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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.13 no.2 Ribeirão Preto  2012

 

ARTIGOS

 

Olhares sobre a loucura: os grupos na experiência de Gorizia

 

Views on madness: groups in Gorizia's experience

 

Miradas sobre la locura: grupos en la experiencia de Gorizia

 

 

Anamélia Maria Guimarães Junqueira 1,I; Isabel Cristina Carniel 2,II

I Centro de Atenção Psicossocial (CAPS I), Jaboticabal, Brasil
II Universidade Paulista, Ribeirão Preto, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo pretende destacar a importância dos grupos durante o processo de abertura do Hospital Psiquiátrico de Gorizia, na Itália, marco da reforma psiquiátrica italiana e influência no processo de reforma psiquiátrica brasileira. Com base no estudo do livro "Instituição Negada: relato de um hospital psiquiátrico", coordenado pelo psiquiatra italiano Franco Basaglia, procurou-se mostrar o papel central das formações grupais – assembleias – no movimento de desmantelamento da lógica hospitalar e desconstrução das práticas de dominação e exclusão do antigo modelo asilar. Acredita-se que o estudo sobre essa singular experiência possa trazer contribuições para as práticas do trabalho em saúde mental na atualidade e para o estudo das situações grupais – campos em construção.

Palavras-chave: Saúde mental; Grupo; Reforma Psiquiátrica.


ABSTRACT

This article aims to highlight the importance of groups during the Gorizia Psychiatric Hospital opening process in Italy. Not only is it a landmark in the Italian psychiatric reform, but it is also a great influence upon Brazilian Psychiatric Reform. Based on the book coordinated by Franco Basaglia entitled "Instituição Negada: relato de um hospital psiquiátrico", it was intended to accent the assemblies' major role in the deconstruction of domineering and excluding practices in lunatic asylums. We expect this study to bring contributions to contemporary practices on mental health and to further studies on group situations, both in development.

Keywords: Mental health; Group; Psychiatric Reform.


RESUMEN

Este artículo pretende destacar la importancia de los grupos durante el proceso de apertura del Hospital Psiquiátrico de Gorizia, en Italia, marco de la reforma psiquiátrica italiana e influencia en el proceso de reforma psiquiátrica brasileña. Con base en el estudio del libro "Institución Negada: relato de un hospital psiquiátrico", coordinado por el psiquiatra italiano Franco Basaglia, se buscó mostrar el papel central de las formaciones grupales – asambleas – en el movimiento de desmantelamiento de la lógica de los hospitales y deconstrucción de las prácticas de denominación y exclusión del antiguo modelo de asilo. Se cree que el estudio sobre esa singular experiencia puede brindar contribuciones para las prácticas del trabajo en salud mental en la actualidad y para el estudio de las situaciones grupales - campos en construcción.

Palabras clave: Salud mental; Grupo; Reforma Psiquiátrica.


 

 

Não existe na história, na vida social, nada de fixo, de rígido, de definitivo. E não existirá nunca. Novas verdades aumentam o patrimônio do saber, novas necessidades, sempre superiores, vêm suscitadas pelas condições novas de vida, novas curiosidades intelectuais e morais instigam o espírito.
(Gramsci, 1982, p. 671-672).

INTRODUÇÃO

Este trabalho objetiva realizar algumas reflexões sobre a utilização dos grupos durante a abertura do Hospital Psiquiátrico de Gorizia, no qual Franco Basaglia e equipe iniciaram uma trajetória de luta contra as práticas de violência e dominação vigentes no manicômio, possibilitando a criação de outras formas de lidar com a loucura, além de influenciar os processos de reforma psiquiátrica e o tratamento dos portadores de transtorno mental em vários países, inclusive no Brasil.

A experiência de Gorizia deixou como legado o livro "Instituição Negada: relato de um hospital psiquiátrico", coordenado por Basaglia (1985), que servirá de base para o presente trabalho, para o estudo dessa instituição em transformação e para a compreensão do importante papel das formações grupais – assembleias. Atualmente, os serviços de saúde mental utilizam-se das diversas configurações de grupos como recurso terapêutico na assistência e no cuidado aos sujeitos em sofrimento. Acreditamos que a experiência italiana possa contribuir para o estudo sobre grupos e para a política de saúde mental. "Basaglia, mais do que elabora, organiza um corpo teórico e um conjunto de estratégias para lidar com a psiquiatria" (Amarante, 2008, p. 23).

O movimento da reforma psiquiátrica3 no Brasil, entendido como amplo processo político-social de transformação iniciado no final dos anos 1970, traz como uma de suas lutas a superação do modelo hospitalocêntrico e da dicotomia sujeito/doença, propondo um novo olhar para os sujeitos portadores de transtornos mentais. "O atendimento passa a necessitar de um território, o território do indivíduo atendido, no qual as problemáticas próprias a esse sujeito possam ser vislumbradas e trabalhadas diretamente" (Ferro, 2009, p. 756). Com a utilização dos grupos entre as modalidades de atendimento oferecidas nos serviços substitutivos de saúde mental (centros e núcleos de atenção psicossocial, centros de convivência, hospitais-dia), espera-se produzir encontros que libertem o sujeito do aprisionamento imposto por sua doença e contemplem as diversas dimensões da existência.

O Movimento da Psiquiatria Democrática Italiana, liderado por Franco Basaglia, ocupa lugar de destaque na luta contra a violência e exclusão praticadas nas instituições psiquiátricas e exerceu influência no movimento brasileiro. "Em fins dos anos 70, as reflexões de Basaglia estão bastante presentes em nosso meio, resultado até mesmo de algumas vindas suas ao Brasil" (Amarante, 2008, p. 20). A experiência italiana também inspirou o projeto de Lei n. 3657/89, de autoria do deputado Paulo Delgado, que oficializou o atendimento psiquiátrico comunitário no Brasil (Barroso & Silva, 2011), prevendo a extinção gradual dos manicômios e a substituição por uma rede de serviços alternativa. Ainda que com muitos anos de atraso e com modificações em relação ao projeto inicial, a Lei 10.216 passou a vigorar em 2001, após 12 anos tramitando no Congresso Nacional.

Basaglia ficou conhecido pelas mudanças promovidas no Hospital Psiquiátrico de Gorizia e, posteriormente, por seu trabalho em Trieste (referência em saúde mental), onde deu início a um processo de desativação do hospital psiquiátrico e reinserção dos internos na sociedade, criando como proposta alternativa aos manicômios os centros de saúde comunitários. Sua trajetória foi marcada pela "denúncia do tratamento dos doentes mentais, que os privava de todo direito humano e os fechava em lugares de exclusão social. Tal tratamento não só não curava, mas reforçava o estado de marginalização dos internados" (Vigano, 2006, p. 18).

Na construção de seu arcabouço teórico, Basaglia se apropriou de alguns conhecimentos das ciências humanas. Suas reflexões contam com o apoio de vários autores, tais como: Sartre, Foucault, Goffman, Husserl, Gramsci, Heiddeger. Também buscou referências em outros movimentos da reforma psiquiátrica, com destaque para as comunidades terapêuticas de Maxweel Jones e a psiquiatria institucional de Tosquelles. Especialmente influenciado por Sartre, o pensamento fenomenológico-existencial exerceu importante papel em sua trajetória. Para Franca Basaglia (1981), citada por Amarante (2008, p. 68), "o pensamento fenomenológico existencial (...) colocava em discussão o problema do homem, não mais como entidade abstrata, definível segundo um sistema de categorias fechadas, mas como sujeito-objeto de um sofrimento social".

Um dos conceitos centrais na obra de Basaglia é o de desinstitucionalização, que não se restringe ao fechamento dos hospitais ou à ausência das instituições manicomiais, mas se refere a uma ruptura com o modelo de assistência psiquiátrica vigente que não estava tratando e, sim, excluindo e segregando. Trata-se de um processo maior do que o nome pode equivocadamente sugerir. Como afirma Amarante (2008): "a desinstitucionalização é um processo prático de desconstrução e, simultaneamente, um processo de invenção de novas realidades. E se hoje podemos assumir que a realidade é construída, podemos admitir ainda que pode ser desmontada para ser (permanentemente) reconstruída sobre novas bases" (p. 30).

 

A EXPERIÊNCIA ITALIANA

Em 1961, Basaglia assumiu a direção do Hospital Provincial Psiquiátrico de Gorizia, onde, juntamente com sua equipe, iniciou um amplo processo de transformação na instituição. Ao falar sobre essa experiência em algumas conferências e debates realizados durante sua vinda ao Brasil em 1979, Basaglia (1979) destacou a miséria presente nas instituições manicomiais: "No momento em que entramos nesse hospital, dissemos um não, não à psiquiatria, mas, sobretudo, à miséria" (p. 17). Lembrou-se da sensação ao entrar no hospital, a mesma de quando entrara na prisão (era estudante de medicina e foi preso por lutar contra o fascismo) e teve a certeza de que aquela instituição precisava ser destruída, pois era absurda, "servia somente ao psiquiatra que ali trabalhava para ganhar o salário no fim do mês" (p. 46).

Gorizia é uma cidade ao norte da Itália e o hospital psiquiátrico estava instalado em uma ampla área verde. Logo no primeiro capítulo intitulado "Introdução Documentária" do livro "Instituição Negada: relato de um hospital psiquiátrico" (Basaglia, 1985), coordenado pelo jornalista Nino Vascon, encontramos uma descrição detalhada sobre o funcionamento do hospital e sobre o processo de mudança da realidade institucional em movimento. Por meio de depoimentos, entrevistas, relatos e demais capítulos escritos por membros da equipe, o livro nos mostra uma ampla visão das transformações pelas quais estava passando a instituição. Em um primeiro momento da leitura, chocam as condições de vida daqueles internos com as rígidas medidas disciplinares, o encarceramento e a ausência total de autonomia. A existência era baseada na dominação e violência com o uso de amarras, camisas de força, máscaras, grades (inclusive nas camas), uso indiscriminado dos eletrochoques; os passeios eram somente permitidos no jardim e contidos. O contato com a comunidade externa era nulo.

A vida dos internos seguia o ritmo pré-estabelecido e organizado pela estrutura hospitalar, no mesmo compasso para todos. Com o desenrolar do livro e do caminhar iniciado por Basaglia e equipe, a estrutura institucional foi tomando outra face: abertura gradual dos pavilhões (alas), que antes eram trancados e vigiados por guardas; o uso do antigo uniforme cinza foi abolido e cada um era livre para usar o que mais lhe agradasse; os pacientes começaram a trabalhar e a realizar diversos passeios; a comunidade foi convidada a conhecer e habitar a ampla área onde o hospital estava instalado. A antiga placa na qual havia a inscrição "Entrada rigorosamente proibida" foi substituída por um cartaz convidando todos à visitação.

 

GRUPOS: O XIS DA QUESTÃO

Nesse processo de mudança da lógica hospitalar com a ruptura dos esquemas pré-estabelecidos, contra os rótulos e as relações pautadas pela violência e dominação, dois elementos passaram a ditar o rumo cotidiano e a ocupar lugar de destaque nesse processo de (re)invenção institucional: as assembleias e reuniões. "Toda a vida do hospital é dirigida a partir das reuniões. A jornada segue o ritmo imposto por elas, transcendendo a programação tradicional" (Basaglia, 1985, p. 25).

As assembleias gerais aconteciam todos os dias e eram abertas a todos os que dela queriam participar; não seguiam um roteiro pré-estabelecido e dependiam da participação do grupo para guiar-se. Eram discutidos assuntos diversos, tais como: problemas do dia a dia do hospital, a abertura de determinadas alas, os roteiros dos passeios, questões pessoais dos pacientes e ex-internos, além de ricas discussões sobre a vida longe do hospital, os preconceitos da sociedade, as dificuldades enfrentadas. As reuniões de setor eram realizadas com grupos menores, divididos por alas e, além desses assuntos citados, também tratavam dos problemas específicos de cada pavilhão; ocorriam mais de 50 por semana, mas não com as mesmas pessoas. Essas duas formações grupais (as assembleias e reuniões de setor) tinham basicamente o mesmo funcionamento e função, como enfatiza Serrano (1986): "tinha por princípio o respeito aos direitos de cada um de seus membros" (p. 79).

A assembleia geral da comunidade reúne, todas as manhãs, doentes, médicos, enfermeiros e assistentes sociais na sala mais ampla do hospital: o refeitório de um dos setores. Os pacientes ajudam o enfermeiro a preparar a sala de reunião, dispondo as cadeiras em semicírculo; terminados os trabalhos, recolocam-nas em seus lugares. A assembleia é um acontecimento espontâneo, no sentido de que não há qualquer obrigatoriedade de comparecimentos, pode-se entrar e sair à vontade, e não existem listas de presença ou ausência. Aparentemente, pelo menos, não há qualquer distinção formal ou substancial entre os membros da comunidade; médicos, doentes e enfermeiras tomam o lugar na sala, confundindo-se uns com os outros [...] Presidindo a mesa revezam-se dois ou três doentes, os quais, responsabilizados pelo andamento da assembleia, relevam qualidades notáveis de prestígio, dialética e distribuição e tratamento dos assuntos (Basaglia, 1985, p. 24).

Nesses grupos, as relações humanas eram o foco; não havia categorização, até porque, muitas vezes, tornava-se difícil a distinção entre comunidade, doentes e profissionais. "Ser psicólogo, psiquiatra, terapeuta ocupacional, etc., ou ser internado era a mesma coisa, porque quando nós nos uníamos em assembleia para discutir, todos procuravam dar suas contribuições para a mudança" (Basaglia, 1979, p. 22). O ponto de partida eram os relacionamentos, e não a doença. As assembleias e reuniões estavam sujeitas a acontecimentos comuns a quaisquer grupos: uma ou algumas pessoas querendo monopolizar a discussão, momentos um pouco mais acalorados, a presença de alguém em crise alterando o andamento do grupo. O jornalista Nino Vascon descreve como essas questões eram tratadas, por exemplo:

Não raro um doente em crise quer sentar-se à mesa central, perturbando os trabalhos e gerando, com sua atitude, uma forte tensão no grupo. Nesses casos suas provocações ou sandices são toleradas ou neutralizadas pelos demais doentes com extrema delicadeza. Na realidade seu comportamento é repreendido, não do ponto de vista da doença, mas no plano das relações mútuas, da sensibilidade recíproca, etc. (Basaglia, 1985, p. 24).

Durante os grupos das assembleias, a doença era colocada em segundo plano - a doença entre parênteses –, conceito utilizado por Basaglia não para negar a existência da doença, e sim promover uma inversão. Ao invés de colocar o sujeito entre parênteses, coloca-se sua condição psiquiátrica e, dessa forma, é possível ver as consequências oriundas do processo de institucionalização, e não da doença em si, que Basaglia chamou de o duplo da doença mental. É uma recusa focar-se apenas no corpo do indivíduo, transformando-o em simples objeto de intervenções clínicas.

O colocar entre parênteses a doença mental não significa a sua negação, no sentido de negação de que exista algo que produza dor, sofrimento, mal-estar, mas a recusa à aceitação da completa capacidade do saber psiquiátrico em explicar e compreender o fenômeno loucura/sofrimento psíquico, assim reduzido ao conceito de doença. A doença entre parênteses é, ao mesmo tempo, a denúncia e a ruptura epistemológica que se refere ao "duplo" da doença mental, isto é, ao que não é próprio da condição de estar doente, mas de estar institucionalizado (Amarante, 1994, p. 65).

Sob a perspectiva fenomenológico-existencial, Cooper (1967) e Laing (1978) afirmaram que a doença mental não existe em si. O que existem são maneiras de abordarmos experiências humanas pouco compreendidas no intuito de controlá-las. Esses autores propõem a busca de compreensão dos delírios e alucinações, considerando que ambos têm sentidos próprios atribuídos pelas pessoas que os manifestam. Assim, o método fenomenológico propõe olhar diretamente para as pessoas em suas diversas manifestações, atentando para aquilo que se mostra na experiência do encontro entre sujeitos que se interferem mutuamente (Forghieri, 1993).

Basaglia (1979) diz que, "quando rejeitamos a lógica do manicômio como lógica repressiva e destrutiva do doente, estamos mudando a vida básica do doente; damos a ele uma situação de vida normal" (p. 64). Nesses grupos de assembleias, a lógica repressiva foi subvertida ao reconhecer os sujeitos como atores e não apenas como espectadores passivos, tornando-se possível a construção de novas possibilidades para sair do "não lugar" onde foram colocados. No início dos grupos, o silêncio permeava, não era fácil ocupar outro lugar, mudar uma lógica há tempos enraizada. Andrea, um senhor idoso, cego e há muito tempo internado, conta um pouco desse início em sua entrevista, quando questionado sobre as mudanças pelas quais a instituição estava passando.

Andrea: Mudaram do dia pra noite. No começo, quando a gente criou as assembleias e eu fui presidente durante um mês, e depois outra vez, ninguém abria a boca, todo mundo parecia amedrontado, ninguém tinha coragem de falar. Eu, que era o presidente dizia: 'Se vocês têm alguma coisa pra dizer, digam, é para isso que estamos aqui; se vocês têm queixas, falem'. Mas ninguém abria a boca. Estavam todos intimidados, depois de ficarem tanto anos presos... Foi tudo coisa do diretor... Depois, primeiro foi o Dr. Slavich que chegou ao setor C e disse: 'Vamos, peguem dez ou quinze doentes e levem pra passear na colônia...' (Basaglia, 1985, p. 17).

O processo de institucionalização limita a existência do sujeito. Basaglia (2005) assinala que o sujeito "pelo próprio fato de estar internado num hospital psiquiátrico torna-se automaticamente um cidadão sem direito" (p. 101). Os grupos se constituem como possibilidades reais apresentadas ao sujeito para a realização de escolhas e para a apropriação de um lugar de compartilhamento da dor, do sofrimento, das angústias e do silêncio, além de um lugar de escuta no qual os sujeitos podem ser vistos em toda a sua singularidade.

Basaglia (2005), durante seu percurso, utiliza-se de uma fábula oriental4 como metáfora ao doente mental para exemplificar o poder massificador do processo de institucionalização: uma serpente entra pela boca de um homem enquanto ele dormia e se aloja em seu estômago. A partir de então, ela passa a exercer a sua vontade em detrimento dos anseios do homem, sendo privado de sua liberdade e ficando sob os ditames da serpente. Depois de algum tempo, o homem percebe que a serpente havia partido e estava livre novamente, então se dá conta de que não sabe o que fazer. Após um longo período sob os imperativos da serpente, a sua capacidade de desejar, de querer, ficou adormecida, esquecida, "a ele só restara reconquistar pouco a pouco o anterior conteúdo humano de sua vida" (p. 80). O que fazer sendo livre novamente? O que fazer com os pacientes institucionalizados há anos que tiveram sua existência como sujeitos usurpados?

Se por um lado a restrição das possibilidades de escolha pode caracterizar uma existência doente, foi (e ainda é) preciso criar outras formas de conexão com a vida. Os grupos se mostram importantes nesse caminhar, sendo necessário (re)conquistar, talvez até (re)inventar novos modos de viver. Desde a reforma psiquiátrica até os dias de hoje, "buscou-se abrir espaço para o sujeito através da palavra, preservando a sua singularidade no universo da instituição de saúde mental e da sociedade" (Furlan & Ribeiro, 2011, p. 23). O processo de transformação da lógica do Hospital Psiquiátrico de Gorizia foi fruto de muitos atores e ideias; por meio das assembleias, procurou-se propiciar os espaços da palavra com a possibilidade de fazer escolhas e responsabilizar-se por elas.

Essa (re)apropriação é fundamental ao falarmos do processo de institucionalização que limitou drasticamente a possibilidade de atuação dos sujeitos internados, vinculando-os à existência da doença e dizimando suas singularidades, sob o rótulo da loucura. As formações grupais mencionadas tiveram importante papel nesse processo, contribuindo para a construção de novas formas de existências, além de permitirem: inventar, (des)inventar e (re)inventar diferentes maneiras de estar no mundo.

 

O CAMINHAR

Os cenários da saúde mental e da atenção psicossocial no Brasil vêm passando por diversas transformações e inovações, visando superar o modelo hegemônico hospitalar com a construção de uma rede de serviços diversificados, na qual o cuidado deve focar toda a complexidade do sofrimento psíquico, levando em consideração não apenas o produto final: a doença. Esse complexo processo de mudança de paradigma propõe um novo olhar sobre a loucura, capaz de produzir encontros que libertem o sujeito do aprisionamento imposto por sua doença. Os grupos tornam-se elementos fundamentais nesse percurso. Paulon et al. (2011), em pesquisa sobre a atuação dos profissionais 'psi' (psicólogos e psiquiatras) nos atuais serviços de saúde mental, ressaltam a importância das práticas em grupos como recurso diferencial no cuidado e no processo de autonomia dos usuários5.

A Lei 10.216 trata sobre os direitos dos portadores de transtornos mentais e sobre a assistência em saúde mental, tendo como prioridade o recurso extra-hospitalar e a reinserção na comunidade. Com essa e as demais leis, portarias e normatizações, atualmente a saúde mental conta com um modelo de atenção de base comunitária, na qual equipes multiprofissionais, juntamente com o usuário e sua família, constroem um projeto terapêutico, levando em conta as singularidades caso a caso. Os serviços substitutivos vêm sendo ampliados e oferecem diversas alternativas além da clássica dupla consulta médica e medicação. Contam com psicoterapias, grupos, oficinas terapêuticas, passeios e outras modalidades que vão tecendo a rede de cuidado e partindo das relações de horizontalidade com a articulação de diversos saberes, além de focar as pessoas.

Nessa atual concepção sobre o cuidado com relação à atenção psicossocial, faz-se necessária a criação de dispositivos que sustentem esse novo olhar, como salienta Yassui (2006): "mais do que uma essência do trabalho na saúde o cuidado é uma dimensão da vida humana que se efetiva no encontro" (p. 110). As assembleias, assim como tiveram papel fundamental na mudança da lógica hospitalar de Gorizia possibilitando encontros, podem contribuir com os atuais serviços de saúde mental para o resgate da cidadania, autonomia e compreensão dos sujeitos em sofrimento. Por meio desses espaços/encontros, as assembleias aparecem como possibilidades reais de fazer escolhas, sair do aprisionamento imposto pela loucura, produzir movimento e cuidado.

Os grupos no formato de assembleia estão presentes nas publicações do Ministério da Saúde (Brasil, 2004) como uma das modalidades oferecidas nos CAPS (dispositivos estratégicos na reorganização da saúde mental) e são definidas como:

Um instrumento importante para o efetivo do funcionamento dos CAPS como um lugar de convivência. É uma atividade, preferencialmente semanal, que reúne técnicos, usuários, familiares e outros convidados, que juntos discutem, avaliam e propõem encaminhamentos para o serviço. Discutem-se os problemas e sugestões sobre a convivência, as atividades e a organização do CAPS, ajudando a melhorar o atendimento oferecido (p. 17).

As assembleias buscam a retomada do protagonismo dos usuários de saúde mental e o melhor funcionamento da instituição, sendo um espaço de gestão compartilhada para a discussão de questões institucionais, revisão de normas, resolução de conflitos interpessoais, sugestão e reformulação das atividades com a participação direta dos pacientes nesse processo. Camargo (2004, p. 111) ressalta o caráter das assembleias e sua utilização atual em um serviço de saúde mental:

Esse grupo foi criado para tentar incluir os pacientes na gestão do cotidiano institucional, oferecendo espaço para que possam co-responsabilizar-se pela administração do espaço que utilizam e pelo tratamento que recebem. Essa estratégia visa a uma maior horizontalização das relações de poder dentro do tratamento, um dos objetivos do processo de reabilitação psicossocial. Caracteriza-se idealmente, como um espaço de exercício e resgate da cidadania.

Pela importância desse dispositivo, tanto no processo italiano quanto na atual política de saúde mental, é preciso refletir para que não se perca o sentido ou se enfraqueça. Lidar com o sofrimento psíquico é falar de movimento, de troca, em cuidar e ser cuidado, ensinar e aprender, dar e receber, dialética constante. Nesse amplo campo, todas as discussões e ideias são bem-vindas e todas as propostas são aprendizados; não basta construir, é preciso também (des)construir para (re)construir.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O processo de mudança no modelo da atenção à saúde mental é dinâmico e é necessária uma constante problematização e reflexão que produza movimento, que sirva para a construção e (re)criação de novas práticas. Como bem discutem Goulart e Durães (2010):

a Reforma na Psiquiatria ainda está em pleno processo no Brasil e exige mudanças socioculturais profundas e de longo prazo. É tempo de identificarmos as tentativas já efetivadas, seus sucessos e fracassos. Conhecendo nossa história, podemos traçar novos rumos, que afirmem os direitos e o respeito ao portador de distúrbios e sofrimento mental (p. 112).

Assim, com base no estudo da trajetória italiana e da prática com grupos utilizados, é possível refletir sobre os sucessos, as potencialidades, os caminhos percorridos e, dessa forma, traçar os novos rumos aos ideais propostos pela reforma psiquiátrica brasileira por meio do conhecimento sobre os passos dados e dos que ainda podem ser dados. É importante lembrarmos que a cada momento as necessidades humanas são transformadas e a maneira de satisfazê-las também. "Não existe na história, na vida social, nada de fixo, de rígido, de definitivo (...)" (Gramsci, 1982, p. 671), por isso a problematização e a troca de experiências são sempre bem-vindas e necessárias. O processo de crítica sobre as instituições manicomiais iniciado em Gorizia e a utilização dos grupos de assembleia como dispositivo para a transformação da realidade podem contribuir para o campo da saúde mental e da atenção psicossocial, fomentando discussões e inspirando práticas em busca desse novo olhar acerca da loucura.

 

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Endereço para correspondência
Anamélia Maria Guimarães Junqueira
E-mail: anameliajunqueira@hotmail.com

Recebido em 20/06/2012.
1ª Revisão em 15/09/2012.
Aceite Final em 03/11/2012.

 

 

1 Anamélia Maria Guimarães Junqueira é psicóloga do CAPS I da cidade de Jaboticabal, Estado de São Paulo. Atualmente, cursa a especialização em Psicoterapias Analíticas de Grupais e Coordenação de Grupos pela SPAGESP. Graduada pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP), campus Assis.
2
Isabel Cristina Carniel é psicóloga pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Especialista, Mestre e Doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo (USP). Docente da Universidade Paulista (UNIP) e da SPAGESP.
3
"Nascida a partir da mobilização de trabalhadores de saúde, no cotidiano de suas práticas institucionais e nas universidades, a Reforma Psiquiátrica buscou politizar a questão da saúde mental, especialmente, na luta contra as instituições psiquiátricas; produziu reflexões críticas que provocam uma ruptura epistemológica; criou experiências e estratégias de cuidado contra-hegemônicas; conquistou mudanças em normas legais e buscou produzir efeitos no campo sociocultural" (Yassui, 2006, p. 26).
4
Relatada por Jurij Davydov em Il lavoro e la libertà, Einaudi, Torino, 1966 (Tradução de V. Strada).
5
O termo 'usuário' foi introduzido pela legislação do SUS "[...] no sentido de destacar o protagonismo do que anteriormente era apenas um 'paciente'. A expressão acabou sendo adotada com sentido bastante singular no campo da saúde mental e atenção psicossocial, na medida em que significava um deslocamento no sentido do lugar social das pessoas em sofrimento psíquico" (Amarante, 2007, p. 82).