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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.16 no.2 Ribeirão Preto  2015

 

ARTIGOS

 

Grupos de discussão no CRAS: problematizando a pobreza e seus desdobramentos

 

Discussion groups at CRAS: questioning the poverty and its impacts

 

Grupos de discusión en el CRAS: cuestionando la pobreza y sus consecuencias

 

 

Aline Amaral Sicari1; Tamara Rossi de Oliveira2; Eliane Regina Pereira3

Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia-MG, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este relato de experiência é um recorte de um estágio profissionalizante em Psicologia realizado no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) de uma cidade mineira. A partir do desenvolvimento de um grupo de discussão com usuários do serviço e da inserção na rotina de trabalho do CRAS, questionamos a trama social entre os profissionais e os discursos sobre a pobreza. Como resultados deste trabalho evidenciamos uma prática profissional neste serviço que legitima a perpetuação da desigualdade social e que culpabiliza o sujeito pela sua condição social. Além disso, destacamos os grupos de discussão como um espaço potente para o surgimento de diferentes vozes e que, portanto, corroboram para que situações de fragilidade sejam escutadas e recebam uma atenção singular.

Palavras-chave: pobreza; assistência social; grupos.


ABSTRACT

This experience report is an excerpt of a work experience in the Psychology field held at the Social Assistance Reference Center (Centro de Referência de Assistência Social - CRAS) in a city in Minas Gerais state of Brazil. With the establishment of a discussion group among users and following the working routine at CRAS, we are questioning the traditional speeches about the poverty and the social assistance policies. As a result of this work, it has been made evident that their professional practice legitimates the perpetuation of social inequity and blames the subject for its social condition. Furthermore, we highlight groups of discussion as a potent space for the emersion of new voices that therefore allow situations of fragility to be heard and to receive proper and singular attention.

Keywords: poverty; social assistance; groups.


RESUMEN

Este relato de experiencia es un extracto de una práctica profesionalizante en Psicología realizado en el Centro de Referencia de Asistencia Social (CRAS) de una ciudad en Minas Gerais. Desde el desarrollo de un grupo de discusión con los usuarios del servicio e inserción en la rutina de trabajo en el CRAS, cuestionamos el red social entre los profesionales y los discursos sobre la pobreza. Como resultado de este estudio, evidenciamos una práctica profesional en este servicio que legitima la perpetuación de la desigualdad social y que culpabiliza el sujeto por su condición social. Además, destacamos los grupos de discusión como un espacio potente para la inmersión de diferentes voces y que, por lo tanto, corroboran para que las situaciones de fragilidad sean escuchadas y reciban una atención única.

Palabras clave: pobreza, asistencia social; grupos.


 

 

(...) Os ninguéns: os filhos de ninguém, os donos de nada.
Os ninguéns: os nenhuns, correndo soltos, morrendo a vida, fodidos e mal pagos:
Que não são embora sejam.
Que não falam idiomas, falam dialetos.
Que não praticam religiões, praticam superstições.
Que não fazem arte, fazem artesanato.
Que não são seres humanos, são recursos humanos.
Que não tem cultura, têm folclore.
Que não têm cara, têm braços.
Que não têm nome, têm número.
Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local.
Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata (Galeano, 2010, p.71).

 

Recorremos ao escritor uruguaio Eduardo Galeano (2010) com o intuito de buscar um interlocutor que nos auxiliasse nas seguintes indagações: como as políticas públicas de assistência social se aliam às pessoas em condições socioeconômicas desfavorecidas, aos pobres, aos "ninguéns" de Galeano? Os atendimentos em grupo nos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) podem ser um espaço para que as pessoas falem sobre os seus modos de ser "ninguém"?

Nossa intenção neste relato de experiência é antes ampliar esses questionamentos do que estancá-los. Objetivamos compartilhar e refletir sobre algumas das teias que ligam a Psicologia, os grupos de discussão e os discursos sobre a pobreza no contexto do serviço público de assistência social, especificamente dos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS).

Os discursos sobre a pobreza e os serviços de assistência

No que se refere ao processo sócio-histórico que promoveu a preocupação em oferecer assistência social aos mais pobres, Monnerat, Senna, Schottz, Magalhães e Burlandy (2007) o expõe perpassando pela origem e desenvolvimento do capitalismo como pontos-chaves no entendimento de tal percurso. Nos séculos XVII e XVIII a concepção moralista da pobreza foi predominante, de modo que o "ser pobre" era consequência atribuída às falhas dos próprios sujeitos. Nesse contexto, ainda para os mesmos autores, a assistência social tinha um caráter punitivo, estabelecendo uma troca entre a oferta de melhores condições de vida e os trabalhos forçados aos quais eram submetidas às pessoas beneficiadas.

Especificamente no cenário da política social brasileira, a Constituição de 1988 promove a exigência de uma institucionalização e de uma regulamentação da assistência social por meio de um processo de negociações entre o estado e a sociedade, atribuindo o campo de assistência social ao status de política pública (Vieira, 2008). As discussões acerca deste campo como um direito social não prescindem os debates, uma vez que para além de uma garantia do acesso aos direitos fundamentais e de usufruto de uma vida digna, a assistência social deve também opor-se à marginalização das pessoas. Nesta perspectiva, deve-se problematizar a condição dos usuários dos serviços de assistência social como pedintes e alcançar prismas que os coloquem como cidadãos de direito (Couto, n.d.).

Após cinco anos do marco da Constituição de 1988, cria-se a Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS). Para materializar o que foi descrito na LOAS, surgem as Políticas Nacionais de Assistência Social (PNAS), que promovem as diretrizes necessárias para a prática da assistência social no Brasil. No ano de 2004 as PNAS instituíram o Sistema Único de Assistência Social (SUAS) para todo o país. Tal sistema foi uma deliberação importante da IV Conferência Nacional de Assistência Social do ano de 2003, que buscou reorganizar as ações e serviços em todo o território nacional, por meio da articulação e do provimento de ações em dois níveis de atenção: proteção social básica e proteção social especial (Vieira, 2008).

Como um equipamento social de proteção social básica, aos Centros de Referência de Assistência Social (CRAS) compete:

prevenir situações de risco por meio do desenvolvimento de potencialidades e aquisições, e o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. Destina-se à população que vive em situação de vulnerabilidade social decorrente da pobreza, privação (ausência de renda, precário ou nulo acesso aos serviços públicos, dentre outros) e, ou, fragilização de vínculos afetivos – relacionais e de pertencimento social (discriminações etárias, étnicas, de gênero ou por deficiências, dentre outras) (Brasil, NOB, 2004, p. 33).

Nas orientações técnicas sobre os CRAS, o Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome esclarece que essa unidade pública se responsabiliza pela prevenção da vulnerabilidade e do risco social por meio do fortalecimento de vínculos familiares e comunitários e da ampliação do acesso aos direitos de cidadania. Tal dispositivo da rede sócio-assistencial se diferencia dos demais, na medida em que possui as funções exclusivas de oferta pública do trabalho social com famílias do Serviço de Proteção e Atendimento Integral à Família (PAIF) (Brasil, 2009).

O PAIF consiste no trabalho social com famílias que visa, de modo geral, oportunizar o acesso e usufruto das informações sobre direitos e participação cidadã. Objetiva, ainda, ações de caráter preventivo, protetivo e proativo com relação às mesmas. O Programa tem como ação o trabalho em grupos não terapêuticos, que prevê melhorias na qualidade de vida dos sujeitos, a saber: ampliar trocas culturais e de vivências; desenvolver o sentimento de pertença e de identidade; fortalecer e prevenir a ruptura dos vínculos familiares e comunitários; incentivar a socialização e a convivência comunitária (Brasil, 2009).

Conhecendo o processo histórico da criação das políticas públicas em assistência social podemos perceber, de modo mais cuidadoso, o olhar dos profissionais que atuam nessa área. Diante disso, questionamos: será que atualmente a pobreza ainda é vista como uma característica individual do sujeito, afastando-a dos contextos sociais e do sistema econômico que produzimos e reproduzimos?

Accorssi, Scarparo e Guareschi (2012a, 2012b) afirmam que é possível considerar a existência de duas linhas-base centrais para a reflexão acerca da pobreza, a saber: uma vertente de abordagens de subsistência ou pobreza absoluta, entendidas a partir de critérios determinados e objetivos e; outra vertente que atribui à pobreza uma dimensão multi, a qual tem como centro de sua análise a complexidade das experiências. Há que se considerar que os distintos olhares diante da pobreza determinam as diferentes práticas para sua assistência.

Melo (2005) e Teixeira (2010) apontam para a assistência social brasileira atual como transcendente à noção de pobreza única e exclusivamente como uma carência de renda. Melo (2005) afirma que a razão da pobreza atualmente é uma desigualdade da estrutura econômica que se expressa de diferentes modos: desigualdade de renda, desigualdade de acesso, desigualdade de meios, desigualdade na detenção de ativos. Na perspectiva de Teixeira (2010), o leque de distintas manifestações das desigualdades sociais pode ser expresso pelas definições de vulnerabilidade e risco social, de forma a ampliar a noção de pobreza em direção a sua multidimensionalidade e as suas diferentes formas de expressão, negando-a, assim, como apenas a ausência ou precariedade de renda.

 

Método

Nosso contato com o Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) aconteceu por meio de um estágio profissionalizante em Psicologia Social e da Saúde de uma Universidade Federal mineira. Tal estágio teve como objetivo principal criar um espaço de experiência concreta do fazer psicológico no que tange à promoção de saúde no cenário das políticas públicas de assistência social.

Assim, além de possibilitar aprendizado acerca dos diversos serviços que um Centro de Referência em Assistência Social oferece, tivemos o interesse em favorecer a interlocução entre o trabalho em assistência social e em saúde. Destacam-se como atividades desse estágio: planejamento, preparação e desenvolvimento de grupos de promoção de saúde; reunião de equipe multiprofissional; abordagem familiar, acompanhada algumas vezes pelas Agentes Comunitárias de Saúde da unidade próxima ao CRAS, outras vezes pela Psicóloga do CRAS; contato com a rede de instituições tais como Unidades Básicas de Saúde da Família (UBSF), Escolas, Conselho Tutelar, Organizações não Governamentais (ONGs), entre outras.

Para este artigo, apresentamos um recorte dessas atividades, especificamente a construção de um grupo de discussão e promoção de saúde por entendermos que naquele contexto tiveram importância singular, principalmente por sua construção metodológica particular que incluiu a utilização de recursos estéticos. O grupo realizado foi constituído por cerca de oito mulheres e teve a duração de quatro meses, com um encontro semanal dentro da própria unidade do CRAS. Os convites para a criação do grupo foram feitos a mulheres que procuraram serviços diversos no equipamento de assistência social e/ou que tivemos o contato por meio de atividades externas, como reuniões em UBSF, visitas domiciliares e circulação no território.

O interesse em formar um grupo de mulheres deu-se a partir do entendimento de que eram elas que mais buscavam atendimento, seja na assistência social ou na saúde. Além disso, percebemos que demandas próprias desse público feminino poderiam ser atendidas em grupo, a saber: maternidade, doenças sexualmente transmissíveis, discussões de gênero; objetivando a promoção de vida na produção de novos sentidos sobre as temáticas.

Éramos duas estagiárias facilitadoras do grupo de mulheres, de modo que a cada encontro uma de nós era responsável por conduzir as conversas e a outra atentar-se mais na observação e registro escrito dos aspectos relevantes que surgissem. Dessa forma, semanalmente uma das estagiárias escrevia um diário de campo descritivo e reflexivo que incluía o registro do que foi conversado em cada encontro, além de suas percepções e indagações.

Como recurso de enriquecimento para a reflexão, neste relato de experiência utilizaremos de algumas das anotações dos diários de campo. É importante dizer que todos os nomes utilizados neste artigo são fictícios, e por se tratar de um relato de experiência, temos a aquiescência da instituição e dos participantes sobre os registros em diário de campo e uso das falas em supervisões e publicações científicas.

 

A nossa experiência

Nossa experiência de estágio nos conduz a problematizar o entendimento de que atualmente assistência social no Brasil transcende a noção de pobreza como apenas uma carência financeira. De modo que embora compreendamos que a ideia de pobreza seja entendida em seu sentido macro, percebemos que grande parte das ações e atuações dos serviços de assistência social a enxergam em seu sentido reduzido, considerando apenas a questão econômico-financeira. O seguinte trecho elucida uma das problemáticas que permeiam uma perspectiva de pobreza reducionista "Quando a psicóloga falou da cultura de pedir benefícios e não trabalhar, questionei sobre os sofrimentos que há por trás da condição de Rejane" (Diário de campo, agosto, 2013).

A população que usufrui dos benefícios e programas governamentais de transferência de renda era inúmeras vezes considerada como "preguiçosa" pelos profissionais do CRAS, sendo que para eles há uma cultura de comodismo devido ao usufruto econômico sem esforço. Também presenciamos falas com tom de condenação como: "ela dorme até às onze da manhã" [sic]. Entendemos que esses tipos de narrativas colocam erroneamente a população em uma massa homogênea de pessoas que não gostam de trabalhar. Nesse discurso sobre a pobreza, muitas variáveis, tais como o sofrimento psíquico, são desconsideradas.

Neste contexto há também o discurso de que algumas políticas de assistência social são desenvolvidas para garantir a autonomia do sujeito. Entretanto, é fundamental que possamos entender que tipo de autonomia é proposta. Nesse caso, destacamos as políticas de cursos profissionalizantes, uma delas conhecida como Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (PRONATEC), que oferece cursos técnicos para jovens. E então, ao se pensar no jovem pobre, pensa-se logo em uma profissionalização para pobres, uma subprofissionalização se assim ousarmos afirmar.

Ao longo do caminho para uma visita domiciliar, a psicóloga nos conta sobre a família que íamos visitar. Fala que foi um pedido enviado por um promotor de Justiça da cidade em relação a três adolescentes que estavam abrigados e que agora tinham voltado para a casa da mãe, e o único pedido do promotor e intuito da visita, era de verificar e encaminhar os adolescentes para cursos profissionalizantes (Diário de campo, junho, 2013).

No recorte do Diário de Campo, percebemos que, nesse contexto, os cursos profissionalizantes aparecem como um meio de promover uma política de eliminação de riscos que mantêm o jovem pobre livre da criminalidade. Accorssi, Scarparo e Guareschi (2012a, 2012b) problematizam a perspectiva de que os programas educativos e disciplinadores são resoluções dos problemas sociais do mundo, questionando a qualificação profissional como solução da fome e das mazelas sociais. Para tanto, utilizam como metáfora uma frase recorrente de crítica às políticas de transferências de renda, como o Programa Bolsa Família (PBF) do Governo Lula (2003), de que não se deve dar o peixe, mas ensinar os pobres a pescarem, e ironiza: "ensine a pescar, mesmo que não haja acesso ao rio, ou não haja peixe" (Accorssi et al., 2012a, p. 539). A partir disso podemos refletir acerca da ideia comum entre alguns profissionais da área da assistência social de que há uma cultura de dependência entre os necessitados.

A Assistente Social comenta que não gosta de oferecer aos usuários do serviço, "benefício por benefício" [sic]. Fala que as pessoas confundem e ficam muito no "assistencialismo" e diz que "se ser assistente social é gostar de conceder benefícios, então não quer essa profissão" [sic]. Conta, ainda, que muita gente comenta que ela nem parece Assistente Social (Diário de campo, julho, 2013).

A fala da profissional em questão nos faz (re)pensar e (re)visitar nossas concepções sobre as políticas assistencialistas. Convida-nos a problematizar o serviço que é oferecido, sendo este apenas focado para a distribuição de benefícios, como o Programa Bolsa Família e cestas básicas cedidas pela Prefeitura Municipal. As visitas domiciliares, que são caracterizadas teoricamente por um atendimento psicossocial no ambiente em que as pessoas vivem, perdem seu caráter quando são realizadas apenas com o objetivo de verificação de necessidade real, para concessão ou não de uma cesta básica à família, deixando de lado a dimensão psíquica dos sujeitos. Assim, o comentário da assistente social nos parece um tanto quanto incoerente, visto que as ações desenvolvidas não se propõem a desenvolver oficinas, grupos e nem ao menos escutar e acolher os sujeitos.

De acordo com Cruz e Hillesheim (2013), as políticas públicas em Assistência Social são compensatórias, utilizando como exemplo o Programa Bolsa Família que, levando em consideração o auxílio financeiro ínfimo, tem o objetivo de diminuir a miséria e não erradicar a fome. As mesmas autoras apontam que as assistências sociais não são ações continuadas, na medida em que o governo espera que os usuários dispensem em algum momento o auxílio. O nosso questionamento surge quando paramos para refletir sobre o que é feito para que esses sujeitos dispensem o auxílio, e, no movimento de nos inserirmos no serviço público de assistencial social, nos deparamos com uma lógica de serviço estática, paralisada, a qual não promove autonomia social.

Podemos pensar nas práticas culpabilizantes dos profissionais do campo da assistência social, desde assistentes sociais a psicólogos, que compreendem o sujeito como o único responsável pelo desenvolvimento social e financeiro de sua família, excluindo-o de um complexo sistema capitalístico. Em nossa experiência, vivenciamos situações que apontam para essa mesma perspectiva, como expressa o relato:

A assistente social do período vespertino contava com indignação o descaso de uma beneficiária em atender ao telefonema dela. Segundo a profissional, nestas ocasiões "sente vontade de suspender o benefício por conta própria" [sic]. (Diário de campo, julho, 2013).

Nesse caso percebemos e presenciamos uma situação em que a postura da profissional remete a uma culpabilização, a uma punição da condição de pobreza, em que o sujeito pobre é considerado submisso ao serviço que o auxilia. De modo que tal condição deixa de ser entendida como uma deficiência social de longa data e se torna um meio para exigir das pessoas recursos para lidar com as suas próprias dificuldades, sem que elas os tenham.

Nesse sentido, é necessário realizarmos uma reflexão sobre a formação técnica dos profissionais que podem atuar na área da assistência social, e questionarmos as discussões que são realizadas e quais os objetivos implícitos na graduação desses sujeitos, considerando os interesses políticos por trás de toda e qualquer formação educacional. Como forma de alcançar posturas mais críticas e reflexivas sobre a formação dos profissionais da área, nos remetemos à proposta de Educação Permanente prevista inicialmente no Sistema Único de Saúde (SUS) e recentemente nas Políticas de Assistência Social, na NOB/RH-SUAS (2006b). Tal proposta configura-se como uma forma de educação continuada dos profissionais, que considera a necessidade da articulação das orientações de gestão instituídas em normas com a análise dos problemas efetivos da prática.

Em nossa experiência não vivenciamos quaisquer movimentos que de fato apontassem para a efetivação de uma educação permanente. O que vivenciamos – com cartilhas entregues pela Secretaria de Desenvolvimento Social e do Trabalho, Fóruns para discussão de casos e palestras – são ensaios de uma formação continuada que ainda desconsidera as inquietações (ou paralisações) reais dos profissionais frente às propostas teóricas de funcionamento do serviço. Há ainda que se considerar que a postura dos profissionais é o que constrói o serviço e, por vezes, antagonicamente às Políticas estabelecidas em tipificações e cartilhas, favorece e sustenta um contexto de desigualdades sociais.

As percepções que tivemos no Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) nos fez constatar que mediante o discurso da necessidade do fortalecimento de vínculos o serviço acolhe – teoricamente – uma demanda de pobreza de uma rede afetiva, de uma participação comunitária e de uma voz, histórica e socialmente silenciada. Entendemos que, em sua atuação, o serviço oferecido pelo CRAS apenas oferece um auxílio financeiro, enxergando o sujeito beneficiado como uma representação simbólica da pobreza e da necessidade apenas de alimento. A nossa experiência evidencia a necessidade de ofertar um auxílio à comunidade que vá além da dimensão econômica e financeira, configurando-se como um suporte que pretende criar, junto com os sujeitos, possibilidades de acesso aos direitos humanos diante da situação de pobreza.

A música "Comida", dos Titãs (1987), escrita por Arnaldo Antunes, Marcelo Fromer e Sérgio Britto, muito bem ilustra, com o trecho "a gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte", que a população pobre brasileira não só deseja o auxílio para a alimentação, mas também precisa de fomentos das mais diversas instancias e singularidades. Assim, Sawaia (2009) reforça que "viver é mais que sobreviver. O homem tem necessidade, sim, de pão, mas igualmente de bons encontros potencializadores de liberdade, felicidade, criação e fruição do belo" (p. 370). Pensando nisso, acreditamos e defendemos que o CRAS deve e pode ser um espaço para o desenvolvimento de bons encontros.

Concordamos com Yasbeck (2012) quando este escreve que os pobres têm um lugar definido na sociedade, uma vez que são o produto das relações que geram um ciclo de desigualdades sociais, políticas, econômicas e culturais. Tais lugares caracterizados por qualidades indesejáveis que são proferidas à pobreza, à procedência de classe, à condição social. Nesse sentido, a própria trama social é sustentadora das desigualdades. Há um agrupamento que oculta as dimensões particulares dos sujeitos e os coloca em um mesmo conjunto homogêneo.

Diante disso, qual o papel da Psicologia nessa tal trama? Como ela pode promover o surgimento de atores sociais não marcados por suas condições de vida? Como valorizar a heterogeneidade da condição de ser pobre?

Teixeira (2010) afirma que a presença do psicólogo na equipe de atenção básica em assistência social demonstra que o aspecto da subjetividade é importante, bem como a emersão das histórias de vida e a reelaboração de significados. A autora assinala o fato de que o trabalho do psicólogo, embora não seja terapêutico, deve ser um meio de abordar os problemas e a vida das pessoas com um sentido pessoal, em contrapartida a apenas uma expressão da questão social/econômica. Evidentemente, é preciso que o profissional da psicologia tenha uma compreensão articulada com as realidades sociais, e que desenvolvam um trabalho potencializador com os sujeitos, caso contrário, seu trabalho pode contribuir apenas para a manutenção dos rótulos e compreensões sobre a pobreza.

Nas diretrizes propostas no Caderno de Referências Técnicas para atuação do Psicólogo(a) no CRAS/SUAS (CFP, 2007) definem a necessidade de romper com um modelo de atuação tradicional para adotar uma perspectiva social mais ampla, não terapêutica, compromissada ética e politicamente com a promoção da vida, o que contrapõe aos modelos individualizantes e normativos de Psicologia. Diante disso, como os grupos ocupam um espaço de trabalho para a Psicologia no CRAS?

 

Trabalhando com grupos

Segundo Lane (1985), o grupo é condição para que o homem supere a sua natureza biológica e se aproprie da sua condição histórica. Isto porque, partindo de uma perspectiva histórico-cultural, compreendemos que o sujeito se constitui, num processo sempre inacabado, inconcluso, resultando do modo como socialmente se apropria e singulariza os significados do contexto.

O sujeito, portanto, constitui-se das coisas e das relações com o mundo de forma única, a partir do momento e do lugar que ocupa no mundo, sendo singular em um específico conjunto de circunstâncias. Deste modo, é por meio do outro – sujeito, contexto, linguagem – que nos constituímos. Portanto, pertencer a um grupo passa a ser para o indivíduo uma referência para sua constituição (Martín-Baró, 1989, p. 207). Defendendo a compreensão de que os grupos são, portanto, espaços intensos de constituição, capazes de, como explica Zanella (2005), deslocar os sujeitos dos lugares sociais historicamente produzidos e que a eles estavam designados, escolhemos os grupos para nosso trabalho no CRAS.

Os grupos que aconteciam no CRAS, anteriormente à nossa proposta de trabalho, eram divididos em grupos sócio-educativos e grupos reflexivos, sendo que ambos aconteciam em formato de palestras, e as temáticas eram escolhidas pela própria equipe ou determinadas por órgãos superiores, como a Secretaria de Desenvolvimento Social e do Trabalho. Também aconteciam grupos com as famílias em descumprimento de condicionalidades do Programa Bolsa Família, em que o objetivo era esclarecer as condições de manutenção ou bloqueio ao programa. Nossa proposta para construção de grupos se diferenciava por se tratar de uma construção coletiva e horizontal e, como aponta Lemos (2013), "não aceitando a judicialização de suas vidas em formulação de dossiê e inquéritos sociais" (p. 179), resistindo à necessidade da política em transformar em estatísticas os sujeitos que ali participavam.

Nosso grupo se inspirou na proposta da educação popular do Paulo Freire (1921- 1997) que visa à valorização do saber popular/comunitário e compreende que o saber do profissional é igualmente importante, portanto, a relação dos profissionais e comunidade é horizontal (Albuquerque & Stotz, 2004). Podemos definir mais especificamente o grupo como espaço coletivo de construção de conhecimento, objetivando uma postura crítica do cotidiano e a busca das transformações micro e macropolíticas (Freire, 1967). O grupo, para Freire (1967), tem como premissa a dialogia que acolhe as diferenças estimulando a fala e a escuta e potencializando a construção coletiva de posicionamentos mais críticos e reflexivos.

Nossos grupos eram iniciados por um recurso estético trazendo à tona narrativas e histórias que coletivamente vão sendo elaboradas e repensadas. Defendemos uma estética enquanto dimensão sensível, enquanto modo específico de relação com a realidade (Zanella, 2006) em que reconhecer nas diferenças a possibilidade de transcender o cotidiano tão naturalizado. Para cada encontro escolhemos recursos disparadores da conversa e potencializadores de um diálogo que atravessa afetivamente o sujeito, de modo que as falas se abrem para a produção de múltiplos sentidos. Nossos encontros questionam os certos e errados já instituídos como modos de vida e permitindo a construção de outras possibilidades de se pensar o viver.

 

Um espaço para "os ninguéns"

Nosso trabalho como estagiárias de Psicologia no CRAS inicia com o acompanhamento da rotina: acolhimento, visitas domiciliares e as ONGs, escolas e serviços de saúde que compõem a rede de assistência do território, acompanhamento nos grupos já oferecidos pelo CRAS. Nesse início nos damos conta que o serviço se aproxima da população, mas em momento algum, verdadeiramente, permite que as pessoas falem, que contem sobre seus sentimentos e de fato tenham espaço de reflexão. Quase sempre suas falas são substituídas por conselhos ou cobranças, como se as tais vulnerabilidades sociais tão discutidas nos serviços de assistência fossem resultados de escolhas malfeitas e, portanto, sinônimos de culpa. Optamos por construir um espaço de escuta e a partir desse momento, a cada visita, a cada acolhida no serviço passamos a convidar as pessoas para compor um grupo de discussão.

Nosso grupo acontecia semanalmente em uma sala do CRAS e era exclusivamente composto por mulheres. Isto porque naquele dispositivo quase sempre eram as mulheres que procuravam os serviços de assistência e acabavam por se comprometer com os programas oferecidos. Para que essas mulheres pudessem participar tranquilamente dos encontros, no mesmo horário, no espaço gramado, acontecia um grupo de crianças coordenado por outras estagiárias que também possuía um caráter de promoção dos sujeitos, com propostas lúdicas, de contação de história e produções de brinquedos com objetos recicláveis, proporcionando um espaço de experimentações.

As integrantes do grupo de mulheres vinham dos vários bairros de abrangência do CRAS e tinham, quase sempre, histórias de sofrimento marcadas pela pobreza em que se encontravam. Histórias confusas tanto por não serem contadas em uma ordem cronológica dos fatos, mas em uma ordem de afetação, quanto por que todas as mulheres em muitos momentos passam a falar ao mesmo tempo, como se não pudessem perder esse espaço de fala.

Nossos encontros vão acontecendo e as mulheres contam sobre suas vidas, contam de gravidez indesejada na juventude, umas contam de falta de sexo com o marido enquanto outras de nunca terem feito sexo apesar de seus quase 60 anos, contam das "bebedeiras" e grosserias de certos maridos, contam de terem ocupado uma terra para morar e a relação com o Movimento Sem Teto do Brasil (MSTB), e do quanto têm sofrido, mas continuam tendo fé, falam dos filhos e sobrinhos que criam, dos problemas escolares das crianças, revelam seus escritos e seu analfabetismo.

Em um determinado encontro, Rejane, uma mulher do grupo, moradora da ocupação de terra na área de abrangência do CRAS e que estava com o auxílio do PBF suspenso, muito provavelmente devido à mudança de endereço, e consequentemente, à mudança na escola das crianças e a não atualização do Cadastro Único (CAD único), conta "Que vai achar bom ir ao CRAS porque ultimamente está muito ansiosa e comendo muito, e que sair de casa será bom" (Diário de campo, junho, 2013).

Neste recorte percebemos o espaço importante que Rejane ocupa e produz no grupo. Contar que está ansiosa e comendo muito, em um lugar que é instituído para distribuir benefícios para quem está em situação de extrema pobreza, ou seja, para quem passa fome, foi um sinal de que o grupo estava se constituindo em um espaço dialógico, distante de uma postura fiscalizadora e delatora, estava sendo o espaço de fala e escuta ampliada, que antes não existia.

O grupo torna-se para essas mulheres um espaço em que se pode falar sobre tudo, sem julgamentos e restrições. Percebemos que conseguimos junto delas construir um lugar de fala e escuta, quando contam sobre suas intimidades, as histórias de vidas carregadas de sofrimentos e, fundamentalmente quando nos falam sem medo de estar sendo fiscalizadas. Além disso, o grupo se constituiu em espaço de formação de vínculo comunitário, espaço para estar com o outro.

Marta se apresenta e relata para o grupo sua crise sobre a falta de participação das mulheres que vão a apenas um encontro do grupo e que nunca mais voltam, que assim não tem como ter entrosamento entre as pessoas, que ela gostaria de ir na casa uma das outras e conta que está lançando uma campanha de ser persistente e ir a todos os encontros do grupo e pede que elas que estavam nesse dia se comprometam a ir nos outros encontros (Diário de campo, agosto, 2013).

Constituir-se a partir do outro, através do compartilhamento de histórias e reflexões. Assim, as mulheres que compunham o grupo também entravam em contato com sujeitos de realidades diferentes, com vivências singulares que não se alinhavam com a realidade do outro, tão perto territorialmente, mas enquanto mulheres da mesma comunidade, distantes.

Cláudia conta sobre seus vizinhos que são envolvidos na criminalidade, relata alguns episódios de violência, e que se sente insegura, principalmente por ter filhos pequenos. Marta fica um pouco assustada com a realidade que Cláudia conta e apresenta possibilidades para mediar esse medo que ela estava sentindo. Sugere uma intervenção policial, da prefeitura e/ou do líder da comunidade, mas Cláudia conta que prefere deixar quieto pelo medo, e que também acha que nenhuma dessas três possibilidades resolveria.... Marta, em mais uma tentativa de solucionar o que foi apresentado por Cláudia, pergunta se não seria possível a prefeitura fazer um muro separando as "casas" [sic], e Rejane responde falando que "se a prefeitura pudesse, colocaria fogo" [sic] (Diário de campo, agosto, 2013).

Neste recorte percebemos que mesmo estando inseridas em um mesmo contexto, as singularidades dos sujeitos emergem pelas falas, ingenuidades e solidariedades. A participante Marta, que frequentava o grupo assiduamente, mas que sempre ao se despedir entoava que talvez não aparecesse no próximo, sensibilizava-se a cada história que era contada e, com isso, mobilizava-se e buscava construir um vínculo comunitário com as mulheres do grupo.

Em todos os encontros, sempre que tínhamos algum participante novo, solicitávamos a todos que se apresentassem. Em um determinado encontro, Rejane choca a todos com sua fala: "Rejane que participa há muitos encontros, ao se apresentar diz que "eu não sou ninguém" [sic]. (Diário de campo, agosto, 2013).

Pensar na constituição de um grupo que ultrapassa a temática da pobreza e amplia os conceitos de ser pobre, considerando o sujeito além da situação socioeconômica e possibilitando um espaço de promoção de saúde, em seu sentido amplo, de bem-estar físico, psíquico e social. Retomando mais uma vez a canção dos Titãs (1987), o trecho "a gente não quer só comer, a gente quer prazer pra aliviar a dor", "a gente" quer um espaço para dizer e pensar sobre os sentimentos de "não ser ninguém" e, assim, consideramos que o grupo de mulheres se constituiu como um espaço para aliviar a dor, mas que por si só não era suficiente.

 

Considerações finais

Diante das tendências do trabalho social no CRAS, é possível dizer que, apesar dos avanços conceituais da política de Assistência Social, principalmente do enfoque da pobreza e da articulação de respostas em benefícios, serviços, atenções e procedimentos variados, de atendimento individualizado e coletivo, e entre as políticas setoriais, o trabalho socioeducativo não superou ainda a psicologização dos problemas sociais, o trato de problemas internos à família e de sua responsabilização por estes (Teixeira, 2010).

Em nossa experiência percebemos que são comuns explicações que culpabilizam o sujeito por sua condição de vulnerabilidade, atribuindo-lhe uma irresponsabilidade ou desmotivação no que diz respeito a mudar sua situação. A condição de ser visto socialmente como um ninguém carrega pesos que vêm da aceitação dos problemas sociais como já dados, normais ou esperados.

A prática dos profissionais que compõem os serviços de assistência social frequentemente legitima a perpetuação da desigualdade social, por meio do trato da pobreza que a considera como uma responsabilidade somente do próprio sujeito e nega a sua amplitude e dimensão social. Assim, intervenções que promovam o protagonismo e não reproduzam discursos ingênuos e acríticos sobre a pobreza são um caminho para práticas de assistência social coerentes e alinhadas com o discurso político atual. Os grupos, nesse sentido, aparecem como um recurso para que as diferentes vozes e situações de fragilidade sejam ouvidas e recebam cada qual uma atenção particular.

Sawaia (2009) escreve que a Psicologia deve assumir um importante papel em relação às políticas de Assistência Social, como sendo uma das responsáveis por "evitar mecanismos de inclusão social perversa" (p. 364). Assim, pensamos que uma das possibilidades é o oferecimento de grupos de discussão, e nos propomos a construir esses espaços de conversas e reflexões sobre a vida e o viver, o que contribui para compreendermos as variadas dimensões psíquicas e sociais do sujeito, afastando o estereótipo do pobre desvalido de vontades e desejos.

Dessa forma, podemos enxergar que as políticas públicas de Assistência Social, se não muito bem desenvolvidas e aplicadas, promovem apenas uma inclusão aparente, mas mantém o excluído muito distante de uma inclusão cidadã. Assim, o processo de reflexão sobre os questionamentos apontados por este relato evidencia a necessidade de um pensar dialético com o desenvolvimento da prática.

 

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Endereço para correspondência

Eliane Regina Pereira
E-mail: eliane@ipsi.ufu.br

Recebido: 19/07/2015
1ª revisão: 10/09/2015
Aceito: 05/10/2015

 

 

1 Aline Amaral Sicari é psicóloga pela Universidade Federal de Uberlândia.
2 Tamara Rossi de Oliveira é graduanda em Psicologia pela Universidade Federal de Uberlândia.
3 Eliane Regina Pereira é docente do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia.

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