de a gente até perder o emprego, porque privatiza. Então, no momento, não seria uma boa hora de fazer isso. O negócio seria manter internamente isso, né. Ou abrir um processo pessoal, meu contra ela. Não contra a empresa (Béti).

Nesse relato, é possível, no entanto, observar que se sobressai a visão individualista do bullying (algo entre agressor e vítima), que desresponsabiliza, assim, a empresa (sistema organizacional) de qualquer parcela de participação ou culpa nesse processo.

Além disso, faz-se presente nas narrativas que, devido aos desgastes emocionais gerados, revidar por direitos seria reviver tudo isso novamente. E, assim, pela sensação de impotência, de cansaço e falta de forças, optaram por desistir de tal processo:

    É que eu não fui na Justiça, porque eu tinha que repetir aquilo, tudo de novo. Ah, é horrível, horrível. Eu já não tinha nem mais forças para falar. Depois disso, tu quer é paz. Depois que tu começa a compreender, a se sentir injustiçada. Primeiro a gente pensa em se recuperar, e se reerguer. Meu marido queria que eu entrasse na Justiça, mas foi o que eu falei para a psiquiatra e para a psicóloga, que, naquele momento, eu não estava bem para enfrentar tudo isso (Silvia).

Nessa direção, percebemos que a busca por direitos e indenizações é marcada pelo que Cintra (2002), chama de medo bom e medo ruim. O medo bom está associado ao então conhecimento do bullying e o desejo de justiça. Ele é decorrente das informações obtidas pelos sujeitos sobre o fenômeno e reforçado tanto pelo senso comum como pelos discursos midiáticos e médicos. Sendo assim, ele corresponde a uma força que impulsiona as pessoas a buscarem ajuda, a enfrentar o processo judicial em busca dos direitos. O medo ruim está associado ao desconhecimento dos trâmites jurídicos sobre bullying/assédio e o medo de que isso venha a comprometer a imagem do trabalhador perante outras empresas e causar novas perseguições. Seria, portanto, o medo ruim que facilitaria a descontinuidade do processo de ação judicial.

Davenport, Schwartz e Elliott (1999) pontuam que, apesar dos constantes abusos, os trabalhadores não procuram os dispositivos legais por três razões: a) o assédio é ignorado, tolerado ou mal interpretado pela gerência; b) esse comportamento ainda não foi identificado como de natureza moral, ao contrário do que ocorre com as questões de assédio sexual e discriminação; c) as vítimas são enfraquecidas, elas se sentem exaustas e incapazes de se defender e de tomar uma atitude na justiça. Os maiores impedimentos para usar o processo de reclamação contra uma situação de assédio seriam: falta de confiança na gerência, percepção de que "nada vai acontecer", medo das consequências e dificuldades de reunir provas e testemunhas. E, assim, tal como nos diz Swain (2007), o silêncio acaba se tornando uma das estratégias utilizadas para conjurar o medo que desperta.

E, por fim, com base na análise dos discursos das participantes, consideramos que o processo de ser alvo de assédio não pode ser entendido como algo desconexo das relações de poder que se circunscrevem nos ambientes laborais e na sociedade como um todo. Todavia deixamos como escritos finais o anseio dessas mulheres por romper a barreira do silêncio e visibilizar sua experiência, na esperança de que suas vozes ecoem e façam com que outras pessoas possam identificar que estão sendo vítimas de uma forma de violência (antes que agravos mais sérios aconteçam) e não apenas do autoritarismo e do poder diretivo presente nos contextos laborais. Diante desses relatos, destaca-se que esse momento de reflexão foi, antes de tudo, um espaço de ressignificação para essas mulheres, que se sentiam gratificadas em poder dividir tal experiência, na intenção de que outras mulheres e homens não passem a naturalizar tal fenômeno, caso este se fizer presente em suas vidas:

    Eu acho importante dividir isso. Porque eu não sou a única pessoa a passar por isso, que não é fácil. E porque eu acho que isso até já se tornou comum. Qualquer pessoa que tu converses sabe de um caso. Só que não pode ser visto também, como normal, ser tratado dessa forma. Só que essa é uma questão que não é abordada como deveria. Então eu acho importante que as pessoas falem e que chegue ao ouvido de quem tem o poder para amenizar esse tipo de situação (Béti).

    Eu espero que eu tenha contribuído para que esse fenômeno se torne mais conhecido e que isso contribua para que as pessoas tenham mais conhecimento do problema e mais recursos de autodefesa, por que vivenciar isso é uma forma de tortura [...] (Verônica).

 

Considerações finais

A produção discursiva em torno assédio moral, nos limites desta investigação, diz respeito a significações perpassadas pelos discursos acadêmicos, psicológicos e midiáticos produzidos sobre assédio moral ou bullying no trabalho, no Brasil e no mundo, a que fizemos menção anteriormente. Esses discursos, na maioria das vezes, atribuem como fatores responsáveis pelo assédio o envolvimento de ordem pessoal entre autores e alvos, e, nessa direção, observou-se que algumas das participantes significavam esse fenômeno dessa maneira. Entretanto alguns discursos relacionavam tais atos hostis a algo que ultrapassa essa concepção, pois descreviam que tais comportamentos estavam intimamente ligados ao sistema laboral contemporâneo, que facilita a adoção do bullying como estratégia gerencial e de exclusão do trabalhador do sistema organizacional.

Outro aspecto identificado refere-se aos discursos das participantes, que atribuíam às chefias que praticam o assédio moral problemas de ordem psicopatológica, de personalidade ou comportamentais. No entanto, neste estudo, observamos que essa visão estava perpassada pelos discursos psicopatologizantes que vem sendo produzidos, em especial pelas ciências psicológicas, que transferem o foco de análise do coletivo para o individual e tendem a adentrar no território normativo da patologização e da adaptação dos sujeitos. Tais premissas naturalizam a associação da violência à patologia e acabam por defender os interesses organizacionais, responsabilizando os funcionários, como se essas fossem instâncias desconexas e distintas.

Ainda no que tange a esses discursos patologizadores, foi possível observar que não incidiam apenas sobre as agressoras, mas sobre as próprias participantes que, ao buscarem auxílio médico dentro e fora de suas empresas, tinham sua realidade banalizada, por meio de diagnósticos como "depressão e estresse". Os discursos expressam o desconhecimento e a dificuldade de observação da presença desse fenômeno nas relações de trabalho, haja vista que a violência vem sendo naturalizada e considerada como "tecnologia gerencial".

Relativo aos discursos já citados, os resultados deste estudo vão ao encontro de alguns estudos pioneiros sobre esse fenômeno (Leymann, 1992, 1996; Einarsen, Hoel, Zapf & Cooper, 2003) que demonstram o impacto que o assédio moral traz à vida desses trabalhadores e trabalhadoras, organizações, como também para a sociedade como um todo. As condições de constante hostilidade, perseguição, difamação, o desgaste psicoemocional e a inexistência de regulação trouxeram consequências negativas a essas trabalhadoras.

Desse modo, passamos a compreender, assim, que, na atualidade, uma das maiores dificuldades reside na penalização do bullying justamente devido à sua "camuflagem" ou "invisibilidade" e, portanto, ao alto grau de subjetividade envolvido na questão. Ou seja, a comprovação da consequência ou sofrimento da vítima, e a sua causa, indispensável na esfera criminal, nem sempre é aparente, pois tais humilhações não deixam marcas do agressor.

Acredita-se que a prevenção deste fenômeno nos espaços organizacionais se torna de suma importância, visto que esses comportamentos tendem a aumentar, levando-se em conta as mudanças globais em torno dos postos de trabalho e os novos modelos econômicos em voga. Pois, enquanto a organização e seus trabalhadores não estiverem preparados para trabalhar com a violência no seu contexto e não realizarem alguma ação para lidar e prevenir o assédio moral, serão mínimas as chances de reduzir as várias formas de comportamentos agressivos que nessa instituição podem ocorrer. Entretanto esse fenômeno é suscetível de ser identificado, prevenido e erradicado do mundo do trabalho conforme for dada a visibilidade social e se puderem intensificar os laços de solidariedade, evitando a naturalização, banalização e barbárie (Barreto, 2000; Guedes, 2004).

 

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* Mestra em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), professora da Universidade do Planalto Catarinense (Uniplac), psicóloga.E-mail:brumeurer@hotmail.com. Endereço: Avenida Castelo Branco, 170, Lages-SC, Brasil. CEP: 88059-900. Telefones: (49) 3250-1100, (51) 3346-2240.
** Doutora em Psicologia Social (USC ES), mestra em Saúde Coletiva (Ulbra-RS); professora da Faculdade de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia (PUC-RS), bolsista produtividade do CNPq.E-mail:mary.sandra@pucrs.br.
*** Pós-doutora pela Universitat de Barcelona, doutora pela Universidad Autónoma de Madrid, professora titular na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), pesquisadora CNPq, psicóloga social.E-mail:streymn@pucrs.br.