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Psicologia em Revista
versão impressa ISSN 1677-1168
Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.22 no.1 Belo Horizonte jan./abr. 2016
https://doi.org/DOI-10.5752/P.1678-9523.2016V22N1P112
ARTIGOS
DOI - 10.5752/P.1678-9523.2016V22N1P112
(Re)criação do olhar: oficinas estéticas com crianças com deficiência visual
(Re)creation of the look: aesthetic workshops with children with visual impairment
(Re)crear de la perspectiva: talleres de estética con niños con deficiencia visual
Laura Kemp*; Andréa Vieira Zanella**; Adriano Henrique Nuernberg***
Resumo
A partir da apresentação de uma experiência de (re)criação do olhar mediada por diferentes linguagens artísticas, este texto problematiza modos de (vi) ver de crianças com deficiência visual. Consideramos o pesquisar como acontecimento no encontro com pessoas; um processo dialógico que possibilita o "pesquisarCOM". Para tanto, desenvolvemos uma oficina estética que foi registrada por meio de filmagens, fotografias e registros em diário de campo, e constituem o conjunto de informações analisadas. Os resultados permitiram constatar que a deficiência visual possibilita à pessoa ver com os olhos dos outros e com todo o corpo, levando-a a usar, para a construção de imagens intrapsicológicas e fotográficas, a linguagem verbal, a imaginação, a emoção, juntamente com outros processos psicológicos.
Palavras-chave: Deficiência visual. Arte. Relação estética.
Abstract
From the presentation of an experience of (re)creating the look mediated by different artistic languages, this text questions ways of living and seeing of children with visual impairment. We considered the research as a happening in meeting with people; a dialogical process that allows the search WITH. Since then, we developed an aesthetic workshop which was documented through filming, photographs and daily field reports and constitute the set of analyzed information. The results demonstrated that visual impairment makes it possible for a person to see through the eyes of the other and with its whole body, causing it to use for the construction of intrapsychological and photographical images, the verbal language, the imagination, the emotion, along with other psychological process.
Keywords:Visual impairment. Art. Aesthetic relation.
Resumen
A partir de la presentación de una experiencia de (re)creación de la mirada por medio de diferentes lenguajes artísticos, este texto problematiza los modos de (vivir) ver de los niños con deficiencia visual. Consideramos la investigación como un acontecimiento en el encuentro con personas; un proceso dialógico que permite investigar CON. Para eso, desarrollamos un taller estético registrado a través de filmaciones, fotografías y registros en diario de campo, y constituyen toda la información analizada. Los resultados permitieron constatar que la deficiencia visual permite que la persona vea con los ojos de los otros y con todo el cuerpo, llevándola a usar, para la construcción de imágenes intrapsicológicas y fotográficas, el lenguaje verbal, la imaginación, la emoción, juntamente con otros procesos psicológicos.
Palabras clave: Deficiencia visual. Arte. Relación estética.
Introdução
Falar sobre o olhar pode nos remeter muitas vezes ao olhar com o "olho". No senso comum, o olhar é compreendido de modo fragmentado e percebido erroneamente como sendo essencialmente a visão, sentido capaz de apreender a realidade tal como é, de modo objetivo e direto. Neste artigo, discutiremos as múltiplas possibilidades de ver com todo o corpo e com os "olhos" de muitos outros que nos constituem, contrapondo-nos à suposta naturalização dos modos de (vi)ver o mundo.
O processo de constituição de olhares, de modos de (vi)ver a realidade, de acordo com o enfoque histórico-cultural em Psicologia, se dá nas/pelas relações sociais. Em constante processo de vir a ser o cultural é possibilitado pela atividade criadora humana. Vigotski (2004) enfatiza que a cultura é produto da imaginação e da criação humana que nela se baseia; todos os objetos do cotidiano são expressão de imaginação e criatividade.
No que tange à arte, tanto o ato criador como a relação estética estabelecida por um espectador com a obra de arte implicam processos de criação. Na relação com objetivações artísticas sempre nos transformamos ampliando nossa experiência (Vigotski, 1925/1998).1
De acordo com Vázquez (1999), o estético não é uma propriedade inerente aos objetos, mas emerge na relação entre pessoas como um modo de expressão e afirmação do humano. Neste âmbito, concordamos com Kastrup (2010) que a relação estética pode criar estranhamento, provocar mudanças na posição do olhar.
Faz-se necessário enfatizar que a estética, no contexto deste estudo, não se refere a uma estética do belo e não está necessariamente ligada às obras de arte. Aqui, estética é compreendida "enquanto dimensão sensível, modo específico de relação com a realidade, pautado por uma sensibilidade que permita reconhecer a polissemia da vida" (Zanella, 2006, p. 36). Uma relação estética, portanto, pode emergir em qualquer situação cotidiana.
A atividade criadora, por sua vez, implica um olhar estético, socialmente produzido e transformado. Um olhar que é ininterruptamente constituído desde o nascimento, compondo vieses/modos de (vi)ver. Assim, olhares estéticos não dependem apenas da visão, mas das relações concretas que as pessoas estabelecem. Partindo dessa compreensão, apresentaremos uma experiência de (re)criação do olhar mediada por diferentes linguagens artísticas, desenvolvida numa oficina estética com crianças com deficiência visual.
Constituição dos sujeitos e deficiência visual
À luz da Psicologia histórico-cultural, o alicerce da constituição do psiquismo está na conversão pelo sujeito dos sentidos entabulados nas relações sociais. Nesse processo, a mediação linguagem possibilita significações que são convertidas no plano pessoal, constituindo processos psicológicos, como a atenção, memória, linguagem, imaginação, pensamento. Para Vigotski (1931/1997ab), esse processo é a sociogênese do psiquismo, a dupla formação para qual todo processo psicológico ocorre em dois planos que se constituem mutuamente: entre as pessoas, ou intersubjetivo, e intrassubjetivo.
O desenvolvimento da linguagem nos possibilita compreender como se dá a sociogênese dos processos psicológicos (Vigotski, 1934/2001). A linguagem vai desenvolvendo-se a partir da apropriação pela criança dos sentidos das palavras, quando se tornam significativas. A cada nova experiência, a criança passa a estabelecer relações entre os signos anteriormente apropriados, organizando-os para interagir com o contexto social.
Para Bakhtin (1995), um signo implica relação com outros signos, (inter) relação entre muitas vozes, muitos outros presentes ou ausentes, que o constituem. É por meio dos signos, de sua reversibilidade, que o movimento de objetivação e subjetivação se realiza. Esse movimento caracteriza a dupla direção da atividade humana, pois "por seu intermédio, o sujeito se objetiva e transforma a realidade, ao mesmo tempo transforma a si mesmo e se subjetiva" (Zanella, 2004, p. 132).
A linguagem, que, a princípio, é para a criança um meio fundamentalmente de comunicação com os outros, paulatinamente se converte em pensamento. E o sentido, vínculo que os une, amplia-se ao longo de suas vivências: o sentido das palavras transforma-se juntamente com o pensamento (Bakthin, 1995; Vigotski, 1934). Para Vigotski (1934), cada palavra é uma unidade da consciência e o sentido da palavra é a dimensão desta que melhor revela sua dinâmica, sua variabilidade na relação com o contexto e com os demais processos psicológicos superiores.
Sentidos se transformam ao longo do espaço-tempo e implicam realidades generalizadas, mediadas semioticamente e socialmente compartilhadas. Em âmbito psicológico, a transformação dos sentidos no processo de constituição dos sujeitos possibilita que novas relações se estabeleçam entre os processos psicológicos (Vigotski, 1931, 1927/1999, 1932). Inicialmente, há um predomínio da percepção nas conexões dos processos psicológicos: a criança se apropria do contexto social pautada principalmente por processos sensoriais interligados à motricidade. Com a ampliação de sua experiência, novos processos e complexas conexões vão desenvolvendo-se, constituindo um novo sistema psicológico. O desenvolvimento principalmente das conexões com a linguagem possibilita à criança um maior distanciamento do contexto imediato e inserção no mundo simbólico.
Nesse âmbito, precisamos esclarecer que, para as pessoas privadas da visão, o psiquismo se (re)organiza para relacionar-se com a realidade: o processo de desenvolvimento de uma criança com deficiência visual ocorre do mesmo modo que as crianças sem deficiências, apenas por meio de vias alternativas à dimensão visual. A mediação semiótica, o uso de signos como mediações das relações humanas, é o que torna possível superar as limitações decorrentes da restrição da visão física. Dessa maneira, as limitações orgânicas podem ser superadas por processos de natureza social, mediados simbolicamente (Garcia, 1990; Ochaíta; Rosa, 1993; Caiado, 2003; Cunha & Enumo, 2003; Martín & Bueno, 2003; Nuernberg, 2008; Nunes & Lomônaco, 2008; Vigotski, 1931).
A relação estabelecida entre linguagem, imaginação e pensamento conceitual possibilita às pessoas com deficiência visual construírem imagens intrapsicológicas dos aspectos visuais de sua experiência. De acordo com afirmação de Oliver Sacks no documentário Janela da Alma (Jardim & Carvalho, 2002), para os cegos, a imaginação é olho do pensamento, um olhar cujo substrato não se pauta no registro mnemônico das sensações visuais, mas nas significações produzidas com base nos sentidos remanescentes transformados socialmente na/pela cultura. Bavcar (2010) afirma que, do mesmo modo que aqueles que enxergam veem imagens visuais pela reflexão da luz, os cegos ouvem o nascer do dia com o canto dos pássaros e distinguem a "voz" da manhã e da noite.
Com isso, a imaginação tem um papel diferenciado; a cegueira possibilita à pessoa "ver" com os olhos dos outros e com todo o corpo, levando-a a usar os demais sentidos, juntamente com as descrições verbais, a imaginação, a memória, os afetos e pensamentos para construir imagens intrapsicológicas (Sacks, 2010). Ou seja, o significado de ver para a pessoa cega, especialmente a congênita, é pautado por relações interfuncionais distintas daquelas presentes na pessoa que enxerga, onde a propriocepção, a memória cinestésica e a percepção háptica têm outros papéis nos processos psicológicos superiores, como o pensamento, a memória verbal, a linguagem e a imaginação (Nuernberg, 2008). Importante enfatizar, contudo, que não apenas os cegos veem com todo corpo, mas também aqueles que enxergam: tanto o ver como o não ver são socialmente constituídos. Assim, independentemente da visão, constituímos modos de (vi)ver o mundo pelos olhos dos outros.
Método
Com base nos pressupostos apontados, desenvolvemos uma oficina estética com crianças com deficiência visual como modo de possibilitar a (re)invenção do olhar, tanto para os sujeitos com quem pesquisamos e para os próprios pesquisadores como também para todos os demais envolvidos no processo e nos produtos do pesquisar. Faz-se necessário esclarecer que este texto foi elaborado com base nos resultados obtidos na oficina citada, realizada em uma pesquisa aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa com Seres Humanos da Universidade em que foi realizada.
Neste estudo, foram adotados os princípios metodológicos apontados por Vigotski, tais como compreender o processo em vez do produto, buscando o movimento histórico-cultural do fenômeno estudado; e investigar os sentidos produzidos, compartilhados e transformados nas relações sociais (Zanella, Reis, Titon, Urnau & Dassoler, 2007). Considerar a pesquisa como produção histórica e social implica em compreendê-la numa perspectiva ética de viver, concebendo o pesquisar como um acontecimento comprometido com outros acontecimentos, valores e conhecimentos socialmente constituídos. Além de ético, o pesquisar é estético, pois se pauta em aspectos sensíveis da realidade, afirma o ser humano enquanto humanidade. Com isso, a pesquisa é também política, engajada numa perspectiva de vida que se quer (re)produzir em resistência às forças hegemônicas, na luta pela garantia da diversidade humana (Sais & Zanella, 2008).
Nesse ínterim, compreendemos que pesquisar em Psicologia é "pesquisarCOM", um modo de intervir e produzir realidades outras (Souza & Castro, 2008; Moraes, 2010; Moraes & Kastrup, 2010). Na pesquisa-intervenção, o pesquisador, os sujeitos participantes e o acontecimento do pesquisar se constituem mutuamente (Costa & Coimbra, 2008; Souza, 2006). Conceber o pesquisar como acontecimento no encontro com pessoas é compreendê-lo como processo dialógico, em constante movimento. Esse pesquisar acontecimento é também intervenção, pois contribui para a ressignificação dos modos como (vi) vemos o mundo e possibilita a criação de sentidos outros, sendo essa condição inventiva, o que nos permite caracterizá-la como in(ter)venção (Axt & Kreutz, 2003).
Os participantes com os quais pesquisamos eram 11 crianças com idades entre 7 a 12 anos, sendo 6 cegas congênitas, 2 sem deficiência visual e 3 com baixa visão. As crianças com deficiência visual eram alunos da rede regular de ensino e participavam de atividades de contraturno em uma associação de educação especial, organização não governamental que atende a pessoas com deficiência visual na qual foi realizada a oficina estética. As crianças sem deficiência visual eram familiares dos demais participantes: como precisavam acompanhá-los, foram convidadas a participar da oficina. Em geral, as crianças residiam em bairros de classe econômica de baixa renda de Florianópolis-SC, e algumas delas viviam em situações precárias.
Intitulada "Experiências de (re)criação do olhar", a oficina estética foi realizada em cinco encontros, na sede da associação anteriormente citada, totalizando 20 horas de atividades. Na oficina, foram proporcionadas às crianças vivências estéticas usando diferentes linguagens artísticas, como ferramentas para a sensibilização do olhar, possibilitando reflexões sobre os modos de (vi)ver o mundo e produção de sentidos outros da/na realidade.
Compreende-se que, ao trabalhar com linguagens artísticas, possibilitamos aos sujeitos com quem pesquisamos vivenciarem processos de criação e estabelecerem relações estéticas, realizando, desse modo, o ciclo objetivação-subjetivação, no permanente movimento de constituição dos sujeitos, em contínuo devir. Relações estéticas e atividade criadora implicam em (re)inventar a realidade e são, portanto, fundamentais para o desenvolvimento humano (Zanella, 2007). Assim, entendemos educação estética como uma formação que possibilita relações sensíveis e criativas das crianças com a realidade, com os outros e com elas próprias.
Foram responsáveis por planejar, organizar e ministrar os encontros a pesquisadora principal; uma arte-educadora, professora de teatro e música para crianças; e uma pedagoga e professora da associação onde a pesquisa foi realizada.
As atividades realizadas na oficina pretenderam favorecer às crianças objetivarem sua imaginação em diferentes linguagens, por meio de palavras, ações, expressões corporais, produções fotográficas e artísticas. Vivenciamos brincadeiras e atividades lúdicas que envolveram audição de histórias, dramatização, dança, fotografia, expressão corporal e facial, entre outras. Durante os encontros, as crianças cantaram e dançaram ao som do violão tocado pela arte-educadora; ouviram e tocaram instrumentos variados; criaram diferentes ritmos, sons e movimentos corporais.
Quanto aos procedimentos para registro das informações, cabe esclarecer que todas as atividades da oficina foram registradas em áudio e vídeo e, juntamente com informações decorrentes de observações registradas em diário de campo, objetivações artísticas e fotográficas produzidas pelas crianças, e entrevistas realizadas com as crianças, familiares e educadores, consistiram no material analisado. Neste artigo, fazemos um recorte e analisamos apenas algumas atividades significativas da oficina.
Como meio de divulgação dos resultados da oficina estética, foi realizado um documentário. Para a elaboração desse filme, foram utilizados excertos do registro audiovisual da oficina estética e das entrevistas realizadas. Intitulado Olhos abertos para ouvir (Franco & Kemp, 2010), o documentário foi desenvolvido por uma equipe dos cursos de Cinema e Jornalismo, como parte de trabalhos de conclusão de curso.
Resultados e discussão
Por causa da gravação do documentário, desde o primeiro dia de encontro com as crianças, havia muitas pessoas na sala em que se realizou grande parte das atividades. Portanto, logo depois que apresentamos a proposta da oficina e da realização do filme, as crianças caminharam lentamente pela sala, buscando conhecer tudo que havia ali. Conforme encontravam pessoas, apresentavam-se, procurando tatear os equipamentos e conhecer a equipe. Eram três câmeras, cada uma com um operador, um microfonista, um operador de som e um assistente de direção.
As crianças conheceram o espaço e aqueles que lá estavam, demonstrando interesse e curiosidade sobre a produção do filme. Observando o registro videografado dessa atividade, podemos observar como foram se estabelecendo processos de criação de sentidos sobre oficina. O encontro com a equipe de filmagem e a "descoberta" dos equipamentos foi possibilitando que novos signos fossem apropriados pelas crianças; nas relações dialógicas estabelecidas, fragmentos do contexto foram se tornando significativos. A cada apropriação dos sentidos ali estabelecidos, as crianças foram constituindo olhares sobre a oficina e o filme.
Vivemos a polissemia da realidade num constante processo de (re)significação que envolve aspectos visuais, auditivos, táteis, gustativos ou olfativos, imbricados como numa trama de um tecido. Por meio da mediação semiótica na relação com muitas vozes e palavras de outros, sentidos foram tornando-se próprios às crianças, foram experienciados com todo o corpo. Uma das crianças, por exemplo, ao conversar com a assistente de direção do filme e conhecer a claquete, a associou ao sentido desse signo anteriormente apropriado. Ela tornou objetivo em sua ação o sentido, manipulou a claquete sorrindo e dizendo: "Corta!".
A atividade seguinte foi de apresentação em roda: cada participante deslocouse ao centro da roda e falou seu nome, associando-o a um movimento ou som corporal. Logo nessa primeira atividade, observamos que a equipe do documentário e as câmeras não mais chamavam atenção das crianças: por mais que soubessem que estavam ali compartilhando o mesmo espaço, ficaram logo desinibidas. Esse aspecto chamou a atenção de toda a equipe e dos mediadores da oficina, pois havia a preocupação de que os equipamentos e a produção do "set de filmagem" atrapalhassem o desenvolvimento da proposta de trabalho da oficina, o que não ocorreu.
Durante os encontros, as crianças ouviram, criaram sons e tocaram instrumentos variados. A musicalidade e a sonorização foram trabalhadas por meio de brincadeiras de entonação, eco e ritmo, além de noções básicas de alguns instrumentos musicais, como violão, tambores, chocalhos, apitos, calimba, cocos, etc.
De acordo com Inês Berlanda, em seu depoimento no documentário Olhos abertos para ouvir (Franco & Kemp, 2010), brincadeiras que proporcionem expressões faciais e corporais são fundamentais, pois muitas crianças cegas não conhecem as diferentes expressões de seu corpo. Nesse âmbito, a mediação do outro, principalmente por meio da linguagem, faz-se indispensável. Cabe ressaltar que, também para as pessoas que enxergam, percepção e consciência corporal se constituem na relação com o outro. Para Bakhtin (2003), não é possível ver todo o próprio corpo por uma impossibilidade física, que se apresenta para pessoas com ou sem deficiência visual. É impossível ver todo o corpo; mesmo quando estamos nos vendo no espelho, o que observamos é apenas um reflexo, uma imagem. Assim, os corpos se constituem a partir da e na alteridade.
Com base nessas reflexões sobre o corpo, nos encontros, realizamos atividades de alongamento, conhecimento e experimentação corporal dos múltiplos sentidos. Em atividades de expressão facial, por exemplo, as crianças fizeram caretas: expressões de medo, alegria, fome, sono, raiva, susto, tristeza, etc., foram objetivadas com base na descrição verbal das mediadoras da oficina, que orientaram a criação dos movimentos corporais. A cada atividade, novos elementos eram incorporados e detalhes aperfeiçoados pelas crianças.
Outras atividades em grupo foram realizadas, como audição de histórias, brincadeiras de roda, cantigas e quadras populares, vivência folclórica regional do folguedo catarinense boi de mamão, dança com diferentes músicas, relaxamentos, etc. Essas atividades foram desenvolvidas de modo acessível. Para o boi de mamão, por exemplo, os bonecos dos personagens eram perceptíveis por meio do tato. Importante destacar que os bonecos são feitos com cores, contrastes, relevos e texturas variados, que possibilitavam acessá-los e imaginálos por diferentes canais perceptivos.
Ao longo da semana, as crianças aprenderam a cantar as músicas e ouviram atentamente a história do boi de mamão, gravada em áudio.2 Em seguida, a proposta foi que as crianças pudessem conhecer e sentir, ouvindo a descrição, explorando e tocando cada um dos personagens do boi de mamão.
Nessa atividade, mostramos os bonecos, um a um, para que as crianças pudessem conhecê-los. Elas exploraram as partes, fizeram perguntas e tentaram adivinhar quais eram os personagens. Mostramos o boi, o cavalo, a bernunça, a Dona Maricota, a cabra, etc. Cabe ressaltar que o tato é um modo de conhecer o mundo, é indispensável às crianças com deficiência visual, pois, juntamente com os demais sentidos, a imaginação e a mediação da linguagem lhes possibilitam criar sentidos e imagens intrassubjetivas.
Também cantamos e dançamos o boi de mamão, encenando a história. As criança
s escolheram os papéis para desempenhar, instrumentos para tocar e personagens para representar. Analisando as filmagens dessa atividade, podemos observar que duas crianças (re)criaram a experiência, atribuindo sentidos outros na/da brincadeira. Uma delas que usava um chapéu de palha e dançava com o boneco do boi de mamão sugeriu que seu boizinho estava com sede e abaixouse, encenando dar-lhe água. No mesmo instante, outra criança se aproximou, compartilhou a brincadeira e também simulou dar água ao seu boi.
Nesse jogo de faz de conta, as crianças (re)elaboraram a realidade, convertendo-a em imaginação e a objetivaram novamente por meio de gestos, ações e verbalizações, possibilidade essa apontada por Vigotski (2004), Ramírez (2010) entre outros autores. O personagem do boi, criado originalmente para dançar na folgança, foi (re)criado no contexto da brincadeira, assumindo novas ações e possibilidades interativas. Cumpre ressaltar que, para Benjamin (2002) e Brougère (1995), não é o brinquedo que define a brincadeira das crianças, mas, ao contrário, é a brincadeira que os configura. Assim, essa brincadeira viabilizou uma atividade criadora.
No quarto encontro, realizamos atividades com elementos multissensoriais, possibilitando às crianças experiências percebidas com todo o corpo, o tato por exemplo. Nessa vivência tátil, criamos brincadeiras utilizando túnel de tecido, fios, fitas e pompons de diferentes texturas. Algumas crianças sorriram ao sentirem a textura do algodão ou da lã em seu rosto ou sua barriga. Tentaram identificar os diferentes elementos que exploraram com o tato e audição, compartilhando com o grupo suas "descobertas", como quando uma das crianças movimentou com as mãos sementes de uma árvore e disse estar fazendo o som da chuva, "chuva de sementes". Todos adoraram essa experiência e se divertiram muito.
Nessa mesma tarde, realizamos uma atividade com fotografia. Usamos para isso uma câmera fotográfica descartável para todo o grupo. Uma a uma, cada criança escolheu individualmente um dos pompons utilizados na atividade anterior para posar para uma foto, usando-o na composição do quadro do modo como quisessem usar.
Em continuação, cada criança produziu uma foto individualmente, escolhendo alguém ou algum objeto da sala para fotografar, desde que não repetissem as escolhas dos colegas. A diversidade de composição, já presente na atividade anterior, foi aqui proposta às crianças. Apesar de possibilidades de fotografar diversos brinquedos, equipamentos e instrumentos, as crianças escolheram apenas pessoas para fotografar, e os primeiros modelos eleitos foram as mediadoras da oficina, dando assim visibilidade aos vínculos ali estabelecidos. Com o desenrolar da atividade, foi sendo criada uma rede de relações, uma teia que entrelaçou os membros do grupo.
As experimentações com as câmeras fotográficas, equipamentos utilizados como uma espécie de prótese dos olhos, permitiram às crianças criarem imagens e, de certo modo, intervirem nos seus modos de (vi)ver. Cumpre destacar que a brincadeira e a alegria marcaram as escolhas das crianças; numa atividade lúdica, elas escolheram criar posições e quadros bem distintos para seus retratos. Como num jogo, cada participante diferenciou sua fotografia dos colegas que o procederam, no diálogo com as criações anteriores. No processo de criação de brincadeiras, Vigotski (2004) enfatiza o papel da imitação: ao brincar, as crianças reproduzem algo que viveram, mas esses elementos não se reproduzem da mesma forma como aconteceram, são reelaborados pela atividade criadora. Com a criação dos retratos, as crianças demonstraram que a brincadeira fundamentou a atividade criadora, num processo dialógico e dialético de recriar experiências.
Considerações finais
A experiência de participar da oficina e da gravação do filme foi muito significativa para as crianças com quem pesquisamos, para as mediadoras da oficina, para a equipe de filmagem e para muitos outros envolvidos no processo de pesquisar. Em duas das entrevistas com as mães exibidas no documentário Olhos abertos para ouvir (Franco & Kemp, 2010), elas relataram que os filhos voltavam para casa eufóricos após os encontros da oficina, contando tudo o que haviam feito, criado e aprendido.
A oficina estética, como ferramenta metodológica, possibilitou o "pesquisarCOM". As crianças participantes foram protagonistas no processo de pesquisar e, assim, pesquisamos COM elas e não sobre elas. Desse modo, criouse um campo de enunciação que permitiu o diálogo entre a pesquisadora, as crianças, os educadores, a equipe de filmagem e o contexto social; tornando, assim, a pesquisa um acontecimento. O diálogo que se entreteceu entre essas múltiplas realidades subsidiou a reflexão sobre a polissemia da vida, sobre os diferentes modos de (vi)ver o mundo.
A apresentação, ainda que breve, da oficina estética e dos exercícios de ver com todo o corpo mediados por equipamentos técnicos ofertados às crianças possibilitou ao leitor deste texto compreender condições que foram intencionalmente produzidas para a (re)invenção do olhar, do sentir, do estar com outros. Os resultados permitiram constatar que a deficiência visual possibilita à pessoa ver com os olhos dos outros e com todo o corpo, levando-a a usar, para a construção de imagens intrapsicológicas e fotográficas, a linguagem verbal, a imaginação, a emoção, a memória e o pensamento, juntamente com os outros processos psicológicos.
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Texto submetido em julho de 2013 e aceito em outubro de 2015.
* Doutora e mestra pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), graduada em Psicologia na UFSC. E-mail:kemp.laura@gmail.com.
** Doutora em Psicologia Educacional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC SP), professora do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFSC, bolsista de produtividade em pesquisa do CNPq. E-mail: azanella@cfh.ufsc.br.
*** Doutorado interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC, professor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da UFSC. E-mail: adrianoh@cfh.ufsc.br.
1 A primeira data indica o ano de publicação original da obra, e a segunda indica a edição consultada pelo autor, a qual somente será pontuada na primeira citação da obra no texto. Nas seguintes, será registrada apenas a data de publicação original.
2 Foi utilizada a áudio-história do boi de mamão gravada por profissionais do Núcleo de Desenvolvimento Infantil (NDI) da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).