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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.19 no.2 Belo Horizonte  2013

https://doi.org/DOI-10.5752/P.1678-9563.2013v19n2p155 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9563.2013v19n2p155

 

Subjetividade e teoria crítica da sociedade

 

Subjectivity and the critical theory of society

 

Subjetividad y teoría crítica de la sociedad

 

 

Carlos Roberto Drawin*

 

 


Resumo

A ideia fundamental a ser tomada como eixo deste artigo pode ser abstratamente definida do seguinte modo: a categoria de subjetividade como algo imprescindível à construção de uma teoria crítica da sociedade. Para que essa ideia se torne menos abstrata, precisamos elucidar os componentes dessa definição: a "subjetividade" e a "teoria crítica", bem como a sua inter-relação. A categoria de subjetividade se refere ao predicado fundamental que define a essência do homem em sua contraposição aos outros entes do mundo, sejam naturais, como os animais, sejam artificiais, como os objetos técnicos. Desse modo, a categoria de subjetividade é um índice da irredutibilidade do humano e, enquanto tal, contrapõe-se frontalmente aos programas epistemológicos de naturalização do humano e aos projetos políticos de sua manipulação como um objeto técnico.

Palavras-chave: Subjetividade. Ética. Reconhecimento. Teoria crítica.


Abstract

The main idea to be defined as the axis of this article can be abstractedly defined as follows: the category of subjectivity as something indispensable to the construction of a critical theory of society. In order to make this idea more concrete, we need to discuss the components of this concept: "subjectivity" and "critical theory", as well as their relation to one another. The category of subjectivity concerns the fundamental predicates which defines Man's essence in contraposition to other beings of the world, whether they are natural – such as the animals – or unnatural – such as artificial objects. Therefore, the category of subjectivity is an index of the irreducibility of human condition and, as such, is a frontal opposition to the epistemological programs of naturalization of the human condition as well as to the political projects which aim to manipulate it as an artificial object.

Keywords: Subjectivity. Ethics. Recognition. Critical theory.


Resumen

La idea fundamental a ser tomada como eje de este artículo puede ser abstractamente definida de la siguiente manera: la categoría de subjetividad como algo imprescindible en la construcción de una teoría crítica de la sociedad. Para que esa idea sea menos abstracta, necesitamos elucidar los componentes de esa definición: la "subjetividad" y la "teoría crítica", así como su interrelación. La categoría de subjetividad se refiere al predicado fundamental que define la esencia del hombre en su contraposición a los otros entes del mundo, sean naturales, como los animales, sean artificiales, como los objetos técnicos. De ese modo, la categoría de subjetividad es un índice de la irreductibilidad de lo humano y, como tal, se contrapone frontalmente a los programas epistemológicos de naturalización de lo humano y a los proyectos políticos de su manipulación como un objeto técnico.

Palabras clave: Subjetividad. Ética. Reconocimiento. Teoría crítica.


 

 

Quando lemos um texto, devemos levar em consideração um princípio fundamental da hermenêutica que pode nos ajudar a compreender o que moveu o autor ao escrevê-lo. Trata-se de um princípio muito simples, mas não sem importância, que consiste em indagar qual questão ou tema está subjacente ao texto que vamos ler. Se nós perguntarmos ao texto algo que ele não pretende responder, então é inevitável que ocorra um choque entre o leitor e o autor e, por conseguinte, uma reação de frustração por parte de um leitor que se sente ludibriado. Os títulos dos textos podem ser enganadores, sobretudo quando um título se torna muito vago em decorrência da diversidade de assuntos que pode conter. Esse é o caso deste artigo, e, por isso, é recomendável esclarecer a questão que o orienta e o seu desdobramento expositivo, ou seja, iniciá-lo com uma consideração preliminar.

O tema deste artigo é teórico e, simultaneamente, abrangente e complexo. Trata-se, na verdade, de um work in progress que se articula a diversos outros textos já publicados ou encaminhados para publicação. No entanto, apesar da obscuridade de algumas ideias que precisam ainda ser amadurecidas, o argumento que aqui se desenvolve tem a pretensão da clareza, uma vez que seu conteúdo tem um caráter programático e seu objetivo consiste em contribuir para um horizonte de discussão que atualmente se trava no campo da Psicologia. Começo, portanto, assinalando que o título proposto traz consigo a ideia matriz que será desdobrada na exposição e que pode ser apresentada por meio da seguinte tese: não podemos prescindir da categoria de subjetividade na construção de uma teoria crítica da sociedade. Tomo aqui o termo "categoria" no sentido clássico de um predicado de grande extensão que permite organizar significativamente a realidade. Assim, por exemplo, uma coisa pode estar situada neste ou naquele lugar específico, mas todas as coisas materiais estão localizadas em algum lugar e, por conseguinte, só podem ser concebidas a partir da categoria de espaço. Desse modo, a categoria de espaço é fundamental para caracterizarmos o conjunto das coisas materiais, mas não se aplica aos objetos mentais, pois estes não são localizáveis no espaço. O mesmo ocorre, como mostrou Aristóteles, com outras categorias, como tempo, substância, quantidade, qualidade ou relação que são os significados fundamentais do ser (Aristóteles, 1967, Cat. 4; Aristóteles, 2012, Met. p. 20-25; Mora, 1981, p. 253-260).

Numa perspectiva semelhante, podemos dizer que a categoria de subjetividade, tal como foi proposta pelo pensamento moderno, define a dimensão irredutível do ser humano e o distingue radicalmente de todos os outros entes. Tal consideração pode parecer bastante óbvia, mas atualmente pode-se discernir uma tendência simultaneamente forte e difusa de naturalização do ser humano, que passa a ser tratado como uma coisa entre outras e se torna objeto de conhecimento científico e de manipulação técnica. Ainda que a naturalização do humano seja apresentada como um imenso progresso que beneficiará a nossa vida, tornando-a mais longa, saudável e produtiva, o abandono da categoria de subjetividade no esforço de conceitualização do ser humano tem uma clara função ideológica e se contrapõe ao projeto de uma teoria crítica da sociedade (Drawin, 2004).

Essa é a ideia que aqui se expõe em toda a sua simplicidade temática. No entanto a categoria de subjetividade contém em si múltiplas e heterogêneas significações, e também, por conseguinte, muitos problemas e dificuldade. Esse conjunto, que reúne essas significações heterogêneas, que podem ser mais ou menos discernidas, e os problemas que os próprios discernimentos suscitam foi aqui denominado como "problemática", pois esse termo concerne a uma inter-relação de concepções e questionamentos ou de teorias que suscitam novos problemas e de problemas que demandam novas proposições teóricas.

Seria preciso, então, desbastar esse cipoal semântico de modo a traçar o caminho do argumento aqui desenvolvido e que se tece em torno da questão anteriormente indicada, a qual vale reiterar: em que sentido a categoria de subjetividade é relevante para uma teoria crítica da sociedade? Não há, aqui, nenhuma pretensão de responder tal questão, mas apenas fornecer alguns elementos que possam subsidiar o seu enfrentamento. Para tanto, essa exposição foi dividida em três partes:

    1ª - a problemática da subjetividade: uma demarcação metódica;

    2ª - a problemática da subjetividade: uma elucidação filosófica;

    3ª - a problemática da subjetividade: uma proposição crítica.

1. A problemática da subjetividade: uma demarcação metódica

Quando usamos uma expressão como "problemática da subjetividade", estamos problematizando um termo amplamente utilizado e cujo significado parece ser intuitivo, desde que seja explicitado o seu contexto de uso. No caso da Psicologia, o termo "sujeito" que atualmente parece prevalecer poderia, em sua acepção corriqueira, ser tomado como sinônimo de "indivíduo" ou "pessoa". Essa sinonímia de uso corrente, porém, é obviamente insuficiente, não só porque banaliza o termo ao deixá-lo conceitualmente indeterminado, mas também porque pouco contribui para o aprofundamento crítico das práticas que a ele recorrem, pois a carência teórica e filosófica, em vez de fortalecê-las, as aprisiona em sua abstração (Drawin, 2009a, p. 45-60). Mas não seria um tanto enigmático falarmos em práticas abstratas? Será, pois, introduzida e demarcada a problemática da subjetividade examinando-se esse aparente paradoxo.

O uso espontâneo do termo "subjetividade" aqui aludido pode ser tomado como ponto de partida: num amplo espectro de discursos que circulam no espaço múltiplo e dispersivo da Psicologia, encontramos referências indefinidas a termos como "sujeito", "subjetividade" e "subjetivação" que aparentemente se referem a "objetos" situados em nossos campos de atuação. Por que devemos continuar recorrendo a tais termos quando tentamos elaborar nossas práticas? Qual seria o significado que devemos dar a essas palavras tão frequente e espontaneamente utilizadas? A frequência do uso de uma palavra e a abrangência de sua polissemia não atestaria justamente o esvaziamento de seu conteúdo e a necessidade de abandoná-la? Por que insistir em termos que remetem à categoria de subjetividade numa época que submeteu essa categoria a tão intenso questionamento filosófico? Buscar algum tipo de elucidação conceitual em torno da subjetividade teria alguma relevância quando o que importa é apenas descrever, relatar e avaliar as experiências e práticas concretas?

Essas são perguntas difíceis de responder, e nem caberia a este texto apresentar uma resposta, mas isso não impede que se proponham alguns subsídios para a sua satisfatória elucidação, ao menos para contribuir com alguma reflexão a respeito de um tema intrincado. A hipótese proposta neste artigo, numa formulação simples e direta, e que já foi quase inteiramente antecipada, é a seguinte: a categoria de subjetividade continua sendo essencial para a sustentação de um pensamento social crítico; não obstante o seu uso exige um longo trabalho de elaboração filosófica que, enquanto tal, supõe um distanciamento crítico da prática, sem o qual esta acaba enredada na abstração da vida quotidiana. Para clarificar o que quer dizer a expressão bastante estranha "abstração da vida quotidiana", parece imprescindível, em primeiro lugar, demarcar, ainda que dogmaticamente, a problemática de base da categoria de subjetividade e, em segundo lugar, assinalar esquematicamente em que consiste o seu alcance crítico. Essas duas modulações adverbiais "dogmaticamente" e "esquematicamente" indicam que a abordagem do tema implicaria percorrer um longo caminho investigativo, o que aqui não é obviamente possível, seja em decorrência dos limites impostos pela brevidade dessa exposição, seja em decorrência de seu objetivo, que consiste na abertura de uma discussão e não no fechamento de uma doutrina ou na focalização de uma pesquisa específica de cunho acadêmico. Seja como for, a hipótese aqui esboçada se desdobra em duas condições: a demarcação da problemática e o seu alcance crítico, o que impõem o recurso à filosofia.

Não haveria, porém, uma distância excessiva entre os desafios urgentes e concretos da prática e os voos especulativos da abstração filosófica? Esse abismo entre o concreto e o abstrato não atestaria a inutilidade de uma exposição seduzida pelo fantasma ideológico da teoria a nos distrair das dores da vida? Afinal de contas, a célebre tese marxiana sobre Feuerbach (que enfatiza o primado da prática em relação à teoria) não advertiria os filósofos para a sua perdição nas sendas intermináveis de suas interpretações do mundo? Sobre essa objeção que reiteradamente estigmatiza a suposta alienação da teoria, far-se- á uma sucinta consideração.

Devemos sempre falar sobre aquilo que parece relevante e útil para um público com demandas específicas? Tratar sempre de temas que lhe possam interessar? Ou que lhe possam ser aparentemente úteis? Mas o que chamamos de utilidade e interesse? Ora, a própria etimologia da palavra "interesse" (inter-esse) aponta para um estar entre as coisas, para um envolvimento próximo com um contexto particular. E qual seria o interesse desse público constituído por profissionais de Psicologia e áreas afins? Obviamente seria impossível abranger empiricamente a imensa multiplicidade das orientações teóricas, procedimentos técnicos e práticas específicas dos psicólogos. Por isso, avancemos aqui algumas proposições dogmáticas:

1ª A Psicologia é um campo de dispersão do saber, e nele convive uma pluralidade de paradigmas que não se deixa reduzir a uma unidade. A unidade possível é antes institucional do que epistêmica.

2ª O campo da Psicologia é fortemente polarizado pela clínica. Aqui, tomo a palavra "clínica" no sentido lato indicado por sua etimologia: a atenção à singularidade dos sujeitos. Porém duas observações devem logo ser feitas: a atenção pode ocorrer em qualquer contexto em que os sujeitos se encontrem, numa prisão, num hospital, numa empresa, etc., e, além disso, apesar de as estratégias de ação serem muito variáveis (pode-se pretender, por exemplo, otimizar o funcionamento de uma instituição qualquer ou a produtividade de uma empresa), a referência clínica, ou seja, a atenção ao sofrimento ou à realização dos sujeitos singulares continua sendo uma poderosa fonte de justificação dessas ações. Assim, embora a polarização clínica evidentemente não esgote o campo da Psicologia, não podemos deixar de considerar a clínica como uma instância fundamental. Mesmo quando a atuação do psicólogo se dirige a objetivos institucionais ou organizacionais, uma vez que sempre se alega a intenção de se estar servindo ao bem-estar dos sujeitos. Não importa, nesse momento, que tais justificações tenham um caráter ideológico, pois a sua existência atesta a forte polarização da clínica no campo da Psicologia.

3ª A falta de unidade epistêmica e a polarização clínica convergem numa reivindicação crescente do significado ético da Psicologia, o que leva suas instituições a aderirem a um programa de estímulo, proposição e apoio a projetos e políticas que promovam os direitos humanos. Parece que encontramos, então, um ponto de convergência num campo intensamente caracterizado pela divergência. Nesse sentido, podemos considerar que os múltiplos paradigmas teóricos da Psicologia são atravessados por um eixo transparadigmático que é justamente o eixo ético (Drawin, 2009b, p. 55-72).

Essa terceira proposição, que conclui as outras duas, deixa em aberto a necessidade de se esclarecer melhor o que se entende por "ética" nesse contexto de discussão. Há 20 anos, o termo "moral" era fortemente estigmatizado como signo inequívoco de uma atitude conservadora ou, como se dizia na época, como uma proposta retrógrada de "moralização", isto é, de manutenção dos valores tradicionais considerados vagamente nos meios "psi" como repressivos. Atualmente, ao contrário, reivindica-se generalizadamente a "ética" – palavra grega que foi traduzida pelos latinos como "moral" (mos, moris) –, a qual se torna de modo emblemático um meio comum de legitimação das mais diversificadas iniciativas e ações e se consolida como "palavra de ordem" facilmente aceita pela sociedade. Entramos, assim, na época da ética e dos direitos humanos, que se tornam bandeiras da consciência progressista e apanágio das qualidades mais evidentes das democracias liberais (Canto- Sperber, 2005, p. 15-34).

O que mudou? Novamente, não é fácil responder a essa pergunta, mas cremos que, a partir do fim do chamado "socialismo real", dois movimentos histórico-ideológicos emergem num entrecruzamento, às vezes, tenso e instalando conflitos e, às vezes, apaziguador e suscitando soluções de compromisso e conformismo. O primeiro, que se dá como uma reação às catástrofes produzidas pelas grandes ideologias políticas do século passado, vai em direção ao reconhecimento do valor intrínseco da pessoa humana singular em detrimento dos projetos abrangentes de transformação da sociedade. O segundo se caracteriza pelo que Jürgen Habermas já designava, nos anos 1980, como "esgotamento das energias utópicas", fenômeno ocorrido na esteira do desmantelamento do Estado de bem-estar social e da ascensão do neoconservadorismo, ou seja, reflete o declínio generalizado da dimensão política da vida (Habermas, 1987, p. 103-114). Esses dois movimentos e o seu impacto ideológico nos ajudam a entender a busca por legitimação ética no campo da Psicologia, mas também o uso generalizado da noção de sujeito nesses mesmos discursos de legitimação.

Aqui mesmo, nesta exposição, ao caracterizar-se o polo clínico, usou-se intencionalmente a palavra no plural quando se falou em "sujeitos singulares", querendo indicar com isso justamente o reconhecimento do valor intrínseco da pessoa humana. No entanto, esse uso precisaria ser reflexivamente tematizado, de modo a não encobrir o seu outro lado, ou seja, o movimento de despolitização que comporta e que faz com que ele se integre facilmente, mesmo sem a intenção dos que a ele recorrem, na ideologia do conservadorismo neoliberal. Por que a intenção ética, aparentemente voltada para os que sofrem e são oprimidos, pode ter esse efeito encobridor? No esforço de aclarar um pouco esse efeito perturbador da intenção ética, proponho um argumento bem simplificado e que designamos como o "paradoxo da abstração". Ele pode ser delineado da seguinte forma:

– O que espontaneamente chamamos de concreto em contraposição ao abstrato? O que está perto ou junto de mim. O domínio do próximo não se confunde necessariamente com o que me é afetivamente caro, pois pode ser um trabalho com um segmento social muito distante daquele no qual estou inserido, mas que de alguma forma me afeta. O que afeta é aquilo que não está no regime da mediação, que caracteriza a distância reflexiva, mas está no regime do imediato, e este é o regime do particular, do sensível e do imagético. Podemos facilmente imaginar, por exemplo, a cena de uma violência chocante ou de uma flagrante injustiça, sobretudo quando atinge pessoas com quem podemos facilmente nos identificar.

– O que espontaneamente designamos como abstrato em contraposição ao concreto? O que está longe de mim; o domínio do distante que não precisa ter o significado de distância espacial ou temporal e nem implica algo que não me afete de modo algum, porque pode até mesmo me impactar fortemente, apesar de eu não conseguir identificá-lo no afeto. Assim, por exemplo, a crise estrutural do capitalismo financeiro globalizado pode me afetar drasticamente, mas eu somente dela padeço afetivamente e de modo quase sempre desarticulado quando perco o meu emprego e atribuo o meu infortúnio a causas próximas. O domínio do distante é aquele do mediato, do universal, do sistêmico.

Essa distinção recorrendo aos critérios de proximidade e distância deve necessariamente pressupor um ponto arquimediano a partir do qual é possível estabelecer o que é próximo e o que é distante. Esse ponto obviamente é o Eu psicológico daquele que pronuncia o discurso acerca de uma determinada prática. Assim, o que diferencia o abstrato e o concreto é a sua posição em relação ao Eu.

Mas quem é o Eu psicológico? A resposta mais simples e imediata no contexto hipermoderno da primazia da vivência atual é que o Eu não é apenas o ponto imaginariamente arquimediano, mas também o ponto de máxima contração no tempo e no espaço: o indivíduo empírico refluído em seu aqui e agora, determinado por sua presença corporal como ser sensível, carente e padecente que demanda ter respondidas as condições necessárias para a manutenção de sua vida e a efetivação de sua satisfação (Charles, 2009, p. 15-31). O Eu como indivíduo empírico é o sujeito em sua acepção mais rudimentar e em sua condição minimalista que, em seu desamparo, é sempre potencialmente uma vítima, apesar de buscar continuamente uma compensação imaginária para sua impotência (Lasch, 1987, p. 15-88). Essa compensação imaginária que o coloca no ponto arquimediano em relação ao qual o próximo pode ser compreendido como o outro Eu, como um alter ego com o qual posso me identificar afetivamente apesar de ser objetivamente muito diferente de mim: um morador de rua, um adolescente infrator ou qualquer outro sujeito excluído. Ou seja, qualquer um com quem eu possa me identificar como indivíduo sempre potencialmente desamparado. Aqui se origina a noção de sujeito que tão generalizadamente circula nos discursos de legitimação ética de nossas práticas psicológicas e que promove, de fato, como antes acentuamos, um valor autêntico e necessário, mas, não obstante, insuficiente e parcialmente encobridor.

Por que seria um valor autêntico? A justificação de algo como valioso exige algum tipo de argumentação filosófica, mas aqui usamos novamente de um procedimento dogmático: "eu acredito" no valor infrangível do sujeito singular e concreto, e que cada ato que venha minorar o seu sofrimento seja imensamente valioso. Trata-se de um sujeito ainda incipiente, mergulhado no isolamento de seu desamparo e que, segundo Lévinas, ainda nem bem ocupa uma posição subjetiva, mas que, sendo um Eu precário e concretamente existente, já se oferece como uma primeira presentificação de alteridade. Assim, qualquer ação que venha minorar de alguma forma o seu sofrimento e fragilidade, e promover a sua posição subjetiva, isto é, possibilitar a sua saída de si, já tem um verdadeiro sentido ético e pode ser configurada como uma práxis do cuidado (Moreira & Moro, 2010, p. 55-72).

Por que seria, não obstante, um valor encobridor? Porque trabalha com uma noção de sujeito muito empobrecida que facilmente pode se confundir com a vida biológica não só em sua pura e simples autoconservação, mas também como vida que se fecha no circuito da necessidade e da satisfação como bíos apoláustikós, como vida nua e gozosa. Esse refluir para a condição do puro gozo levaria no limite à dissolução do sujeito e sua transformação em objeto de cuidado.

Não é difícil perceber, então, que a demanda por inclusão contida nessa noção quase pré-subjetiva de subjetividade se coloca sub-repticiamente para além dos limites da práxis do cuidado, pois é endereçada ao funcionamento sistêmico. Afinal de contas, a racionalidade sistêmica é que viabiliza o desempenho da economia, da administração e da tecnociência e se projetando na maximização futura de seus recursos produz o discurso da inclusão de todos no próprio mecanismo de sua reprodução material. Ora, esse discurso, apesar de seu apelo imaginário, repousa na mais radical abstração: a de que todas as possibilidades de subjetivação estão contidas no funcionamento automático, na autorreprodução material do sistema, o que não requer por princípio nenhum agente de transformação. "As coisas são como são", pode-se dizer, e nesse total anonimato convergem a forma mais extrema de abstração, a rejeição radical da subjetividade e a forma mais extrema de concreção: a noção de sujeito como indivíduo empírico, sensível e carente. Desse modo, recebemos continuamente a seguinte mensagem: continuem fazendo suas dietas e exercícios físicos, tomando as drogas para suas doenças e seus lazeres, divertindo-se a valer, mas cultivando sua consciência ética pontual, suportando as asperezas da competitividade e se empenhando no máximo em sua produtividade. O preço a se pagar por sua felicidade e inclusão é a renúncia à subjetividade (Agamben, 2002, p. 133-150; Drawin, 2012b, p. 9-34).

Pode-se dizer, então, que, ao nos concentrarmos unilateralmente no concreto de nossas práticas sem nos preocuparmos com questões teóricas abrangentes e radicais consideradas como abstratas, recaímos na mais pura abstração e nessa estranha circularidade: que o mais real, aquilo que sustenta o concreto é o abstrato e, portanto, o verdadeiro abstrato é o concreto. É o que estamos aqui esboçando como paradoxo da abstração, mas que já muito antes foi criticamente desmontado na análise marxiana do fetiche da mercadoria (Marx, 1975, p. 36-47).

No caso das ciências duras, a abstração consiste na separação metodológica entre ciência e sociedade e se expressa na pretensão de neutralidade axiológica do discurso científico, caracterizando uma tendência consagrada no positivismo do século XIX, mas que aumenta cada vez mais com a proliferação de disciplinas e microdisciplinas especializadas e a crescente integração do dispositivo tecnocientífico na expansão das forças produtivas. No caso da Psicologia, o fracasso epistemológico de sua integração no modelo tecnocientífico hegemônico enfraquece certamente a tese positivista, porém suscita, por um lado, certa indeterminação conceitual e a abertura para a diversidade da experiência humana e a sensibilidade ética, e, por outro, a impulsiona na direção de um empirismo grosseiro marcado por um grave déficit de reflexão crítica. Nessa perspectiva, a abstração consiste na separação unilateral da práxis do cuidado, que se dá sempre num domínio específico de conhecimento e ação, da compreensão da totalidade dinâmica da vida social. O enfrentamento do paradoxo da abstração no domínio da Psicologia implica surpreendentemente um distanciamento metódico das urgências da prática com seus envolvimentos afetivos, uma vez que a abstração só pode ser compreendida e criticada por meio de um longo processo de mediação reflexiva. Ou, para enfatizar a natureza paradoxal da abstração, poder-se-ia dizer que somente o pensamento abstrato é capaz de resgatar o concreto de sua alienação na abstração.

Desse modo, atualmente se faz um uso insistente e generalizado da palavra "ética" como um rótulo que asseguraria uma automática legitimidade para tudo, para todas as campanhas, movimentos e ações sociais. No entanto, como observa a filósofa francesa Monique Canto-Sperber (2005), a ética não é uma religião secularizada e nem uma política purificada, mas um saber prático que exige uma escrupulosa investigação filosófica. Caso contrário, a Psicologia estaria apenas se associando à chamada "ideologia ética", que não seria mais do que um conjunto de convicções vagas e de fácil aceitação acerca dos "direitos humanos". Convicções convenientes, aliás, porque alimentam a nossa "boa consciência" sem avançar nem um pouco no conhecimento e na transformação da sociedade em que vivemos. Como mostrou brilhantemente Slavoj Zizek, quando passamos à etapa de um capitalismo maduro e verdadeiramente eficaz, a exploração não se reveste mais da forma da dominação social direta, mas está inscrita "no processo de produção da mais-valia", ou como observa o filósofo, "embora na economia de mercado eu permaneça dependente de fato, essa dependência é ‘civilizada', representada na forma de uma ‘livre' troca de mercado entre mim e outras pessoa, e não na forma de servidão direta ou mesmo de coerção física" (Zizek, 2012, p. 17).

Não se pode substituir, portanto, a investigação teórica e filosófica pela retórica da "ideologia ética". Aqui, porém, fiel ao objetivo programático deste texto, estou propondo apenas alguns parâmetros dessa investigação em torno da problemática da subjetividade na perspectiva de uma teoria crítica da sociedade.

 

2. A problemática da subjetividade: uma elucidação filosófica1

Por que a "problemática da subjetividade" é relevante para a proposição de uma teoria crítica da sociedade? Aqui novamente não há alternativa senão proceder dogmaticamente por meio da formulação de algumas teses básicas:

1ª - Toda filosofia é uma "filosofia da cultura". Esse vínculo entre "filosofia" e "cultura" tem dois aspectos: por um lado, a filosofia brota dos problemas que são postos numa determinada cultura num tempo de crise; por outro, a filosofia ocupa um lugar atópico na cultura porque dela se distancia ao tomá-la como objeto de reflexão. A ruptura da trama narrativa que enreda os homens no mundo da vida quotidiana instaura o espaço no qual o filósofo avoca em seu discurso o conjunto da realidade e a interroga em suas razões e em sua verdade. Esse lugar a partir do qual a realidade dada se torna objeto de investigação define justamente a posição subjetiva, uma vez que, diante dela, tudo mais se situa no domínio da objetividade. Assim, por exemplo, a religião vivida é uma realidade envolvente que vincula os seres humanos a uma instância que escapa ao seu poder e controle. Não obstante, a religião, como qualquer outra dimensão da cultura humana, pode ser investigada e, como tal, torna-se objeto para o sujeito que a investiga. Dessa forma, a posição subjetiva emerge do questionamento e da atividade racional que irrompem num momento de crise do universo simbólico em que nos inserimos, ou de cisão entre a vida e o pensamento. Esta é, portanto, uma experiência existencial, como bem viu Hegel (1966), que mescla luzes e sombras, as dúvidas dilacerantes e a expectação do novo e pode emergir em diferentes contextos sociais e históricos (Vaz, 1997, p. 3-99; Ferreira, 1992, p. 19-36).

Ora, essa experiência simultaneamente existencial e histórica da irrupção da subjetividade volta-se sobre si mesma num movimento de autorreflexão e indaga por seu estatuto de realidade: o que é o sujeito num mundo constituído apenas por objetos? Esse voltar-se da subjetividade sobre si mesma, como se vê de modo paradigmático no cogito cartesiano como ato inaugural do pensamento moderno, é o que configura a problemática filosófica da subjetividade, que pode ser pensada nos diferentes níveis de sua elaboração histórica (Oliveira, 2012). O que será feito em seguida é apenas assinalar, na restrita economia de nossa exposição, quatro níveis de autorreflexão da subjetividade e que podem ser demarcados brevemente como: metafísico, transcendental, dialético e narrativo.

2ª - Nível metafísico: nele se concebe o Homem como o ente que compreende a totalidade dos outros entes e, portanto, o seu ser pode ser definido como abertura para compreensão do ser. Essa compreensão se dá na linguagem, isto é, realiza-se no universo simbólico da cultura no qual cada um de nós se encontra originariamente enraizado (Heidegger, 2012, p. 59). Tomo esse ensinamento de Heidegger apenas para delinear a figura metafísica da subjetividade: quando irrompe a crise da cultura, os recursos simbólicos para a compreensão do mundo se tornam insuficientes.2

Na Grécia, coube à filosofia propor um novo modelo de inteligibilidade para ordenar um mundo que se tornou desordenado, e a esse modelo a tradição ocidental chamou de "metafísica". A obtenção do conhecimento metafísico era extremamente difícil e impunha ao filósofo um grande esforço que Platão designou propriamente como "segunda navegação", como um ingente esforço de vencer a inércia do conhecimento empírico (Platão, Fédon, 2002, 99 b-d; Reale, 1994, p. 50-58). Apesar da arduidade de tal esforço, a busca pela inteligibilidade do mundo não seria vã, na medida em que seria possível porque haveria no homem uma dimensão psíquica que o possibilitava ultrapassar a sua condição de indivíduo empírico e intencionar a totalidade dos entes.

Na filosofia platônica e aristotélica, essa faculdade humana foi denominada como "inteligência" (nõus, intellectus). Posteriormente, quando ocorreu o encontro da filosofia grega com a fé cristã, essa possibilidade de inteligir toda a realidade ganhou o significado teológico de "espírito" (pneuma, spiritus), ou seja, abertura para o Absoluto (Vaz, 1991, p. 201-237).

Essa sumária caracterização tem como objetivo indicar um paradigma fundamental da subjetividade que designamos como "sujeito noético". Mas o que tudo isso tem a ver com o argumento que estamos desenvolvendo? Em primeiro lugar, existe no ser humano uma dimensão que ultrapassa não somente os sujeitos singulares, mas também todo o domínio do humano e, somente por isso, pode-se pensar numa ordem justa como uma espécie de espelhamento do cosmos. Pode-se, portanto, descobrir um sentido moral para o mundo aparentemente caótico em que vivemos. Em segundo lugar, essa concepção, tal como foi elaborada, não mais se sustentou na Modernidade, dando origem a um novo modelo de inteligibilidade. O que se quer marcar é o vínculo da concepção metafísica da subjetividade com a fundamentação da ética e com a busca por uma sociedade política em que prevaleça a justiça acima dos interesses dos indivíduos e dos grupos.

3ª - Nível transcendental: que se segue cronologicamente ao nível anterior, pois a revolução científica moderna assestou um golpe mortal nesse modelo clássico de inteligibilidade ao destruir a ideia de cosmos e problematizar o nosso acesso à realidade em si. A realidade cognoscível, como mostrou Kant, depende estruturalmente das condições do sujeito e, por conseguinte, todas as "coisas" se tornam objetos para um sujeito. Este, contudo, não é o indivíduo empírico, pois, se o fosse, toda a nossa pretensão de cientificidade estaria arruinada, uma vez que estaríamos lançados no fluxo instável do conhecimento sensível. Aqui aparece uma nova figura de subjetividade ou, se quisermos, uma dimensão do ser humano que ultrapassa os sujeitos singulares, mas não ultrapassa o domínio do humano como ocorria na metafísica clássica, ou seja, não se eleva até o transcendente em si ou absoluto e, por isso, essa esfera transempírica pôde ser concebida como "subjetividade transcendental" (Kant, 1980, p. 404). O que se busca ressaltar é o seguinte: como o ser humano pode transcender os seus interesses e as suas inclinações particulares, ele descobre em si mesmo a presença de uma vontade pura, uma razão prática capaz de lhe impor uma lei moral universal. Aqui residiria o fundamento racional da ética, que consistiria em jamais submeter o universal ao particular e o fim aos meios. A ética não se limita, portanto, à identificação compassiva entre sujeitos singulares, como ocorre na práxis do cuidado, mas estabelece um critério normativo universal que nos permite julgar todas as situações particulares de injustiça, ou seja, estabelece a base normativa do que poderia ser chamada, em sentido lato, uma teoria crítica da sociedade. No entanto, o questionamento que surge em relação à figura do "sujeito transcendental" interroga sobre qual seria a sua relação com uma história marcada pelas rupturas, cisões e conflitos: o sujeito transcendental seria anistórico? Esse questionamento nos leva ao terceiro nível de autorreflexão da subjetividade.

4ª - Nível dialético: no nível anterior, vimos como o "sujeito transcendental" encontra-se cindido em duas vertentes. Em primeiro lugar, é "sujeito cognoscente", pois, por meio da razão teórica, conhece a unidade da natureza e a universalidade de suas leis; porém é também "sujeito agente", pois, por meio da razão prática, pensa a unidade da humanidade e a universalidade de seu princípio moral. Como unir essas duas vertentes? Uma possibilidade seria projetar no futuro uma história em que a dominação da natureza convergisse com a realização da liberdade, mesmo porque o Homem não pode simplesmente abandonar essa projeção histórica, por ser também "sujeito expectante", não podendo extirpar a esperança de seu coração. Mas essa esperança seria mera ilusão ou seria também uma esperança racional? Nesse caso seria necessário pensar o sentido da história e resgatá-la do turbilhão insensato dos acontecimentos (Muguerza, 1977, p. 19-64).

Foi esse o grande empreendimento filosófico de Hegel (1980): conceber a história como capaz de ser apreendida no pensamento (Begriffene Geschichte) e, para isso, as rupturas, as cisões e os conflitos deveriam ser também conceptualizáveis. Não foi outra a tarefa da dialética enquanto modo de pensar que não descarta as contradições como irracionais, mas delas fazem o próprio motor da razão. Se for assim, se não podemos escamotear a história que atravessa todas as obras humanas, então o sujeito transcendental não se coloca fora da história, mas é constituído historicamente e, portanto, é estruturalmente cindido, e essa cisão não pode se resolver no interior da subjetividade, porque o sujeito se constitui pela mediação do outro numa dialética do desejo e do reconhecimento. Ou como diz Kojève:

    Desejar o desejo do outro é, em última análise, desejar que o valor que eu sou ou que represento seja o valor desejado por esse outro: quero que ele reconheça meu valor como seu valor, quero que me reconheça como um valor autônomo. Isto é, todo desejo humano, antropogênico, gerador da consciência-de-si, da realidade humana é, afinal, função do desejo de reconhecimento (Kojève, 2002, p. 14).

Desse modo, pela mediação do desejo antropogênico, a subjetividade como signo da irredutibilidade do humano só pode ser pensada como intersubjetividade, e esta não pode ser confundida com a relação extrínseca entre sujeitos previamente constituídos, mas como efetiva formação social e histórica da humanidade. Aqui cabem duas observações muito importantes: a primeira consiste em compreender que a unidade possível para o ser humano só pode ser realizada dinamicamente no processo histórico, que é sempre marcado pelo conflito, e, por isso, a ética jamais substitui a política como inserção ativa no conflito; a segunda reside na afirmação de que o conflito não é um jogo cego de forças antagônicas porque pode ser normativamente pensado, e, por isso, a política não elimina a ética como aspiração universal de justiça. E por que o conflito pode ser pensado e enfrentado por meio de práticas que atualizem o potencial de liberdade presente na cultura ou na história? Porque o sujeito humano concebido nos níveis transcendental e dialético é sempre capaz de um movimento de autorreflexão e, por conseguinte, de transcender em sua autoafirmação todas as suas determinações e expressões particulares. Na verdade, o sujeito é sempre assujeitado e não é uma unidade substancial dada; mas, sendo uma cisão dinâmica, nunca é totalmente assujeitado, ou, como ensina o idealismo hegeliano: a capacidade humana de abstração, isto é, a negação sempre presente na atividade racional é o primeiro testemunho da liberdade, mas esta só encontrará a sua realização concreta na cultura, na sociedade e na vida ética (Sittlichkeit). O sujeito dialético mergulha na história para aí efetivar a sua identidade como razão e liberdade. Da mesma forma que o sujeito transcendental, o sujeito dialético responde à exigência ética de um mundo humano que, embora irremediavelmente dividido, sempre poderá reconciliar-se consigo mesmo (Hegel, 1995, p. 320-325; Hegel, 1980, p. 43- 57; Vaz, 1999, p. 371-404).

Essa articulação dialética entre a objetividade das forças operantes na história como determinantes da atividade e consciência humanas, como mostrou o materialismo histórico e a potencialidade de crítica e emancipação que também se inscrevem na práxis ética e política, iria marcar profundamente o extenso arco conceptual do desenvolvimento da teoria crítica da sociedade por mais de um século: desde Marx, passando por Lukács e Adorno, até Habermas e Honneth (Rush, 2008). Não há como abordar aqui a difícil articulação entre necessidade e contingência, determinismo e liberdade, entre a inércia do passado e a criação do futuro. Seja como for, pretendemos assinalar que uma consideração inteiramente objetivante do ser humano faz da realidade vigente um destino inexorável, e o limitado esboço filosófico feito até agora visou a mostrar simplesmente que uma teoria crítica da sociedade requer necessariamente a preservação da categoria de subjetividade desde que esta não se reduza aos sujeitos singulares e concretos, mas alcance um estatuto transcendental e dialético, ou seja, que se desdobre no horizonte da intersubjetividade e da alteridade.

Por que é preciso reiterar isso atualmente?

Vamos avançar novamente, de maneira dogmática, mais uma hipótese cuja formulação aparenta certa estranheza: a dialética efetiva dos processos de modernização, das contradições sociais e das contingências históricas extrapolou o quadro conceptual do pensamento dialético da Modernidade.3 O pressuposto fundamental da teoria crítica, a inteligibilidade do conflito, foi abalado pelo choque traumático da realidade histórica, o que nos leva ao último nível deste tópico.

5ª - Nível narrativo: não vamos nos estender neste nível, em que a autorreflexão da subjetividade entra em colapso, pois isso exigiria uma explanação muito mais longa e matizada. Basta dizer, mais uma vez, que a sucessão das catástrofes do século passado levou muitos pensadores a abandonarem toda a pretensão de construir um amplo modelo de inteligibilidade da história, pois toda visão de totalidade acabaria supostamente se convertendo em visão totalitária. Daí decorre uma crítica radical da categoria de subjetividade justamente em seu estatuto transcendental e dialético. Após a destituição dessas duas figuras de subjetividade (o "sujeito transcendental" e o "sujeito dialético"), restar-nos-ia apenas processos singulares de subjetivação engendrados em "pequenos jogos de linguagem", em contextos narrativos particulares que só poderiam ser assimilados numa metalinguagem universal por meio da violência. Emerge, então, a figura plural dos "sujeitos narrativos".

Essa viragem para o narrativo parece animar, em grande parte, a demanda ética que circula nas práticas psicológicas. Ora, a narratividade não se confunde com a abdicação da reflexão, mas, ao contrário, é constitutiva da subjetividade conforme, ao narrarmos as nossas práticas, resgatamo-las da dispersão dos acontecimentos e as articulamos numa semântica da ação (Ricoeur, 2010, p. 93-147). No entanto, quando essa demanda de narração abandona toda a reflexão crítica e se deixa assimilar pela retórica da "ideologia ética", ela se torna ingênua e impotente para enfrentar uma destituição muito mais radical da categoria de subjetividade: refiro-me às diversas tendências atuantes no campo neurocientífico como, por exemplo, a teoria da identidade ou os behaviorismos e materialismos eliminatistas. Tais correntes rejeitam, em nome da objetividade científica, todos os resquícios de subjetividade, considerando-os mera psicologia popular ou uma ganga filosófica de procedência cartesiana que deve ser legada ao depósito de curiosidades de um passado definitivamente ultrapassado. Acredito, entretanto, que uma discussão crítica acerca dessas teorias não pode se dar exclusivamente no domínio da epistemologia, porque as suas implicações éticas são inegáveis (Lycan, 2002, p. 165-196; Drawin, 2012a, p. 129-155). Assim, na última parte desta exposição, traçar-se-á, à guisa de conclusão, uma proposição crítica.

 

3. A problemática da subjetividade: uma proposição crítica

Como já foi dito, os terríveis acontecimentos do século passado lançaram um manto de suspeita sobre todos os esforços para se construir um modelo de inteligibilidade consistente e abrangente acerca da estrutura e do funcionamento de uma sociedade cada vez mais complexa e globalizada. No interregno entre o século XX e o século XXI, no período entre 1989 (Queda do "Muro de Berlim") e 2001 (Atentado às Torres Gêmeas), difundiu-se a ideia de que havíamos chegado ao "fim da história". Nós viveríamos numa época pós-ideológica com o triunfo da economia de mercado, da democracia liberal e do Estado de Direito e, portanto, não haveria mais necessidade de uma "teoria crítica da sociedade" (Anderson, 1992, p. 71-117). As disfunções do sistema seriam resolvidas por seu próprio processo de autorreprodução, e, se houvesse lutas políticas, elas se dariam sempre no nível particular, contextual e bem localizado das micropolíticas. O capitalismo deixou de ser visto como um "modo de produção" que pode ser apreendido em sua lógica intrínseca e unitária, visto que não haveria mais um objeto que pudesse ser identificado como "o capitalismo", mas apenas uma forma de organização social considerada inevitável, pois seria o resultado de uma evolução "quase natural". Os recursos jurídicos já existentes e faticamente presentes nas instituições seriam suficientes para remediar as injustiças porventura ainda existentes e para dirimir os possíveis conflitos. Nesse contexto, tornarse- ia inconcebível a inter-relação entre racionalidade reflexiva e processo histórico, o que, como mostra Axel Honneth, inviabiliza aquela que seria a ideia axial da teoria crítica segundo a qual as relações sociais de exploração e exclusão produziriam uma deformação patológica da razão e neutralizaria o seu potencial de emancipação (Honneth, 2009, p. 27-51). Todas essas transformações rapidamente mencionadas não só levaram ao descrédito a tradição da teoria crítica, mas também, como já afirmado no início desta exposição, suscitaram o preenchimento do vazio crítico por meio de uma retórica generalizada da ética e dos direitos humanos.

Apesar dessa retórica encobridora, os graves problemas que afligem a humanidade planetária convergem num espectro de violência que pode ser diferenciado em quatro registros que se interpenetram e que serão aqui mencionados de maneira meramente indicativa:

1º - A violência cruenta: os sucessivos massacres do último século, que atingiram o seu clímax com o holocausto (shoah), não podem ser considerados como vagos espectros de um passado que deixamos definitivamente para trás. Os massacres continuam nas novas guerras contra o terror, com seu efeito perverso de minimizar o número de baixas dos exércitos dominantes e, desse modo, dessensibilizar a grande mídia ocidental para o sofrimento das muitas vítimas anônimas que estão do outro lado, do lado dos inimigos e dos que não contam. A violência cruenta que persiste sem sinais de esmorecimento liquida a ideia de fim da história e de que vivemos numa época pós-ideológica, e mostra que há mais continuidade do que gostaríamos de admitir entre os totalitarismos da primeira metade do século XX e as atuais democracias de massa.

2º - A violência sistêmica: uma forma não diretamente cruenta e mais difícil de discernir, pois o seu efeito consiste justamente em neutralizar a vida política e subjugar os indivíduos à lógica do trabalho (labor) e do consumo em detrimento da ação. Os indivíduos não se concebem mais como cidadãos responsáveis, portadores de direitos e deveres, e capazes de encetar uma ação transformadora da sociedade, mas se convertem em consumidores encolhidos em seu gozo e fragilidade.

3º - A violência simbólica: violência que bloqueia a possibilidade da autorreflexão crítica e a busca comum por uma vida dotada de sentido. Os acontecimentos não são mais passíveis de interpretação e nos atingem como traumas, como catástrofes naturais, uma vez que o funcionamento do mundo, em continuidade com os processos naturais, nos é apresentado como anônimo e autossuficiente, e indiferente aos nossos sofrimentos, intenções e sonhos.

4º - A violência ontológica: a mais difícil de ser caracterizada porque atravessa como uma aporia estrutural o projeto moderno de dominação da natureza. Ela emerge como um resultado imprevisível e incontrolável da autorreprodução dos sistemas tecnocientífico e econômico, ocasionando tanto a destruição da natureza em sua riqueza fenomênica e em sua força criativa (physis) quanto a desqualificação da cultura em sua expressão moral e em seu valor de sentido para nós (ethos). Denominamos essa violência como ontológica porque o nosso acesso ao ser se dá por meio dessas duas experiências equioriginárias que são a physis e o ethos, e o seu esvaziamento manifesta a rejeição do ser concebido como tudo aquilo que escapa à previsão e ao controle de uma racionalidade unidimensionalizada.4

Na interpenetração desses tipos de violência, nós nos deparamos com a estranheza de um mundo com o qual mantemos um vínculo duplo, circular e ambivalente: o controle total gera e é gerado, reforça e é reforçado pela total impotência. Ora, pensar e enfrentar esses tipos de violência só é possível por meio da revivescência do núcleo ético-político da teoria crítica em sua denúncia da deficiência congênita da racionalidade social hegemônica que foi diagnosticada por Adorno como "mundo totalmente administrado", por Marcuse como "sociedade unidimensional" e por Habermas como "colonização do mundo da vida". Denúncia engendrada a partir de um potencial de razão e liberdade que já está objetivamente inscrito na linguagem e em nossas interações simbólicas. Esse núcleo ético-político pressupõe o caráter irredutível do humano, ou seja, que há no ser humano, como viram muitos filósofos clássicos e modernos, uma dimensão que não pode ser reificada e que estamos definindo como subjetividade (Honneth, 2007). Se transgredirmos esse limite essencial (como pretendem alguns entusiastas da manipulação tecnocientífica que propõem sempre mais tecnologia como remédio para os seus próprios efeitos perniciosos), abriremos uma porta para o desconhecido do pós-humano. Ora, a história da humanidade aconselha antes a prudência e a adoção da "heurística do medo" do que o mergulho na ilusão narcísica da onipotência com suas consequências transgeracionais e provavelmente irreversíveis (Jonas, 2006).

A categoria de subjetividade inclui, certamente, os sujeitos singulares e concretos que, em seu sofrimento, convocam-nos para uma práxis do cuidado em seu valor intrínseco. Mas, para que o cuidado não se torne pura ingenuidade e se deixe enredar na trama ideológica do paradoxo da abstração, ele deve ser exercido no horizonte mais largo e desafiador de uma ética do discurso e da justiça capaz de enfrentar a violência sistêmica e simbólica, e de uma ética da responsabilidade capaz de enfrentar a violência ontológica: a primeira denunciando a violência sistêmica e simbólica que subjaz à lógica aparentemente neutra do capitalismo financeiro global; e a segunda demonstrando como a violência ontológica decorre do modo com que o ser humano, na era da técnica, relaciona-se com a natureza e com a totalidade dos entes. Essas duas perspectivas éticas não podem prescindir de um profundo repensar da subjetividade.

As ideias esparsas e incompletas aqui expostas não têm outro objetivo senão estimular a discussão e, ao fazê-lo, responder afirmativamente ao convite de um pensamento engajado numa tarefa que se situa para além do calculável e útil, do planejado e objetivado, do que interessa e é efetivo. Pensar, como ensina Heidegger (1988), talvez seja um atraso de vida, porque é sempre um voltar-se para trás, para o já pensado, mas para aí encontrar o ainda não pensado e que contém sementes ainda não cultivadas de outras possibilidades e de outros futuros.

 

Referências

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*Doutor em Filosofia, professor titular da Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (Faje), de Belo Horizonte-MG, professor aposentado da UFMG, psicólogo, psicanalista.
1 As considerações desenvolvidas neste tópico já foram apresentadas em outros textos já publicados, mas se encontram elaboradas mais extensamente em minha tese de doutorado (Drawin, 2005).
2 Heidegger é sabidamente um crítico da metafísica. No entanto, deixo de lado essa questão complexa da relação de Heidegger com a metafísica e busco tão simplesmente enfatizar a abertura constitutiva do ser humano para o ser como traço essencial de toda tradição metafísica.
3 A hipótese aqui enunciada vai além do escopo deste texto, pois se refere a uma aporia que subjaz ao projeto moderno de civilização: a impotência da razão diante das forças que ela mesma desencadeou. A sua enunciação nesse contexto apenas quer indicar as raízes profundas do refluxo da teoria crítica.
4 A expressão "violência ontológica" remete a uma inspiração heideggeriana e se sustenta na crença de que, em sua crítica da Modernidade e seus grandes projetos utópicos, há uma verdade que não pode ser escamoteada. Fica, no entanto, apenas como uma alusão a ser mais bem desenvolvida posteriormente.