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Psicologia em Revista

versão impressa ISSN 1677-1168

Psicol. rev. (Belo Horizonte) vol.27 no.2 Belo Horizonte maio/ago. 2021  Epub 20-Jan-2025

https://doi.org/10.5752/p.1678-9563.2021v27n2p513-532 

Artigo

DESENVOLVIMENTO DE TALENTOS INDÍGENAS: ESTUDO EXPLORATÓRIO SOBRE OS YUHUP

DEVELOPMENT OF INDIGENOUS TALENT: EXPLORATORY STUDY ON THE YUHUP

DESARROLLO DE TALENTOS INDÍGENAS: ESTUDIO EXPLORATORIO SOBRE EL YUHUP

Jane Farias Chagas-Ferreira1 

1Pós-doutora pela University of Connecticut, no Renzulli Center for Creativity, Gifted Education and Talent Development, doutora em Processos de Desenvolvimento Humano e Saúde pela Universidade de Brasília (UnB), mestra em Psicologia pela UnB


RESUMO

Este estudo exploratório teve como objetivo investigar fatores promotores ou inibidores do desenvolvimento de talentos entre os Yuhup. Os dados foram construídos por entrevistas com não autóctone e analisados por meio de procedimentos qualitativos. Não existe uma palavra para definir talento na língua macu, mas os Yuhup reconhecem os artesãos como pessoas talentosas. A expressão do talento é mediada pelo gênero: homens constroem artefatos rituais e para a pesca e caça; enquanto as mulheres se dedicam a cestaria, vestimenta e adornos. As técnicas e os saberes são repassados transgeracionalmente, pela repetição e observação, e como parte da rotina familiar. Destacaram-se como desafios para o desenvolvimento dos talentos: a identificação precoce das crianças e a formação de professores para atuarem na educação escolar indígena. Indica-se a necessidade de futuras pesquisas traçarem indicadores para oferta de serviços educacionais que promovam o desenvolvimento das potencialidades de crianças e jovens talentos na comunidade Yuhup.

Palavras-chave Desenvolvimento de talentos; Yuhup; Povos indígenas; Educação de superdotados

ABSTRACT

This exploratory study aimed to investigate factors that promote or inhibit talent development among the Yuhup. The data were constructed through interviews with non-Indigenous person and analyzed using qualitative procedures. There are no words to define talent in the Maku language, but the Yuhup people recognize artisans as talented people. The expression of talent is mediated by gender: men build ritual and fishing and hunting artifacts, while women dedicate themselves to basketry, clothing, and ornaments. Techniques and knowledge are transmitted transgenerationally through repetition and observation and as part of the family’s routine. The following stood out as challenges for talent development: the early identification of children and the training of teachers to work in indigenous school education. The need for future research is pointed out to outline indicators for the provision of educational services that promote the development of the potential of children and young talents in the Yuhup community.

Keywords Talent development; Yuhup; Indigenous people; Gifted education

RESUMEN

Este estudio exploratorio tuvo como objetivo investigar los factores que promueven o inhiben el desarrollo del talento entre los Yuhup. Los datos se construyeron mediante entrevistas con participante no-indígena y se analizaron mediante procedimientos cualitativos. Los Yuhup reconocen a los artesanos como personas con talento. La expresión del talento está mediada por el género: los hombres construyen artefactos para pesca, caza y rituales; y las mujeres participan en la fabricación de cestería, ropa y adornos. Técnicas y conocimiento se transfieren entre generaciones a través de la repetición y observación, como parte de la rutina familiar. La identificación temprana de los niños y la capacitación de maestros para trabajar en la educación escolar indígena se destacaron como desafios. Se señala la necesidad de futuras investigaciones para delinear indicadores para la provisión de servicios educativos que promuevan el desarrollo del potencial de los niños y jóvenes talentos en la comunidad Yuhup.

Palabras clave Desarrollo del talento; Yuhup; Pueblos indígenas; Educación del superdotado

1. INTRODUÇÃO

Esta pesquisa possui delineamento exploratório-descritivo (Breakwell et al., 2010) e teve como objetivo investigar fatores que podem favorecer ou inibir o desenvolvimento do talento entre o povo Yuhup. Para tanto, foram elaboradas três questões de pesquisa:

  1. Como os Yuhup concebem o talento?

  2. Quais são os recursos ou estratégias presentes na comunidade que favorecem o desenvolvimento dos talentos?

  3. Quais os possíveis desafios ou barreiras ao desenvolvimento dos talentos?

Os termos talento e superdotação foram utilizados como sinônimos ao longo desse estudo, sendo definidos a partir da interconexão de características individuais e ambientais envolvendo as habilidades acima da média, a criatividade e o envolvimento com a tarefa, como elaborado no modelo dos três anéis (Renzulli & Reis, 2014).

Uma vez, que todo fenômeno humano é localizado no espaço sócio-histórico-cultural, a cultura ou os aspectos macrossistêmicos (conhecimento, crenças, valores e modos de vida) são uma propriedade emergente dos indivíduos que interage, gerencia e altera o ambiente onde estão inseridos (Kim et al., 2006). A compreensão desses aspectos deve fundamentar o entendimento descritivo sobre o funcionamento humano e de como as oportunidades são organizadas para o desenvolvimento das capacidades, potencialidades e talentos. Sendo esse mapeamento requerido como fundamental em se tratando de minorias étnicas, como é o caso das comunidades indígenas (Gentry & Fugate, 2012; Kim et al., 2006, Vialle, 2011).

A população indígena no Brasil quase foi dizimada durante o período da colonização. Ainda hoje, vários autores denunciam a condição precária de vida a que estão sujeitos esses povos, cujas demandas territoriais, assistenciais e econômicas estão no centro da pauta dos debates e de suas reivindicações. São registrados avanços na legislação brasileira e internacional a partir da década de 1980 (Brasil, 2009; Cavalcante, 2016; Silva, 2018) e movimento na direção da preservação do patrimônio material e imaterial dessas comunidades, também em outras nações como Estados Unidos da América, Nova Zelândia e Austrália (Aronson & Laughter, 2016; Vialle, 2011).

Esse crescente interesse, coloca em evidência a necessidade de elaboração de políticas públicas que reconheçam, valorizem e atendam às potencialidades e a diversidade desses povos, a partir do mapeamento de seus modos de vida, crenças e valores (Gentry & Fugate, 2012; Vialle, 2011). Nesse sentido, é preciso considerar os complexos processos que vão transformando a cultura, como um corpus aberto (Kim et al., 2006). Entre os vários fatores que têm implicações nessa dinâmica, destacam-se os processos de educação escolar e a inclusão digital.

Esses dois fatores têm levado ao crescimento do protagonismo de jovens indígenas na proteção e preservação de sua identidade cultural e a uma maior representatividade no cenário político, educacional, econômico e artístico (Vialle, 2011). Nesse sentido, revelando talentos e habilidades vinculados às mídias digitais, como videomakers, técnicos e produtores musicais. O aprendizado destas novas habilidades e técnicas privilegiam a autoria, a autonomia e um novo olhar sobre a própria identidade étnica. Para além de ampliar as oportunidades de atuação profissional, confere a cada produção um estatuto diferenciado a partir do olhar indígena sobre o mundo. Toda essa dinâmica coloca em evidência as características mutantes da cultura, que é afetada por agentes externos e pela própria dinâmica interna da comunidade (Berry & Georgas, 2009; ISA, 2018).

2. O TALENTO INDÍGENA NO BRASIL E NO MUNDO

A educação indígena e, mais especificamente, o desenvolvimento dos talentos entre os indígenas tem sido uma pauta emergente nas pesquisas, políticas públicas e serviços educacionais (Cameron & Cutean, 2017; Vialle, 2011). No Brasil, foram encontrados dois estudos empíricos em revistas indexadas que tratam dessa temática, ambas as pesquisas foram desenvolvidas na Universidade Federal do Amazonas. A primeira investigação foi realizada por Becker et al. (2009) com professores da etnia Sateré-Mawé, durante curso de formação, quando foram realizados encontros e oficinas de arte no sentido de sensibilizar os participantes quanto aos temas que envolvem a educação especial e a identificação de talentos.

O segundo estudo foi desenvolvido por Becker e Milon (2012) com um grupo de professores e estudantes da etnia Mura. Apesar de a superdotação ser um tema desconhecido desses professores, eles demonstraram disposição para debater e aprender. Os resultados evidenciaram que os professores reconheceram características de superdotação em seus alunos, ainda que de forma intuitiva, muito próximas ao que é definido no modelo dos três anéis, elaborado por Renzulli (Renzulli & Reis, 2014). Foram identificadas habilidades acadêmicas e artísticas (canto, desenho e escultura) e os professores relataram que promoviam a aceleração dos estudos dos alunos que aprendiam mais rápido.

Entre as características individuais de crianças e jovens talentosos de populações tradicionais, as pesquisas revelam que esses estudantes: são mais focados no coletivo; preferem a quietude, o que pode ser confundido com timidez; têm forte conexão com a natureza; são autodisciplinados; observadores (espere, assista e aprenda); persistentes e intuitivos. Também demonstram maior sensibilidade sensorial e emocional; humor afiado; perspicácia e curiosidade pouco comuns; engajam-se em relações interpessoais mais positivas e demonstram uma liderança mais compassiva (Gentry & Fugate, 2012; Vialle, 2011).

Ainda nesta direção, são apontados fatores sócio-históricos-culturais que também devem ser considerados nas pesquisas e a elaboração de programas para o desenvolvimento dos talentos indígenas (Gentry & Fugate, 2012; Gibson & Vialle, 2007; Merrotsy, 2013; Vialle, 2011). Entre esses fatores, destacam-se:

  1. a estreita conexão com a natureza e com os ecossistemas na terra em que habitam;

  2. a continuidade social por meio da relação com seus antepassados que transcendem os limites da vida por meio da espiritualidade;

  3. a dinâmica comunitária onde a qualidade dos relacionamentos é fundamental; e

  4. a maneira como o conhecimento é construído por meio da observação e da transmissão oral.

Siegle et al. (2016), Gentry e Fugate (2012) e Ford (2010) identificaram barreiras que podem impedir ou mascarar a identificação e o desenvolvimento dos talentos em grupos sub-representados em programas de educação de superdotados. Essas barreiras foram categorizadas em quatro fatores ou “4As”: atitude, acesso, avaliação e atendimento. Com relação à atitude, eles revelaram a necessidade de que haja um olhar mais acurado sobre como o talento surge nessas populações. O que significa um maior investimento na formação de equipes multiprofissionais das áreas da educação, saúde e assistência social e a adoção de um conceito de talento multifacetado, multicultural e multidimensional (Vialle, 2011).

Quanto ao acesso, é essencial haver oportunidades reais para que esses talentos sejam reconhecidos e identificados. Esses alunos necessitam de serviços especiais e de planejamento intencional para que suas habilidades possam surgir. Em muitos casos, é imprescindível o planejamento de ações afirmativas, no sentido de eliminar barreiras que estão associadas à rigidez dos currículos escolares e seus processos avaliativos que levam esses alunos a um sub-rendimento escolar que os impede de avançar nos estudos (Gentry & Fugate, 2012; Webber, 2011).

De igual maneira, é importante que existam sistemas e processos que propiciem a avaliação das potencialidades e talentos de maneira adequada, por meio de instrumentos e procedimentos diferenciados (Webber, 2011). Por último, as necessidades e potencialidades identificadas sejam acadêmicas, emocionais, sociais ou de outra ordem precisam ser supridas a fim de que esses talentos sejam desenvolvidos de maneira adequada por meio de programas e serviços específicos.

Trommsdorff (2009) chama a atenção para o fato de que nas comunidades tradicionais todo o conhecimento é produzido de forma coletiva, as ideias e as técnicas vão sendo transmitidas de uma geração a outra de forma amplamente compartilhada e contextualizada. A produção não é uma patente do indivíduo, mas de um coletivo. Isso significa que o direito de usar ou dispor de algo é coletivo. A produção, seja utilitária ou artística, faz referência à identidade, à ação e à memória de um grupo e tem estreita ligação com os modos de criar, fazer e viver nesta comunidade.

3. OS YUHUP: DADOS HISTÓRICOS E SOCIOCULTURAIS

De acordo com o Instituto Socioambiental (ISA) (2018), uma organização não governamental que trabalha em defesa dos direitos dos indígenas brasileiros, existem poucos trabalhos sobre os Yuhup. Entre os quais, merecem destaque aqueles realizados por Pozzobon, Becerra, Calvo e Rubio, Calvo e Rubio, Mahecha, Becerra e Lolli. Segundo dados desse Instituto, os Yuhup, também denominados por Yuhupdeh ou Maku-Yuphu, são indígenas que vivem na região noroeste da Amazônia. O território dos Yuhup abrange áreas próximas aos rios Tiquié e Apapóris, zona de fronteira entre a Colômbia e o Brasil. Até meados do século XX, os povos que habitavam essa região eram denominados apenas de Maku. Os Maku são denominados povos da floresta ou mato, enquanto os Tukano ou Aurak, são povos dos rios. Os Maku eram nômades e viviam no interflúvio dos grandes rios. Essa mesma região também era ocupada pelo exército brasileiro e por seringueiros, comerciantes e garimpeiros (Epps & Bolaños, 2017; ISA, 2018).

Os Yuhup são considerados grandes conhecedores dos caminhos das matas, das técnicas para caçar, coletar alimentos e fazer veneno. É complexo estimar a população de Yuhup, em razão de eles ocuparem uma vasta área geográfica, de difícil acesso e por conta de seus padrões de alta mobilidade populacional. Em vista disso, de acordo com Silva (2012), estima-se que existem em torno de 1000 indivíduos que fazem parte desse grupo étnico. Como outros povos que habitam essa região, os Yuhup realizam dois rituais, Dabucuri e Jurupari, que estão vinculados a dois ciclos mitológicos:

  1. a viagem da canoa da transformação; e

  2. aparecimento das flautas. Essas narrativas são consideradas uma arte verbal, cuja principal característica é relatar as gêneses do universo.

Existiram entre os Yuhup poderosos feiticeiros, cujas práticas xamânicas se enfraqueceram. De acordo com o ISA (2018), existiam dois importantes xamãs na cultura Yuhup: os pajés e os benzedores. Os pajés tinham o poder de transformar onça em gente, viajar pelo mundo dos sonhos, enviar doenças para um inimigo e de extrair a doença por meio de procedimentos terapêuticos. Os benzedores, por sua vez, utilizavam formas verbais (encantamentos e rezas) que podiam curar ou proteger. Estes últimos também eram responsáveis por alguns rituais como o de iniciação masculina com o uso de Flautas Jurupari.

A língua Yuhup é classificada como pertencente à família linguística macu junto a outras seis línguas: hupdah, Guariba, Dâw, Nadãb, Bara e Puynava (Lopez, 1995). Essa família também é conhecida como Nadahup, Negro-Japurá ou Uaupés-Japurá. Entre os Yuhup, a maioria dos indivíduos é no mínimo bilíngue passivo, ou seja, são capazes de compreender, apesar de não conseguirem se expressar na língua. Boa parte compreende o espanhol, português e mais de uma língua das comunidades tradicionais da região. O bilinguismo ativo é mais comum entre os homens (Silva, E. & Silva, C., 2012).

As comunidades Yuhup possuem composição mista e são constituídas por mais de um grupo doméstico, cada grupo envolve parentes maternos e/ou paternos. Os anciãos desempenham papel de liderança dentro de seu grupo consanguíneo e na comunidade em geral. Cada grupo ou clã possui seu conjunto de nomes próprios, instrumentos musicais, mitos, danças e cantos que os diferencia de outros grupos (ISA, 2018). Esse conjunto identitário é transmitido para outras gerações, dentro de uma lógica patrilinear. Eles se casam entre primos que falam a mesma língua e seu acampamento apresenta um número reduzido de grupos domésticos.

A exploração da borracha, a extração de ouro dos garimpos, o comércio de pele de onças e a investida missionário de Salesianos teve grande impacto sobre os modos de vida dos Yuhup. Passando os mesmos a serem explorados tanto pelo homem branco quanto por outros grupos de indígenas em trabalho escravo. Suas danças, rituais, enfeites e instrumentos foram proibidos pelos padres. Na década de 1990, o povo Yuhup se tornou menos nômade também em virtude dos processos de escolarização. A partir de 2000, começaram um projeto escolar conduzido pela própria comunidade, com a contratação de professores Yuhup, sendo criada em 2010 a Associação das Escolas e comunidades Indígenas do povo Yuhupdeh, objetivando a autonomia de suas políticas de educação (ISA, 2018; Silva & Silva, 2012). Na região do rio Apapóris, esse processo foi iniciado mais cedo, em 1988, segundo Lopez (1992). Essa inserção trouxe para a comunidade a obter diversos benefícios do governo brasileiro.

4. MÉTODO

A participante não é autóctone e foi convidada a participar da pesquisa em razão de sua experiência, convivência e conhecimento aprofundado da cultura Yuhup. Ela tinha 60 anos de idade e formação nas áreas de saúde, educação e linguística e havia trabalho entre os Yuhup durante 33 anos, colaborando em vários projetos de educação e saúde, especialmente com a pesquisa e produção de material didático para a formação de professores. Sua jornada de trabalho na aldeia era extensa, podendo chegar até 14 horas por dia, “quando o sol demora, enquanto tem luz, nós trabalhamos lá”. Todos os indígenas, mencionados ao longo dos resultados, serão identificados por codinomes na língua macu, escolhidos pela participante que será nominada de “Hog”, que significa borboleta. Esse procedimento teve por objetivo preservar a identidade dos indígenas e corroborar com aspectos éticos da pesquisa.

5. INSTRUMENTOS

Para a construção dos dados foram utilizadas como técnicas e instrumentos: a pesquisa documental, um roteiro de entrevista semiestruturado e a entrevista mediada.

5.1. PESQUISA DOCUMENTAL

Foram realizadas pesquisas em base de dados: Google Acadêmico e portal da CAPES com a finalidade de compilar dados sobre os aspectos macrossistêmicos do povo Yuhup e acerca do desenvolvimento de talentos em comunidades tradicionais. Para tanto foram utilizados os seguintes descritores, separada e conjugadamente: Yuhup, comunidades tradicionais, índios, talento, altas habilidades e superdotação.

5.2. ROTEIRO DE ENTREVISTA SEMIESTRUTURADA

O roteiro de entrevista continha duas seções. A primeira era dedicada a compilar dados sociodemográficos e a segunda seção continha quatro conjuntos de perguntas abertas que buscavam compreender a cosmovisão de talento entre os Yuhup; descrever características individuais de Yuhup considerados como talentosos; descrever as estratégias e recursos comunitários disponíveis na comunidade que favoreciam o desenvolvimento do talento; e quais poderiam ser os desafios a serem superados para que os talentos fossem atendidos e desenvolvidos.

5.3. ENTREVISTA MEDIADA

Uma versão preliminar do estudo foi encaminhada por e-mail, oito meses após a primeira entrevista, com o objetivo de refinar o processo interpretativo em diálogo com a participante.

6. PROCEDIMENTOS DE COLETA DE DADOS

Inicialmente foi realizado um levantamento de literatura por meio da busca e compilação de artigos, dissertações de mestrado e publicações sobre o povo Yuhup. Esse mapeamento foi importante para aprofundar aspectos relevantes acerca da história e tradições, especialmente vinculadas a valores, crenças e tradições do povo Yuhup.

A coleta de dados por meio da entrevista foi realizada em junho de 2019. Após apresentar os objetivos da pesquisa, foi assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, foi realizada entrevista pelo WhatsApp com a duração de 1h22min. O conteúdo foi gravado e posteriormente transcrito e analisado. Sete meses após a primeira recolha de dados, a participante foi contatada por telefone informando o envio, por e-mail, de versão preliminar do estudo e para o agendamento de entrevista final. No dia e horário estabelecidos, foi realizada entrevista pelo WhatsApp com duração de 36min. O áudio foi gravado e posteriormente transcrito, servindo de base para as revisões finais do estudo.

7. ANÁLISE DOS DADOS

A partir das respostas ao roteiro de entrevista semiestruturada foram construídas zonas de sentidos a partir das questões de pesquisa, levando-se em consideração alguns princípios centrais da Epistemologia Qualitativa (González-Rey, 2011; Rossato & Martínez, 2013) apontados por Rossato e Martínez (2013), a saber:

  1. o caráter construtivo-interpretativo da produção do conhecimento;

  2. a pesquisa como processo de comunicação e diálogo; e

  3. a legitimação do singular como instância de produção do conhecimento científico.

8. RESULTADOS

Na língua Yuhup não existe uma terminologia específica para designar uma pessoa talentosa. Na percepção de Hog, entre os Yuhup, o artesão seria a figura que ocupa esse papel, uma vez que além de terem suas habilidades valorizadas, os seus serviços são bastante requisitados pela comunidade. Quando não circulava dinheiro entre os Yuhup, havia um sistema de troca e permuta: aqueles que sabiam fazer algo (cestas, canoas, ornamentos) trocavam esse objeto ou artefato por alimentos, outros objetos ou por serviço. Mesmo com as mudanças que aconteceram ao longo do tempo, como um nível maior de contato com outras comunidades e a circulação de ferramentas industrializadas, boa parte da produção artesanal não tem uma finalidade comercial ou artística, mas o consumo interno da própria comunidade. “Tudo que acontece é uma vida comunal, então não existe aquele individualismo próprio do nosso mundo de fora, então a vitória de um acaba sendo uma vitória de todos da família como um todo”.

Nesse sentido, como foi enfatizado pela participante em quatro momentos diferentes da entrevista, na cultura Yuhup o mundo físico e o mundo espiritual estão interligados. Na cosmovisão Yuhup, tudo o que fazem, tudo o que acontece é tanto material quanto transcendente. Não é diferente com a produção artesanal, com a dança, com a caça ou qualquer outra atividade rotineira ou ritualística. Tudo o que é produzido “tem a interferência do mundo espiritual, eles têm que obedecer determinadas regras e princípios . . . não tem como desvincular uma coisa da outra. Ou eles seguem estas regras, ou no final o resultado não vai o esperado”.

Entre os Yuhup cada pessoa contribui com suas habilidades e trabalha em uma área específica, sempre no sentido de facilitar a vida um do outro. Alguns trabalham fabricando utensílios que ajudam no beneficiamento da mandioca, outros com a construção da canoa que será utilizada para as viagens e a pesca, outros com o veneno (zarabatana) que será empregado na caça. Cada um deles é respeitado, mas a ciência, o jeito de fazer não pertence ao indivíduo, mas à comunidade. Sempre há alguém que é bom em alguma coisa diferente. Mesmo aqueles que são mais demandados, são considerados “normais”. Todos caçam, apesar de alguns serem melhores caçadores. Todos pescam, apesar de alguns demonstrarem maior habilidade para a pesca. No dia a dia, são todos iguais. O papel destas pessoas é tornar a vida da comunidade melhor: “facilitam a vida daqueles que não têm a mesma aptidão que elas”. Nesse sentido, Wêt ilustra dando dois exemplos relacionados ao dia a dia comunitário: beneficiamento da mandioca e dos dardos venenosos ou zarabatanas que são utilizados para caçar.

O beiju e a farinha são a base das duas refeições que têm por dia: de manhã e no final da tarde. Então, sem esses utensílios seria desastroso, sabe! Não são todos os homens que produzem esta arma zarabatana, então eles estão produzindo no contexto deles ferramentas que facilitam o dia a dia de toda a população.

Apesar de não serem colocados em evidência ou obterem algum status social em virtude de suas habilidades ou performance superiores, aqueles que fazem um trabalho mais “bonito” ou “mais bem feito” são mais procurados por outros membros da comunidade e sua produção também se torna uma referência externa ao grupo. Quando a comunidade recebe visitantes, esses são os trabalhos mostrados e vendidos. Isso acontece com outros grupos que vivem na Amazônia, cada produto, artesanato ou objeto possui uma identidade étnica e se tornam conhecidos também por suas especificidades e utilitarismo. Como pode ser demonstrado no relato a seguir de Wêt:

Existe um ralo produzido pela etnia Desana, que fica na região do Alto do Rio Negro... as pessoas chegaram a viajar quase 30 dias trazendo ralos Desana. As cestas produzidas pelos Yuhup, do mesmo modo que o ralo é conhecido do lado de cá onde eu estava, são conhecidas lá também, você está me entendendo?

9. ORGANIZAÇÃO COMUNITÁRIA E O DESENVOLVIMENTO DOS TALENTOS

Na cultura Yuhup, como acontece em outras comunidades tradicionais, enquanto o pai ou a mãe trabalha, as crianças observam, imitam e ajudam. As técnicas e os saberes são repassados de uma geração para a outra por meio da repetição. Cada família desenvolve uma expertise muito própria, assim: “Até pela maneira como o cesto foi tecido, a palha foi entrelaçada, a gente sabe quem foi que fez aquilo ali”. Mulheres e homens produzem diferentes tipos de artesanato e se envolvem em diferentes atividades. Os homens constroem artefatos rituais e para pesca e caça, enquanto as mulheres se dedicam a cestaria, vestimenta e adornos. Enquanto o pai está trabalhando é acompanhado pelo seu filho e se não os tiver, pelo sobrinho. Quando o meniño aprende, passa a ser o braço direito do pai e mais tarde a comunidade começa a demandar para ele também as suas necessidades. O mesmo acontece com a filha que aprende a fazer o mesmo tipo de cestaria que sua mãe. O desenvolvimento das habilidades, capacidades e talentos faz parte da rotina da família, como é descrito a seguir:

Na época em que o rio está cheio, os homens quase não dormem à noite, eles amarram as linhas numa pedra e colocam-na no meio do rio (poita) ou nas árvores que estão nas áreas alagadas (espinhel) e então passam a madrugada vendo se pegaram algum peixe. Na maioria do tempo, o dia começa muito cedo, com o nascer do sol. Às cinco da manhã, quase toda a aldeia está dentro do rio, tomando banho, e a comida já está no fogo. Por volta das 6 horas, a aldeia fica vazia, até quando voltam da roça ou da caça, no fim da tarde, quando preparam a segunda refeição. É depois dessa refeição que os artesãos trabalham.

Como cada um tem uma habilidade em uma área específica, não há competição entre eles. Segundo Hog: “a tendência natural, o processo natural das coisas é que eles façam o caminho que os pais deles seguiram”. Esses artesãos produzem sua arte com matérias-primas retiradas da floresta ou mata próxima do lugar onde residem. Eles utilizam madeira, palha, cascas de árvore e sementes. E esse artesanato é produzido dentro ou próximo às suas casas. Com o tempo, começaram a ter acesso a ferramentas que são utilizadas para a confecção de canoas e objetos de entalhe. Sendo essas ferramentas compradas, esporadicamente, pela participante: “Muitas vezes, quando eu precisava ir à cidade, houve ocasiões em que eles encomendaram e eu comprei algumas ferramentas”.

O artesanato engloba peças mais rústicas e outras mais delicadas. Cada peça exige o uso de diferentes materiais e ferramentas. No entanto, quando os artesãos não têm ferramentas apropriadas, trabalham com as próprias mãos ou improvisam. Entre as habilidades, talentos e produtos foram destacados: o artesanato com palha (cestaria, tipiti, peneiras e a palha tecida para o telhado das casas), o entalhe em madeira utilizado na construção de canoas e remos, a modelagem com barro e a maneira criativa como os jovens fazem os cortes de cabelo. Esses trabalhos vão sendo aprimorados ao longo do tempo, e como descrito anteriormente, repassados de uma geração a outra por meio do ensino, observação e engajamento prático.

10. TALENTOS QUE SE DESTACAM

As atividades femininas e masculinas são diferentes, com isso os tipos de talentos são mediados pelas questões de gênero. Os cestos produzidos pelas mulheres Yuhup, por exemplo, são conhecidos fora da comunidade por conta de sua qualidade. Essas cestas têm um papel utilitário (sendo comparadas às nossas sacolas), como todas as demais produções e fazem parte do dia a dia: quando vão à roça, quando viajam ou quando vão à pescaria. O trabalho artesanal não tem uma função artística. No entanto, com relação à modelagem dos cortes do cabelo nota-se que há uma intencionalidade diferente. Nesse caso, os rapazes exibem cortes que reproduzem o formato de animais, sendo os cabelos pintados em tonalidades diferentes com o uso de água oxigenada, que inicialmente era utilizada para matar piolhos. O formato e cores viraram “moda”, sendo influenciada pelos jogadores de futebol que vêm na televisão ou internet.

Dois jovens foram apontados por Hog como talentosos na comunidade, tendo ambos sido bastante influenciados pelo processo educativo, são eles: Yak (que significa arara) e Hat (que significa jacaré). Yak demonstrou muita facilidade para o desenho durante a produção de um livro de histórias do cotidiano do povo Yuhup. Esse livro foi elaborado pelos próprios alunos Yuhup, e ilustrado por ela. Depois disso, quando alguém precisa de alguma gravura, pedem para ela o fazer, porque reconhecem que ela desenha “bonito”. Apesar de ser muito talentosa, na percepção de Hog, suas habilidades são subaproveitadas e pouco estimulada ou incentivada.

Ainda de acordo com Hog, o jovem Hat, desde muito pequeno, acompanhava o seu avô em tudo o que fazia. Nesse sentido, complementa:

Porque há mais de 33 anos quando eu cheguei lá, o avô dele já era famoso . . . então, se alguém da comunidade precisasse de alguma coisa deveria recorrer ao avô . . . E aí, passou para o pai e o pai passou para o filho, que é o neto do artesão original.

Hoje, ele também trabalha com madeira e faz remos e canoas belíssimos. Ele é minucioso, perspicaz, observador e detalhista. Ele observa e incorpora no seu trabalho aquilo que vê nos livros e no mundo exterior. Ele tem ideias novas. Apesar de outros jovens terem a mesma aptidão, não têm o mesmo desempenho ou performance. Hat é bom observador, aprende rápido e faz um trabalho muito bem-feito. “Ele desce o Rio e vai para cidade rio abaixo, né? E quando ele volta, o que ele vê, ele incorpora no artesanato dele, nos entalhes que ele faz.” E ainda acrescenta: “A cultura não é estática e eles têm acesso a coisas do mundo exterior”. Uma vez a comunidade recebeu uma motosserra de presente, repassada para que ele pudesse fazer com mais rapidez o trabalho que ele tinha para fazer. E acrescenta: “Ele consegue fazer um trabalho delicado demais usando uma motosserra!”.

11. DESAFIOS PARA O DESENVOLVIMENTO DOS TALENTOS ENTRE OS YUHUP

Entre os desafios relacionados ao desenvolvimento dos talentos do povo Yuhup foram apontados três aspectos:

  1. respaldo da comunidade para dedicar mais tempo aos seus ofícios;

  2. intercâmbio entre as várias etnias para divulgação da produção;

  3. reconhecimento mais precoce do talento das crianças.

Para a participante, se a comunidade permitisse que o artesão tivesse mais tempo para produzir, assumindo algumas de suas responsabilidades, ele teria como se dedicar mais exclusivamente ao seu ofício. Essa permuta melhoraria não somente a qualidade, mas atenderia melhor às demandas da própria comunidade, uma vez que mesmo havendo uma necessidade emergente, como cobrir uma casa, é preciso esperar muitos dias, uma vez que poucos sabem como trançar a palha para a fabricação de um telhado. Ainda que a pessoa talentosa tenha uma habilidade rara e necessária e seja um líder da comunidade, a prioridade é a subsistência. Como fica claro, no fragmento a seguir: “Então, sai de manhã e volta de tarde e, quando ele recebe encomendas de trabalho, ele não pode se dedicar exclusivamente àquilo, porque ele tem que pescar, ele tem que derrubar roça, ele tem que ajudar a esposa na roça”.

Como cada etnia produz artefatos muito específicos, outro desafio a ser considerado diz respeito às características geográficas onde essas pessoas vivem.

Não há excedente na produção, porque o comércio fora da comunidade é muito esporádico. Esse tipo de produção poderia gerar benefícios, pois há muita expertise e produtos excelentes, mas a participante reconhece como impedimento ou limitação as dimensões da bacia hidrográfica circundante, que torna o contato entre as aldeias muito precário. Ela relata que o escoamento desses produtos pode levar meses, mesmo tendo uma alta função utilitária. As cestas dos Yuhup, os ralos dos Desana e outros produtos poderiam ser permutados entre esses povos, o que facilitaria a vida de todos.

Quanto a uma identificação mais precoce desses talentos na aldeia, Hog pondera: “Eu levei anos para descobrir o talento dessa menina”. A escola indígena, em sua percepção, deveria dar algum tipo de atenção à Yak no sentido de estimular o seu talento, que já é uma jovem professora entre os Yuhup! Ela relata que há muitas crianças fazendo artesanato com barro, e a sua expectativa é que tenham oportunidade de aprimorar essas habilidades. No entanto, é necessário que alguém esteja atento para isso: “Elas corriam e vinham me mostrar. Então, eu comecei a fotografar porque estes são os primeiros trabalhos no barro, de modelagem de animaizinhos”. E acrescenta: “Porque, na época em que os avós delas fizeram esse trabalho com barro (eles se casam muito cedo, aos 13 anos), eu não fotografei, e agora recentemente eu passei a fotografar um monte de coisa”.

12. DISCUSSÃO

Os resultados demonstram que mesmo quando uma comunidade não tem uma palavra específica em sua língua que possa ser empregada para definir o que seja talento, ela reconhece e valoriza algumas capacidades ou habilidades em razão de suas demandas de vida. Também ficou evidente que a pessoa talentosa não recebe destaque por conta de suas habilidades acima da média ou produção de qualidade superior, porque o sentido de coletividade agrega todos os conhecimentos, potencialidades e habilidades como um patrimônio coletivo a serviço do bem comunitário. Esse senso de coletividade também tem sido encontrado em outros estudos, o que corrobora o entendimento de que esse seja um traço cultural de comunidades indígenas que deve ser considerado no planejamento de estratégias para o desenvolvimento do talento (Trommsdorff, 2009, Vialle, 2011). Sendo uma das questões que devem ser mais bem investigadas em estudos futuros.

Como acontece em outras comunidades tradicionais, os talentos e ofícios recebem atenção dentro do grupo familiar Yuhup. As crianças são estimuladas desde tenra idade pela observação e participação no trabalho do artesão adulto. As técnicas e conhecimentos, como outros traços da cultura, são repassados como uma parte da rotina diária, onde cada membro da comunidade tem espaço e tempo para ocupar-se de suas demandas. A produção artesanal, o canto, a dança, a execução instrumental (no caso dos Yuhup, a flauta) não são exibidos como um objeto de arte, mas como um utilitário que expressa sua estreita relação com as crenças e valores ritualísticos e transcendentais da cosmovisão Yuhup. Assim, tanto o processo quanto o produto são construídos a partir de certas regras e em consonância com certos limites, mesmo quando são incorporados elementos de outras culturas que modificam os modos de produção (motosserra, modelos de desenhos, o estudo de técnicas).

Também pode-se inferir, com base no relato de Hog, que homens e mulheres têm papéis bem delineados que influenciam no tipo de talento e nos modos de produção. Os homens se dedicam à construção de canoas, edificações e armas; enquanto as mulheres, aos utensílios, vestimentas e adornos. Esses dados também corroboram os achados de outros estudos, demonstrando que as funções sociais podem ser limitadoras das possibilidades de desenvolvimento dos potenciais, uma vez que os indivíduos tendem a corresponder aos estereótipos e à desejabilidade social de seu grupo (Vialle, 2011).

As características descritas revelam que os jovens talentosos Yuhup possuem habilidades específicas acima da média e o envolvimento com sua área de interesse como preconizado no modelo dos três anéis, de Renzulli (Renzulli & Reis, 2014), adotado como concepção em vários atendimentos educacionais especializados. Ainda nesse sentido, outros atributos como o trabalho minucioso e detalhado, o estudo deliberado, o domínio de técnicas e o uso de ferramentas sofisticadas também foram apontados. No entanto, é importante salientar que a criatividade deve ser mais bem investigada na produção indígena ou como traço individual de talentosos que pertencem a essas comunidades. Isso porque os elementos estranhos à cultura que poderiam ser avaliados em uma produção criativa podem ser inibidos ou proibidos pela comunidade. Com isso, facilmente superdotados indígenas deixariam de ser identificados por não demonstrarem habilidades ou traços relacionados ao anel da criatividade, como definido no Modelo de Enriquecimento Escolar (Renzulli & Reis, 2014).

No caso do povo Yuhup parece que a criatividade é um traço social associado à resolução de problemas, à fluidez e flexibilidade de pensamento e à mobilidade que essa comunidade demonstra no que tange às questões de território, estilo de vida, composição matrimonial e por descumprirem regras (Silva, 2012). No entanto, podemos conjecturar que esse estilo de vida pode influenciar na expressão, no pensamento, no processo e na produção criativa de maneira diferente daquelas que são costumeiramente apontadas na literatura da área.

O fato de os Yuhup serem uma comunidade que vive em uma região mais isolada e protegida traz consigo uma preocupação legítima com a proteção de seu patrimônio imaterial, não somente no que tange à sua preservação, mas também como necessidade urgente de serem garantidos os recursos para que esses talentos continuem a suprir as necessidades de sua comunidade. Nesse sentido, seria interessante, como apontado pela participante deste estudo, que eles tivessem a condição de uma produção excedente, não apenas com o objetivo comercial, mas com a finalidade de manterem espaços de divulgação e promoção de sua própria cultura.

Ainda foi evidenciada a preocupação com o reconhecimento precoce dos talentos. Muitas crianças demonstram habilidades variadas que vão sendo esquecidas e abandonadas ao longo do tempo, como as habilidades de desenho e de escultura modelada em barro. É provável que essas habilidades não sejam estimuladas em razão de não terem uma função utilitária. Ou ainda porque essa comunidade não tenha sido desperta para investir nas habilidades que não estejam vinculadas à subsistência ou à sobrevivência mais diretamente.

Os desafios apontados no desenvolvimento dos talentos dos Yuhup encontram eco na literatura sobre os talentos indígenas e vinculam-se ao acesso a recursos e oportunidades adequados ao seu modo de vida e às suas singularidades culturais (Gentry & Fugate, 2012; Kim et al., 2006; Merrotsy, 2013; Siegle et al., 2016; Snipp, 2001; Webber, 2011). Transitar por mundos tão distintos requer desses indivíduos diferentes processos cognitivos, afetivos e sociais. Esse processo compreende aspectos do desenvolvimento do próprio indivíduo dentro de seu grupo e dizem respeito às funções e aos papéis que ocupam em sua própria comunidade (enculturamento). Também exige diferentes níveis de instrução e compartilhamento deliberado de práticas e saberes que estão fora de seu contexto e inclui a participação em processos formais de educação (aculturamento). Esses dois processos afetam a socialização dentro e fora do grupo (Berry & Georgas, 2009). O que significa que o desenvolvimento dos talentos nesse tipo de comunidade requer o entendimento de como as potencialidades individuais surgem nesse contexto cultural e como o acesso a oportunidades e recursos são providos dentro e fora da comunidade, na família, na escola e em outros espaços sociais (Ford, 2010).

O desenvolvimento do talento requer um processo de adaptação contínuo realizado por uma pessoa como organismo social (personalidade, temperamento, genética, identidade), imersa em um ambiente dinâmico, complexo e mutante que implica a criação, metamorfose e recriação de si mesmo, da expressão criativa e de uma produção que faça sentido para si e para os demais atores sociais. Identificar e atender esses talentos requer mais do que sensibilização para o tema, requer a formação dos docentes que atuarão nas escolas com a educação indígena, a disseminação de conhecimentos e pesquisas, e o planejamento de serviços adequados. Investir no desenvolvimento de talentos indígenas é acima de tudo garantir direitos já preconizados em vários instrumentos legais no Brasil (Brasil, 2009, 2012).

13. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante do que foi revelado pelos resultados desta pesquisa, fica evidente o grande desafio que o desenvolvimento dos talentos indígenas ainda precisa enfrentar para que sejam reconhecidos, valorizados e atendidos. Essa temática precisa ocupar a pauta de futuras agendas da educação, direitos humanos, saúde e áreas afins, em nosso país, com a finalidade de resgatar, preservar e disseminar as artes, as ciências e as identidades indígenas. No entanto, não se trata de uma iniciativa de compensação histórica dos absurdos cometidos contra essa população, mas se trata de ação estratégica efetiva pela compreensão exata da perda irreparável de todo o conhecimento, potencialidades e capital social que cada um desses povos experimenta a cada geração.

Essa pesquisa ainda demonstra a necessidade de serem elaboradas políticas públicas que propiciem a formação inicial e continuada de professores que atuam nos territórios etnoeducacionais, a fim de que identifiquem precocemente os talentos e tenham ferramentas para promoverem o seu desenvolvimento. Também se faz necessário o avanço das pesquisas no sentido de traçar indicadores para o atendimento de crianças e jovens talentos Yuhup a partir de suas especificidades, tendo como referência a coletividade das suas dinâmicas sociais. Sugere-se, ainda, a construção de dados a partir do relato de indivíduos pertencentes à comunidade Yuhup.

Esta pesquisa recebeu apoio financeiro da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAP/DF) e apoio acadêmico do Renzulli Center of Creativity, Gifted Education and Talent Development, University of Connecticut.

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Recebido: 17 de Fevereiro de 2020; Aceito: 25 de Maio de 2020

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