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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.21 no.1 Belo Horizonte jan. 2015

https://doi.org/DOI-10.5752/P.1678-9523.2015V21N1P1 

ARTIGOS

DOI - 10.5752/P.1678-9523.2015V21N1P1

 

 

Sobre a velhice e lutos difíceis: "eu não faço falta"

 

About old age and difficult grief: "I will not be missed"

 

Sobre la vejez y los lutos difíciles: "yo no hago falta"

 

 

Glória Castilho*; Angélica Bastos**

 

 


Resumo

Este trabalho tem por objetivo apresentar e discutir a regularidade com que ocorrem lutos difíceis na velhice. Seu campo de problemas e questões consiste em circunscrever certa perturbação do trabalho de luto, expressa em frases ditas com muita frequência por "idosos" em análise, tais como "eu não faço falta". Recorre a algumas pontuações de S. Freud e J. Lacan sobre a dor e a angústia. Apoia-se no comentário do segundo, acerca de uma sequência clínica publicada por Margareth Little, em torno de pontos de impasse a que se encontra sujeito o trabalho de luto. Nesse enquadre, indica-se o lugar e a função da angústia como capaz de abrir e dar direção ao necessário trabalho de luto ao permitir e veicular, sob transferência, alguma circulação da falta.

Palavras-chave: Psicanálise. Velhice. Luto. Dor. Angústia.


Abstract

This paper aims to present and discuss the regularity in which difficult grief management in old age occurs. The number of problems and issues here is to circumscribe certain disruption in the work of mourning, expressed in sentences spoken quite often by the "elderly" under analysis, such as "I will not be missed". It uses references of S. Freud and J. Lacan about pain and anguish and it is based on the comments of the latter about a clinical sequence published by Margaret Little on the points of impasse that the work of mourning is subject to. In this framework, the place and function of anguish is proposed as being able to open and give direction to the necessary work of mourning when it allows and reports, under transfer, some lack of circulation.

Keywords: Psychoanalysis. Old age. Griefs. Pain. Anguish.


Resumen

El objetivo de este trabajo es presentar y discutir la regularidad con que se producen lutos difíciles en la vejez. Su campo de problemas y cuestiones consiste en circunscribir cierta perturbación del trabajo de luto, contenida en frases dichas frecuentemente por personas mayores (ancianos) en análisis, como: "yo no hago falta". Recurre a las consideraciones de S. Freud y J. Lacan acerca del dolor y la angustia y se apoya en el comentario del segundo sobre una secuencia clínica publicada por Margareth Little referida a las disyuntivas a que está sujeto el trabajo de luto. En este marco, se indica el lugar y la función de la angustia como capaz de abrir y direccionar el necesario trabajo del luto, al permitir y transmitir, bajo transferencia, algún desahogo relacionado con la falta.

Palabras clave: Psicoanálisis. Vejez. Luto. Dolor. Angustia.


 

 

A velhice, com suas agruras, chega para todos. Eu não me rebelo contra a ordem universal. Afinal, vivi mais de setenta anos. Tive o bastante para comer. Apreciei muitas coisas - a companhia de minha mulher, meus filhos, o pôr do sol. Observei as plantas crescerem na primavera. De vez em quando, tive uma mão amiga para apertar. Vez ou outra, encontrei um ser humano que quase me compreendeu. Que mais posso querer? (Freud, 1926/1989)

As inúmeras e por vezes concomitantes perdas de laços significativos relatadas por "idosos"1 em análise, confrontam o sujeito dividido da experiência analítica com algo de familiar2 (Heimlich), vale dizer, a solidão própria à precariedade da condição humana. Tal condição (irredutível à casualidade das perdas e sempre subjacente à conjuntura destas) demarca a importância de que se estabeleçam laços sociais bem como a relevância de situar, a cada vez, a notável distinção entre solidão e isolamento. Ocorre que o estabelecimento de laços sociais efetivos não implica necessariamente uma atitude gregária. Lacan (1968-1969/2008) esclarece o caráter discursivo do laço social, o que permite indicar que importantes laços podem ser estabelecidos, de formas diversas, inclusive em momentos bem avançados da vida.

Franz Krajcberg (2008), nascido polonês e naturalizado brasileiro, aos 94 anos de idade, mora no Sul da Bahia, em uma casa na qual trabalha com restos de queimadas, transformando em esculturas aquilo que o fogo consumiu parcialmente. Impressiona nesse artista plástico sua capacidade de estabelecer laços mediante seu trabalho, mundialmente reconhecido, na contramão de sua solitária existência. De certa forma, ele transmite, assim, algo acerca da fundamental distinção entre solidão e isolamento. Em entrevista publicada no Youtube, Krajcberg (2008) fala da radical vivência de ter perdido seus pais em um campo de concentração e aproxima dessa experiência sua revolta com a destruição das florestas brasileiras, afirmando seu esforço em dar direção ao mal-estar, com seu trabalho: "[...] Se eu grito na rua, me botam em um hospital de doidos, não?".

Especialmente na velhice, nem sempre ocorrem os investimentos necessários à sustentação dos laços sociais: a capacidade de substituição encontra algo do limite, o isolamento predomina sobre a criação de novos laços e a dor prevalece. Nesse contexto, lutos difíceis se interpõem, podendo advir maiores perturbações na realização do trabalho de luto.

A escuta psicanalítica nos transmite que o nexo entre perda de laços, sentimento de estranheza e solidão contribui para um progressivo isolamento na velhice (Castilho, 2005), o que evidencia a importância de condições favoráveis ao avanço do necessário trabalho de luto frente à experiência de uma perda significativa. Por vezes, a magnitude da dor relatada revela algo de catastrófico na desestabilização ocorrida. Freud (1926/1989) procura delimitar as experiências de angústia, dor e luto. Comenta não ser casual que a língua tenha preservado o mesmo termo para a dor física e a dor psíquica. Examina a articulação entre ambas e chega a avaliar que elas têm "as mesmas condições econômicas" (Freud, 1926/1989, p. 160). Nessa direção, uma senhora em análise, a respeito da dor provocada por "uma perda muito valiosa", comenta: "Essa dor que eu sinto é como a doença da minha amiga...", referindo-se ao doloroso processo de adoecimento de sua amiga, com câncer. Ecoa, dessa forma, a indicação freudiana e reitera o trabalho de luto como necessário, quando perdemos aqueles a quem amamos: "uma perda muito valiosa".

Em Luto e melancolia, Freud (1917/1974) interrogava-se acerca da razão pela qual o luto tem de ser tão doloroso. Subsiste nessa experiência um ponto obscuro, enigmático concernente à economia da dor. Em outro momento, Freud (1926/1989) considera que:

Se a sensação de desprazer [...] tem o caráter específico de dor [...] em lugar de exteriorizarse na forma de reação de angústia, cabe responsabilizar por isso [...] o elevado nível das proporções de investimento e ligação com que se consumam esses processos que levam à sensação de desprazer (1926/1989, p. 160).

Nessa apreciação acerca da economia da dor, Freud retoma a discussão sobre o luto, no qual estão em jogo altas magnitudes de investimento e ligação que conferem a essa experiência caráter tão doloroso. A reprodução de situações em que deve ser rompida a ligação com o objeto atinge intensidade dilacerante quando se investe nostalgicamente algo inatingível. O luto requer o trabalho de separar-se do objeto, sob o comando da prova de realidade. Para que esta se instale, é preciso que objetos que um dia trouxeram satisfação real tenham sido perdidos. Essa é a função da perda na instauração do trabalho de luto convocado pela prova de realidade.3

Lacan (1963/1998) reitera a complexidade da dor ao demarcar a "dor de existir", em uma referência ao budismo, situando-a como própria ao caráter efêmero da vida, que é finita. Nos limites da neurose, parece-nos possível localizar aí um viés ético que demarca a tristeza e o sentimento depressivo como respostas. O sentimento depressivo tende a apresentar-se perante a falta, em uma tentativa de nada querer saber disso, e a tristeza como covardia moral (Lacan, 1974/2003), falta moral, recuo do sujeito que exibe culpa por ceder com relação às questões do desejo (Lacan, 1959-1960/1988). Introduzir a referência à ética do desejo, diferenciando-a do imperioso dever-ser do supereu (Freud, 1923/1989) é, em última instância, o esforço de leitura que Lacan faz do imperativo ético decantado por Freud (1933/1999): "Onde isso estava, eu devo advir."(tradução nossa).4

 

A entrada em jogo de uma escuta

Se, como refere Freud (1913/1988), a experiência psicanalítica suscita algo da referência ao jogo de xadrez, é preciso lembrar que, entre as lendas sobre a origem desse jogo, existe aquela que articula sua invenção ao trabalho de luto (Tahan, 1997). Trata-se da história de um monarca enlutado pela perda do filho amado no campo de batalha. Segundo a lenda, o rei passava os seus dias isolado e traçando na areia sempre as mesmas manobras da batalha em que sofrera tamanha perda. Tal prostração causou grande preocupação a seu povo e, nesse contexto, foi-lhe apresentado, por um súdito disposto a jogar, um jogo que coloca em campo manobras de guerra próprias a uma luta que requer trabalho a partir da perda. Lacan (1966/1998) indica a "estrutura da falha como constitutiva do jogo de xadrez" (p. 662), em francês, jeu d'échecs, literalmente, jogo de fracassos, insucessos, um jogo que, tal como a própria vida, avança de falha em falha, de falta em falta.

Por essa via, o caráter inexorável, estrutural da perda foi apreendido pelo monarca, ao longo do jogo (não sem um partner) conjuntura que viabilizou que ele situasse e desse direção às suas questões, falando e falhando pelo jogo. A experiência psicanalítica indica que súbitos abalos e repentinas quebras de identificações podem produzir efeitos catastróficos de desestabilização da unidade imaginária do eu. Tais conjunturas podem levar um "idoso" a procurar uma análise e entrar no jogo significante com o Outro, chegando a avançar no trabalho de luto, por meio do jogo transferencial.

É possível verificar que alguns "idosos" chegam ao analista muito entristecidos e falam sobre sua dor diante da diversidade de perdas a que o envelhecimento os confronta: "Perdi meu último parceiro de tênis...", diz um "idoso" aos 83 anos, frase rapidamente seguida por "... mas a vida continua...". Continua ou é preciso um tempo de parada e trabalho, até que seja possível continuar? É tentando responder aos ideais que prescrevem uma relação asséptica com a dor que, muitas vezes, um "idoso" encurta a conversa. Não há muito o que falar, porque o que há para falar requer uma escuta que lhe permita alguma leitura, a partir de suas perdas. O que terá perdido? Terá sido uma localização no campo do Outro? Esse contexto convoca a um trabalho a partir da perda que, entretanto, nem sempre se realiza, fato que não é sem consequências para o sujeito.

Lacan (1962-1963/2006) encaminha a especificidade do luto como trabalho, procurando demarcar sua função com relação ao campo do Outro. Aborda a questão afirmando que "Só nos enlutamos por alguém de quem possamos dizer a nós mesmos: Eu era sua falta" (Lacan, 1962-1963/2006, p. 156). Trata-se de uma frase que vela e desvela, quando da perda significativa, o lugar que terá sido ocupado pelo sujeito como causa de desejo, evocando, assim, algo da própria estrutura da experiência de luto, que requer a passagem de uma falta real (privação) à falta simbólica da castração (Lacan, 1958-1959/1986). Correlata à frase "eu era sua falta" encontra-se a pergunta formulada pelo sujeito, em um momento preciso de sua estruturação: "Pode o Outro me perder?" (Lacan, 1964/1979). Tal pergunta busca interrogar e situar no intervalo entre significantes, para além da demanda, o desejo do Outro, lugar próprio ao vazio do objeto que corresponde à causa do desejo.

É preciso lembrar que, por causa da singular localização do sujeito, cada luto (quando perdemos aqueles a quem amamos) tem algo de insubstituível, ainda que, ao final do trabalho de luto, possa tornar-se viável alguma substituição ou mesmo, nesse ponto onde a substituição encontra algo do limite, possa advir uma invenção (Lacan, 1975-1976/2007).

 

Acerca da função da angústia

"Che Vuoi?,"5 "Que queres?" ("Que veut-il?") é a pergunta que comanda a estruturação subjetiva (Lacan, 1962-1963/2006). Com a introdução do pronome, "Que quer ele de mim?" ("Que me veut-il?"), a pergunta é passível de desdobrarse em duas outras. Por um lado, introduz a interrogação endereçada ao campo do Outro: "Que quer ele comigo?", pergunta acerca do desejo, como desejo do Outro. Por outro lado, aquela mesma pergunta inicial dá lugar à interrogação: "Que quer ele a respeito deste lugar do eu?" (Lacan, 1962-1963/2006, p. 14), norteando a conformação do eu aos traços apontados a partir do campo do Outro.

Buscando localizar em um tempo mítico, de fundação, o advento do sujeito dividido e a demarcação do campo do objeto, Lacan (1962-1963/2006) propõe duas fórmulas distintas da divisão subjetiva. A divisão do sujeito pode ser considerada segundo dois esquemas diferentes (vide Figura 1), ambos contando com dois lados ou campos: o do Outro (A) e o do sujeito (S). O sujeito (S) assim escrito, sem barra, não corresponde ao sujeito da experiência analítica, e os esquemas da divisão situarão sua produção.

De acordo com o que se produz na divisão, pode-se empreender uma leitura para enfatizar a produção do sujeito do significante ou para enfatizar a produção do objeto a.6 Na proporção em que se prioriza o sujeito barrado, $, isto é, marcado pela barra do significante, a produção do objeto tem a função de resgatar o sujeito de seu desvanecimento sob a barra, ao situar o objeto do desejo. É exatamente quando $ e a encontram-se articulados na fantasia, $<>a, que o objeto a funciona como objeto do desejo e, como tal, sustenta o sujeito e também o Outro, enquanto, do lado deste último, encontra-se a fantasia fundamental, suporte do desejo. O objeto impede que o sujeito se desvaneça, dá-lhe uma ancoragem contra o fading que ele sofre na remissão de significantes própria à cadeia, detendo, assim, a metonímia. Por outro lado, tampona-se por essa via a falta no Outro. Na primeira fórmula da divisão subjetiva (Figura 1), portanto, partindo da divisão de um Outro não barrado e de um sujeito mítico, sem barra, advém como produto um sujeito dividido. Essa divisão não é exata, deixa um resto que é o objeto a.7 Vale ressaltar aqui a incidência do resto, da perda como estruturante nessa operação.

 

 

Após haver delimitado no texto de Freud (1895/1977) a noção de "das Ding", Lacan (1959-1960/1988) a situou como alteridade absoluta, "fora do significado" (p. 71). Nesse contexto, faz uma importante pontuação acerca da angústia: "A angústia já se desenvolve deixando um perigo delinear-se, enquanto que não há perigo algum no nível da experiência última do Hilflosigkeit" (Lacan, 1959-1960/1988, p. 364), vale dizer, do desamparo primordial. Há aqui uma distinção necessária que Lacan (1962-1963/2006) aprofundará em A angústia, seguindo Freud. Trata-se da distinção, por um lado, do nexo entre angústia e situação de perigo e, por outro, da articulação entre angústia como função e o desamparo primordial (Hilflosigkeit) que tem no trauma do nascimento seu arquétipo (Freud, 1926/1989).

O original dessa articulação é a precisão acerca desse perigo, ou seja, com a situação de perigo, Lacan "introduz o momento constitutivo de cessão do objeto a" (Cosentino, 1998, p. 108). Já quanto à angústia como efeito da situação traumática, assim como Freud, Lacan busca demarcar algo mais primitivo que a situação de perigo. Cosentino esclarece: "Enquanto o momento de função da angústia é logicamente anterior à cessão de objeto, a situação de perigo (com seu sinal cambiante) está ligada ao momento constitutivo do objeto a" (p. 109).

Localizada a anterioridade lógica da função da angústia, chega-se à possibilidade de circunscrever esse momento de desamparo primordial. Daí, esse ponto estrutural (lugar da angústia) permite indicar no nível do Outro o desamparo ou, em termos lacanianos, a angústia aparece "antes de qualquer articulacão como tal da demanda do Outro" (Lacan, 1962-1963/2006, p. 354), assinalando, assim, sua função em termos da estrutura.

Com relação ao momento constitutivo de cessão do objeto, Cosentino (1998, p. 109) indica com Lacan que, "No ponto de partida, o da função da angústia que coincide com a emergência ao mundo daquele que será o sujeito, esse primeiro efeito de cessão é o grito". É assim que o grito (tal como Freud o demarca no Projeto em torno dessa alteridade absoluta, das Ding) aparece na primeira experiência da realidade para o sujeito humano. Essa função de cessão situa "a castração na mãe, momento de indefensibilidade, de perda, de separação" (Cosentino, 1998, p. 110).

É preciso destacar, portanto, um viés da angústia que, embora passível de tradução no plano do fenômeno, toca um ponto estrutural entre o sujeito e o Outro. O desamparo primordial implica a castração no Outro. A função mediana da angústia, a partir desse momento mítico de gozo, leva à constituição do desejo, por uma via de renúncia de gozo (Figura 2). Vale indicar que se produz aí um giro: ao final da operação de divisão, Lacan situa o $ e não, como na primeira fórmula (figura 1), o objeto a. Esse giro salienta que "o a precede o sujeito. Passagem de 'objeto do desejo’ a ‘objeto causa'" (Cosentino, 1998, p. 111). Trata-se, portanto, de um sujeito dividido frente ao objeto a, causa de desejo.

 

 

Por essa via, pode-se demarcar a especificidade da cessão de objeto entre sujeito e Outro (em articulação com a função da angústia), demonstrando-se o caráter cessível do objeto que, no plano da experiência, implica um ponto estrutural. É assim que a angústia é mediana (e não mediadora) entre gozo e desejo (Lacan, 1962-1963/2006). Daí se depreende a importância de considerar sua função no luto e no acesso aos circuitos do desejo na vida e no laço de uma análise.

 

"Eu não faço falta"

Em A angústia, Lacan pontua uma sequência clínica publicada por Margareth Little (1956/2002). A leitura de Lacan acerca daquilo que ocorreu com Frida (na ocasião, estava há cerca de dez anos em análise com Little) diverge daquela veiculada pela psicanalista. Lacan (1962-1963/2006) ocupa-se da virada ocorrida nessa análise, que tornou viável o trabalho de luto. Toda a dificuldade na análise de Frida girava em torno de como situar a falta. Dois pontos do relato são destacados. Um deles refere-se à mãe de Frida que, no relato desta, encontra-se fortemente relacionada aos pequenos furtos e transgressões que se apresentaram desde o início da análise, ocorrida após um encaminhamento judicial. Vale lembrar que tais furtos, no âmbito da cleptomania, têm um endereçamento preciso, implicam o Outro. O segundo ponto se refere ao fato de que, embora seu pai já tivesse falecido, Frida "nunca pudera fazer o menor esboço de sentimento de luto em relação a um pai que admirava" (Lacan, 1962-1963/2006, p. 160). Lacan (1962-1963/2006) avalia que as histórias relatadas "mostram, sobretudo, que ela não podia representar [...] alguma coisa que pudesse faltar a seu pai" (p. 160). Assim, em certo sentido (da mesma forma que muitos "idosos" costumam afirmar sobre si próprios), Frida não fazia falta.

Ocorre que, em sua terra natal, morre Ilse, uma amiga da família que (pela tristeza e pela dor que tomam conta de Frida) revela-se uma amiga muito próxima e querida. E Frida, pondera Lacan (1962-1963/2006), "Nunca fizera por ninguém um luto semelhante" (p. 158). O esforço de Margareth Little é de conduzir esse momento de análise mediante interpretações, as mais variadas, "para ver qual delas funciona", brinca Lacan (1962-1963/2006, p. 159). O fato é que nada funciona até o momento em que a analista, diz Lacan (1962- 1963/2006), "Confessa ao sujeito que está perdendo seu latim, e que a ver daquele jeito a entristece" (p. 159).

Diferentemente da leitura de Little (1956/2002), para quem teria operado aí a autenticidade de seu próprio sentimento, Lacan (1962-1963/2006) considera que a intervenção evidencia para Frida que "havia na analista algo chamado angústia" (p. 159). Lacan (1962-1963/2006) assinala que a emergência, entre uma interpretação e outra, do intervalo evidenciado pela angústia da analista permitiu, nessa análise, "transferir para a relação com a analista a reação de que se trata nesse luto... de haver uma pessoa para quem ela pode ser uma falta" (p. 159). Por essa via, Frida pode "apreender-se como falta" (Lacan, 1962- 1963/2006, p. 159). Tal enquadre propiciou que o trabalho de luto desse sujeito (que se encontrava paralisado apesar do, ou melhor, devido ao desesperado esforço de interpretação de Margareth Little) pudesse ter direção. Dessa forma, em torno do luto de, Ilse por Frida, ocorrido em análise, evidencia-se que, para que o sujeito possa trabalhar a partir da perda, é preciso que possa apreender-se como falta.

O "idoso" muitas vezes estabelece (quando da perda de seus próximos amados) contatos bastante incipientes, precários mesmo: o jornaleiro da esquina, a colega da hidroginástica, o atendente do banco, o rapaz da farmácia ou a fisioterapeuta. Contatos que, de fato, não chegam a situá-lo com relação ao desejo, como desejo do Outro. Rabinovich (1993) chama a atenção para a expressão "matar com a indiferença" (p. 62), ali onde o sujeito vai se tornando, pouco a pouco, obsoleto. É recorrente, na práxis com "idosos", a formulação de frases como "Eu não faço falta..." ou: "Eu me sinto sobrando...". Vale ressaltar aí que se apresenta como uma afirmação e não como pergunta, em seu discurso, a questão "Pode o Outro me perder?". Assim, com bastante frequência, o "idoso" afirma taxativamente que ele pode faltar e que o Outro pode perdê-lo, ou seja, demonstra sua dificuldade em apreender-se como falta. É preciso assinalar, nesse ponto, a aparente contradição entre "eu não faço falta" e algo de uma convicção de que o Outro pode perdê-lo. Apreender-se como falta é condição para que se apresente a pergunta "Pode o Outro me perder?", estrutural, passível de relançar certo enigma, certa opacidade com relação ao desejo do Outro, que possa situar a pergunta acerca do desejo. Nesse sentido, consideramos que oferecer no jogo transferencial um lugar vazio ao desejo do sujeito, "para que se realize como desejo do Outro" (Lacan, 1960- 1961/1991, p. 128), permite recolocar em movimento o rodeio próprio ao desejo, relançando a pergunta acerca do desejo, com relação ao tempo que resta.

Lacan (1967/2003) nos lembra de que o sujeito não supõe nada, é sempre suposto no campo do Outro, representado por um significante para outro significante. Recolhemos essa dimensão, de forma invertida, na fala da idosa que diz: "Ando muito esquecida...", frase que suscita a pergunta do analista em determinado momento: "Esquecida por quem?". Que direção apontaria essa dimensão do esquecimento?

dimensão do esquecimento? O fato é que a dificuldade em "apreender-se como falta", em situar-se com relação ao desejo do Outro, acarreta consequentes dificuldades com relação ao trabalho de luto. Na sequência recortada por Little e comentada por Lacan (1962-1963/2006), a angústia da analista evidenciou algo do intervalo, ali onde não havia interpretação possível, deixando operar certa circulação da falta. Tal conjuntura, sob transferência, permitiu que o sujeito pudesse trabalhar a partir da perda, do vazio desvelado. Nesse contexto, a função da angústia em uma análise fica localizada como região intermediária, mediana entre fechamento e abertura às questões próprias ao desejo.

 

Conclusão

O luto como trabalho implica a identificação ao lugar do objeto, como perdido (Lacan, 1962-1963/2006). Trata-se de um tempo necessário do luto para que seja possível, ao final, separar-se: "Eu era como um escudo para ele...". Essa frase dita sob transferência e recolhida entre outras em supervisão, vela e revela algo do lugar que terá sido ocupado por esse sujeito, em trabalho de luto, como objeto causa de desejo. Vale retomar aqui, uma vez mais, a conclusão de Lacan (1962-1963/2006) segundo a qual "Só nos enlutamos por alguém de quem possamos dizer a nós mesmos: 'Eu era sua falta" (p. 156), fazendo aparecer aí o imperfeito como tempo de verbo compatível com o sujeito. Por outro lado, é preciso indicar que "Eu era como um escudo para ele..." é uma frase que chega a ser formulada "só depois", em um tempo do luto em que já haviam cedido, em parte, tanto a inibição quanto a tristeza, dando lugar à saudade e a novos interesses.

Assim, as frases acima situadas, tais como "Eu não faço falta..." ou "Eu me sinto sobrando...", ditas por "idosos" em análise, demonstram que a "falta é o pivô da separação: para que o sujeito se separe da cadeia significante, para que não fique inteiramente preso aos significantes do Outro, é preciso que a falta opere" (Silva & Bastos, 2006, p. 100). Daí a relevância de considerar a dificuldade de muitos "idosos" em apreender-se como falta, em localizar-se com relação ao desejo do Outro, apontada no discurso. Além disso, tais conjunturas clínicas, nas quais se apresenta a dificuldade de delimitar a falta, esclarecem a função da angústia (no intervalo sustentado pelo desejo do analista) no jogo transferencial. Por essa via, torna-se possível dar direção ao trabalho de luto, situar ao longo da partida o desejo do Outro como vazio, cavo que a pulsão contorna, pois "A falta, que sempre participa de algum vazio, pode ser preenchida de várias maneiras" (Lacan, 1962-1963/2006, p. 35).

Trata-se, portanto, em algumas análises na velhice, de uma aposta no funcionamento da estrutura, ainda que, na experiência psicanalítica com "idosos", haja lutos que se mostrem efetivamente muito difíceis, em função da exacerbada dificuldade de apreender-se como falta. Dessa forma, situamos a especificidade de operar, no jogo transferencial, com a função do intervalo (sustentado pelo desejo do analista) e o necessário manejo da angústia que daí se depreende, para que o trabalho, a partir da perda, trabalho de luto, possa ganhar direção e permita aceder à falta simbólica compatível com a circulação própria ao desejo.

 

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*Doutora em Teoria Psicanalítica pelo PPGTP/UFRJ, psicanalista, membro da Escola Letra Freudiana, integrante da equipe clínica do Núcleo de Atenção ao Idoso/UNATI, Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Endereço: Rua Jardim Botânico, 635, ap. 705 - Jardim Botânico, Rio de Janeiro-RJ. CEP: 22470-050. E-mail:gloria.castilho@gmail.com.
**Professora no Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica, psicanalista, bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Endereço: Avenida Atlântica, 554, ap. 902 - Leme, Rio de Janeiro-RJ. CEP: 22010-000. E-mail:abastosg@terra.com.br.
1Ao longo de todo o trabalho, utilizaremos aspas no termo "idoso", para indicar a dissimetria entre o idoso como categoria historicamente construída e o sujeito dividido da experiência analítica, confrontado com as questões (sempre singulares) colocadas pelo processo de envelhecimento.
2No texto O Estranho, Freud (1919/1976) circunscreve dentro da noção de assustador, o fenômeno do estranho. Esclarece que o termo alemão Unheimlich (estranho) mantém com seu oposto Heimlich (familiar) uma singular relação, que se perde na tradução: "Heimlich é uma palavra cujo significado se desenvolve na direção da ambivalência, até que coincide com seu oposto, Unheimlich" (p. 283). É assim que, na língua alemã, a palavra familiar chega a ter o mesmo significado de estranho. Freud (1919/1976) extrai de sua investigação que, na experiência do estranho, longe de tratar-se do que é alheio, o estranho "[...] remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar" (p. 277).
3Sobre esse ponto, ver Castilho e Bastos (2013), em "A função constitutiva do luto na estruturação do desejo". Nesse artigo, foi assinalado que a prova de realidade força a delimitação do buraco no simbólico, permitindo a veiculação de uma falta, trabalho que, para Lacan (1958-1959/1986), desdobra-se da privação, como falta real, à falta simbólica da castração.
4Wo Es war soll Ich werden.
5Vale lembrar que Lacan extrai a referência ao "Che Vuoi" do texto Le diable amoureux, de Jacques Cazotte (1979).
6O objeto a é abordado por Lacan (1962-1963/2006) como objeto causa de desejo, a partir do seminário A angústia. Procura aproximar-se de sua complexidade, referindo-o a uma dimensão de alteridade e situando-o a partir do corte, da separação e da perda. Lacan sustenta a importância de diferenciar o objeto a de qualquer objeto passível de troca, intercambiável e, nessa direção, indica quatro figurações, modalidades de apresentação do objeto a: o olhar, a voz, o seio e as fezes. Lacan (1964/1979) afirma, no entanto, que a despeito de suas vestimentas imaginárias, esse objeto "é a presença de um cavo, de um vazio" (p. 170).
7Em torno da formalização dos discursos, Lacan (1969-1970/1992) demarca ainda a função de captação de "mais de gozar", própria ao objeto a. Nessa direção, com a formalização do objeto a, Lacan confere mais de uma função ao resto inassimilável delimitado por Freud (1895/1977; 1937/1986). Sobre esse ponto, ver também Rabinovich (2004), em Clínica da pulsão.



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