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Revista da SPAGESP
versão impressa ISSN 1677-2970
Rev. SPAGESP vol.15 no.2 Ribeirão Preto dez. 2014
ARTIGOS
Apoio e suporte social na identidade social de travestis, transexuais e transgêneros.
Social support in the social identity of travestites, transsexuals and transgender people
Apoyo y soporte social en la identidad social de travestís, transexuales y transgéneros
Bruno de Brito Silva1; Elder Cerqueira-Santos2
Universidade Federal de Sergipe, Aracaju-SE, Brasil
RESUMO
A transexualidade e a travestilidade se inserem no contexto da sexualidade humana enquanto formas de vivenciar este fenômeno de maneira que vão de encontro ao binarismo sexual masculino/feminino instituído para os corpos e gêneros. Devido à forte estigmatização e preconceito, estes indivíduos necessitam de uma rede de apoio social que favoreça o desenvolvimento de uma experiência identitária, pautada na não patologização e na integração social. Sendo assim, esse estudo teórico buscou explorar a ideia de identidade social em transexuais e travestis a partir dos conceitos de gênero, corpo, sexualidade e da importância e influência do apoio e do suporte social no universo trans. Neste sentido, o que se observa é que a identidade transexual e travesti está em constante contato e recebe influência contínua do meio social no qual estes sujeitos se inserem. Além disso, devido à pouca literatura existente no Brasil associando os fatores rede apoio social e identidade social, este estudo contribui para o conhecimento na área da sexualidade humana a partir de uma proposta de diálogo entre Psicologia do Desenvolvimento, Psicologia Positiva e Estudos de Gênero.
Palavras-chave: gênero; travestilidade; transexualidade; identidade social; apoio/suporte social.
ABSTRACT
Transsexuality and travestility are ways of experiencing human sexuality that face the male/female sexual binarism established for bodies and genders. Due to strong stigmatization and prejudice, these individuals need a social support network that encourages the development of an identity experience without pathologizing them but based on social integration. Thus, this theoretical study sought to explore the idea of social identity in transsexuals and transvestites from the concepts of gender, body, sexuality and the importance and influence of social support and fostering in the Trans universe. It is observed that transsexual or transvestite identities are in constant contact and under continuous influence of the social environment subjects are inserted. Due to limited literature in Brazil associating social support network factors and social identity, this study contributes to the literature on human sexuality proposing a theoretical dialogue between Developmental Psychology, Positive Psychology and Gender Studies.
Keywords: gender; transvestility; transsexuality; social identity; social support.
RESUMEN
La transexualidad y la travestilidad se insertan en el contexto de la sexualidad humana como formas de experimentar este fenómeno de una manera que se oponen al binarismo sexual masculino/femenino instituido para los cuerpos y géneros. Debido a la fuerte estigmatización y al prejuicio, estos individuos necesitan una red de apoyo social que favorezca el desarrollo de una experiencia de identidad, pautada en la no patologización y la integración social. Por lo tanto, este estudio teórico buscó explorar la idea de la identidad social en transexuales y travestís a partir de los conceptos de género, cuerpo, sexualidad y de la importancia y de la influencia del apoyo y soporte social en el universo trans. En este sentido, lo que se observa es que la identidad transexual y travestí está en constante contacto con y recibe continua influencia del entorno social en el que se insertan estos sujetos. Además, debido a la escasa literatura en Brasil asociando factores de la red de apoyo social y la identidad social, se espera que este estudio contribuya al conocimiento proponiendo un diálogo teórico entre la Psicología del Desarrollo, Psicología Positiva y Estudios de Género.
Palabras clave: género; travestilidad; transexualidad; identidad social; apoyo/soporte social.
O objetivo do presente artigo é explorar a teoria de identidade social em transexuais e travestis a partir dos conceitos de gênero, corpo, sexualidade e da importância e influência do apoio e do suporte social no universo trans. Desse modo, primeiramente será apresentado o conceito de transexualidade e travestilidade, e as reverberações que o modelo do binarismo sexual traz para a conceituação destes termos. Depois, será explanado o debate sobre identidade social de travestis e transexuais por meio da perspectiva de teóricas(os) do gênero e da teoria da categorização social e da identidade social.
Diante disso, em um terceiro momento pontuar-se-á a relação entre apoio enquanto construto integrado pela família do sujeito, suas amizades e relacionamentos amorosos e laços sociais significativos em sua vida. Tal arcabouço teórico será utilizado para mostrar a importância dessa rede de apoio social na identidade que o sujeito constitui nos grupos sociais aos quais pertença (identidade social), principalmente o grupo de sujeitos considerados "sexualmente desviantes", correlacionando, desse modo, assuntos derivados da Psicologia Positiva e social, bem como dos estudos feministas (Butler, 2003). Tal perspectiva sugere uma integração de abordagens teóricas por vezes vistas como conflitantes, especialmente pelo uso do termo "identidade social". Este artigo trata do construto "identidade social", aproximando-o da noção de "performatividade" para sexualidade humana.
A sexualidade humana está presente, forma-se e modela-se à dinâmica de qualquer sociedade ou período histórico que está sendo vivenciado. Porém, muitas configurações foram propostas e dispostas ao longo da história humana, o que levou a cultura, a ciência e a sociedade a uma tentativa de dividir, segregar e normatizar a sexualidade. Prova deste fato são os conceitos de masculinidade e feminilidade tão disseminados, que definem modos de existência e organizam as diversas práticas societais, normatizando, "exigindo uma linearidade sem fissuras entre sexo genital, gênero, desejo e práticas sexuais" (Bento & Pelúcio, 2012, p. 572).
Diante de tais distinções, um campo de saber foi fabricado ou produzido para efetuar práticas discursivas e categóricas acerca das definições de gênero, sexualidade, identidade e das experiências que os sujeitos possuem baseadas nestas diferenças, atribuindo-lhes um lugar social. Para Juberg (2001), uma forma de abordar tal questão seria através da perspectiva do construtivismo social, ressaltando a importância da socialização na criação e manutenção das formas estabelecidas de se vivenciar relações afetivo-sexuais.
Apesar do enfoque dado por autores que abordam este campo de saber específico - que é o de que diversos fatores sócio-históricos e biológicos seriam determinantes para a construção da sexualidade humana, enquanto configurada segundo a égide do modelo binário masculino/feminino - outras formas de existir e vivenciar a mesma sexualidade fogem do padrão de normatividade heterossexual e põem em discussão diversas acepções já estabelecidas pelo binarismo sexual macho/fêmea, homem/mulher. Porém, muitas teorias e proposições foram construídas no intuito de explicar a disparidade natural que pode existir entre sexo biológico e o gênero, aqui entendido enquanto forma de se comportar em todo o tipo de relação social, seja ela amorosa, de amizade, familiar e principalmente sexual num mesmo indivíduo (Menezes & Brito, 2007). Dentre os grupos de indivíduos que colocam em questão essa disparidade entre o sexo biológico e o gênero estariam o das pessoas trans, que promovem modificações em seus corpos a fim de deixá-los o mais semelhante possível ao corpo do gênero ao qual se consideram pertencer (Benedetti, 2005).
Com relação a estes modos de existência, Butler (2009) chama atenção ao que centra a problemática do presente estudo: de que a autonomia trans não será alcançada sem a assistência e o suporte de uma comunidade, principalmente porque a escolha da transformação corporal é bastante dificultada pelo preconceito com relação às identidades sexuais consideradas desviantes.
A BUSCA PELA LEGITIMAÇÃO DE UMA DA IDENTIDADE: CONSIDERAÇÕES ACERCA DO CORPO, GÊNERO EM PESSOAS TRANS E CONTRIBUIÇÕES DA TEORIA DA IDENTIDADE SOCIAL
IMPORTÂNCIA DO GRUPO SOCIAL E DA CATEGORIZAÇÃO SOCIAL
Antes de se falar sobre identificação social da população trans com seu grupo de pertença é preciso definir o que significa ser um grupo no presente contexto. É necessário se desfazer do conceito de que o grupo seria apenas uma reunião de pessoas em conjuntos com base em uma ou mais características comuns. Certos conjuntos ou categorias de pessoas são constituídos por critérios menos arbitrários ou mais primários como raça, gênero, sexo biológico, identidade de gênero, orientação sexual, etc. Estes agrupamentos são denominados, geralmente, de 'categorias sociais' (Camino & Torres, 2011).
Segundo Deschamps (2009) o grupo é constituído de diversos elementos que identificam um indivíduo, tais como sexo biológico, gênero, idade, cidade de origem, papéis ou posições sociais, como a profissão que se exerce ou uma afiliação política, religiosa, por exemplo. Porém, isto não seria suficiente para definir um grupo social, pois como Tajfel (1981) descreveu, "as características do nosso grupo (tais como seus status, sua riqueza ou pobreza, cor da pele), adquirem seu significado só em relação às diferenças percebidas de outros grupos e à avaliação dessas diferenças (...) a definição de um grupo só faz sentido em relação a outros grupos" (p. 295).
Portanto, como consequência das diversas pertenças grupais e dessa interdependência entre esse conjunto de indivíduos, o fenômeno social da diferenciação grupal e da categorização social acaba por acontecer e é, de certo modo, importante para o ser humano, pois este precisa ser capaz de se identificar com um grupo, para em seguida inserir-se no que lhe for mais conveniente, já que é por meio desse fenômeno que ele eleva sua autoestima (Aronson, 2002).
TEORIA DA IDENTIDADE SOCIAL
A identidade social se mostra um fenômeno de alta importância para qualquer indivíduo, pois nas palavras de Tajfel (1972), "a identidade social de uma pessoa se encontra relacionada com o conhecimento de sua filiação a certos grupos sociais e com a significância emocional e valorativa que resulta desta filiação" (p. 62). E, seguindo esse ponto de vista, o quanto o indivíduo se sente pertencente a determinado grupo influenciará a visão que o mesmo tem de si, dos outros e de como será cumprido seu papel social (Álvaro & Garrido, 2007).
Parafraseando Tajfel (1972), Deschamps (2009), coloca que os indivíduos avaliam suas opiniões e aptidões comparando-as com as de outros indivíduos, como acontece na categorização social, ou seja, é na base da avaliação de si mesmo que se encontra a identidade social, conceituada nesta perspectiva como "ligada ao conhecimento emocional e avaliativo que resulta da pertença a determinados grupos sociais" (Deschamps, 2009, p. 63). Além disso, Tajfel (1972) nos mostra que "um grupo social preservará a contribuição que ele traz aos aspectos da identidade social do indivíduo somente se o grupo puder guardar essas avaliações positivas distintas dos outros grupos" (Deschamps, 2009, p. 64).
Segundo Nelson (2002), todos temos a necessidade de uma autoimagem positiva e essa necessidade abastece ideias motivacionais e cognitivas preconcebidas destinadas a auxiliar pessoas a se sentirem bem consigo mesmas. Para o autor, existem essencialmente duas maneiras de se conseguir uma autoimagem positiva: por meio de suas próprias realizações ou pelos grupos aos quais o indivíduo pertence. Se uma pessoa consegue criar, realizar ou alcançar algum objetivo por si mesma se sentirá bem sobre si e sobre suas habilidades. Porém, em momentos em que não é possível se alcançar um objetivo para satisfação pessoal, a autoimagem positiva será obtida ao se pensar a respeito dos grupos sociais de pertença, ou seja, haverá uma tentativa de restabelecer a autoimagem do indivíduo ao se considerar pertencente a um ou mais grupos que são altamente apreciados pela sociedade (Nelson, 2002).
Além disso, a atribuição de traços comuns a grupos humanos é decorrente de um processo de categorização, e a consciência da existência de outros grupos pode acarretar num processo de comparação entre "nós" e "eles" (Nelson, 2002). Para Tajfel (1981), no processo de comparação social existe uma tendência a atribuir valoração negativa ao out group (exogrupos) e positiva ao in group (endogrupos). É a partir desse processo psicológico que se considera mais viável o surgimento de fenômenos sociais tais como a formação de identidades, conforme Alvaro e Garrido (2007).
Em coerência a este aspecto, a teoria da identidade social sugere que uma forma de aumentar um sentimento positivo sobre um grupo de pertença é por meio da depreciação dos grupos de não pertença, o que não significa que um indivíduo não possa ter uma identificação problemática com o próprio grupo (Sousa & Suda, 2006). Neste sentido, a identidade de um indivíduo é uma construção social e deve ser entendida levando-se em consideração o contexto que lhe confere sentido. Portanto, será apresentado o contexto de grupos sociais nos quais travestis e transexuais estão envolvidos.
A IDENTIDADE SOCIAL TRANS
Segundo DeLamater, Michener e Myers (2005), uma das origens da identidade seria a participação em categorias ou grupos sociais. E o autoconceito, em termos de definição que o próprio indivíduo faz das características dos grupos sociais de pertença, consistiria na identidade social. Assim sendo, cada indivíduo associaria certas características a integrantes de grupos específicos. Mas quais as associações de características que poderiam ser feitas com relação ao grupo social de transgêneros, travestis e transexuais?
Indivíduos, ao se denominarem enquanto "trans"- e aqui estão incluídos travestis, transexuais e transgêneros - trazem consigo diversos grupos de pertença, como o de pessoas consideradas desviantes, anormais, excêntricas; fazem parte da parcela populacional que possui famílias em vulnerabilidade social e econômica devido ao preconceito que se constitui em torno destes sujeitos; assim como integram o grupo social de pessoas que, para terem acesso às transformações corporais que tanto reivindicam como condição indispensável para vivenciar a sua sexualidade e sua identidade, se submetem a tratamentos hormonais e à cirurgia de redesignação ou readequação genital. Contudo, apesar de integrarem tais grupos sociais, outro conceito que é válido ser ressaltado para o entendimento da identidade social trans é o de identidade de gênero, que está relacionada ao reconhecimento que o indivíduo possui de si mesmo, diante de padrões de gênero instituídos pelas normas sociais estabelecidas. Estes indivíduos colocam em questão práticas sociais impostas aos corpos enquanto estratégias de poder que supervalorizam a identidade masculina, branca e heterossexual, enquanto identidade sólida e referência confiável em detrimento do feminino.
No entanto, é valido ressalvar que a constituição de uma identidade de gênero não se configura de maneira simples e rápida, uma vez que demanda tempo e deve ocorrer ininterruptamente. Desse modo, desde a socialização primária, são originadas as estruturas das primeiras disposições duráveis, nomeadas por Bourdieu de habitus (Bento, 2006). Estas disposições, atreladas à produção dos gêneros, seria o que Bento (2006) também chama de 'habitus de gênero', consolidado nas instituições familiares, escolares e religiosas presentes na socialização primária. Todas estas instituições, portanto, seriam responsáveis por este processo de reprodução das verdades que, aos poucos, seriam naturalizadas e incorporadas.
Ao se instituir uma forma "normal" para a vivência do gênero, no que concerne à experiência trans, é importante ressaltar que muitos requerem a realização da cirurgia de mudança do sexo anatômico, bem como a mudança e reconhecimento do nome social como condições para melhor experienciar seus modos de existência. Porém, no presente trabalho, a experiência trans será interpretada segundo o que propõe Bento (2008), enquanto uma experiência identitária, caracterizada pelos conflitos com as normas e a ordem de gênero e que estabelece a inteligibilidade dos gêneros no corpo.
Observa-se que a visão androcêntrica de mundo ainda impera mesmo para essas "identidades" em questão. Segundo Bourdieu (1999), tal visão se constitui enquanto principal premissa para a fundamentação de valores e significações de uma visão de mundo não pautada pelo falo (ou a falta dele), mas sim de um mundo organizado segundo a divisão de gêneros relacionais.
De acordo com Bento (2008), a especificidade da transexualidade está na explicitação dos limites e na revelação das divergências que as normas de gênero fundadas no dimorfismo e na heterossexualidade trazem, à medida que este fenômeno reivindica a passagem do gênero imposto ao nascer para o gênero identificado. Neste sentido, comenta Louro (2003), novas identidades culturais obrigam a reconhecer que a cultura está longe de ser homogênea, e que é de fato, "complexa, múltipla, desarmoniosa e descontínua" (p. 44). Benedetti (2005) também coloca que além da(o)s travestis, transexuais e transformistas existe uma verdadeira miríade de tipos que poderiam ser inseridos na categoria "universo trans", como a exemplo "das palavras, gay, viado, bicha-boy, traveca, caminhoneira, bofe, maricona, marica, entre outras, definem algum grau de transformação nas construções de gênero a que se referem" (p.19).
Além disso, a transexualidade avulta os gestos que dão visibilidade e estabilidade aos gêneros e tenta estabelecer negociações que desmembrem a causalidade entre sexo/gênero/desejo ao revelar os limites de um sistema pautado no corpo sexuado (o corpo-homem e o corpo-mulher) (Bento, 2008). Ainda como propõe Bento (2008) sobre estes aspectos:
Os olhares acostumados ao mundo dividido em vagina-mulheres-feminino e pênis-homens-masculino ficam confusos, perdem-se diante de corpos que cruzam os limites do masculino/feminino e ousam reivindicar uma identidade de gênero em oposição àquela informada pela genitália e ao fazê-lo podem ser capturadas pelas normas de gênero diante da medicalização e da patologização da experiência. Na condição de "doente", o centro acolhe com prazer os habitantes da margem para melhor excluí-los. Este centro construirá explicações aceitas como oficiais. A simplicidade binária (vagina-mulher-feminino versus pênis-homem-masculino) que se supunha organizar e distribuir corpos na estrutura social, perde-se, confunde-se. E, finalmente, chega-se à conclusão que ser homem e/ou mulher não é tão simples (Bento, 2008, p. 22).
De acordo com Goellner (2003), o corpo, de maneira geral, seria construído principalmente por intermédio da linguagem, pois esta não reflete somente o que já está consolidado, mas também tem o poder de criação, no sentido de nomeação, de classificação e de definição de normalidades e anormalidades. Arán (2006) também explana que os corpos que não fazem parte da ordem previamente instituída do binarismo sexual e que integram um fluxo de transição ou uma variedade de gêneros e de sexualidades que são vetados e estigmatizados por não compartilhar dessa coerência e, diante deste fato, seus corpos não poderiam existir.
Com relação à problemática do uso dos corpos na transexualidade, Bento (2009) pontua que, de acordo com a visão do saber/poder médico, a busca pela inserção social seria um dos motivos que fazem com que travestis e transexuais pleiteiem a cirurgia. Porém, a ideia de que travestis e transexuais têm verdadeira repulsa por seus corpos está intrinsecamente conectada a uma visão na qual "toma-se a parte (as genitálias) pelo todo (o corpo)" (p. 97), e, portanto, o sexo biológico determinaria a verdade última do gênero de cada indivíduo. Neste sentido, ao ser apoderado pelo saber médico, a questão da abjeção em relação aos corpos das pessoas transexuais e de alguns travestis, é vista de modo biologizante e patologizante, não levando em consideração as diferentes formas de cada indivíduo significar a sua sexualidade e a sua identidade corporal e social (Bento, 2009).
Ao pontuar este aspecto, se faz necessário ressaltar o estudo realizado por Benedetti (2005) com travestis femininas em Porto Alegre (RS), que descreve de forma minuciosa as transformações no e do corpo, desde a forma como as mesmas cuidam das mãos, utilizando-se de cores consideradas mais "femininas" e tentando deixar mãos e pés com texturas mais delicadas e macias; passando pelo modo de tratamento de pêlos e cabelos, que consistem num obstáculo na fabricação/construção do gênero travesti, como a retirada da barba e de demais pêlos corporais, bem como de tornar os cabelos "longos e bem cuidados, sempre com cortes femininos" (p. 62); pela apresentação do rosto, no qual a maquiagem, assim como todos os "produtos, macetes e técnicas" (p. 62), é um fator importante no processo de construção da corporalidade do gênero travesti; e, por meio da modulação da fala, através de técnicas que forçam com que palavras e fonemas sejam pronunciados de em um tom mais agudo, "normalmente em falsete" (p. 63).
Diante da amostragem da relação que as travestis da pesquisa estabelecem entre si e com outros indivíduos, Benedetti (2005) reafirma que o gênero faz parte da própria cultura e não é somente instituído por ela, assim como o corpo não seria apenas instituído pela cultura; mas antes, produz e dá sentido à mesma.
No entanto, dentro da categoria de identidade, além da questão do corpo há uma subcategoria de considerável relevância: o nome social. Em concordância com Próchno e Rocha (2011), esta subcategoria aparece enquanto classificatória e significativa nas práticas em sociedade, já que o nome social é considerado um referencial jurídico que integra o quadro dos direitos personalíssimos, visando proteger a identidade do indivíduo e conferindo legitimidade ao exercício da cidadania. Em conjunto a um nome masculino ou feminino, além da simples denominação, são afixadas relações de gênero e sexualidade. E, quanto a este quesito, o que emerge, em relação a travestis e transexuais, é o do desejo de serem chamados (as) por um nome do gênero identificado (nome social), apesar de a documentação civil os (as) caracterizarem por um nome em compatibilidade ao sexo biológico (nome civil).
Próchno e Rocha (2011) relatam que, em sua pesquisa, nos encontros com as travestis, muitas narravam os momentos de desconforto vividos ao apresentar seus documentos em diferentes instituições de atendimento ao publico LGBT. Neste sentido, é importante rememorar a carta aos usuários do SUS, divulgada em março de 2006, que se mostra favorável à identificação pelo nome e sobrenome pelo qual qualquer sujeito prefere ser chamado independente do registro civil, não podendo ser tratado por número, nome de doença, códigos, ou de modo desrespeitoso ou preconceituoso.
No entanto, o que se verifica nas práticas das instituições de atenção e atendimento ao público LGBT - como hospitais, delegacias, tribunais e demais centros de atenção primária, secundária ou terciária - é que o que foi proposto pela carta supracitada não é cumprido em boa parte destas instituições, o que pode levar a implicações bastante problemáticas com relação à identidade social que travestis e transexuais estabelecem para si.
Além disso, no que concerne a esta identificação social, a teoria expõe que a necessidade de uma imagem positiva de si mesmo poderia levar os grupos sociais considerados desfavorecidos a desenvolverem diferentes estratégias de mobilidade social que valorizassem o seu grupo em relação aos outros, o que poderia acontecer com o grupo em questão. Por um lado, podem mudar o grupo com o qual se comparam, a exemplo da comparação feita por indivíduos que já realizaram a cirurgia de mudança do sexo anatômico para com aqueles que ainda não passaram por tal procedimento cirúrgico; redefinir as dimensões incluídas na comparação ou, finalmente, os valores os quais avaliam essas dimensões (Hogg & Abrams, 1988; Tajfel & Turner, 1979, citado por Álvaro & Garrido, 2007).
Em acordo com estas explanações, nas entrevistas realizadas com transexuais e travestis masculinos e femininos por Bento (2009), pode-se observar que, em alguns casos, as qualidades físicas já existentes e que se assemelham ao "belo" do gênero com que estes indivíduos se identificam são valorizadas, numa busca por autoimagem corporal, construto que integra a identidade social de qualquer indivíduo positiva. Deschamps (2009) declara, com relação à pertença de grupos sociais, que "os indivíduos experimentam a necessidade de sentirem-se relativamente semelhantes ou próximos do outro, de um lado e buscam preservar sua unicidade, sua especificidade e individualidade, de outro lado" (p. 70).
Entretanto, parece que uma das grandes dificuldades na vivência da identidade de gênero na maioria de travestis e transexuais seria o enfrentamento da estereotipia de gênero, do estigma e do preconceito da condição de sujeito desviante em relação à sua sexualidade, além da falta de suporte e amparo social por parte da maioria dos grupos aos quais estes indivíduos integram. Diante de tais fatores, estes sujeitos seriam consequentemente considerados "anormais", o que leva a uma repercussão negativa na identidade deste grupo, pois muitos(as) querem ser reconhecidos(as) enquanto mulheres (no caso de trans femininas) ou como homens (nos casos de trans masculinos). No tocante a tal aspecto, o grupo social composto por estes indivíduos demonstra características bastante interessantes de serem analisadas pela teoria da identidade social.
Segundo Arán e Murta (2009), a noção de transexualidade e de travestilidade vem sendo conceituada de maneira diversificada por grupos como os movimentos sociais feministas, movimentos organizados em prol dos direitos humanos do público LGBT, pesquisadores da área de saúde e humanas, e ainda citam o Coletivo Nacional de Transexuais.
Em estudos como os de Benedetti (2005) são estabelecidas definições diferenciadas para os grupos de indivíduos travestis, que seriam aquelas pessoas que não possuem o desejo de recorrer à cirurgia de transgenitalização, e para o grupo dos(as) transexuais, os quais reinvidicam a cirurgia de mudança de sexo como condição sine qua non para sua transformação, e sem a qual continuariam em constante desajuste e sofrimento subjetivo e social.
No entanto, outros grupos de estudiosos defendem que não existiria uma identidade, justamente porque estas pessoas se definem enquanto homens e mulheres e não como transexuais ou travestis. Outros grupos usam a nomenclatura de "Homens transexuais" e "Mulheres transexuais", incorporando como parte de uma definição de si a noção da transexualidade. E ainda existe um grupo menos expressivo, mas de considerável relevância, incluindo autores como Butler, que se utilizam do termo transgênero como forma de expressar possibilidades de cruzamentos e nuances entre os gêneros. Portanto, no que se refere à identidade transexual, Bento (2006) explica que
não existe uma identidade transexual, mas sim posições de identidade organizadas através de uma complexa rede de identificações que se efetiva mediante movimentos de negação e afirmação aos modelos disponibilizados socialmente para se definir o que seja um homem e uma mulher de verdade (p. 201).
Ou, ainda, Almeida (2012) explica que, para alguns
a identidade trans é uma categoria temporária, organizadora da experiência e da trajetória individual e, também, uma ferramenta de acesso a instituições que, de outra forma, cerrariam as portas a eles. Utilizar a identidade como ferramenta de acesso cumpre o papel de possibilitar o que, de fato, eles desejam no futuro: eliminá-la (p. 518).
Embora travestis e transexuais possam não se sentir pertencentes ao seu grupo, já que a travestilidade e a transexualidade não é por diversas vezes socialmente aceita, hipotetiza-se que seria interessante que estas pessoas mantivessem um nível mediano ou alto de sentimento de pertença ao seu grupo, para que a cooperação entre os membros deste fosse viabilizada, o que poderia resultar numa fonte de apoio social.
Diante disso, a categorização e a integração de grupos sociais mostram-se fundamentais para a problematização da noção de identidade. Na seção que segue serão traçadas algumas considerações acerca da rede de apoio social do público em questão e, em seguida, sua relação com identidade social.
A IMPORTÂNCIA DA REDE SOCIAL NA CONSTITUIÇÃO DOS SUJEITOS TRAVESTIS E TRANSEXUAIS
A construção da identidade de qualquer indivíduo passa também pela vivência que o mesmo possui com todos os contatos significativos ou não com outros indivíduos durante o processo de desenvolvimento. A rede de apoio social é um importante fator de proteção durante toda a vida humana e pode ser composta pela família, colegas de trabalho/escola/universidade, pares e comunidade, proporcionando o apoio necessário para gerenciar situações consideradas adversas e proporcionar ambientes adequados ao desenvolvimento (Costa & Dell'Aglio, 2009).
Para fins deste presente estudo, que busca investigar a influência de rede de apoio social na identificação social trans, é necessário considerar os fatores de risco e os fatores de proteção que envolvem o contexto de vulnerabilidade - entendida aqui como característica pessoal expressa principalmente por meio de respostas mal adaptadas aos eventos da vida (Zimmerman & Arunkumar, 1994) - no qual estes indivíduos estão inseridos.
Os fatores de risco estão relacionados a toda sorte de eventos negativos de vida que, quando presentes no contexto de vida do indivíduo, aumentam a probabilidade de que este apresente problemas físicos, psicológicos, comportamentais e sociais. Apesar de alguns aspectos serem tomados como experiências estressoras no desenvolvimento de qualquer individuo (violência intrafamiliar, perdas de entes próximos, ausência de apoio social e afetivo, isolamento, desemprego, baixa escolaridade, pobreza, etc.) é importante destacar que o risco não deve ser visto como uma categoria a priori, mas como um processo, que influencia e liga o risco às suas consequências, podendo ser de ordem individual, e principalmente, de ordem ambiental e social (Koller, Cerqueira-Santos, Morais, & Ribeiro, 2005).
Os fatores de proteção, no entanto, referem-se às influências que modificam, melhoram ou alteram respostas pessoais a determinados riscos de desadaptação ou adoecimento. Também lidando com fatores de proteção, deve ser enfatizada uma abordagem de processos, através da qual diferentes fatores interagem entre si e alteram a trajetória da pessoa, influenciando positivamente se presentes, ou negativamente se ausentes, seja para produzir uma experiência protetora ou estressora em seus efeitos (Koller et al., 2005).
Dentre os principais fatores de proteção que podem ser listados com relação ao grupo social de travestis e transexuais, estariam no ambiente das amizades a influência positiva dos pares; na comunidade, a disponibilidade de serviços públicos e sociais de qualidade; e a baixa incidência de violência nos locais os quais o indivíduo frequenta, em especial o bairro no qual reside; e, na família a existência de coesão, amor parental, consistência disciplinar, relação conjugal positiva e ser proprietário de uma moradia (Costa & Dell'Aglio, 2009). Neste sentido, o apoio social se configura enquanto um dos fatores de proteção de maior influência positiva no desenvolvimento do ser humano, sendo avaliado como referente à relação que o sujeito estabelece com o sistema social ao qual participa e ao grau em que as relações interpessoais atendem a determinadas necessidades ou funções, havendo neste o compartilhamento de informações, a diminuição ou abafamento dos efeitos do estresse, o auxilio em momentos de crise, enfermidades, como também nas diversas situações que requerem ajustamento social (Paludo & Koller, 2004).
Segundo Costa e Dell'Aglio (2009), o apoio é dividido, de acordo com suas funções, de diferentes maneiras na literatura, e quanto à sua tipologia pode ser classificado como: a) emocional e afetivo, que se refere à qualidade e manutenção dos vínculos e é percebido nas manifestações de amor, afeto e confiança, desde dar um abraço a compartilhar sentimentos e problemas; b) informacional e instrumental ou material, apoio recebido através de conselhos, informações, ajuda no caso de doenças e em tarefas diárias, por exemplo; c) e o de interações positivas, que seria aquele apoio proveniente da participação em atividades que proporcionem prazer e bem-estar, sendo realizadas em conjunto.
De acordo com Paludo e Koller (2005), o estabelecimento e a consolidação de relações que carregam em si o caráter de apoio geram a interação de grupos que acabam por formar uma rede. A rede de apoio social pode ser conceituada, portanto, como o conjunto de relações próximas e significativas que representam o apoio recebido e percebido pelos indivíduos provenientes de recursos pessoais, profissionais e institucionais ao longo da vida, independente da constância destes recursos com a finalidade de oferecer suporte aos mesmos, principalmente em situações de risco (Costa & Dell'Aglio, 2009).
Em relação ao suporte, Ribeiro (1999) define o construto suporte social como "a existência de ou disponibilidade de pessoas em que se pode confiar, pessoas que nos mostram que se preocupam conosco, nos valorizam e gostam de nós" (p. 547). Para traçar a construção de uma escala que medisse a satisfação com o suporte social, este autor distingue o suporte social em percebido, que seria o suporte o qual o indivíduo percebe como disponível caso necessite do mesmo; e recebido, que como o nome já expõe, se trata daquele suporte que teria sido previamente receptado por alguém.
Além disso, Dunst e Trivette (1990) propõem a subdivisão do termo suporte social em informal e formal. O primeiro refere-se àquele advindo de familiares, amigos, vizinhos e de grupos sociais como clubes, igrejas, entre outros, que viabilizariam apoio nas atividades do dia a dia "em resposta a acontecimentos da vida normativos e não normativos" (p. 338). Já o suporte social formal abrange o arsenal de instituições formais, que seriam os hospitais, programas governamentais, serviços de saúde, como os profissionais, que seriam compostos pelos médicos, assistentes sociais, psicólogos e todos aqueles que estivessem "organizados para fornecer assistência ou ajuda às pessoas necessitadas" (p. 338).
No entanto, quando se refere à transexualidade e à travestilidade, é necessário se trabalhar constantemente com a ideia de uma rede de apoio social enfraquecida e marcada pelo estigma e preconceito para com os indivíduos que fazem parte dessa categoria, pois mesmo com os avanços alcançados nos campos médico-cirúrgico e psicoterapêutico, o apoio e sustento por meio de relações sociais que lhes são importantes nem sempre é amplo e satisfatório.
Soares, Feijó, Valério, Siquieri e Pinto (2011) colocam que da rede de apoio social, daquelas pessoas de convívio, espera-se que exerçam funções como companhia, apoio, e que sejam fontes de recurso materiais e de serviços, pois é na relação com outros indivíduos como familiares, amigos íntimos ou relacionamentos mais formais como os da profissão, que também se constrói a identidade.
Com relação a esta ampla gama de grupos e indivíduos que possam proporcionar apoio e suporte social, uma das principais fontes é proveniente do meio familiar. É nela que são formados os primeiros vínculos nos quais o indivíduo aprende a relacionar-se com o mundo e desenvolver laços de afeto, sendo o apoio familiar caracterizado por uma comunicação efetiva, "contribuindo para habilidades adaptativas por meio do desenvolvimento de competências e protegendo de eventos adversos" (Costa & Dell'Aglio, 2009, p. 228). A maior fonte de apoio social do/as travestis e transexuais se configuram como proveniente das famílias. Estudos como os de Winck e Petersen (2005) e Soares e colaboradores (2011) apontam níveis de maior apoio e suporte no grupo familiar. No entanto, vale pontuar que para se chegar a essa aceitação deve-se levar em consideração aspectos pessoais e ambientais familiares.
De acordo com Winck e Petersen (2005), no que diz respeito às questões de identidade de gênero, as reações parentais podem ir desde um grande impacto inicial até uma completa negação da condição trans do(a) filho(a) ou parente. Este fato foi evidenciado no estudo realizado pelos autores, pois a maior parte dos indivíduos que nutriam relações significativas de apoio com a família, ainda não haviam passado pela cirurgia de transgenitalização, o que faz com que seja possível inferir que a possibilidade de mudança da decisão quanto à realização da cirurgia é que influenciaria, segundo os autores, uma maior demonstração de flexibilidade, empatia e aceitação quanto ao "ente transexual" (Winck & Petersen, 2005).
Em coerência às questões da influência do apoio social dado pela família para sujeitos que seriam considerados desviantes da norma com relação a sua sexualidade, Scott (1995) traz que o núcleo familiar, assim como os lares e a sexualidade, são produtos da mudança dos modos de produção e que podem se alterar ou se desenvolver em função das relações de produção.
Arán (2003) também coloca que a constituição da noção de família, concebida ao menos nas sociedades ocidentais, é herdeira da necessidade política de consolidação do privado com a finalidade de possibilitar, por meio da afetividade e da educação, a formação do indivíduo adulto, bem como garantir a ordem social. Arán (2003) também declara que, na sociedade contemporânea, é possível perceber que, "a organização pai-mãe-filho passa a ser naturalizada como o lugar originário, por excelência da constituição do sujeito".
Além do grupo familiar, outro elemento de considerável relevância constituinte da rede de apoio social trans seriam os relacionamentos amorosos. No que diz respeito a estes, os estudos apontam que há uma grande preocupação com o medo da descoberta da condição de pessoa trans e uma maior dificuldade, principalmente por parte daqueles que não passaram pela cirurgia de redesignação genital (Bento, 2009; Soares at al., 2011; Winck & Petersen, 2005).
Winck e Petersen (2005) observaram uma maior frequência de indivíduos que possuíam companheiro estável no grupo pós-operatório, e sugeriram que a busca pela resolução de conflitos, como o fato de não possuir a genitália do gênero identificado, pode influenciar o individuo na busca por contatos afetivos, já que este processo estaria relacionado a questões ligadas à autoestima e à autoconfiança, bem como ao fato de sentir-se livre para buscar relacionamentos duradouros.
Bento (2009) também coloca que, em muitas de suas entrevistas, o medo de perderem ou de não conseguirem namorado(as) pela falta de uma vagina, nas transexuais, e do pênis, nos transexuais, apareceu como um dos fatores para se obter apoio e satisfação conjugal. Mas a mesma autora pontua que, apesar da "genitalização das relações", a ideia de que um(a) transexual ou travesti tem rejeição ao seu corpo e é assexuado não possui nenhum respaldo nas narrativas encontradas, e que seriam muitas as técnicas de dar e sentir prazer, abrindo sempre outras possibilidades de negociação com suas/seus companheiras/os com relação às relações afetiva e sexuais.
Neste sentido, faz-se mister assinalar a importância que a cirurgia de mudança do sexo anatômico adquire para a maior parte do público em questão, pois se trataria de uma forma de eliminar o dualismo sexual presente no corpo das travestis e das transexuais, permitindo a qualidade da definição do seu sexo psicológico. Diante disso, muitos indivíduos integrantes do grupo social em questão veriam na cirurgia de transgenitalização uma forma de integrar o seu meio familiar, alcançar melhorias nos relacionamentos amorosos e uma maior satisfação conjugal, bem como serem reconhecidos (as) pela sociedade (Pinto & Bruns, 2006). Porém, o que as mesmas autoras problematizam é que a redesignação sexual deve ser entendida apenas como primeiro passo para se atingir um objetivo maior, que seria a identificação, o entendimento, a compreensão e a aceitação por parte dos(as) transexuais de suas próprias condições de existência, e do acompanhamento e apoio por parte de equipes multidisciplinares e pela sociedade em geral.
Em contraponto, outros grupos que também exercem considerável importância no apoio percebido e recebido de travestis e transexuais seriam o auxílio prestado por amigos e pela comunidade. Segundo Costa e Dell'Aglio (2009), a amizade pode ser conceituada como uma relação de intimidade mútua, sendo influenciada também pelo comportamento dos pais.
Neste sentido, o fenômeno social da amizade se caracteriza na idade adulta por uma similaridade entre os pares em relação a diversos aspectos, como o sexo biológico (são mais comuns as amizades entre pessoas do mesmo sexo biológico), estado civil, idade, escolaridade, renda, traços de personalidade, interesses comuns e atividades compartilhadas (DeSousa & Cerqueira-Santos, 2012). Com relação aos laços de amizade, as pesquisas (Bento, 2006, 2009; Soares et al., 2011; Winck & Petersen, 2005) mostram que travestis e transexuais conseguem encontrar um maior apoio e suporte emocional, afetivo, instrumental, informativo e de interações positivas com os pares.
Já a comunidade, formada também pelas instituições de serviço ao público LGBT e pelos indivíduos de grupos de movimentos sociais favoráveis à causa do mesmo público, pode atuar como fator de proteção na rede de apoio social de forma preventiva e interventiva, aumentando a confiança pessoal, a satisfação com a vida e auxiliando no desenvolvimento de uma maior autoestima, necessários também para uma construção de discursos e práticas que resultem em uma maior equidade entre pessoas, maior liberdade individual, que desnaturalizem valores morais, conceitos e verdades "únicos" sobre a sexualidade humana (Costa & Dell'Aglio, 2009; Soares et al., 2011).
Dessa forma, a identidade transexual e travesti está em constante contato com e recebe influência contínua do meio social no qual estes sujeitos se inserem. Ao comentar sobre este aspecto, Butler (2009) expõe que
Num certo sentido, precisamos nos desfazer para que sejamos nós mesmos: precisamos ser parte de um extenso tecido social para criar quem nós somos. Este é, sem dúvida, o paradoxo da autonomia, um paradoxo que é intensificado quando as regulações do gênero funcionam para paralisar a capacidade de ação do gênero em vários níveis. Até que essas condições sociais tenham mudado radicalmente, a liberdade requererá não-liberdade, e a autonomia estará enredada em sujeição. Se o mundo social - um sinal de nossa heteronomia constitutiva - precisa mudar para que a autonomia se torne possível, então a escolha individual mostrará ser dependente desde o início de condições que nenhum de nós produziu ou desejou, e nenhum indivíduo será capaz de fazer escolhas fora do contexto de um mundo social radicalmente mudado. A mudança vem de uma ampliação de ações coletivas e difusas que não seriam próprias a nenhum sujeito singular, ainda que um efeito dessas mudanças seja que se venha a agir como um sujeito (p. 123).
Por fim, mediante as diferenças dissipantes entre as formas de se pensar corpo e identidade da maior parte da população e de homens e mulheres transexuais, pressupõe-se que a construção da identidade social da mulher/homem trans no contexto atual é fortemente influenciada e determinada pela relação e redes de apoio sociais estabelecidas. De outra maneira, acredita-se que a percepção sobre si (envolvendo aspectos como corporalidade e sexualidade) e sobre os grupos de pertença (identidade social), tem estreita conexão com a maneira como a família, os pares, e os cônjuges/namorados encaram essas "outras" formas de se sentir mulher/homem e a identidade de gênero dos sujeitos em questão, uma vez que não se nasce sujeito, mas torna-se sujeito (numa breve adaptação da célebre frase da filósofa Simone de Beauvoir) a partir do momento em que é possível perceber pertencimento a uma determinada realidade social e societal.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A transexualidade desnaturaliza os padrões heteronormativos estabelecidos na sociedade, pois constrói novas formas de se enxergar as relações de gênero, de indivíduos que se veem aprisionados a um corpo que determina formas de relações e de construções de rede sociais. No que concerne este aspecto, a reflexão contra a normatização do gênero que a discussão sobre transexualidade traz torna-se uma questão política contemporânea e umas das faces mais perversas do mundo em que engendramos: a do controle da singularidade dos corpos.
Com base nas atuais mudanças da sociedade, ainda há pouca visibilidade no que diz respeito às questões ligadas à transexualidade; muito ainda precisa ser feito e os cuidados para com esta parcela populacional precisam ser reafirmados. Nesse sentido, os horizontes desse estudo apontam para o fato de sensibilizar profissionais das áreas sociais, de saúde e de educação para a transformação de ideias preconcebidas que mantêm desigualdades entre seres humanos, visando à compreensão dessa questão, além de poderem construir em conjunto políticas públicas que possam atender as reais demandas deste grupo social.
Neste sentido, o presente estudo buscou investigar a importância da rede de apoio social e do suporte oferecido pela mesma na identidade social, e consequentemente no sentimento de pertença de sujeitos trans à sociedade da qual fazem parte, integram, exercem seus deveres e, portanto, merecem representatividade e garantia dos direitos universais previstos por lei. Buscou-se atentar aqui para a necessidade levantada por Bento (2006) de mais pesquisas que envolvam o público em questão apesar de que as questões trans têm ganhado maior destaque em escala midiática.
Este artigo realizou também a tentativa de aliar duas correntes da Psicologia e os estudos de gênero, a saber, a Psicologia Positiva e a Psicologia social, por meio de teorias que abordam os temas da rede de apoio social, relacionamentos amorosos e do apoio familiar à questão da identidade trans por meio da teoria da identidade social, que foi elencada para compor o arcabouço teórico, uma vez que entende a identidade não como essência, mas sim como algo fluido, não determinista e vinculado a todo instante aos grupos sociais de pertença, assim como pode ser considerada o que se nomeia enquanto identidade transexual e travesti ou experiência identitária transexual e travesti.
Por fim, a luta pela despatologização da transexualidade e da travestilidade é uma das pautas que unifica teóricas(os) e ativistas de várias partes do mundo, pois a experiência trans desnuda traços estruturantes das verdades sobre os gêneros e sobre os padrões de normalidade e doença para as sexualidades e subjetividades. O que a constitui é revelado em tons dramáticos que são analisados por protocolos médicos e pareceres jurídicos como enfermidades. Como afirma Bento (2006), as histórias dos(as) travestis e transexuais questionam a continuidade entre corpo, sexualidade e gênero.
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Bruno de Brito Silva
E-mail: bruno.bbs8@gmail.com
Elder Cerqueira-Santos
E-mail: eldercerqueira@gmail.com
Recebido: 21/05/2014
Revisado: 24/08/2014
Aprovado: 20/09/2014
1 Bruno de Brito Silva é mestrando pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da Universidade Federal de Sergipe.
2 Elder Cerqueira-Santos é docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da Universidade Federal de Sergipe.