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Revista da SPAGESP
versão impressa ISSN 1677-2970
Rev. SPAGESP vol.15 no.2 Ribeirão Preto dez. 2014
ARTIGOS
Instituição total e juventude: análise de uma narrativa cinematográfica
Total institutions and youth: analysis of a cinematographic narrative
Institución total y la juventud: análisis desde una narración cinematográfica
Rafael Braga Esteves1,I; Lucilene Cardoso2,I; Clarissa Mendonça Corradi-Webster3,II
IEscola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto-SP, Brasil
IIFaculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto-SP, Brasil
RESUMO
O objetivo deste estudo foi descrever as características da instituição total frente aos considerados desvios de conduta juvenis, a partir de uma narrativa cinematográfica. Trata-se de um estudo qualitativo e descritivo. Realizou-se a análise categorial temática do filme "A Ilha, Prisão sem Grades", dirigido por Christian Duguay em 2008. Os resultados foram sintetizados e apresentado em três categorias: Instituição familiar, Instituição de reclusão e Indivíduo. Discute-se a transferência da responsabilidade de outras instituições sociais, como família e Estado, para a instituição total, colocando no indivíduo a culpa por todos os seus comportamentos. A instituição, com seus dispositivos, trabalha na despersonalização e normatização deste indivíduo, dificultando sua reinserção na sociedade.
Palavras-chave: cinema; instituições correcionais; poder; distúrbios do comportamento; saúde mental
ABSTRACT
The aim of this study was to describe the characteristics of total institutions in the management of what is considered juvenile behavior deviations, from a narrative of a movie. It is a thus a qualitative and descriptive study. A content analysis technique was used to analyze the film "Boot Camp", directed by Christian Duguay in 2008. The results were summarized and presented in three categories: Family institution, Reclusion institution and Individual. It is discussed the transference of the responsibility from other social institutions, such as family and State, to the total institution, making the young to blame. The institution, with its devices, works on the depersonalization and standardization of the individual, making one’s reintegration into society more difficult.
Keywords: cinema; correctional institutions; power; behavior disorders; mental health
RESUMEN
El objetivo de este estudio fue analizar el papel y el poder de las instituciones, en la perspectiva social, en la gestión de las desviaciones de conducta de menores, desde una narración cinematográfica. Estudio cualitativo y descriptivo. Análisis de la película "Boot Camp" dirigida por Christian Duguay en 2008. Los resultados se presentan en tres categorías: la institución de la familia, la institución de la reclusión e individuo. Se discute la transferencia de responsabilidad de otras instituciones sociales como la familia y el Estado para una institución total, poniendo a la persona culpable por todos sus comportamientos. La institución total, con sus características, trabaja en la despersonalización y la normalización de este individuo, lo que dificulta su reintegración en la sociedad.
Palabras clave: cine; instituciones correccionales; poder; trastornos de la conducta; salud mental
O cinema é uma arte que retrata realidade e ficção com grande gama de recursos, refletindo as relações psicológicas, econômicas, culturais e sociais, sendo construído e auxiliando a construir a sociedade (Corradi-Webster, Silva, & Bueno, 2009). A arte possui este papel e vem sendo desenvolvida, historicamente, trazendo à tona os mais complexos fenômenos que decorrem das relações humanas. Dada esta importância, estudos científicos têm buscado nesta forma de arte, respostas e análises sobre os dilemas decorrentes das relações sociais, como apontam os trabalhos de Vieira (2007), Rambor e Kruse (2007) e Lenz (2010).
Dentre as muitas discussões abordadas pelo cinema, destaca-se aqui o manejo dos considerados desvios sociais de conduta entre jovens, tema principal do filme "A Ilha, Prisão sem Grades", dirigido por Christian Duguay em 2008 (título original Boot Camp). São considerados comportamentos desviantes aqueles que não seguem o que é esperado socialmente, sem necessariamente se constituir em uma entidade nosológica (Brzozowski & Caponi, 2013). Boudon (1995) afirma que este conceito está relacionado a sete categorias de comportamentos: "os crimes e delitos, o suicídio, o abuso da droga, as transgressões sexuais, os desvios religiosos, as doenças mentais e as deficiências físicas" (p. 413). Vale notar que cada grupo social, em cada momento histórico, legitimará alguns comportamentos e marginalizará outros, havendo, portanto, uma construção social do que é considerado desvio ou não.
Há uma tendência da literatura de considerar a adolescência como um período de conflitos, compreendendo-se que o indivíduo nesta fase estaria em busca de construir sua autonomia e valores próprios, de experimentar situações novas e de ter a aprovação de seus pares (Blum, Astone, Decker, & Mouli, 2014; Corradi-Webster, Esper, & Pillon, 2009). Nesta direção, os adolescentes estariam mais sujeitos a quebrarem regras e a adotarem comportamentos considerados desviantes (Eisenberg et al., 2014).
Os comportamentos que são considerados desviantes das normas são múltiplos e contextuais, ou seja, variam de acordo com o que aquela comunidade vem considerando dentro de determinado momento histórico e social como sendo "a norma". No campo da psiquiatria, quando persistentes, estes comportamentos podem ser classificados como transtornos de conduta, os quais muitas vezes estão relacionados a um conflito com a lei (Organização Mundial de Saúde, 1993). De acordo como a Classificação Internacional de Doenças (CID), na sua 10ª versão, os transtornos de conduta seriam padrões persistentes e duradouros de comportamentos que violam as expectativas sociais para determinada faixa etária, indo além de travessuras ou rebeldias (Organização Mundial de Saúde, 1993). Para que o diagnóstico seja realizado, a CID orienta que se busque a presença de agressividade ou tirania excessiva, crueldade com pessoas e animais, destruição de bens, roubos, mentiras repetidas, faltas da escola, desobediência, dentre outros.
Alguns autores que estudam a conduta agressora de adolescentes em conflito com a lei compreendem que o infrator que teve sua carreira de delitos restrita aos primeiros anos da adolescência tem grandes chances de ter uma descontinuidade nesta trajetória de delitos. Porém, estes autores apontam que quando o comportamento delinquente vai além da fase da adolescência devem-se buscar explicações baseadas em causas multifatoriais para compreendê-lo e para analisar a persistência desta conduta (Moffit, 1993; Morizo & Le Blanc, 2007; Odgers et al., 2008).
A fim de lidar com as condutas consideradas desviantes e buscar ajustá-las aos comportamentos esperados socialmente, historicamente diferentes instituições foram organizadas e acionadas. Estes estabelecimentos firmam-se como mecanismo de controle para a sociedade, configurando-se como freios sociais. Os principais são as escolas, igrejas, penitenciárias e hospitais (Durkheim, 1977; Durkheim & Queiroz, 2007). Muitas destas instituições geralmente despontam como o recurso principal para a solução do problema, comprometendo-se primeiro a afastar o problema/indivíduo da sociedade, e depois a ressocializá-lo Os jovens também estariam mais sujeitos às tentativas de controle sociais, que são realizadas por estas instituições de diferentes modos, como através da medicalização dos comportamentos desviantes ou da criminalização destes (Brzozowski & Caponi, 2013; Zaluar, 2012). Essas tentativas de controle social trazem a visão de que as causas dos comportamentos desviantes baseiam-se em características individuais, ou seja, ao tratar ou punir o indivíduo estes comportamentos seriam reduzidos ou eliminados. Pouco são considerados os aspectos familiares, relacionais, contextuais, sociais e históricos que interferem na adoção de determinados comportamentos.
Algumas dessas instituições possuem papel central nas sociedades e muitas vezes são responsáveis pela privação da liberdade de indivíduos como meio de controle, educação e ressocialização. Segundo Goffman (1961), esse tipo de local é intitulado e definido por "instituição total", sendo esta descrita como: "um local de residência e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação semelhantes, separados da sociedade mais ampla por considerável período de tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada" (p. 11). O termo "total" se refere aos símbolos de fechamento pelas barreiras existentes entre o mundo externo e interno, materializado por esquemas físicos como muralhas, arames farpados, florestas ou mesmo, como no filme analisado aqui, por um oceano que cerca uma ilha.
Para Goffman (1961), as instituições totais são divididas em: (a) locais criados para cuidar de pessoas que precisam de ajuda de outros e que não oferecem riscos para a sociedade, como asilos e orfanatos; (b) estabelecimentos para assistir a pessoas que tem dificuldades de cuidar de si e que são vistas como uma ameaça para a comunidade, embora a ação destas seja considerada não intencional, como acontece com os doentes mentais; (c) locais para proteger a comunidade contra perigos intencionais, como as penitenciárias; (d) serviços estabelecidos com a intenção de educar sobre tarefas e regras, como quartéis e escolas; (e) estabelecimentos que servem como refúgio do mundo, a exemplo, conventos e abadias. Importante papel das instituições totais é o que Goffman chama de mortificação do eu, compreendida como as constantes mutilações da identidade resultantes do isolamento social, da perda dos múltiplos papéis sociais, da padronização dos internos e da transformação destes em objetos.
De modo geral, a repressão aos considerados desvios de conduta possui finalidades que se articulam e têm evoluído ao longo da história, variando entre: prevenção (vigiar), educação (adequar o comportamento por meio do conhecimento), recuperação (reabilitar) e repressão (contenção de crianças e adolescentes delinquentes) (Sposato, 2000).
Em relação à punibilidade dos adolescentes, quando os desvios são classificados como atos infracionais, algumas sociedades tendem a mostrar uma repressão mais rígida, podendo a maioridade penal (idade mínima para exigência de responsabilidade criminal) variar entre os sete e os 18 anos de idade, nos diferentes países (Office on Drugs and Crime, 2006). Entretanto, vale destacar que a ONU recomenda que a idade da responsabilidade criminal seja baseada na maturidade emocional, mental e intelectual do jovem, e que a idade fixada não seja muito precoce. Todavia, com o fortalecimento dos direitos humanos, as instituições para adolescentes em conflito com a lei têm buscado se renovar sob uma perspectiva mais humanizada e preocupada com a complexidade que cerca a infância e a adolescência.
A literatura foca duas dimensões quanto à responsabilização dos comportamentos considerados desviantes: a responsabilidade social, isto é, vulnerabilidades sociais e contextuais que influenciam nesta ocorrência, como pobreza e falta de oportunidades; e a responsabilidade individual, relativa às características individuais, como impulsividade e baixa tolerância à frustração. Muitos autores também afirmam que ambos, instituições sociais e indivíduos, parecem ter responsabilidades na ocorrência destes fenômenos, com claro reflexo na evolução jurídica a este respeito (Vicentin, 2006).
A exemplo disto, a legislação brasileira voltada à criança e ao adolescente está embasada na doutrina da proteção integral, a qual reconhece que estes cidadãos estão em uma delicada fase de desenvolvimento físico e psíquico, colocando-os em uma condição que carece de cuidado e atenção especial por parte do Estado, da sociedade, dos pais ou dos responsáveis (Mezzomo, 2004).
Assim, em casos de ocorrência de ato infracional praticado por crianças e adolescentes, são utilizadas medidas de proteção e medidas socioeducativas. O Estatuto da Criança e do Adolescente, em seu artigo 13º, define por ato infracional "a conduta descrita como crime ou contravenção penal" (Brasil, 1991). Sendo devidamente apurada a responsabilidade dos adolescentes autores de atos delitivos, a aplicação das medidas de proteção visa favorecer a recuperação e reeducação do jovem de acordo com sua necessidade (Cury, 2006; Sá, 2009). As medidas socioeducativas são aquelas aplicadas por autoridade competente, após confirmação da prática de ato infracional, tais como: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade (PSC); liberdade assistida (LA); inserção em regime de semiliberdade; e internação em estabelecimento educacional (Brasil, 1991).
Considerando que as sociedades definem os comportamentos que serão marginalizados e tomados como desviantes e que a adolescência vem sendo construída como fase do desenvolvimento em que o indivíduo quebra regras e busca construir seus próprios valores, torna-se importante analisar as instituições que têm sido propostas para lidar com os considerados comportamentos desviantes de jovens. O cinema, enquanto arte, tem propiciado obras que refletem e discutem modos de viver em nossa sociedade. Assim, analisar uma obra cinematográfica que aborda o manejo de adolescentes com comportamentos considerados desviantes nos auxilia a compreender o modo como temos lidado com estas questões na atualidade. Portanto, o objetivo deste estudo é descrever as características das instituições totais frente aos considerados desvios de conduta juvenis a partir de uma narrativa cinematográfica.
MÉTODO
Trata-se de um estudo qualitativo, descritivo, constituído pela análise do filme "A Ilha, Prisão sem Grades", utilizando como referencial teórico os conceitos sobre instituição total desenvolvidos por Erving Goffman (1961).
Dirigido e produzido por Christian Duguay e escrito por Agatha Dominik e John Cox, lançado nos Estados Unidos da América (EUA) em 2008, o filme "A Ilha, Prisão sem Grades" (título original "Boot Camp") aborda o problemático mecanismo de enfrentamento adotado por uma instituição frente aos considerados desvios de conduta sociais de jovens com faixa etária próxima aos 18 anos, advindos de várias cidades metropolitanas dos EUA em meados dos anos 2000. Na trama, pais de jovens com os supostos desvios, perante a inabilidade em lidar com esses comportamentos, contratam uma "renomada" instituição, o "Acampamento Serenity," em uma área distante nas Ilhas Fiji, Pacífico Sul, para resolver os problemas de comportamento de seus filhos adolescentes.
A análise dos dados foi realizada a partir da técnica de Análise de Conteúdo, que preconiza a apreensão dos aspectos comuns e convergentes em uma amostra (Bardin, 2004). Neste estudo, tal compreensão foi aplicada ao roteiro do filme, o qual contempla as falas das personagens e breves descrições dos cenários desse enredo. Para isso, o roteiro foi transcrito a partir da leitura das falas da versão em língua portuguesa, sendo o procedimento análogo à transcrição de uma entrevista gravada. O filme foi assistido duas vezes por cada pesquisador para familiarização e compreensão aprofunda da trama.
Após a etapa de transcrição foi realizada a leitura flutuante do roteiro para uma primeira organização das possíveis categorias, que foram elencadas juntas aos referenciais teóricos. Foi realizada uma segunda leitura do material para a definição dos sistemas de categorias de maneira mais concisa, a fim de identificar e organizar as unidades de registro no documento. Foi utilizada a análise categorial-temática para o desmembramento do roteiro, aplicando as regras de recorte, categorização e subcategorização. Assim, foram estabelecidas as categorias e subcategorias essenciais para a pesquisa, conforme os temas emergentes da transcrição, o que consistiu na classificação dos elementos segundo suas semelhanças e por diferenciação, com posterior reagrupamento, em função de características comuns, com delimitação orientada pela dimensão da investigação dos temas relacionados ao objeto de pesquisa, identificados nos discursos.
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Os resultados obtidos pela análise do filme foram sintetizados e apresentados em três categorias: (1) Instituição familiar, (2) Instituição de reclusão (Disciplina regrada, Disciplina punitiva/penas exemplares, Equipe dirigente, Espaço físico, Dinâmica e conflitos) e (3) Indivíduo (Despersonalização do eu).
A INSTITUIÇÃO FAMILIAR
A família é uma instituição social presente em todas as sociedades, configurando o primeiro ambiente de socialização, contato com padrões, modelos e influenciando culturalmente o indivíduo. Junto a outras instituições, ela tem com uma de suas funções manter o bem-estar de seus membros e da coletividade. Tem uma responsabilidade social de transmissão da história e da moral da sociedade em que está inserida. Assim, tem um impacto significativo e uma forte influência no comportamento dos indivíduos, especialmente das crianças, que aprendem as diferentes formas de existir, de ver o mundo e construir as suas relações sociais (Dessen& Polonia, 2007).
Essa categoria engloba as relações familiares associadas aos conflitos e dilemas do poder dos pais ou responsáveis sobre os filhos. Destaca-se nesta a limitação da autonomia do jovem que fica sujeito ao consentimento dos pais sobre suas condutas; a inabilidade dos pais e jovens para resolução de conflitos; a comunicação deficiente; os conflitos de geração intimamente ligados a estas problemáticas, que muitas vezes culminam na transferência de poder de resolução para outras instituições sociais, como no caso do filme, o Acampamento Serenity.
Desde as primeiras cenas, um jovem adolescente é representado como aquele inserido em um grupo social bastante característico, em complexas redes e relações, por vezes conflituosas. Em relação à família, o filme constrói uma narrativa em que apresenta o relacionamento entre pais e filhos como permeado por dificuldades de comunicação, agressividade, cerceamento da autonomia e pelo autoritarismo dos pais. O trecho a seguir ilustra uma passagem do filme em que há a construção narrativa da dificuldade de comunicação entre pai e filha.
[Sophie] - Com licença, Karl?
[Karl] - Quer algo aqui, Sophie?
[Sophie] - Sabe, eu não entendo... Por que você tem que bisbilhotar a porcaria do meu quarto toda hora!
[Karl] - Sophie, já basta.
[Sophie] - O que? Não é?
[Karl] - O que tem de errado com você?
[Sophie] - Que foi, Karl? Hein?
[Karl] -Você anda fora da linha há muito tempo, senhorita.[...]
Neste contexto, a instituição família vai sendo construída no filme como exercendo seu poder de forma incisiva, impondo ao jovem a adequação aos costumes e valores deste grupo. Quando não são satisfeitas estas expectativas, ocorrem os conflitos, havendo dificuldades dos membros em resolvê-los, principalmente pela comunicação deficiente entre os mesmos. Ressaltando-se ainda o conflito de gerações intimamente ligado a estas problemáticas, o trecho a seguir ilustra a conversa entre Sophie e seu namorado Bem.
[Sophie] - Karl e minha mãe invadiram meu quarto de novo. Houve uma discussão, é isso.
[Ben] - Você gosta de provocar eles, não é?
Por suscitar períodos de intensa frustração, o conflito leva à busca de outros recursos sociais, estando a família sujeita à sedução de propostas "geniais" e até "milagrosas" para a resolução dos conflitos, até então sem perspectivas de solução. E desta situação, muitas vezes, culmina a transferência de poder da família para outras instituições sociais, como no caso do filme o Acampamento Serenity. Isto se ilustra no trecho a seguir.
[frustração dos pais e dos jovens- Ben fala para mãe de Sophie] - ... Talvez não seja da minha conta, mas ela acha que você não se importa. Tipo, a única coisa que você se importa é com Karl.
[mãe de Shophie responde] - Você está certo, Ben. Não é da sua conta. ...
[mãe de Shopie fala para Ben] - ... É um acampamento. Serenity.... alguma coisa. Fica no Pacífico sul. Eles vão ajudá-la, Ben.
A ausência de diálogo marca por fim a tomada de atitudes autoritárias e violentas visando à resolução dos conflitos, como na cena em que a família de Sophie autoriza o Acampamento Serenity (com características de instituição total) a levá-la para "internação" involuntária, afastando, assim, o "problema" da família e da sociedade.
[transferência de poder da instituição família de Sophie para a instituição total]
[Logan] - Sophie Bauer?
[Sophie] - Quem é você? Ei!
[Logan] - Nós temos consentimento de seus pais para levá-la.
[Sophie] - Me larga! Consentimento é o caramba! Fique longe de mim!
[Logan] - Podemos fazer isso do jeito mais fácil ou do mais difícil!
A INSTITUIÇÃO DE RECLUSÃO
A instituição de reclusão ou total tem como símbolo marcante o "fechamento", que é materializado por estruturas físicas ou mesmo o oceano que cerca uma ilha (Goffman, 1961). Neste estudo, a instituição total é representada pelo Acampamento Serenity, o qual possui uma sistematização de atividades disciplinares e punitivas, associadas a um corpo dirigente que é corrupto e hierarquizado em um espaço físico que configura o isolamento do convívio social.
Disciplina regrada: Uma das estratégias disciplinares apresentada aos adolescentes já na recepção é a sistematização do suposto processo "terapêutico", categorizando os internos por cores das camisas, contribuindo para que não haja articulações entre os mesmos, demonstrando o controle institucional sobre eles e também facilitando a observação desses indivíduos. Goffman (1961) aponta que ao ser admitido em uma instituição total, o indivíduo já começa a ter sua aparência modificada, ao ser retirado deste seus objetos pessoais que o identificam enquanto indivíduo único. Isto é ilustrado no trecho transcrito a seguir:
[Dr. Hail] - ... Todos começam com uma camisa preta. Ela simboliza seu estado emocional confuso. Quando você começa o programa, ao progredir.... muda para o amarelo e então para o branco....
[Ellem] - O único jeito de sair daqui é de camisa branca e um pequeno chip no ombro....
Outra tática utilizada como forma de controle se dá pelo controle verbal, marcado pela fala sempre agressiva do corpo dirigente, frases de ordem, disciplina e a repetição em atividades físicas.
[Logan] - ... Andem! Vamos! Vocês querem ser fortes?
[Grupo de internos] - Sim, senhor!....
[Logan] - Vamos garotas! Se movam! Vamos! Ok, senhoritas! Vocês querem ser fortes?
[Grupo de internos] - Sim, senhor!
[Logan] - Querem sair dessa merda de ilha?
[Grupo de internos] - Sim, senhor! [Logan] - Regra número 1!
[Grupo de internos] - Obedeça as regras, senhor!
[Logan] - Número dois!
[Grupo de internos] - Disciplina, senhor!
[Logan] - Número três!
[Grupo de internos] - Liderança, senhor!....
Disciplina punitiva/penas exemplares: O filme traz várias demonstrações de penas exemplares, como as sessões em que um jovem é confrontado pelo terapeuta, Dr. Hail, perante todos os outros do acampamento, para que assuma verdades sobre a sua vida antes da ilha. As sessões são agressivas e como todos participam da atividade, remete as penas exemplares que são historicamente uma maneira de controle social. Goffman (1961) aponta que as humilhações são muito comuns em instituições totais, e acontecem logo após a admissão, com o intuito de atacar a imagem que o indivíduo apresenta sobre si mesmo. No trecho a seguir, observa-se o diálogo do terapeuta com os jovens.
[Dr. Hail] - Trina está com a gente há seis semanas agora. Ela é de New York, essa é sua primeira sessão. Então deem a ela o apoio de vocês. Por que você está aqui, Trina?
[Trina] - Eu não sei.
[Dr. Hail] - Ela não sabe.
[Dr. Hail] - Então não tem nada para nos dizer?
[Trina] - Eu não sei, senhor. Honestamente.
[Dr. Hail] - Estou muito desapontado com você, Trina. Pensei que já era a hora de você avançar....
[Grupo de internos] - Você chupa qualquer um por dinheiro, não é?Pra comprar drogas, você se prostitui, não é? Não é?
[Trina] - Vão viver com meus pais! Com aquelas besteiras religiosas de Jesus!Suas bíblias e seus toques de recolher!Não consegui mais suportar! .... Me desculpem, ok? Me desculpem.
[Grupo de internos] - Nós te amamos....
Equipe dirigente: O corpo dirigente representa dentro de uma instituição, os detentores de poder, estando os administradores no topo da cadeia do poder. Esse corpo muitas vezes manipula o corpo interno na instituição com troca de favores ou pela violência em uma dinâmica velada. Goffman (1961) também analisa o poder das equipes dirigentes, apontando que estas muitas vezes buscam ridicularizar os internos, a fim de mantê-los sob vigilância e medo. A violência, no filme, está representada de diferentes maneiras. No extrato a seguir, uma adolescente internada come um pedaço de frango em um momento em que não deveria estar se alimentando e, ao quebrar a regra, se vê frente à violência sexual de um dirigente da instituição.
[Logan] - .... Trina...
[Trina] - É apenas um pedaço de frango, Logan.
[Logan] - Você conhece as regras aqui. Certo? Por que só você ganharia um pedaço extra de frango e ninguém mais? O que te faria tão especial?
[Trina] - Não sou especial....
[Logan] - Sabe, e eu estava pronto pra recomendar que você subisse de nível. A não ser... A não ser, é claro, que você queira fazer um trato.
[Trina] - Não posso. Por favor. Por favor. Não.... (e então Logan força a menina a trocas íntimas com ele)
Espaço físico: O oceano como símbolo do cerceamento poderia ser uma metáfora se o compararmos à clássica muralha de cimento de uma penitenciária. O oceano é equivalente a esse símbolo do isolamento social que caracteriza a instituição de reclusão carcerária. No filme, a caracterização do espaço físico fica bem marcada pela apresentação que o terapeuta do programa faz aos recém-chegados à ilha. Goffman (1961) aponta que as instituições totais sempre colocam barreiras entre o interno e o mundo externo, afirmando ser esta a primeira mutilação do eu. O autor coloca que com estas barreiras o indivíduo fica impossibilitado de desempenhar diferentes papéis, podendo permanecer assim por meses e anos. O trecho a seguir ilustra orientações dadas por um membro da equipe dirigente que aborda a questão do espaço em uma instituição total.
[Dr. Hail] - Essa não é uma prisão. Vocês perceberam que não há paredes aqui. Não precisamos delas. Se você sair do perímetro do campo...o sensor em você vai nos dizer. E se você acha que pode fugir nadando, dê uma olhada em volta. Você está em uma ilha, com oceano em volta, e rodeada por mais oceano. E se não conseguirmos te pegar... os tubarões conseguirão....
Dinâmica e conflitos: A fragilidade da instituição apresentada pelo filme fica explícita após a morte de Danny, um jovem interno, o qual não sabia nadar e mesmo assim foi obrigado a cumprir a atividade junto ao grupo e faleceu no mar. Neste momento, as dinâmicas corruptas antes veladas e o desequilíbrio das hierarquias aparecem paulatinamente, ainda que a princípio os jovens estejam contidos. Frente a esta situação, morte de Danny, os jovens rebelam-se e destroem o acampamento.
[Ben] - Se não pararmos, agora, nessa noite, então Danny terá morrido por nada!Não podemos deixar isso acontecer! Vamos! Vamos! Pegue aqueles. Vamos!Temos que pedir ajuda.
O INDIVÍDUO
No filme, o indivíduo é caracterizado em todas as suas fragilidades pelos personagens jovens, que ao serem cerceados de sua vontade própria por meio do cárcere, são levados à mortificação do eu e modelados a agir dentro dos ditames sociais, apropriando-se da culpa por seus comportamentos considerados desvios de conduta. Porém, há também o retrato do eu que se rebela e busca superação, o que traz esperança de garantia aos direitos e liberdades individuais dentro da sociedade, mesmo que isto ocorra apenas frente a uma situação catastrófica, como a relatada anteriormente após a morte de um jovem no mar.
Despersonalização do eu: No filme, a revista pessoal e a retirada dos acessórios pessoais é mais uma ferramenta de coerção do indivíduo que o violenta e favorece a despersonalização do eu. Os adolescentes, ao chegarem à ilha, eram revistados pelos dirigentes destas, como ilustrado no trecho a seguir.
[Honda] - ... Tirem todas as jóias e objetos pessoais. Andem!
[Ellen] - Vamos te deixar pronta para seus BCS.
[Sophie] - MBCS?
[Ellen] - Busca nas cavidades corporais....
A utilização de acessórios pessoais em uma sociedade é uma forma de expressão tanto dos indivíduos que se sentem inseridos como dos segregados da mesma. Assim, a homogeneização visual dos indivíduos em uma instituição de reclusão favorece o controle, já que qualquer alteração visual fica facilmente aparente. Sobre isto
O internado descobre que perdeu alguns dos papéis em virtude das barreiras que o separa do mundo externo. Geralmente, o processo de admissão também leva a outros processos de perda e mortificação. Muito frequentemente verificamos que a equipe dirigente emprega o que denominamos processos de admissão: obter uma história de vida, tirar fotos, pesar, tirar impressões digitais, atribuir números, procurar e enumerar bens pressões para que sejam guardados, despir, dar banho, desinfetar, cortar os cabelos, distribuir roupas da instituição, dar instruções quanto a regras, designar um local para o internado (Goffman, 1961, p. 25-26).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este estudo realizou a análise do filme "A Ilha, Prisão sem Grades" com o objetivo de descrever as características das instituições totais frente aos considerados desvios de conduta juvenis. Goffman (1961) descreve as instituições totais como espaços onde os indivíduos ficam internados por tempo integral, havendo uma ruptura entre as barreiras que separam os locais de dormir, brincar e trabalhar. Neste ambiente, o indivíduo fica sempre com um grupo relativamente grande e todos têm que realizar as atividades em conjunto. Estas seguem uma disciplina rígida, que envolve regras e horários. Para o autor, estas são organizadas de modo a levar a uma mortificação do eu, uma vez que os internos, dentre outras coisas, perdem seus objetos pessoais e identitários, sofrem humilhações e seguem regras impostas sem poder questionar.
Quando analisada esta questão, considerando a realidade brasileira, observa-se que as políticas vigentes visam exigir e garantir o respeito aos direitos fundamentais da criança e do adolescente, mesmo estando estes em conflito com a lei. Entretanto, ainda há muitas denúncias e queixas quanto ao funcionamento das instituições voltadas a esta população. No momento atual, muitos jovens com diferentes vulnerabilidades sociais estão sendo colocados em instituições com características totais, com o argumento de que estão com comportamentos desviantes, principalmente pelo uso de drogas (Corradi-Webster, 2013). Este tipo de tratamento tira toda a responsabilidade da sociedade e de outras instituições, colocando-a apenas no indivíduo que precisa ser recuperado (Torcato, Soares, Corradi-Webster, Carneiro,& Adorno, 2013). Tanto as instituições que lidam com jovens em conflito com a lei, como as que tratam de jovens usuários de drogas trazem características próximas às aqui observadas, como disciplina punitiva e rígida, atividades obrigatórias a serem realizadas em conjunto, atendimento a grupos grandes, perda de objetos pessoais e obediência total aos dirigentes. Estas características trabalham em direção a uma perda da identidade social do individuo, tornando mais difícil a readaptação destes ao convívio em sociedade.
Espera-se que as reflexões emanadas da análise do filme "A Ilha, Prisão sem Grades" junto a profissionais que atuam em instituições de reclusão possam desencadear posicionamentos condizentes com os direitos humanos e direitos das crianças e adolescentes, visando a uma sociedade mais democrática e humanitária. Vislumbra-se, ainda, uma proposta sequencial de realização de oficinas temáticas com este material, em instituições reais, com a finalidade de promover reflexões por meio da exibição de uma realidade extrema, porém possível, de modo a ampliar a concepção e compreensão de cada um quanto ao importante papel da instituição na sociedade e da atuação profissional na mesma.
Como limite deste estudo, destaca-se a análise de uma narrativa cinematográfica, portanto, fictícia. Sugere-se estudos que analisem as características de instituições que atualmente vêm sendo usadas para lidar com os considerados desvios de conduta de jovens, como as comunidades terapêuticas. Estas são propostas para o tratamento de pessoas com problemas relacionados ao consumo de álcool e outras drogas, entretanto, vêm recebendo diversos jovens por estes serem considerados como tendo comportamentos desviantes. As internações nestes espaços costumam ser longas e há pouca preocupação sobre a reinserção destes jovens após a internação.
Assim, acreditamos que este estudo poderá contribuir para refletir sobre os modos ainda atuais de nossa sociedade manejar questões consideradas como desvio de conduta de jovens. Como demonstrado na análise aqui apresentada, as características da instituição total levam a transformações identitárias e à morte do eu civil, trazendo prejuízos ainda maiores do que os comportamentos que se quererem prevenir.
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Clarissa Mendonça Corradi-Webster
E-mail: clarissac@usp.br
Recebido: Recebido: 21/04/2014
Revisado: 26/06/2014
Aprovado: 25/07/2014
1 Rafael Braga Esteves é enfermeiro pela Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
2 Lucilene Cardoso é docente do Departamento de Enfermagem Psiquiátrica e Ciências Humanas da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.
3 Clarissa Mendonça Corradi-Webster é docente do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.