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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.18 no.3 Belo Horizonte dez. 2012

https://doi.org/10.5752/P.1678-9563.2012v18n3p458 

ARTIGOS

http://dx.doi.org/10.5752/P.1678-9563.2012v18n3p458

 

O fantasiar metapsicológico do psicanalista e aquele do escritor criativo: semelhanças e distinções

 

The fantasizing in the psychoanalyst's metapsychological work and in the creative writer: similarities and differences

 

El fantasear metapsicológico del psicoanalista y aquel del escritor creativo: semejanzas y distinciones

 

 

Ricardo Lincoln Laranjeira Barrocas; Osvaldo Costa Martins*

 

 


Resumo

Abordamos aqui o que Freud chamou de fantasiar em relação à metapsicologia (seu trabalho epistemológico por excelência) e à atividade do escritor criativo que entendemos como literária. Procuramos mostrar algumas de suas semelhanças e distinções que, por sua vez, remetem ao desejo. A primeira implica uma especulação aliada às objetividade e racionalidade científicas; difere também do irracionalismo de uma autonomização da fantasia. A realização do desejo é aqui indireta. A segunda atividade é considerada como produção imaginativa, criativa e autobiográfica. A realização do desejo é direta aqui.

Palavras-chave Psicanálise. Fantasiar. Metapsicologia. Escritor criativo. Desejo.


Abstract

We dicuss here, what Freud called "The Metapsychology Fantasize" considering both the metapsychology (his epistemological work par excellence) and the writer’s literary creativity. Some similarities and differences between the two are shown. Both refer to desire. The first one includes speculation associated to both scientific objectivity and rationality. It also differs from an irrationalism drawn on the empowerment of fantasy. Wish fulfillment is not direct here. The second is considered as imaginary, creative and autobiographical. There is a direct wish fulfillment here.

Keywords: Psychoanalysis. Fantasizing. Metapsychology. Creative writer. Wish.


Resumen

Tratamos aquí lo que Freud llamó el fantasear en relación a la metapsicología – su trabajo epistemológico por excelencia –, y a la actividad del escritor creativo, comprendida como literaria. Procuramos exponer algunas semejanzas y distinciones entre las dos que, a su vez, se refieren al deseo. La primera implica una especulación aliada a la objetividad y la racionalidad científicas y se distingue del irracionalismo de una autonomización de la fantasía. La realización del deseo aqui es indirecta. La segunda actividad es considerada como producción imaginativa, creativa y autobiográfica. La realización del deseo es directa aquí.

Palabras clave:Psicoanálisis. Fantasear. Metapsicología. Escritor creativo. Deseo.


 

 

O fantasiar no psicanalista e no escritor criativo: semelhanças e distinções 1

    Toda ciência se baseia em observações e experiências (feitas mediante) nosso aparelho psíquico; [...] nossa ciência tem por assunto, esse próprio aparelho. (Freud, 1975b, p. 184).

O "fantasiar" (Phantasieren), termo empregado por Freud, remete evidentemente ao conceito de fantasia (Phantasie) que, segundo Roudinesco e Plon (1998), "designa a vida imaginária do sujeito e a maneira como este representa para si mesmo, sua história ou a história de suas origens" (p. 223). Embora alguns autores utilizem outras versões: ‘fantasma’, ‘fantasmatização’ e ‘fantasmatizar’ – estas são encontradas em alguns textos franceses, por exemplo –, preferimos empregar os conceitos que o próprio Freud sugeriu; repetimos: fantasiar e fantasia, já aludidos.

Investigamos, então, como o aludido fantasiar aparece ora na função metapsicológica do psicanalista, ora no escritor criativo, cuja produção nós atribuímos à obra literária. Depois de apresentar as duas atividades, tentamos discorrer sobre suas semelhanças e distinções.

 

O fantasiar na atividade metapsicológica do psicanalista

Por metapsicologia, entendemos aquilo que Assoun (1983, p. 11) chama de "discurso epistemológico sui generis", ou seja, uma "plataforma epistemológica, ao mesmo tempo extraordinariamente explícita e concisa" mediante a qual Freud pensou o fieri(devir) de sua produção metodológica e teórica, em relação à escuta clínica.

Laplanche e Pontalis (1978, p. 238-239) definem a metapsicologia como a psicologia que Freud criou "em sua dimensão mais teórica". Trata-se de um "conjunto de modelos conceptuais mais ou menos distantes da experiência, qual a ficção de um aparelho psíquico dividido em instâncias, a teoria das pulsões, os processos de repressão (refoulement, tradução nossa2)". A metapsicologia compreende três aspectos, a saber: tópico, dinâmico e econômico. Segundo os autores, na tópica, Freud se refere à diferenciação de certo número de sistemas dotados de "funcionamento diferentes [...], uns em relação aos outros, o que permite considerá-los metaforicamente como lugares psíquicos a que se pode dar uma representação figurada espacialmente" (Laplanche & Pontalis, 1978, p. 484, tradução nossa).

Quanto ao aspecto dinâmico, Freud considera "os fenômenos psíquicos como resultado do conflito e da composição de forças que exercem certa pressão [...] de origem pulsional". A perspectiva dinâmica corresponde "à hipótese de que os processos psíquicos consistem na circulação e na repartição de uma energia quantificável (energia pulsional), quer dizer, suscetível de aumento, diminuição e equivalências" (Laplanche & Pontalis, 1978, p. 123, 125, tradução nossa).

No livro A psicopatologia da vida cotidiana, Freud (1976, p. 309) atribui à metapsicologia o "reconhecimento obscuro [...] de fatores [...] e relações no inconsciente". Trata-se da "construção de uma realidade sobrenatural" destinada "a ser re-transformada, pela ciência, em psicologia do inconsciente". O termo "sobrenatural" da tradução brasileira, aqui utilizada, não remete senão ao que podemos chamar de ficção, ou seja, mitologia metapsicológica.

Consideramos que o aspecto de ficção decorre do fato de Freud, segundo Assoun, situar a psicanálise como uma "‘ciência da natureza’ (Naturwissenschaft) sobre o modelo da física que pensa os corpos em termos de projeção (grifo nosso) espacial, de desenvolvimento de forças e produção de quantidades" (Assoun, 2000, p. 9) (tradução nossa). O que se impõe, então, é uma "metapsicologia, ou seja, uma psicologia dos processos que conduzem para além do consciente e que encontrará seu lugar – de certa forma ‘atópico’ –, ao lado da psicologia (duplo sentido do prefixo ‘meta’)" (Assoun, 2000, p. 7, tradução nossa).

Faz-se relevante enfatizar, todavia, com Assoun ainda, que não se trata de auto-observação no sentido do que "Freud chama de ‘fenomenologia psíquica’, a descrição das percepções, sentimentos, processos intelectuais e atos voluntários, isto é, de simples psicologia". Tal resulta da "observação fenomenal do ‘eu’ por si mesmo". "A metapsicologia rompe com (esta) fenomenologia, na medida em que ela reconstrói (grifo nosso) os processos, em vez de se fiar aos dados fenomenais imediatos". (Assoun, 2000, p. 19-20) (tradução nossa). Mais adiante, voltaremos a este assunto.

De fato, quando escreve Análise Terminável e Interminável, Freud (1975a, p. 257) ratifica seu modo de conceber a teoria psicanalítica, que pressupõe uma ligação entre objetividade e especulação, racionalidade e atividade imaginativa. Ele afirma precisar recorrer à "feiticeira Metapsicologia" para avançar nos impasses surgidos em seu processo de investigação.

    Sem especulação e teorização metapsicológica – quase disse "fantasiar" –, não daremos outro passo à frente. Infelizmente, aqui como alhures, o que a Feiticeira nos revela não é muito claro nem muito minucioso. Temos apenas [...] única pista para começar – embora seja uma pista do mais alto valor –, a saber, a antítese entre o processo primário e o secundário, e é para essa antítese que me voltarei neste ponto (Freud, 1975a, p. 257).

A antítese de que se trata pode ser assim explicada:

    A psicanálise tem um gênero particular de pensamento psicológico que se poderia qualificar de metapsicológico. Trata-se da consideração do psíquico como algo objetivo, (obtido) depois de que (nos tenhamos) liberado das restrições impostas pelas formas da percepção consciente. [...] Neste modo [...] de considerar os fenômenos, existe um sistema que funciona sem os elementos do tempo. [...] O que nós estudamos são os processos que não se produzem no interior dos sistemas psíquicos, mas entre eles (Freud apud Delrieu, 1997, p. 636) (tradução nossa).

Conforme Assoun (2000, p. 11) a referência de Freud à metapsicologia implica a tentativa "de sair de uma aporia no domínio da clínica". De fato, ante um impasse.

O clínico imobilizado na contradição dos fatos não pode "restaurar a saúde" senão "consultando" a metapsicologia. O recurso ao fantasiar é neste caso essencial: trata-se do outro nome da "especulação" ou da "teorização". "Fantasiar" ("phantasmer") não significa divagar: pelo contrário. Trata-se de um modo rigoroso para escapar a uma paralisia do pensamento clínico (Assoun, 2000, p. 11) (tradução nossa).

O fantasiar ganha relevo, na teoria psicanalítica, como motor da associação livre que concerne, invariavelmente, ao que constitui o sujeito. Sem a associação livre, a fala que implica tudo o que possa emergir no pensamento do analisante, a clínica não seria possível. Nesse sentido Sérgio Laia afirma:

    Quando o falante leva a sério o que diz, isto é, experiencia o peso das palavras e se deixa afetar pelo que escuta, ele poderá paradoxalmente se apreender como esse desvanecimento que o marca enquanto sujeito. Nesse processo, as certezas que afirma acabam por ser consumidas pelo próprio labirinto no qual as palavras o enredam e suas dúvidas podem assumir [...] uma contundência e um valor que, até então, ele não imaginava (Laia, 1997, p. 141).

Com Assoun (1983, p. 103), admitimos que o recurso epistemológico de Freud se justifique pelo fato de "a ponta extrema da especulação metapsicológica" coincidir com uma atividade do fantasiar. Há, pois, para Freud, "um nexo entre a racionalidade e o imaginário":

    Mas, justamente, se o trabalho freudiano de racionalidade não pode reduzir-se a um banal racionalismo aplicado, precisamos evitar reduzir a episteme que ela decididamente engaja, ao estatuto puro e simples de uma (fantasia) como outra qualquer – entendamos: exprimindo o trabalho habitual, por assim dizer, do inconsciente.

    É verdade que, olhando as coisas de mais perto, o trabalho de produção de um conceito metapsicológico, que Freud descreve no início de Pulsões e destinos das pulsões3 [...], refere-se ao esquema geral do trabalho do inconsciente, ou seja, a um conjunto de operações que transformam materiais num produto, por um conjunto de procedimentos que culminam num efeito de "deformação". O tratamento teórico se alimenta, pois, de uma lógica do inconsciente homóloga, cuja raiz comum seria o Phantasieren. Todavia, a questão da racionalidade psicanalítica seria resolvida de modo bastante econômico, dissolvendo-se na multiplicidade das expressões da fantasia.4 Tudo se passa como se Freud tivesse se precavido contra o perigo do racionalismo autonomizando a ratio e contra o irracionalismo dissipando a teoria em ficção fantasmática, indicando para a atividade teórica uma modalidade original do Phantasieren (Assoun, 1983, p. 103-104).

Consideramos tratar-se, nesta modalidade original do fantasiar, do que Mezan (1995, p. 35, 45) nomeia proficientemente como "figuração". Esta implica "um verdadeiro traço de estilo, e não apenas em sentido literário, mas também como estilo de pensamento". Para o autor, assim como "a acuidade visual que transparece nos sonhos" e se reflete "no plano do relato": no que é posto em palavras, "essa qualidade plástica" existe também no campo "da elaboração teórica". Segue-se, portanto, que a alusão à feiticeira traduz um "gesto ambíguo [...] de aproximação e repulsa". De fato, "a metapsicologia opera com fórmulas que nada mais são do que configurações de conceitos e regras para lidar com eles". Nesse sentido, Mezan afirma ainda:

    Mesmo sob a dimensão mais abstrata dos conceitos teóricos, sujeito às regras do pensamento racional que a psicanálise designa com o nome de "processo secundário", continua a pulsar o lado plástico, sensorial, cênico, que ancora as produções do secundário no terreno movediço do processo primário (Mezan, 1995, p. 10).

A este respeito, Beividas assevera que,

    Além do sujeito do conhecimento, que age racionalmente, há outro sujeito, que reage segundo outros parâmetros. Além – ou aquém – do sujeito da ciência há o sujeito do desejo, que trabalha tanto quanto pouco se mostra, que fala nos interditos da fala racional, ativo mais do que o sujeito racional, porque vela, em sonhos, até quando este repousa, em sono (Beividas, 2000, p. 10).

Para entender o que Beividas comenta, é preciso, no entanto, conceber que os sujeitos aludidos são apenas dois aspectos ou significados da atividade do psicanalista em sua metapsicologia. Ademais, como o desejo que inferimos pulsar, ancorado nos processos primários, é o mesmo que pode aparecer como lapso no discurso racional, só podemos falar de único sujeito. O termo "único" aqui remete ao que é contável, numericamente falando, tanto quanto à singularidade que cada um encarna em sua história pessoal. Tal se aplica também ao que concerne à atividade do escritor criativo. Aprofundaremos o assunto posteriormente, quando recorrermos ao pensamento epistemológico de Piaget.

 

O fantasiar no escritor criativo

A respeito do escritor criativo, Freud diz: "Faz o mesmo que uma criança que brinca. Cria um mundo de fantasia que ele leva muito a sério, isto é, no qual investe uma grande quantidade de emoção, enquanto mantém uma separação entre o mesmo e a realidade" (Freud, 1976, p. 150).

    Ao crescer, as pessoas param de brincar e parecem renunciar ao prazer que obtinham do brincar. Contudo, quem compreende a mente humana sabe que nada é tão difícil para o homem quanto abdicar de um prazer que já experimentou. Na realidade, nunca renunciamos a nada; apenas trocamos uma coisa por outra. O que parece ser uma renúncia é, na verdade, a formação de um substituto ou sub-rogado. Da mesma forma, a criança em crescimento, quando para de brincar, só abdica do elo com os objetos; em vez de brincar, ela agora fantasia. Constrói castelos no ar e cria o que chamamos de devaneios. [...] O brincar da criança é determinado por desejos: de fato, por [...] único desejo – que auxilia o seu desenvolvimento – o desejo de ser grande e adulto. A criança está sempre brincando "de adulto", imitando em seus jogos aquilo que conhece da vida dos mais velhos (Freud, 1976, p. 151).

Freud acrescenta que, diferentemente da criança "que não tem motivos para ocultar esse desejo", por um lado, o adulto sabe que "não se espera dele" continuar a "brincar ou a fantasiar, mas que atue no mundo real". Por outro lado, "alguns dos desejos que provocaram suas fantasias são de tal gênero que é essencial ocultá-las. Assim, o adulto envergonha-se de suas fantasias por serem infantis e proibidas" (Freud, 1976, p. 151).

As brincadeiras infantis, como o ato de criação pelo escritor, concernem à obtenção de prazer. Freud (1976, p. 152) considera a tese de que "as fontes motivadoras das fantasias são os desejos insatisfeitos, toda fantasia é a realização de um desejo, uma correção da realidade insatisfatória". Todavia, os produtos das fantasias não são inalteráveis. Eles se adaptam às mudanças de cada situação vivida, embora recebam "a cada nova impressão ativa, uma espécie de ‘carimbo de data de fabricação’". Tal implica, portanto, a relação da fantasia com o tempo.

    A relação da fantasia com o tempo é, em geral, muito importante. É como se ela flutuasse entre três tempos – os três momentos abrangidos pela nossa ideação. O trabalho mental vincula-se a uma impressão atual, a alguma ocasião motivadora no presente que foi capaz de despertar um dos desejos principais do sujeito. Dali retrocede à lembrança de uma experiência anterior (geralmente da infância) na qual esse desejo foi realizado, criando uma situação referente ao futuro que representa a realização do desejo. O que se cria é então um devaneio ou fantasia, que encerra traços de sua origem a partir da ocasião que o provocou e a partir da lembrança. Dessa forma o passado, o presente e o futuro são entrelaçados pelo fio do desejo que os une (Freud, 1976, p. 153).

De acordo com Freud, essa relação com o tempo é aplicável à obra do escritor imaginativo, tanto quanto à criação poética. Nos dois casos, há uma "experiência no presente" que desperta a lembrança de algo vivido anteriormente, geralmente na infância "da qual se origina então um desejo que se realiza na obra criativa. A própria obra revela elementos da ocasião motivadora do presente e da lembrança antiga" (Freud, 1976, p. 156). Assim como o adulto se envergonha de revelar suas fantasias, no escritor criativo, contudo, qual no poeta, os devaneios não podem ser expressos de qualquer forma. Para Freud, mesmo que aquele "os comunicasse, para nós, o relato não nos causaria prazer. Sentiríamos repulsa, ou permaneceríamos indiferentes". Freud diz que, quando a obra criativa nos é apresentada, "sentimos grande prazer, provavelmente originário da confluência de muitas fontes. Como o escritor o consegue constitui seu segredo mais íntimo" (Freud, 1976, p. 158).

    A verdadeira ars poetica está na técnica de superar esse nosso sentimento de repulsa, sem dúvida, ligado às barreiras que separam cada (eu) dos demais. Podemos perceber dois dos métodos empregados por essa técnica. O escritor suaviza o caráter de seus devaneios egoístas por meio de alterações e disfarces, e nos suborna com o prazer puramente formal, isto é, estético, que nos oferece na apresentação de suas fantasias. Denominamos de prêmio de estímulo ou de prazer preliminar o prazer desse gênero que nos é oferecido, para possibilitar a liberação de um prazer ainda maior, proveniente de fontes psíquicas mais profundas. Em minha opinião, todo prazer estético que o escritor criativo nos proporciona é da mesma natureza desse prazer preliminar, e a verdadeira satisfação que usufruímos de uma obra literária procede de uma liberação de tensões em nossas mentes (FREUD, 1976, p. 158).

Herzog e Saltztrager (2002, p. 98) afirmam que, quando se reconhece na atividade da fantasia apenas a atuação de conteúdos reprimidos, como quando se diz que um artista transpõe para sua arte marcas de vivências da infância, corre-se "o risco de reduzir o processo inventivo à mera atualização dessas marcas". Para os autores, a criação artística vai, além disso, exatamente por mesclar derivados de conteúdos reprimidos com o trabalho original e consciente do artista. Trata-se do que garante a possibilidade do novo na obra de arte.

Tentamos ilustrar aquilo a que aludimos nos dois parágrafos acima, recorrendo a um comentário de Jorge Luis Borges que caracteriza a inteligência poética:

    Eu penso que tudo o que me acontece tem que ser uma espécie de argila para minha obra, mas que não devo tentar procurar palavras que sejam, digamos, um espelho da realidade. Tenho que modificar essa realidade de alguma maneira, e essas diversas modificações se chamam fábula, se chamam conto, se chamam relato ou também poema, já que eu diria que tudo que escrevo é autobiográfico, mas nunca de maneira direta, e sim indireta. [...] Além do mais, se admitirmos a metáfora, a metáfora é um método indireto de dizer as coisas (Borges & Ferrari, 2009, p. 210).

As palavras do escritor argentino ratificam a ideia de que o fantasiar participa da criação literária,5 submetendo-se a objetivos e operações distintas das que regem a produção científica. Nesta última, dá-se a busca incessante pela objetividade e explicação dos fenômenos observados, enquanto que, naquela, ocorre uma leitura da realidade ao puro sabor da imaginação criativa do poeta. É nesse sentido também que entendemos as palavras do escritor pantaneiro Manoel de Barros: "Poesia não é paisagem, é linguagem, eu invento o meu pantanal" (Cezar, 2010).

Aprofundamos agora o que anteriormente implicamos nos dois aspectos da atividade metapsicológica. Como já mostramos, não podemos dizer que haja dois sujeitos aí, mas dois aspectos: o que é racional implica os processos secundários,6 porque atenta para a comunidade epistêmica ou científica; o segundo, por decorrer do desejo, fala nos interditos e remete aos processos primários.

Para aprofundar o de que se trata, recorremos ao pensamento epistemológico de Piaget (1980, p. 25). Conforme o autor, a característica própria do conhecimento científico é a de "conseguir [...] certa objetividade (grifo nosso), no sentido de que mediante o emprego de certos métodos quer dedutivos (lógico-matemáticos), quer experimentais, há finalmente acordo entre os sujeitos sobre determinado setor de conhecimentos". Tal acordo implica a comunidade epistêmica aludida acima.

    Dizemos desde já que esta objetividade em nada exclui a necessidade de uma atividade do sujeito no ato do conhecimento. Mas é preciso distinguir dois significados ou, para dizer com mais exatidão, dois aspectos no que se designa por sujeito. Falaremos, por um lado, do "sujeito epistêmico" para designar o que há de comum a todos os sujeitos de um mesmo nível de desenvolvimento, independentemente das diferenças individuais: por exemplo, as atividades de classificar, de ordenar e de enumerar são comuns a todos os adultos normais, de tal modo que a série dos números inteiros é a mesma em todos os indivíduos (sem, no entanto, ser necessariamente tirada dos objetos). Falaremos, por outro lado, de "sujeito individual" para designar o que continua a ser próprio de tal ou tal indivíduo: por exemplo, cada um pode simbolizar essa série dos números por uma imagem mental particular (sequência de traços verticais, escada, discos empilhados, etc.) que difere de um indivíduo para o outro. É, pois, próprio do conhecimento científico conseguir uma objetividade cada vez mais completa, mediante um duplo movimento de adequação ao objeto e de descentração do sujeito individual na direção do sujeito epistêmico (Piaget, 1980, p. 25-26).

 

O fantasiar no psicanalista e no escritor criativo: a guisa de conclusão

Comunicamos, agora, as semelhanças e o que distingue particularmente o fantasiar na atividade metapsicológica e aquele que é eminentemente literário ou poético. Cabe, antes, fazer um comentário a respeito do que Piaget chama de "certa objetividade" e "adequação ao objeto". Considerando que, para Freud (1974, p. 137), os conceitos psicanalíticos não provêm do material de observação, mas a este foram impostos, ou seja, submetidos, jamais poderá ser descartado o que há do fantasiar na atividade metapsicológica. De fato, a faculdade de ideação – o que, com Mezan (1995, p. 10), repetimos, podemos entender como "figuração" –, está também na origem dos conceitos básicos da Psicanálise.

O que concerne ao fantasiar metapsicológico é um desejo em segundo grau, por assim dizer, desejo enviesado porquanto o que está em pauta não é autobiográfico, mas referência epistemológica à ciência que requer certa objetividade. A objetividade aqui vem de par com a especulação metapsicológica, ou seja, o fantasiar. Repetimos: não se trata diretamente da realização de um desejo pessoal do psicanalista. Se este assim procedesse, suas atividades, teórica e epistemológica, tornar-se-iam pura ficção fantasiosa. De fato, já dissemos com Assoun (1983, p. 103-104) que Freud se precaveu seja contra uma racionalidade autonomizada, seja contra o irracionalismo que dissiparia sua teoria em pura ficção fantasiosa.

Deve predominar, na ciência, uma racionalidade que limite o fantasiar mediante referência a certos cânones epistêmicos ou científicos. Como é somente a ponta extrema da especulação metapsicológica que coincide com a atividade da fantasiar, não se espera que a vida pessoal do psicanalista se realize diretamente na ciência.

O fantasiar do escritor criativo está muito mais próximo da realização de um desejo pessoal porque sua produção é, por assim dizer, autobiográfica. Por mais que possa haver aí a produção da novidade (lembremos Manoel de Barros que diz: "eu crio meu pantanal"), todavia, o escritor não comunica sua produção criativa de qualquer forma, isto é, sem uma referência ao público leitor. Se assim fizesse, a obra em questão poderia causar não o prazer esperado coletivamente, mas repulsa ou indiferença. Tampouco haveria a liberação das tensões pessoais a que Freud alude a esse respeito.

Na atividade da ars poética, buscam-se reinventar as experiências, cravando-as, inexoravelmente, com marcas subjetivas, ou seja, com a singularidade da história pessoal. Trata-se de criações, não de exatidão, mas concernentes à pluralidade de sentidos ou, em outras palavras, à ausência de um sentido inequívoco.

 

Referências

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Beividas, Waldir. Inconsciente et verbum: psicanálise, semiótica, ciência, estrutura. São Paulo: Humanitas, FFLCH, USP, 2001.         [ Links ]

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Freud, Sigmund. (1976). A psicopatologia da vida cotidiana. In: Sigmund Freud. Edição standard das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Jayme Salomão, trad. sob a direção, Vol. 6, pp. 9-332). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1901).         [ Links ]

Herzog, Regina & Saltztrager, R. (2002). Sobre a dimensão inventiva da fantasia. In: Waldir Beividas (org.). Psicanálise, pesquisa e universidade. (pp. 85-98). Rio de Janeiro: Contra Capa.         [ Links ]

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Roudinesco, Elisabeth & Plon, Michel. (1998). Dicionário da psicanálise. (Vera Ribeiro, Lucy Magalhães, trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar.         [ Links ]

 

 

* Mestre pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Ceará. Endereço: Rua Dr. Gilberto Studart, 1480, apto. 201 - Cocó, Fortaleza-CE. CEP: 60192-095. E-mail:osvaldocostamartins@yahoo.com.br.
1 Trata-se de texto inspirado em dois outros trabalhos: "A perspectiva dinâmica das pulsões de vida e de morte" e "A metapsicologia", de autoria de Ricardo L. L. Barrocas, destinados ao uso dos membros do CPLEP: Círculo de Pesquisas sobre Lógica e Epistemologia das Psicologias do Departamento de Psicologia, UFC.
2 Optamos pelo termo "repressão", que aparece na tradução brasileira referida.
3 Na Edição brasileira da Imago das Obras Completas de Sigmund Freud, aparece outro título: "Os instintos e suas vicissitudes".
4 O tradutor usou a palavra "fantasmática".
5 Consideramos o que concerne à literatura como referência também para as criações de quaisquer outras linguagens artísticas.
6 Os processos primário e secundário são os dois modos de funcionamento do aparelho psíquico, conforme conceituado por Freud. O primeiro concerne ao funcionamento do sistema inconsciente e o segundo ao sistema pré-consciente-consciente. O que é primário se rege por um constante deslizamento de sentido por meio dos mecanismos de deslocamento e condensação. O que é secundário advém de uma alteração do processo primário; é o responsável pela regulação da linguagem consciente, das operações lógicas e da atenção, dentre outras funções (cf. Laplanche e Pontalis, 2000, p. 370). Neste trabalho, a referência dada a essas noções pressupõe a repressão ou recalque, excluindo, portanto, o modo de estruturação e funcionamento psicóticos.