Serviços Personalizados
Journal
artigo
Indicadores
Compartilhar
Revista da SPAGESP
versão impressa ISSN 1677-2970
Rev. SPAGESP vol.13 no.1 Ribeirão Preto 2012
ARTIGOS
Narração de mitologias afro-brasileiras na educação infantil: possibilidades de atuação para uma aprendizarem democrática
Narration of afro-brazilian myths in child education: activity possibilities for democratic learning
Narración de mitologías afro-brasileñas en la educación infantil: posibilidades de actuación para un aprendizaje democrático
Mariana Leal de Barros
Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil
RESUMO
Não é recente a preocupação com a elaboração de ações afirmativas para uma inserção do negro na sociedade, mas a criança negra na escola ainda cresce carente de identidade cultural e é marcada pelo recalque, pela descaracterização de seus valores e por um discurso de inferioridade. Em contraponto, este trabalho apresenta uma experiência de narração de mitologias de orixás na educação infantil. Os grupos realizados com crianças de até seis anos apresentam a alegria de um menino que descobriu os poderes do Rei Xangô, o brilho no olhar da menina que admirou os cabelos crespos da Rainha do Mar e as discussões sobre o que é "ser negro". Esta experiência reflete como, por meio de elementos lúdicos, podemos trabalhar conteúdos necessários para uma política de inclusão desde o início da infância.
Palavras-chave: Mitologia; Educação inclusiva; Etnopsicanálise; Afro-brasileiro.
ABSTRACT
Concerns on elaborating affirmative actions aiming to insert black in society are not recent. However, black children at school are risen lacking cultural identity and are marked by repression, by lost of their own values, and by a sense of inferiority. As an opposition, this paper presents the experience of narrating Orixá's mythology at a pre-primary school. The joy of the boy who discovered the powers of King Xangô, the shining look of the girl who admired the Queen of the Sea's curly hair and discussions on what it means to "be black" were part of the experience with the up-to-six-year-old groups. It reflects how, with the use of playful elements, we can address necessary contents for a policy of inclusion since early childhood.
Keywords: Mythology; Inclusive education; Ethnopsychoanalysis; Afro-brazilian.
RESUMEN
No es reciente la preocupación con la elaboración de acciones afirmativas para una inserción del negro en la sociedad, pero el niño negro en la escuela todavía sigue carente de identidad cultural, esta es marcada por el recalque, por quitar el carácter a sus valores y por un discurso de inferioridad. En contrapunto, este trabajo presenta una experiencia de narración de mitología de orishas en la educación infantil. Los grupos llevados a cabo con niños de hasta seis años muestran la alegría de un chico que descubrió los poderes del rey Xangô, el brillo en la mirada de la chica que admiró los cabellos crespos de la Reina del Mar y las discusiones sobre lo que es "ser negro". Esta experiencia demuestra como, a través de elementos lúdicos, podemos trabajar contenidos necesarios para una política de inclusión desde el inicio de la infancia.
Palabras clave: Mitología; Educación inclusiva; Etnopsicoanálisis; Afro-brasileño.
APRESENTAÇÃO 1
Do Brasil de hoje se faz a África de ontem, África simbólica que é memória e
identidade possíveis dos afro-brasileiros (Prandi, 2005, p. 172).
Seja na linguagem, na música, nos costumes ou nas religiões, não é novidade nos referirmos à ascendência africana e à presença do negro na cultura brasileira. Ainda assim, diferente do que se poderia esperar do contexto escolar, não apenas as práticas culturais, mas também a história do continente africano costuma ser ignorada, de maneira que a criança negra cresce marcada pelo recalque, pela descaracterização de seus valores e por um discurso de inferioridade.
Buscando combater essa condição, novas diretrizes curriculares são elaboradas na tentativa de oferecer possibilidades de identificação e incentivar a construção de um conhecimento sobre o que é "ser negro".
No tocante às reivindicações do movimento negro no Brasil, o "mito" da democracia racial foi contestado e algumas conquistas já são vislumbradas, como a política de cotas, que foi aprovada em parte das universidades públicas, e a introdução da história das civilizações africanas como exigência das diretrizes curriculares.
Além disso, também se defende a presença do negro "em imagem positiva" no contexto educacional (Moehlecke, 2002), reivindicando-se a incorporação de elementos que possibilitem a "figuração" da família afro-brasileira no sistema de ensino e na literatura didática, paradidática ou mesmo no meio artístico (leia-se televisivo, teatral, etc.).
Na prática, no entanto, pouco mudou. O negro ainda é identificado como o "escravo" e não recebe outro lugar para além deste. Neste sentido, para refletir e contribuir a esse respeito, este artigo apresenta uma atividade de narração de mitos afro-brasileiros numa creche na região periférica de Ribeirão Preto. Em 2007, apresentei um relato desta experiência como trabalho de conclusão da disciplina Sociologia das Religiões Afro-brasileiras, ministrada pelo sociólogo Reginaldo Prandi na FFLCH-USP. No ano de 2009, publiquei este estudo como trabalho completo no Encontro Nacional da ABRAPSO (Associação Brasileira de Psicologia Social). Para a minha surpresa, foram muitos os contatos que surgiram após a publicação deste trabalho, principalmente da parte de educadores que se diziam carentes de recursos para trabalhar a temática da negritude em sala de aula.
As reivindicações do movimento, até o momento, conseguiram grandes conquistas na educação fundamental e ensino médio, mas na educação infantil (que atende a crianças de três a seis anos de idade) pouco se fala, de maneira que os educadores se veem destituídos de instrumentos para trabalhar uma política de inclusão com crianças pequenas.
Assim, este artigo surge para relatar e analisar esta experiência que se apresenta como uma estratégia de intervenção na temática da inclusão social do negro por meio de elementos lúdicos. Pretende-se, ainda, discutir como e por que os mitos afro-brasileiros, bem como a apresentação da própria religiosidade afro-brasileira podem e devem ser incorporados ao se configurarem como eficazes ferramentas de trabalho que podem resultar em benefícios que não se restringem às crianças negras, o que será baseado em debate introdutório com a psicanálise e a noção de laço social.
A RELIGIOSIDADE AFRO-BRASILEIRA E AS POLÍTICAS DE INCLUSÃO 2
A "riqueza cultural" que a presença africana conferiu ao Brasil, seja na linguagem, na alimentação, na religiosidade, na música, na dança ou no comportamento do povo brasileiro é condição para compreender o próprio país3. O universo acadêmico progressivamente destaca e repete este discurso, todavia, são muito recentes as ações governamentais que se esforçam por pensar o lugar do negro na sociedade a fim de buscar um reparo da significativa "exlusão social" herdada do período escravagista.
É apenas a partir da década de 90 que o governo brasileiro começa efetivamente a se dedicar à discussão das chamadas "políticas de ações afirmativas". A expressão e a ideia nascem nos EUA, país de maior referência no assunto. A premissa básica que se desenvolve desde os anos 60 é a de que "o Estado, para além de garantir leis anti-segregacionistas, viesse também a assumir uma postura ativa para a melhoria das condições da população negra" (Moehlecke, 2002, p. 198).
Vozes antes caladas passam a ser ouvidas e suas diferenças passam a ser requeridas para uma política governamental eminentemente democrática. Ainda assim, os objetivos alcançados nos últimos anos são muito controversos tanto na teoria quanto na prática (Hofbauer, 2006). Os professores mostram-se despreparados, os livros didáticos que abrangem a história da civilização africana ainda são poucos, e dispomos de uma restrita mostra de livros de literatura infantil com personagens negros protagonistas.
Sancionada em 9 de janeiro de 2003, a Lei 10.639/03 (Brasil, 2003) obriga as escolas a incluir em suas diretrizes o ensino sobre a História e a Cultura Afro-Brasileira, o que, segundo a lei, inclui não apenas o estudo da História da África e dos africanos, mas também "a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil" (Brasil, 2003). A lei decretou, ainda, a inclusão do dia 20 de novembro como "Dia Nacional da Consciência Negra".
Fruto dos esforços do movimento negro no Brasil desde a década de 70, a lei encontra desafios para ser implementada, mas foi considerada grande vitória quando promulgada, pois denuncia ao mesmo tempo em que incita à transformação4. No entanto, como bem questiona Anderson Oliva (2003), "como ensinar o que não se conhece?". Segundo o autor, os próprios historiadores especialistas em História da África alertam que "esquecemos" de estudar a África.
A meu ver, tal esquecimento é sintomático de um recalque5 do negro na sociedade, pois o que recalcamos não provém de mero esquecimento, mas exatamente daquilo que não queremos lembrar e trazer à consciência. A escolha desta última palavra, inclusive, não é aleatória, mas alusiva à própria ideia de "consciência negra", pois nesse movimento surge a necessidade de pensarmos o que é "ser negro" num país que deturpou a sua própria história para preservar um discurso que gostaria de contar e nos fazer acreditar.
Felizmente, o não falar e o silenciar, por mais que se esforcem para tanto, não resultam no apagar, por isso mesmo as reivindicações do movimento negro começam a surtir efeito, resgatando e reescrevendo sua própria história para que possam se reconhecer como protagonistas no palco deste país.
A História da África e a História do Brasil estão mais próximas do que alguns gostariam. Se nos desdobramos para pesquisar e ensinar tantos conteúdos, em um esforço de, algumas vezes, apenas noticiar o passado, por que não dedicarmos um espaço efetivo para a África em nossos programas ou projetos. Os africanos não foram criados por autogênese nos navios negreiros e nem se limitam em África à simplista e difundida divisão de bantos ou sudaneses. Devemos conhecer a África para, não apenas dar notícias aos alunos, mas internalizá-la neles (Oliva, 2003, p. 424).
Lembro, no entanto, que a lei se refere não apenas à África e ao estudo da história deste continente, mas também à cultura afro-brasileira. Como falar de cultura afro-brasileira sem nos remetermos à assimilação e integração da religiosidade afro-brasileira no panorama da cultura nacional?
Não quero defender que a construção ou elucidação de um "ser negro" se restringe às ascendências banto ou yorubá, mas é fato que para falar da história do negro no Brasil é incontornável nos referirmos à religiosidade afro-brasileira.
Ora, todos sabem que é imprescindível estudar o desenvolvimento do catolicismo, do protestantismo, do islamismo, do budismo e de tantas outras religiões para compreendermos, por exemplo, a história e a cultura da Europa e da Ásia, mas quando nos referimos ao Brasil, por que o estudo da religiosidade afro-brasileira ainda é polêmico e rechaçado?
A esse respeito, Vagner Gonçalves da Silva (2007) cita um caso ocorrido em Belfort Roxo (RJ) que reflete o que se repete em outros lugares. O autor afirma que, assim como outras religiões foram apresentadas no material didático para crianças da 2ª série do ensino fundamental, um capítulo foi dedicado também às "Nossas raízes africanas", tal como se intitulava. No entanto,
Uma coordenadora pedagógica evangélica de Belfort Roxo, Rio de Janeiro, protestou junto à editora, alegando que o livro fazia apologia das religiões afro-brasileiras e que não seria adotado em sua escola, onde a maioria dos alunos e professores, segundo ela, era evangélica. A mesma coleção também gerou protesto na Câmara da cidade de Pato Branco, Paraná, onde um vereador também pastor evangélico denominou a obra de "livro do demônio" e pediu a cassação da coleção. Vale lembrar que o referido material didático foi avaliado e obteve parecer muito favorável, sendo recomendado pelo Guia do Plano Nacional do Livro Didático (Silva, 2007, p. 220).
O antropólogo Roger Bastide (1958/2001) foi pioneiro ao conferir um status sociológico de religião ao que antes era considerado culto de caráter primitivo. O autor demonstrou que pesquisadores anteriores não percebiam a "filosofia" e a riqueza simbólica das religiões afro-brasileiras e ressaltou que os chamados "primitivos" elaboravam sistemas de conhecimento do mundo em níveis paralelos aos de nossos maiores pensadores, alicerçados em visões originais, criativas e profundas sobre a humanidade (Goldman, 1984).
A partir de então, as religiões afro-brasileiras têm sido pesquisadas e interpretadas no sentido de serem reduto de preservação cultural e resistência dos afrodescendentes. É verdade que atualmente não mais se restringem a grupo étnico algum, mas ainda se configuram como territórios férteis para pensarmos não apenas a temática do "ser negro" e da herança africana, mas a própria dinâmica social brasileira estampada e vivenciada no espaço sagrado (Prandi, 2005). Os elementos da cultura dos orixás e dos guias espirituais da umbanda deslizaram para além dos ambientes religiosos para tornarem-se característicos da "cultura brasileira", de um "jeito de ser brasileiro" (Silva, 2007; Silva & Amaral, 2004). Os mitos afro-brasileiros, de fato, foram recriados e conservados pelo candomblé, mas atualmente fazem parte da cultura brasileira como um todo, e não mais se encontram restritos aos espaços religiosos.
ENCONTRO E CONTO OS MITOS DOS ORIXÁS
Foi uma experiência de estágio profissionalizante em Psicologia, mais especificamente na área de Etnopsicologia6, que me aproximou do universo da religiosidade afro-brasileira.
O estágio, oferecido pelo professor José Francisco Miguel H. Bairrão, que posteriormente tornar-se-ia meu orientador de doutorado no assunto, não era estruturado de forma fechada e nem mesmo apresentava um projeto a ser executado. Meu trabalho, a princípio, era o de perceber e posteriormente atender a demanda da instituição escolhida.
Tratava-se de uma creche localizada na periferia da cidade de Ribeirão Preto que se propunha a atender crianças de baixa renda com idade entre zero e seis anos. No período da manhã, as crianças ficavam com a professora e à tarde eram atendidas por voluntários da instituição, de maneira que me foi pedido que propusesse atividades a elas numa tarde em que não havia profissional disponível. Não pretendendo me precipitar em alguma atuação terapêutica sem antes conhecer a demanda daquelas crianças e daquele contexto, comecei a contar histórias.
Debaixo de uma jabuticabeira, sentada no chão e coberta por crianças que se achegavam em minha perna, colo, ombro e cabelos, comecei a narrar as peripécias do folclore brasileiro. Nunca antes havia praticado esta atividade e nem mesmo havia trabalhado com crianças.
Minha única clareza era a de que não poderia escolher qualquer história. Valia-me de bases teóricas que elucidavam o quanto a narrativa pode organizar e significar experiências por meio do discurso e, dessa maneira, a própria seleção das histórias já era um exercício a ser pensado (Gergen & Kaye, 1998), pois buscava as que de alguma maneira pudessem promover sentido para a "realidade" histórico-social daqueles pequeninos.
Iniciei com Monteiro Lobato, procurando fugir dos contos de fada que costumeiramente apresentam um mundo excessivamente dicotômico e povoado por princesas loiras. Assim que iniciei, no entanto, percebi que eu queria poder oferecer mais do que aquilo. Desejava poder bordar as experiências daquelas crianças – com linhas que eles mesmos me oferecessem – para amarrar sentidos como quem faz um crochê colorido.
Logo em minhas primeiras visitas, a mensagem que esperava foi-me endereçada. Fui surpreendida por um menininho lindo, cheio de brilho, que não parava de correr e se destacava do seu grupo pelo sorriso farto e a alegria contagiante. Tinha apenas três anos, era negro e exibia um olhar vivo como se quisesse (e pudesse) engolir o mundo sem medo.
Tudo começou de fato quando este menino passou a me chamar de "tia sereia". Na primeira vez, achei graça e não lhe dei ouvidos. Na semana seguinte já não era apenas ele. Todas as crianças começaram a me rodear e gritar, em coro: "Tia sereia! Tia sereia!".
Um tanto quanto entorpecida com aquela sensação de não compreender o que se passava, pesquei a mão do menino que passava em alta velocidade ao meu lado, gritando repetidamente "Tia sereia, tia sereia!". Resolvi perguntar: "Por que sereia? Eu tenho pernas, olha, sereia não tem perna". Tentando se esquivar de minha mão, respondeu: "Sereia tem perna! Sereia tem perna! Tia sereia! Tia sereia!". Soltei-o.
Naquele instante, tive a sensação de que a sereia à qual ele se referia não era a mesma que eu estava habituada. Andei com aquele pensamento na memória por alguns dias, sentindo que tateava algo desconhecido, mas inescapável. De alguma maneira, aquela situação me pegou desprevinida e não encontrando alívio para o desasossego despertado, narrei minha inquietação para o supervisor do estágio, que não titubeou: "Mariana, essa sereia tá mais pra Iemanjá do que pra outra coisa!".
Uma intuição distante e quase muda dizia-me que a partir de então, algo mudaria. Foi quando o canto da sereia na voz daquelas crianças convidou-me a conhecer não apenas Iemanjá, como vários outros orixás e um mundo novo e cheio de magia, encantamento e sabedoria se abriu.
O VOO DO MENINO-XANGÔ
Seguindo a sugestão do supervisor, busquei conhecer as mitologias dos orixás, mas na época encontrei apenas os livros infanto-juvenis de Reginaldo Prandi (2003, 2005). Sabendo que a linguagem do autor bem como as ilustrações de seus livros não seriam suficientes para estabelecer minha comunicação com crianças tão pequenas, construí fantoches dos orixás que o autor narrava. Esta experiência, além de me forçar a desenvolver habilidades inéditas com a costura, também exigiu que me aproximasse da mitologia africana e conhecesse os orixás com todas as suas cores, preferências, ornamentos e jeitos de ser.
Na primeira apresentação, estava rodeada por quarenta crianças. Para chamar-lhes a escuta em minha direção, iniciei com sonoros "Cabrum!", simulando o barulho do trovão evocado por Xangô. Todos silenciaram e abriu-se espaço para a primeira história: "Xangô, o rei trovão".
Surpreendi-me ao notar que se mostravam mais atentos do que a qualquer outra história que já havia contado. Os fantoches devem ter favorecido o encantamento, mas mais do que isso, a narrativa da mitologia parecia despertar-lhes um interesse particular. Vislumbrava diante de mim olhares curiosos e feições boquiabertas.
Buscando aproximar-me do que aquelas palavras provocavam, passei a me reunir em grupos menores. A duração de cada encontro e a quantidade de crianças por grupo era variável de acordo com as circunstâncias, mas percebo hoje que quanto menor o grupo, melhor o trabalho se desenvolvia, ficando o ideal por volta do número de seis crianças.
Na primeira sessão, eu repeti a mesma história, apresentando novamente o principal personagem: o rei Xangô, alinhavado em corpo de feltro preto, com túnica vermelha, coroa de rei amarela, um machado duplo na mão e colar de miçangas brancas e vermelhas.
A história de Xangô mostra como o rei da cidade de Oió se transformou em trovão. Apresentei o personagem principal ao lado de suas três esposas: Oxum, "a Bela", Obá, "a Prestimosa" e Iansã, "a Destemida", cada uma delas representada por fantoches que ilustravam suas personalidades. O mito era contado em parceria com as crianças e, durante a narração, eu me valia de perguntas como: "O que será que Xangô deve fazer diante desse desafio?", "Será que ele está com medo?", e as crianças respondiam, interferiam e passaram a se identificar com os personagens: "Eu sou que nem a Iansã!", "E eu sou a Oxum!".
Em roda e atentas, as crianças mostravam-se envolvidas com o conteúdo narrado e se senbilizavam com os desafios de Xangô, evocando "Nossa, será que ele vai conseguir?", "Por que fizeram isso com ele, tia!".
Ao final da história, enquanto conversávamos sobre o mito, um dos meninos perguntou: "Tia, o rei Xangô era preto?". Afirmei-lhe que sim, e mostrei que os bonecos que eu havia feito também eram pretos, mas não convencido, ele repetiu: "Era, tia? Preto assim, tia? Preto que nem eu?", apontando para sua pele. Reafirmei que sim e completei: "Igual a você!".
O menino levantou apressado, saiu correndo com os braços para o alto e o sorriso nos lábios, encarnando legitimamente um rei-herói ensaiando o seu vôo pela primeira vez: "Eu sou rei! Eu sou o rei do trovão!".
Impactada com a situação, arrepio-me ainda hoje enquanto rememoro a repercussão gerada não apenas nele, mas também nas crianças que o admiravam enquanto corria pela sala. Alguns começaram a correr atrás dele, e percebendo o efeito provocado, continuei com a narração de outros mitos nos encontros seguintes.
O BRILHO NOS OLHOS DA MENINA-IEMANJÁ
Mais uma vez com as crianças, levei o fantoche de Iemanjá, personagem principal do mito "O que fez o Mar para se defender do descaso dos humanos" (Prandi, 2003). A boneca que construí portava um vestido branco com peixinhos azuis no barrado, uma coroa amarela "de rainha", cabelos feitos com lã preta e trançados com fitilhos brancos.
Logo que anunciei o personagem principal da história deste dia, uma das crianças falou: "Minha mãe tem uma estátua de Iemanjá que fica lá no alto da minha casa!", anuciando-me que de fato aquelas histórias fazem parte de seu universo cultural.
Enquanto apresentava a rainha, uma meiga menina negra perguntou timidamente em meu ouvido: "Tia, a rainha tinha o cabelo que nem o meu?". Sorri para ela e respondi que sim, espantando-me com a repetição da identificação já ocorrida com o "menino-Xangô".
Dali a pouco, disse-lhe que havia feito trancinhas nos cabelos de Iemanjá porque eram como os dela. Peguei em seus cabelos e mostrei como ela também poderia fazê-lo. Ao mesmo tempo, perguntei se gostava do cabelo da "Rainha do Mar", e a menina afirmou positivamente com a cabeça, enquanto pegava e olhava para uma mecha de seu cabelo. Naquele momento, tive a impressão de que pela primeira vez, ela o admirava.
Ao longo da história, a menina soltou seu cabelo e continuou passando a mão enquanto escutava as lutas da bela rainha Iemanjá para manter sua casa, o mar, livre da sujeira dos seres humanos. No final, enquanto discutíamos o mito e algumas meninas diziam: "Eu gostei da Iemanjá", "Eu vou cuidar do mar!", "Eu sou a Rainha do Mar!", ela me disse com um riso cúmplice: "Eu também sou a Rainha do Mar, né, tia?".
O QUE É "SER NEGRO"? A PERGUNTA LEVA A CARTA AO SEU DESTINO
Foi por esse começo que me dei conta da importância de poder trabalhar com aquelas crianças num registro que lhes fosse próprio e promovesse sentido; um registro em que o rei pode ser negro e a rainha é uma bela mulher com trancinhas rastafari. A partir de então, dediquei-me a tratar mais atentamente a temática do "ser negro"7, da sua autoestima e do lugar social que aquelas crianças pareciam reivindicar.
Perguntei às crianças se eles tinham percebido que todos os personagens eram pretos. Alguns riram, o que me fez interrogá-los pelo motivo da risada. Não obtendo qualquer resposta verbal, perguntei novamente: "o que é "negro"?". Mais risadas envergonhadas, como se algo interdito houvesse sido evocado. Insisti para eles que aquela era uma pergunta importante, e foi então que um deles respondeu: "Negro é escravo!", rindo em tom pejorativo e tapando a boca em seguida, como se estivesse dizendo um xingamento. Dando risada, outro repetiu rindo: "É, escravo!". Perguntei-lhes: "Escravo? Por quê?". A tia (professora) falou!", respondeu um deles.
Perplexa diante daquelas respostas que não foram combatidas pelas outras crianças, busquei intervir no momento, mas percebi que o tom explicativo pouco funcionava. Assim, resolvi voltar para a primeira história narrada no livro de Prandi (2003): "Como as histórias de Xangô chegaram até nós".
Levei um grande livro infantil com mapas do mundo para ilustrar a Diáspora Africana e situei o continente africano. Mostrei-lhes que ali moravam nossos antepassados negros que vieram ao Brasil quando foram capturados e com eles trouxeram suas comidas, suas palavras, suas músicas e seus deuses para construir o país que vivemos hoje. De maneira lúdica e ilustrativa, também apresentei que a história dos negros não se trata exclusivamente do seu passado escravocrata, pois antes disso, viviam em suas cidades, com suas famílias, seus reinados, suas riquezas. Exemplifiquei lembrando que as histórias que lhes narrava vieram junto com eles, da África, também um território de reis e princesas. As crianças mostravam-se mais atentas do que esperava e acrescentavam apontando no mapa: "Era aqui que morava o Xangô?".
Assim, capturada pela profundidade do que aquele novo universo parecia elaborar, mantive-me na busca por saber quem eram aquelas crianças, do que precisavam, e o que, de fato, mais lhes fazia sentido. Ao longo das sessões grupais, a narrativa dos mitos8 proporcionou a emergência de temáticas que enunciavam um apelo a serem mais bem trabalhadas de forma lúdica, como o preconceito racial ou mesmo questões que vivenciavam em suas casas, com seus pais.
Naqueles mitos havia um rei negro, mas, além disso, ele poderia ter três esposas, brigar com seu irmão, sarrear sobre a inveja da moça mais bela, cobiçar a mulher do outro, perder suas posses por ambição e desejar sua mãe, temáticas experienciadas cotidianamente, mas que aqui recebiam uma roupagem de sentidos suportáveis ao infantil.
Nesse sentido, passei a compreender que por se tratar de mitos, e, talvez, por serem construídos em negociação com a cultura brasileira, os mitos afro-brasileiros atendiam não apenas aos apelos das crianças negras, mas também ofereciam uma possibilidade para que as outras crianças também elaborassem os conflitos pessoais que viviam em suas casas, em suas famílias.
Com o tempo, as crianças passaram a pegar os fantoches e reconstruir as histórias narradas. Por exemplo, o personagem Ogum, irmão de Xangô, em uma determinada situação foi transformado por ato falho em "namorado da minha mãe", que habitava a casa daquela criança e brigava com Xangô, o pai.
Ao narrar o mito de Oxum, a pretimosa que fugiu da casa de sua mãe para morar com o seu namorado, que no início era muito gentil e depois começou a lhe bater, percebi que houve muito envolvimento, o que parecia enunciar uma profunda identificação. As crianças torciam, vibravam e davam conselhos a Oxum para que ela pudesse fugir e não mais apanhar de seu marido.
Nas religiões afro-brasileiras, principalmente no candomblé, a estrutura mítica modela a organização social e articula valores que orientam o comportamento do devoto. Neste sentido, é possível perceber como mitos arcaicos funcionam como espelho para o comportamento do homem hoje e oferecem base para a compreensão de si e da sociedade (Augras, 1983; Goldman, 1984; Prandi, 2005).
As relações de parentesco, as concepções de gênero, de sexualidade, a compreensão de saúde e doença, os modos de lidar com o corpo e com o outro que figuram nas mitologias dos orixás por vezes podem ser muito mais elucidativos para as maneiras de viver daquelas crianças do que as que temos para "ensinar" (Moura, 2004).
Além disso, por meio dos mitos se apresenta um mundo narrado que oferece contornos ao mundo interno infantil, o qual prescinde de uma realidade extremamente dicotômica e puerilizante. O "politicamente correto" das histórias infantis de hoje em dia, como diz Bettelheim (1980) a respeito dos contos de fada destituídos dos conteúdos terroríficos originais, impede as crianças de lidar com conteúdos que respondam aos seus "monstros" internos.
As estórias modernas escritas para crianças pequenas evitam estes problemas existencais, embora eles sejam questões cruciais para todos nós. A criança necessita muito particularmente que lhe sejam dadas sugestões em forma simbólica sobre a forma como ela pode lidar com estas questões e crescer a salvo para a maturidade. As estórias "fora de perigo" não mencionam nem a morte nem o envelhecimento, os limites de nossa existência, nem o desejo pela vida eterna. O conto de fadas, em contraste, confornta a criança honestamente com os predicamentos humanos básicos (Bettelheim, 1980, p. 14-15).
Assim como os contos de fada que não passaram pelo crivo pueril das empresas norte-americanas, os mitos gregos, romanos, africanos ou afro-brasileiros também podem se configurar como instrumento para que as crianças possam lidar com o "real" que é atuado por magias e encantamentos, e produz eco no que lhe é íntimo, terrorífico, conflituoso e assustador.
Monique Augras (1983), psicóloga e pesquisadora da religiosidade afro-brasileira, aponta a importância dos profissionais – no caso, psicólogos, mas estendo aos educadores, médicos, assistentes sociais, entre outros - atentarem-se a outros modelos de representação da realidade elaborados pelas mais diversas culturas do nosso país (Augras, 1995). A autora defende que os terreiros muito têm a nos ensinar sobre o Brasil e, em contrapartida, os estudos resultantes deste interesse poderiam servir como recurso para os indivíduos terem um melhor conhecimento de si em relação aos laços sociais que os constituem.
Já é hora de não mais silenciarmos esses discursos. Os mitos são construídos e reconhecidos socialmente e, ao serem concebidos como material de organização e estruturação do sujeito, é nossa responsabilidade oferecer-lhes base para identificações saudáveis (Augras, 1983; Lépine, 2004). Desse modo, devemos nos atentar ao que é narrado, pois conteúdo e forma têm também a função de refletir o nosso pertencimento a uma dada cultura e expressar quem somos e quem desejamos ser.
Além de ajudar a esclarecer (não explicar) suas emoções, as histórias promovem a confiança diante das resoluções de conflitos, divertem e enriquecem sua existência (Bettelheim, 1980). Trata-se ainda de darmos espaço e continente para que os sujeitos possam se reconhecer em narrativas que fundamentalmente tratam dos esforços da humanidade ao expressar as "tensões de sua existência" (Augras, 2009, p. 188). Assim como os contos de fadas de que trata Bettelheim (1980), os mitos dos orixás não respondem necessariamente – como apontei em alguns casos - às condições específicas da vida moderna, mas falam diretamente ao "interior", e quando o sujeito recorre aos seus recursos interiores para lidar com as situações, recorre também ao que ficou das histórias que um dia lhes foram narradas.
Das histórias, mensagens polissêmicas lhe são emitidas e "confronta a criança honestamente com os predicamentos humanos básicos" (Bettelheim, 1980, p. 15), permitindo com que cada uma se localize no narrado da maneira que lhe convém. Vejo, assim, que aquelas histórias enlaçaram aquelas crianças não apenas no mero sentido de encantá-las, mas de permitir que, por meio delas, estabelecessem laço social e se reconhecessem positivamente no discurso do Outro9.
Neste sentido, é preciso acrescentar que a história narrada é diferente da história lida pela criança isoladamente:
De modo ainda mais significativo, se nós, os pais, contamos estórias para nossos filhos, podemos dar-lhes o reasseguramento mais importante: nossa aprovação de que eles brinquem com a idéia de ouvir de alguém a estória, porque enquanto lê sozinha a criança pensa que só algum estranho – a pessoa que escreveu a estória ou arranjou o livro – aprova a retaliação do gigante e sua frustração. Mas quando os pais contam-lhe a estória, a crianla fica segura de que eles aprovam a retaliação feita em fantasia à ameaça que o domínio adulto implica (Bettelheim, 1980, p. 36).
Somando ao sustentado pelo autor, quero dizer ainda que apesar de eu ter narrado aquelas histórias, de certa maneira, estabelece-se tanto um laço entre elas e o narrador, quanto entre elas e o mundo, "um liame entre aqueles que falam" (Lacan, 1972-1973/1985, p. 43), mas um laço suportável, dignificante e subsídio de elaboração. Resgata-se, assim, o que já se configurava no imaginário para que o sujeito possa se ancorar em posições "próprias", identificando-se com o que lhe parece seu. É criar estratégias para que a "carta" (a mensagem) possa chegar mais facilmente a seu destino (Lacan, 1971/2009).
Para oferecer a possibilidade de que o sujeito10 construa um laço social no discurso que lhe é dirigido, é necessário que esses sujeitos possam ser ouvidos em sua alteridade. Acolhendo esta demanda por meio da escuta dos mitos, as crianças podem falar sobre si e aquela produção discursiva possibilita uma transformação, um deslocamento de recalques e desamparo (Lacan, 1969-1970/1992). Inseridos naquela narrativa mítica outra e que lhes confere sentido, o lugar da vítima e do oprimido pode ser desacomodado para posições mais criativas e saudáveis.
PARA CIRCULAREM RITOS E MITOS
É preciso considerar que o que chamo de um recalque do negro na sociedade atrela-se, também, ao discurso confortável e acomodado de que no Brasil não existe racismo, já que é comumente citado pela peculiaridade de ser um país miscigenado como nenhum outro e, via de regra, dotado de um povo caloroso e acolhedor. Todavia, uma ilusão de perspectiva não permite que o observdor desavisado atente-se à existência de um "racismo à brasileira, velado, não confessado e não assumido" (Munanga, 2007, p. 15). Mais do que qualquer coisa, no entanto, esta postura se vale deste "mito da democracia racial" para se esquivar das implicações que o contrário exigiria (Araújo, 2008).
Progressivamente, somos capazes de identificar que a "democracia racial" é uma falácia, mas nos deparamos com discursos extremos que tanto se sustentam numa exclusividade afro fechada e politizada quanto num discurso de que nossa população miscigenada e plural não pode ser taxonomizada por cores de pele. É o que leva Peter Fry (2000) a argumentar que, em vez de perceber isto como um problema, é justamente no conflito entre essas duas posições que podemos compreender a construção da noção de raça no Brasil. É possível, como afirma David Treece (2004):
contribuir para pensarmos um conceito de identidade negra que seja abrangente, flexível e ao mesmo tempo fiel à complexidade e ambiguidade do caso brasileiro, porque procedente não de categorias fixas de fenótipo ou genealogia, mas daquilo que o indivíduo faz no processo histórico de auto-construção individual e social (Treece, 2004, p. 152).
No texto intitulado "Linguagem, música e estética negra", Treece (2004, p. 152) defende que não devemos recuperar as noções da música negra como um "emblema fixo" de uma identidade racial eclusiva, mas como um complexo, "um núcleo irradiador de identidades múltiplas em processo de formação, inacabada, aberta". Essas práticas são portadoras da memória histórica de opressão, mas também de resistência, de maneira que exprimem o que é atual, pois promove sentido ainda hoje quando o que foi, fala do que é.
Na medida em que a reivindicação não é apenas uma volta ao passado e à tradição, mas "de uma luta contra a centralização social ou cultural, a partir desse momento a questão (img/.) não é mais redutível ao seu passado, nem a um objeto folclórico nacional" (De Certeau, 2005, p. 150). Michel De Certeau complementa:
Não há negritude enquanto se trata de uma coleção de objetos ou de temas culturais, um objeto criado pela análise etnológica. Há negritude apenas a partir do momento em que há um sujeito novo da história, isto é, quando homens optam pelo desafio de exisitir. Acredito ser fundamental essa definição de um grupo desde a série de revoluções do fim do século XVIII: uma unidade social somente existe quando assume o risco de existir. (img/.) há unidade política apenas a partir do momento em que um grupo se dá por objetivo e por tarefa existir como tal (De Certeau, 2005, p. 154-155).
Ou seja, não se trata de resgatar o "mesmo" ou um tempo, uma linguagem e um modo de viver de "outrora". Quando reivindicamos que esses sujeitos possam ouvir suas histórias é para que eles se reconheçam em algo "hoje", para a construção de uma "cultura nova" (De Certeau, 2005, p. 157). Vislumbram-se "as condições culturais que lhes permitem ser aquilo que querem ser" (De Certeau, 2005, p. 158).
Vanda Machado (2002) refere que o trabalho de narrar a mitologia afro-brasileira11 pode se constituir como uma aprendizagem significativa no sentido de que os mitos estruturam, revelam e apontam valores e princípios que orientam caminhos para as relações humanas, oferecendo modelos e espelhos. A autora também aponta a importância de "reconstruir a imagem do negro, das suas lutas e de sua verdadeira contribuição na formação do povo brasileiro" (Machado, 2002, p. 119).
No entanto, nos ambientes escolares, além de ainda não ser apresentada (ou ser mal-apresentada) a história do continente africano, a própria "presença/ existência" do negro, amplamente difundida na cultura brasileira, também é silenciada (Cavalleiro, 2000; Davis, 2000; Prandi, 2005). Em vista a esta configuração, a criança negra cresce marcada pelo recalque e pela descaracterização de seus valores.
Portanto, é imprescindível que possamos explorar conceitos próprios de seu universo cultural. Cabe ao educador ou qualquer profissional que atue com crianças perceber e observar as referências culturais que as sustentam e atribuem significado à sua existência, à sua cosmologia e a sua maneira de se situar no mundo (Machado, 2000). É verdade que o processo de miscigenação e o contexto eminentemente plural desafiam pesquisadores, o próprio governo e, consequentemente, os educadores, mas a dificuldade não pode ser paralizante. É preciso pensar em estratégias de atuação que possibilitem uma linguagem inclusiva, oferecendo imagens, narrativas e histórias que contemplem a população e, mais especificamente, as crianças, em sua pluralidade (Amaral, 2001).
A (in)visibilidade do negro na sociedade resulta ora numa ausência de lugar, ora na presença de um lugar a partir do discurso do outro branco e repressor. Mas, apesar de o sujeito não "estar lá", por vezes inventa-se, e criativamente elabora-se uma ideia invertida da mensagem do outro que lhe é destinada. Vemos que a religiosidade afro-brasileira é plástica e adaptável às vivências dos sujeitos, resistindo à repressão e ao não dito que lhe é secularmente imposto, de maneira que também por isso, mas não apenas, merece ser narrada, posta em palavras.
Lacan nos dizia que a criança se alimenta tanto de pão, quanto de palavras. É por meio delas que elas crescem e existem (Magalhães, 2000). Remeto-me, assim, também à ideia de estabelecer laço social ao discurso do Outro no sentido de que quando neste Outro o sujeito não existe, o laço não se dá. É interpelado pelo Outro que o sujeito se constitui, "é do outro que o sujeito recebe a própria mensagem que emite" (Lacan, 1960/1998, p. 821). Ou do Outro é emitida a mensagem de quem somos (Lacan, 1960/1998).
Ao passo que somos autores/narradores das estórias/histórias/mitos que emitimos, pactuamos com o discurso emitido diretamente do Outro, que implica no sentido de conferir um lugar possível às crianças negras no conteúdo narrado, mas não apenas. O laço pode ser estabelecido pela voz emitida, de maneira que a criança passa a ser suficientemente falada pelo Outro e, ao ser falada, tal como deveria ser percebida, tal como a criança que é, passa a existir, não em sua inferioridade, mas em respeito à sua alteridade (Dolto, 1980).
Neste sentido, esta experiência demonstrou a viabilidade e a importância de trabalhar desde a educação infantil com uma base de princípios e valores da cultura afro-brasileira para um processo de aprendizagem que possibilite à criança negra reconhecer-se integrada à sociedade. Além disso, abre espaço para que a componente mitológica africana de nossas raízes culturais possa ser apreendida e estimada, contribuindo para que nos desenvolvamos em direção a uma melhor e maior compreensão e apreciação da diversidade cultural que constrói o nosso país.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Amaral, R. (2001). Educar para a igualdade ou para a diversidade? A socialização e valorização da negritude em famílias negras. Os Urbanitas – Revista de Antropologia Urbana, 1(2).
Araújo, J. (2008). O negro na dramaturgia, um caso exemplar da decadência do mito da democracia racial brasileira. Revista Estudos Feministas, 16(3), 979-985. [ Links ]
Augras, M. (1983). O duplo e a metamorfose: A identidade mítica em comunidades nagô. Petrópolis, RJ: Vozes. [ Links ]
Augras, M. (1995). Alteridade e dominação no Brasil: Cultura e Psicologia. Rio de Janeiro: Nau. [ Links ]
Augras, M. (2009). Imaginário da magia: Magia do imaginário. Petrópolis, RJ: Vozes / Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio. [ Links ]
Bairrão, J. F. M. H. (2005). A escuta participante como procedimento de pesquisa do sagrado enunciante. Estudos em Psicologia (Natal), 10(3), 441- 446. [ Links ]
Bairrão, J. F. M. H. (2008). Tulipa: Subsídios para uma etnopsicanálise da possessão. Olhar (UFSCar), 10, 53-68. [ Links ]
Bastide, R. (1985). As religiões africanas no Brasil. São Paulo: Pioneira. [ Links ]
Bastide, R. (2001). O Candomblé da Bahia: Rito nagô (1058). São Paulo: Companhia das Letras. [ Links ]
Bettelheim, B. (1980). A psicanálise dos contos de fadas. Rio de Janeiro: Paz e Terra. [ Links ]
Brasil (2003). Lei nº. 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Recuperado em 01 jun. 2012 de < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/L10.639.htm >.
Cavalleiro, E. (2000). Do silêncio do lar ao silêncio escolar: Racismo, preconceito e discriminação na educação infantil. São Paulo: Humanitas/Contexto. [ Links ]
Câmara Cascudo, L. (2002). Made in África. São Paulo: Global. [ Links ]
DaMatta, R. (1984). O que faz o brasil, Brasil? Rio de Janeiro: Rocco. [ Links ]
Davis, D. (2000). Afro-Brasileiros hoje. (F. Lindoso, Trad.). São Paulo: Geledés/Selo Negro. [ Links ]
De Certeau, M. (2005). A cultura no plural. Campinas, SP: Papirus. [ Links ]
Dolto, F. (1980). Psicanálise e pediatria. Rio de Janeiro: Zahar. [ Links ]
Fernandes, F. (2007). O negro no mundo dos brancos. São Paulo: Global. [ Links ]
Fernandes, J. (2005). Ensino de história e diversidade cultural: Desafios e possibilidades. Cadernos CEDES, 25(67), 378-388. [ Links ]
Fry, P. (2000). Politics, nationality, and the meanings of "race" in Brazil. Daedalus: Journal of the American Academy of Arts and Sciences, 129, 83-118. [ Links ]
Gergen, K. J., & Kaye, J. (1998). Além da narrativa na negociação do sentido terapêutico. In S. McNamee, & K. Gergen (Orgs.), A terapia como construção social (pp. 201-222). Porto Alegre: Artes Médicas. [ Links ]
Goldman, M. (1984). A possessão e a construção ritual da pessoa no candomblé. Dissertação de Mestrado não-publicada, Museu Nacional, Rio de Janeiro. [ Links ]
Hofbauer, A. (2006). Ações afirmativas e o debate sobre racismo no Brasil. Lua Nova, 68, 9-56. [ Links ]
Lacan, J. (1972-1973/1985). Mais ainda, livro 20. Rio de Janeiro: Zahar. [ Links ]
Lacan, J. (1969-1970/1992). O Seminário, livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar. [ Links ]
Lacan, J. (1960/1998). Posição do inconsciente. In J. Lacan, Escritos (pp. 843-864). Rio de Janeiro: Zahar. [ Links ]
Lacan, J. (1971/2009). Lição sobre Lituraterra. In J. Lacan, O Seminário, livro 18: De um discurso que não fosse semblante (pp. 105-118). (V. Ribeiro, Trad.). Rio de Janeiro: Zahar. [ Links ]
Lépine, C. (2004). Os estereótipos da personalidade no candomblé nagô. In C. E. M. Moura (Org.), Candomblé: Religião do corpo e da alma - Tipos psicológicos nas religiões afro-brasileiras (pp. 139-163). Rio de Janeiro: Pallas. [ Links ]
Leal de Barros, M., & Bairrão, J. F. M. H. (2010). Etnopsicanálise: Embasamento crítico sobre teoria e prática terapêutica. Revista da SPAGESP, 11(1), 45-54. [ Links ]
Macedo, A. C., & Bairrão, J. F. M. H. (2010). Além do riso: Compromisso social e escuta psicanalítica em uma escola de circo. Revista da SPAGESP, 11(2), 32-40. [ Links ]
Macedo, A. C., & Bairrão, J. F. M. H., Mestriner, S. F., & Mestriner Junior, W. (2011). Ao encontro do Outro, a vertigem do eu: O etnopsicólogo em equipes de saúde indígena. Revista da SPAGESP, 12(2), 85-96. [ Links ]
Machado, V. (2002). Ilê Axé: Vivências e invenção pedagógica – As crianças do Opô Afonjá. Salvador: EDUFBA.
Magalhães, S. (2000). Toques de amor ou toques de fala? Marraio: A criança e o Laço Social. Formações Clínicas do Campo Lacaniano – Rios Ambiciosos: Rio de Janeiro, 2000. p. 25-32.
Moehlcke, S. (2002). Ação afirmativa: História e debates no Brasil. Cadernos de Pesquisa (São Paulo), 117, 197-217. [ Links ]
Moura, C. (Org.). (2004). Candomblé: Religião do corpo e da alma. Tipos psicológicos nas religiões afro-brasileiras. Rio de Janeiro: Pallas. [ Links ]
Munanga, K. (2007). Saúde e diversidade. Saúde & Sociedade, 16(2), 13-15. [ Links ]
Munanga, K. (2009). Negritude: Usos e sentidos. Belo Horizonte: Autêntica. [ Links ]
Munanga, K., & Gomes, N. (2010). O negro no Brasil de hoje. São Paulo: Global. [ Links ]
Oliva, A. (2003). A História da África nos bancos escolares: Representações e imprecisões na literatura didática. Estudos Afro-Asiáticos, 25(3), 421-461. [ Links ]
Oliva, A. (2009). A história africana nas escolas brasileiras: Entre o prescrito e o vivido, da legislação educacional aos olhares dos especialistas (1995-2006). História (Franca), 28(2), 143-172. [ Links ]
Oliveira, F. (2004). Ser negro no Brasil: Alcances e limites. Estudos Avançados, 18(50), 57-60. [ Links ]
Pagliuso, L., & Bairrão, J. M. F. H. (2011). A etnopsicologia e o trabalho institucional em uma unidade de abrigo. Revista da SPAGESP, 12(1), 43-55. [ Links ]
Prandi, R. (2003). Xangô, o trovão. São Paulo: Companhia das Letras. [ Links ]
Prandi, R. (2005). Segredos guardados: Orixás na alma brasileira. São Paulo: Companhia das Letras. [ Links ]
Ribeiro, D. (1995). O povo brasileiro: A formação e o sentido do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras. [ Links ]
Roudinesco, E., & Plon, M. (1998). Dicionário de Psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar. [ Links ]
Santos, G. (2006). A invenção do ser negro: Um percurso das ideias que naturalizaram a inferioridade dos negros. São Paulo: Educ/FAPESP. [ Links ]
Santos, S., & Machado, V. (2008). Políticas públicas educacionais: Antigas reivindicações, conquistas (Lei 10.639) e novos desafios. Ensaio (Rio de Janeiro), 16(58), 95-112. [ Links ]
Silva, V. (2007). Neopentecostalismo e religiões afro-brasileiras: Significados do ataque aos símbolos da herança religiosa africana no Brasil contemporâneo. Mana, 13(1), 207-236. [ Links ]
Silva, V., & Amaral, R. (2004). Foi conta pra todo canto: Música popular e cultura religiosa afro-brasileira. In M. P. Toledo (Org.), Cultura Brasileira: O jeito de ser e viver de um povo (pp. 160-199). São Paulo: Nankin. [ Links ]
Toledo, P. (Org.) (2004). Cultura brasileira: O jeito de ser e de viver de um povo. São Paulo: Nankin. [ Links ]
Treece, D. (2004). Linguagem, música e estética negra. In M. Toledo (Org.), Cultura brasileira: O jeito de ser e viver de um povo (pp. 144-159). São Paulo: Nankin. [ Links ]
Endereço para correspondência
Mariana Leal de Barros
E-mail: marilealbarros@yahoo.com.br
Recebido em 02/03/2012.
1ª Revisão em 03/04/2012.
2ª Revisão em 12/05/2012.
Aceite Final em 30/06/2012.
1 Apoio: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
2 Destaco que este artigo possui caráter introdutório à temática. Para maior riqueza de dados, vale a pena conferir as publicações oriundas de grupos de estudo e pesquisa como o Centro de Estudos Afro-Orientais (CEAO), da Universidade Federal da Bahia, o Centro de Estudos Africanos (CEA) e o Laboratório de Etnopsicologia, da Universidade de São Paulo, bem como o Centro de Estudos Afro-Asiáticos e o Centro de Estudos Afro-brasileiros (CEAO), da Universidade Candido Mendes-RJ.
3 Toledo (2004) organizou uma bela obra que apresenta vários artigos atuais que se referem a esta afirmação, em particular o texto de Vagner Gonçalves da Silva e Rita Amaral (2004), mas pode-se ainda buscar Bastide (1985), Câmara Cascudo (2002), Da Matta (1984), Darcy Ribeiro (1995) e Florestan Fernandes (2007).
4 A respeito da implementação e repercussão da lei 10. 639, conforme Santos e Machado (2008), Oliva (2003, 2009) e Fernandes (2005).
5 Remetendo-se a Freud, Roudinesco e Plon (1998) afirmam que "constitutivo do inconsciente, o recalque se exerce sobre excitações internas, de origem pulsional, cuja persistência provocaria um excessivo desprazer. (img/.) O recalque não lida com as pulsões em si, mas com seus representantes, imagens ou ideias, os quais, apesar de recalcados, continuam ativos no inconsciente, sob a forma de derivados ainda mais prontos a retornar para o consciente" (Roudinesco & Plon, 1998, p. 248).
6 Sobre esta abordagem, ver Bairrão (2005, 2008), Leal de Barros e Bairrão (2010), Macedo e Bairrão (2010), Macedo, Bairrão, Mestriner e Mestriner (2011) e Pagliuso e Bairrão (2011).
7 Conforme Santos (2006), Oliveira (2004), Munanga (2009) e Munanga e Gomes (2010).
8 Em algumas de minhas apresentações sobre esta temática, deparei-me com críticas de alguns militantes do movimento negro que diziam "o que você chama de mito para nós é verdade". Ora, nada mais autêntico e verdadeiro do que um mito que se mantém, mas aqui me permito prescindir da história factual africana para nos dedicarmos à criatividade da historia contada, elaborada e apropriada pelas crianças. Mais interessante é como essas histórias/estórias/mitos podem servir para rearranjos e estruturações possíveis para esses pequenos seres tão carentes de discurso envoltório e continente. Além disso, valho-me da terminologia mito "afro-brasileiro" para destacar o caráter de negociação com a cultura brasileira que esses mitos evocam, e, a meu ver, mais interessante do que a tradição ou conservação.
9 "Termo utilizado por Jacques Lacan para designar um lugar simbólico – o significante, a lei, a linguagem, o inconsciente, ou, ainda, Deus – que determina o sujeito, ora de maneira externa a ele, ora de maneira intra-subjetiva em sua relação com o desejo" (Roudinesco & Plon, 1998, p. 558). Lacan diferencia "Outro" de "outro", para distinguir o que é relativo à alteridade no campo do inconsciente e para referir-se à simples dualidade (relativa à alteridade) no sentido da Psicologia, respectivamente.
10 Quando me refiro a "sujeito", apoio-me na teoria lacaniana, que se diferencia do que se entende por "indivíduo" ou "ego".
11 A autora, que também narrou mitos afro-brasileiros às crianças, realizou sua pesquisa na área de educação por meio de uma experiência em uma escola da comunidade Ilê Axé Opô Afonjá, em Salvador, gerida pela famosa mãe de santo de candomblé Mãe Stella. O contexto em que trabalhou, no entanto, favoreceu o exercício de seu papel. Mas, ao passo que algumas políticas de ações afirmativas passam a ser implantadas em contexto nacional, a dificuldade prática da execução logo surge, como apontado no caso de Belfort Roxo (RJ), citado por Vagner Gonçalves da Silva (2007).