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Revista da SPAGESP
versão impressa ISSN 1677-2970
Rev. SPAGESP vol.18 no.2 Ribeirão Preto 2017
ARTIGOS
Ética na pesquisa com crianças e adolescentes em situação de rua: considerações a partir da Resolução nº 510/2016
Ethics in research with children and adolescents in street situation: considerations based on Resolution n. 510/2016
Ética en la investigación con niños y adolescentes en situación de calle: consideraciones a partir de la Resolución n. 510/2016
Normanda Araujo de MoraisI, 1; Rebeca Fernandes Ferreira LimaI, 2; Lucas VezedekII, 3; Juliana Prates SantanaII, 4; Sílvia Helena KollerIII, 5
IUniversidade de Fortaleza, Fortaleza-CE, Brasil
IIUniversidade Federal da Bahia, Salvador-BA, Brasil
IIIUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS, Brasil
RESUMO
Esse artigo descreve dilemas éticos vivenciados em um estudo longitudinal sobre o impacto da rua na vida de crianças e adolescentes em situação de rua, dando especial relevo às contribuições trazidas pela Resolução n. 510/2016 na forma de lidar com cada uma dessas situações. Verificou-se que os desafios éticos na pesquisa com crianças e adolescentes em situação de rua são amplos e implicam a vinculação entre pesquisadores e participantes; a ênfase no bem-estar dos participantes; o papel protetivo da equipe de pesquisa; a necessidade de adequação metodológica dos estudos; a relativização do que é considerado típico a cada etapa desenvolvimental; e a segurança da equipe de pesquisa. Além disso, têm por base a crença na dignidade da criança/adolescente, a compreensão destes enquanto sujeitos de direitos e como atores sociais, protagonistas do processo de pesquisa.
Palavras-chave: crianças; adolescentes; ética; direitos da criança; pesquisa.
ABSTRACT
This article describes ethical dilemmas experienced in a longitudinal study on the impact of street life on children and adolescents in street situation, with special emphasis on the contributions carried out by Resolution n. 510/2016 in how to deal with each of these situations. It was verified that the ethical challenges in the research with children and adolescents in street situation are broad and imply the connection between researchers and participants; emphasis on the well-being of participants; the protective role of the research group; the need for methodological adequacy of the study; the relativization of what is considered typical of each development stage; and the safety of the research group. Furthermore, they are based on the belief on dignity of the child/adolescent, the understanding of these as subjects of rights and as social actors, protagonists of the research process.
Keywords: children; adolescents; ethics; child rights; research.
RESUMEN
Este artículo describe los dilemas éticos experimentados en um estudio longitudinal sobre el impacto de la vida en la calle en niños y adolescentes en situación de calle, con especial énfasis en lãs contribuciones realizadas por la Resolución n. 510/2016 sobre cómo lidiar con cada una de estas situaciones. Se verificó que los desafíos éticos en la investigación com niños y adolescentes en situación de calle son amplios e implican la vinculación entre investigadores y participantes; el énfasis en el bienestar de los participantes; el papel protector del equipo de investigación; la necesidad de adecuación metodológica de los estudios; la relativización de lo que se considera típico a cada etapa desarrollista; y lãs eguridad del equipo de investigación. Además, se basan en la creencia en la dignidad del niño / adolescente, la comprensión de éstos como sujetos de derechos y como actores sociales, protagonistas del proceso de investigación.
Palabras clave: niños; adolescentes; ética; derechos del niño; investigación.
A pesquisa com crianças e adolescentes em situação de rua envolve dilemas éticos específicos, os quais demandam dos pesquisadores especial atenção e vigilância para garantir a proteção dos direitos dessa população (Koller, Raffaelli, & Carlo, 2012). Tratam-se de situações que emergem no contexto de pesquisa e têm especial conexão com a forma como essa população vive, a qual se caracteriza por uma história de violação de direitos; uma intensa circulação entre espaços diferentes das cidades; envolvimento com atos ilícitos; além de outras situações que podem colocar a sua vida em risco (Morais, Neiva-Silva, & Koller, 2010).
No cotidiano de pesquisa tais características impactam os pesquisadores e suas equipes de muitas formas, por exemplo, quando são abordados por alguma criança/adolescente lhe pedindo dinheiro, comida ou outro objeto qualquer; quando têm que fazer algum encaminhamento ou acionar a rede de acolhimento institucional ou serviços de saúde; quando os participantes lhes relatam algum caso de violência que sofreram na instituição e os pesquisadores se questionam sobre como proceder; ou, ainda, quando discutem sobre quem é o responsável por consentir a participação dessas crianças/adolescentes (menores de 18 anos) na referida pesquisa. Esses são alguns dos dilemas éticos mais comumente vivenciados pelos pesquisadores, os quais foram discutidos em trabalhos anteriores sobre a questão ética na pesquisa com essa população (Koller et al., 2012; Neiva-Silva, Morais, & Koller, 2010).
Os principais dilemas discutidos por esses estudos são a análise do risco trazido pela pesquisa, a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), o sigilo e confidencialidade de informações, o limite entre pesquisa e intervenção, a questão do ressarcimento pela participação na pesquisa, recebimento de presentes pelos pesquisadores(as) e a relevância do processo de devolução dos achados da pesquisa (Neiva-Silva et al., 2010). No estudo de Koller et al. (2012) são discutidos o conceito de "risco mínimo", a possibilidade (ou não) de uso de incentivos e do balanço necessário entre respeito à privacidade dos participantes e bem-estar dos mesmos. Além disso, os autores ressaltam a importância de que os resultados dos estudos com crianças e adolescentes em situação de rua, quase sempre realizados com pequenas amostras e em uma única cidade ou país, não sejam generalizados para outros contextos, sob pena de serem mal interpretados.
Outros estudos acerca da ética na pesquisa com crianças e adolescentes, não necessariamente em situação de rua, são unânimes em reforçar a necessidade do reconhecimento destas como atores sociais, sujeitos de direitos e participantes ativas (protagonistas) do processo de pesquisa (e.g. Francischini & Fernandes, 2016). A importância de "escutar a sua voz" e valorizar a cultura de comunicação da criança reconhece a sua competência para se expressar e produzir interpretações sobre a realidade, objetos ou eventos. Ao mesmo tempo, enfraquece práticas de pesquisa que não prezam por esses aspectos e geram conclusões (suposições) baseadas naquilo que os adultos pensam que as crianças disseram ou pensam; e não efetivamente no que estas pensam e sentem (Christensen, 2004; Christensen & Prout, 2002; Francischini & Fernandes, 2016). Além disso, a partir da sociologia da infância, Fernandes (2016) mostra a indispensabilidade de se focalizar nas questões de poder que se estabelecem entre adultos e crianças; as hierarquias protocolares e a (in)visibilidade epistemológica das crianças na pesquisa; e, finalmente, discute as questões da autoria das crianças e dos adultos nos textos de pesquisa, ou seja, de que forma a ética é também importante nos momentos de análise e interpretação dos dados.
Ao considerar as questões éticas em pesquisas com crianças e adolescentes, em geral, entende-se que os limites e pressupostos éticos que direcionam essas pesquisas (inclusive aquelas em situação de rua) não devem se restringir a diretrizes burocráticas ou legalistas. Ao contrário, devem compreender o processo de pesquisa como um todo, desde as concepções epistemológicas que o orientam (sobre infância, adolescência, vulnerabilidade, etc.), passando pelas questões metodológicas (quais técnicas de coleta de dados serão utilizadas, se garantem ou não a participação/entendimento das crianças, etc.) e, sobretudo, aspectos da relação pesquisador-participante.
É nessa perspectiva que o presente artigo descreve alguns dilemas éticos vivenciados pelos pesquisadores em um estudo longitudinal sobre o impacto da rua na vida de crianças e adolescentes em situação de rua em três capitais brasileiras (Porto Alegre, Fortaleza e Salvador) no período de 2012 a 2014. Mais especificamente, buscar-se-á situar os encaminhamentos que foram dados a cada dilema à luz da Resolução n. 510 de 07 de abril de 2016, que trata das especificidades éticas das pesquisas nas ciências humanas e sociais (CHS).
Com base na experiência de mais de vinte anos de três equipes brasileiras de pesquisa – Centro de Estudos Psicológicos (CEP-RUA/Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Laboratório de Estudos dos Sistemas Complexos: casais, família e comunidade (LESPLEXOS/ Universidade de Fortaleza) e Grupo de Estudos Interdisciplinares Infâncias, Crianças e Contextos (GEIC/Universidade Federal da Bahia) –, foi possível desenvolver o estudo longitudinal que subsidia o presente artigo.
A referida investigação fundamentou-se na Teoria Bioecológica de Urie Bronfenbrenner (Bronfenbrenner, 1979/1996; Bronfenbrenner, 2005; Bronfenbrenner & Evans, 2000; Bronfenbrenner & Morris, 1998) e para sua operacionalização utilizou-se a Inserção Ecológica (Cecconello & Koller, 2003; Koller, Morais, & Paludo, 2016). Este método consiste na inserção do(a) pesquisador(a) no ambiente natural dos participantes, durante um período estendido, promovendo a vinculação entre os protagonistas e seus contextos de vida para viabilizar o processo de coleta de dados. Além disso, implica a sistematização dos dados coletados a partir das quatro dimensões de análise do desenvolvimento humano propostas na teoria bioecológica: pessoa, processo, contexto e tempo (Morais, Koller, & Raffaelli, 2016).
O estudo longitudinal foi organizado em cinco etapas (treinamento das equipes; mapeamento das redes de atenção; inserção ecológica; aplicações dos instrumentos e acompanhamento dos participantes; e sistematização dos dados), sendo realizados três tempos de coleta de dados com seis meses de intervalo entre elas. No Tempo 1, participaram 113 crianças e adolescentes com idades entre 9 e 18 anos das três cidades (M = 14,2; DP = 2,41), sendo 81% do sexo masculino. Os participantes foram recrutados em unidades de acolhimento institucional (82%), serviços abertos que oferecem atendimento a crianças e adolescentes em situação de rua (14%), ou na rua (4%). No tempo 2, a retenção amostral foi de 71,7% (n = 81) e 62% em T3 (n = 70). Para aprofundamento das análises longitudinais acerca do perfil dos participantes, ver Santana, Raffaelli, Morais e Koller (in press).
A RESOLUÇÃO Nº 510/2016 E SUAS CONTRIBUIÇÕES ÀS CIÊNCIAS HUMANAS E SOCIAIS
A existência dos mais de 700 Comitês de Ética em Pesquisa (CEP) no país, bem como das Resoluções do Conselho Nacional de Saúde (CNS) representam um avanço na proteção aos direitos humanos dos participantes em pesquisa no Brasil (Guerriero, 2016b). Entretanto, essas Resoluções (196/1996 e 466/2012) foram elaboradas a partir de um paradigma biomédico e positivista de ciência, visando, sobretudo, a regulação dos testes de medicamentos em humanos.
No entanto, quando se trata das pesquisas em CHS, que trabalham com outros pressupostos de ciência (e.g. não neutralidade, importância da relação pesquisador-participante, inserção nos contextos de vida dos participantes, etc.), verificou-se que a aplicação dos pressupostos das resoluções existentes se mostrava insuficiente (Guerriero, 2016b). Tal realidade gerou impasses entre os pesquisadores e os comitês de ética em pesquisa, uma vez que estes eram "acusados" de não conseguir entender as especificidades das abordagens teóricas e consequentemente das metodologias empregadas nas CHS, insistindo em julgar tais trabalhos a partir das suas lentes biomédicas. Consequentemente, levantou-se a demanda por uma Resolução que considerasse mais amplamente as especificidades das CHS.
Para tanto, foi composto o Grupo de Trabalho em Ciências Humanas e Sociais (GT CHS) na Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP). O GT CHS/CONEP funcionou de agosto de 2013 até março de 2016, quando foi concluída a redação da Resolução n. 510/2016, posteriormente aprovada pelo CNS em abril do mesmo ano.
De acordo com Guerriero (2016a), as principais contribuições da Resolução n. 510/2016 referem-se: 1) à composição equitativa da CONEP e participação de membros das CHS na revisão dos protocolos dessas áreas; 2) ao reconhecimento de que o mérito científico deve ser avaliado pelas instâncias competentes, cabendo ao CEP/CONEP manter o foco na proteção dos participantes de pesquisa; 3) à ampliação das formas de registro do consentimento e do assentimento para as seguintes modalidades – escrita, sonora, imagética ou outras formas que atendam às características da pesquisa e dos participantes; e, por fim, 4) à explicitação dos tipos de pesquisas que não necessitam da apreciação do Sistema CEP/CONEP (e.g. revisões sistemáticas, pesquisa de opinião pública com participantes não identificados, pesquisas com banco de dados sem possibilidade de identificação individual, etc.).
DESAFIOS ÉTICOS NA PESQUISA COM CRIANÇAS E ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO DE RUA
Para a construção deste artigo foram escolhidos oito dilemas éticos vividos pelos autores ao longo do citado estudo longitudinal, sendo que foram descritos fragmentos de nove casos reais, com a finalidade de demonstrar o dilema ético vivenciado, os encaminhamentos que foram dados e as lições aprendidas pela equipe. Espera-se que os mesmos possam servir de subsídios para investigações futuras.
1. A PROXIMIDADE ENTRE PESQUISADORES E PARTICIPANTES
A Resolução n. 510/2016 pautou as etapas preliminares de uma pesquisa, legitimando práticas informais anteriores (e.g., visitas às comunidades e instituições, conversas com liderança comunitária e profissionais) ao momento de coleta de dados que contribuem para a contextualização dos pesquisadores no ambiente ecológico dos possíveis participantes. Essa estratégia tem sido utilizada nas pesquisas com populações em vulnerabilidade, visto ser imprescindível o respeito dos pesquisadores aos valores sociais e culturais da população participante que podem se diferenciar dos seus costumes, evitando-se assim interferências negativas de cunho moral.
Conforme referido anteriormente, a inserção ecológica como estratégia metodológica propicia o encontro com os participantes em seus variados contextos de desenvolvimento (e.g., instituições de acolhimento, centros educacionais, praças, etc.), bem como o contato com diversos atores da rede social dos mesmos, tais como profissionais, familiares e amigos. Essa estratégia garante a validade ecológica dos dados de pesquisa e a compreensão ampliada dos contextos de desenvolvimento, a partir da triangulação dos dados. Tal método favorece, também, o acompanhamento dos participantes ao longo do tempo em delineamentos longitudinais, devido à obtenção detalhada de dados sobre hábitos, lugares de circulação, redes de apoio, entre outros aspectos do cotidiano de vida dos participantes (Morais et al., 2016).
Contudo, em muitos momentos, a proximidade entre os pesquisadores, rede social de apoio, bem como com os próprios participantes levantam alguns desafios e apontam para limites e fronteiras possíveis na relação entre os envolvidos. A confiança entre pesquisadores e participantes é fundamental e deve ser preservada. Para tanto, é preciso acordar os pilares e limites da relação, bem como o que sustentará o sigilo desde o primeiro contato.
CASO 1 – RAUL
BUSCA DE INFORMAÇÕES PESSOAIS SOBRE O ENTREVISTADOR
O caso de Raul, acompanhado dos 17 aos 20 anos, ilustra bem a demanda dos participantes em estabelecer relações de amizade no contato com os pesquisadores. Raul costumeiramente interrogava o pesquisador sobre a sua vida pessoal. Algumas vezes durante o processo de aplicação dos instrumentos de pesquisa devolvia as questões ao pesquisador. Para Raul, a coleta de dados era vista como uma atividade entre amigos, portanto, esperava uma troca de confidências. Em vários momentos, o pesquisador precisou retomar os objetivos da pesquisa e do processo de coleta de dados, o que exigiu manejo constante para manter o vínculo e evitar desconfortos entre eles. Ao fim da última entrevista do primeiro ciclo da pesquisa, o participante interpelou o pesquisador: "Você sabe um 'bucado' de coisa de mim e eu não sei quase nada de você. Agora que acabou a gente vai ficar se falando? Me dá seu telefone". O pesquisador precisou, delicadamente, explicar a Raul que seu telefone era privado e que a pesquisa havia acabado. Esclarecidos estes pontos, ficou acordado, então, visitas esporádicas por parte do pesquisador, sendo que estas ocorreram no ano subsequente ao final da pesquisa, o que possibilitou manter um bom relacionamento entre ambos, garantindo o bem-estar do participante.
2. "PESQUISA DE TEMPO INTEIRO?": MOMENTOS, LOCAIS E FONTES DE COLETA DE DADOS
A realização de pesquisas com pessoas em situação de rua faz com que os pesquisadores frequentemente se encontrem com os participantes em situações não programadas, fora dos momentos e locais designados para coleta de dados. Por um lado, são oportunidades importantes de conhecer mais sobre os contextos de vida dos participantes, o que torna a investigação uma "pesquisa de tempo inteiro", com uma perspectiva plena de inserção ecológica, mas ao mesmo tempo impõe uma série de dilemas éticos. Afinal, quem é o(a) pesquisador(a) naquele momento? Simples transeunte que observa uma cena cotidiana? Velho conhecido, ou até mesmo, um amigo? Quais fatos e ações passam despercebidos? Quais podem se tornar invisíveis? E quando a cena retrata uma violação de direitos, como devem agir os pesquisadores? No âmbito da pesquisa com a inserção ecológica optou-se por utilizar todos os dados obtidos, relatados e observados como fontes de informações. Assim foi formada uma base para contextualizar e auxiliar na análise e na interpretação dos dados.
É comum que os pesquisadores obtenham informações sobre os adolescentes a partir de outras fontes, como fichas institucionais, relatos de profissionais, contatos com familiares e até outras crianças e adolescentes. Essas informações são relevantes para compreensão sistêmica da trajetória de vida dos participantes, porém é necessário o cuidado ético na obtenção e no uso desses dados, visto que o relato principal a ser considerado deve ser o do(a) participante.
As instituições de atendimento e os técnicos e profissionais que atuam nos serviços são importantes fontes de informações para a pesquisa, sendo o contato com esses crucial para compreender a dinâmica e funcionamento da vida das crianças e adolescentes em situação de rua. Há, no entanto, um desequilíbrio entre as informações que são transmitidas entre pesquisadores e instituição, o que pode gerar ruídos na comunicação e frustrações. As instituições fornecem aos pesquisadores informações sobre os participantes esperando obter, reciprocamente, dados privilegiados sobre os mesmos. Já os pesquisadores, apesar de necessitarem dessa parceria para obter dados e garantir um acompanhamento qualificado, não podem romper com os princípios de sigilo assumidos com os participantes do estudo.
Nesse sentido, essa relação é marcada por uma reciprocidade limitada, uma vez que essa troca de informações deve ser balizada por critérios éticos. Sempre que necessário os pesquisadores devem retomar objetivos e procedimentos da pesquisa e as questões relacionadas à confidencialidade, conforme explicitados no Termo de Concordância Institucional. Isso favorece não somente o fortalecimento dos vínculos entre as equipes, mas também a proteção dos direitos e promoção do bem-estar dos participantes.
CASO 2 – BENTO
CONHECIMENTO INDIRETO DE FATOS
Um exemplo de obtenção de dados por fontes secundárias pode ser verificado no caso de Bento. De acordo com o relato de um técnico de referência da instituição, na qual foi acompanhado dos 15 aos 18 anos, Bento costumava receber dinheiro em troca de atividades sexuais. Tal informação nunca foi relatada pelo participante, seja nas conversas informais ou nos momentos de coleta. No entanto, em dois momentos distintos o pesquisador pode observar o adolescente na rua em atitude indicativa de que buscava clientes. Mesmo Bento tendo reconhecido o pesquisador, ele o ignorou. Num terceiro momento, Bento o encontrou na rua e tomou iniciativa em conversar com ele. Nesta ocasião, Bento não parecia estar buscando clientes sexuais. Desta forma, a equipe possuía a informação, que possibilitava compreender muito da trajetória de vida do participante, mas o "dado" obtido através da aplicação do instrumento negava a experiência de violência sexual ou o número de parceiros(as). Nesse caso, mesmo o forte vínculo do participante com a equipe de pesquisa não permitiu que essa informação fosse compartilhada por ele. Pode-se supor que a vergonha, o medo de rejeição e/ou o receio da LGBT fobia possam ter influenciado sua decisão de não partilhar tais dados.
Restam os questionamentos: quais dados utilizar na análise? Os dados obtidos na aplicação dos instrumentos, que negam a violência sexual? Os dados que falam da existência de um ou dois parceiros entre os momentos de aplicação dos instrumentos? Ou as informações obtidas através dos técnicos e profissionais ou mesmo dos outros adolescentes que relatavam as atividades de sexo em troca de dinheiro ou outros objetos (com evidências nas observações)? Ou ainda, os depoimentos para os técnicos sobre a existência de pelo menos cinco parceiros sexuais em menos de um mês? Optou-se por utilizar os dados obtidos na aplicação dos instrumentos na análise dos dados quantitativos, mas para a construção do caso utilizou-se todas as informações obtidas, o que possibilitou a compreensão mais aprofundada e contextualizada da trajetória de vida de Bento.
3. POTENCIAIS BENEFÍCIOS DA PESQUISA PARA OS PARTICIPANTES
O ressarcimento das despesas decorrentes da participação na pesquisa é permitido pela Resolução n. 510/2016. No entanto, tem-se optado pela não retribuição financeira nas pesquisas com crianças e adolescentes em situação de rua. Defende-se que a obtenção e qualidade dos dados é sustentada pela vinculação significativa entre pesquisador e participante, sendo que, enfatizam-se os benefícios relacionados à promoção da qualidade de vida dos participantes, principalmente derivado da função dos pesquisadores como fontes de proteção.
O caráter longitudinal da presente pesquisa possibilitou a construção de uma relação significativa entre pesquisadores e participantes, fazendo com que os pesquisadores fossem elevados pelos participantes à condição de "amigos" e também convocados a assumir o lugar de conselheiros ou figura da rede de apoio deles. Isso garantiu um papel, de certa forma, privilegiado na função de proteção dessas crianças e adolescentes, mas acrescentou outras responsabilidades aos pesquisadores, demandando assim cuidados éticos no uso e na preservação das informações compartilhadas.
Os pesquisadores forneciam aos participantes informações sobre a rede de proteção, formas de acesso a serviços básicos de atendimento, orientações de redução de riscos e danos, cuidados de saúde e escuta qualificada. Também eram trabalhados temas concernentes ao desenvolvimento ao longo do ciclo vital, em especial, questões sobre sexualidade e gênero. Estas eram demandas dos adolescentes por considerarem os pesquisadores como figuras sensíveis de acolhimento. Além de acolher os participantes, os pesquisadores apontavam outras figuras de apoio emocional, compreendendo a sua transitoriedade na vida dos participantes. Esta traz questões éticas a serem consideradas, sendo por isto necessário um contrato bem estabelecido de entrada e saída do campo de pesquisa.
4. O PARTICIPANTE E O SEU BEM-ESTAR COMO PRIORIDADES
A imprevisibilidade e a rotatividade da vida das crianças e dos adolescentes em situação de rua merecem análise, pois mobilizam os pesquisadores e influenciam a sua relação com os participantes. Cada encontro é, ou deveria ser, considerado como único, seja para coleta de dados, para o fornecimento de informações para os participantes ou, mesmo, para ofertar uma escuta ativa e ética de suas demandas. Este aspecto é ainda mais evidente nas pesquisas longitudinais.
Os direitos das crianças e adolescentes devem ser primados em detrimento dos procedimentos de pesquisa. O bem-estar destes deve ser prioridade, especialmente se tratando de pessoas em situação peculiar de desenvolvimento, que se encontram em contextos de vulnerabilidade e risco. Em todas as etapas da pesquisa, os pesquisadores devem se manter atentos às condições de vida da população, a seus valores e ao entorno, para que, utilizando de criatividade e flexibilidade, possam adaptar métodos e atitudes que respondam às especificidades do contexto real dos participantes.
Uma vez que a pesquisa com a população em situação de rua se operacionaliza a partir da inserção dos pesquisadores no contexto de vida dos participantes e não em um ambiente isolado de laboratório, uma série de interveniências se apresentam. Nesse meio não controlado, seja pela escolha dos participantes ou pelas condições ambientais, a privacidade e suas demais necessidades devem estar no primeiro plano, como enfatiza a Resolução n. 510/2016.
CASO 3– LEANDRO
A PRIVACIDADE DO PARTICIPANTE
A busca ativa dos participantes em seus contextos de desenvolvimento pode causar exposição dos mesmos, o que exige cautela dos pesquisadores, visto que é necessário considerar o anonimato, o desejo/interesse dos participantes de manter em sigilo suas histórias/trajetórias de vida. O caso de Leandro, acompanhado dos 17 aos 20 anos, evidencia essa questão. Ao sair da instituição após a maioridade, o participante ingressou num trabalho optando manter oculta sua passagem por contextos institucionais e de rua. Uma vez que a continuidade da participação do adolescente na pesquisa poderia acarretar na exposição do mesmo, equipe decidiu interromper o acompanhamento mesmo que isso implicasse uma redução amostral.
CASO 4– FRANCISCO
O TEMPO DO PARTICIPANTE
Nem sempre era possível realizar a coleta de dados nos momentos marcados antecipadamente com os participantes, pois eram priorizados o seu bem-estar e a disponibilidade. No caso de Francisco, acompanhado dos 11 aos 12 anos, foi necessário o reagendamento de um dos momentos de coleta de dados, pois no dia previamente combinado com a pesquisadora estava acontecendo um evento na instituição. A pesquisadora notou que ele estava claramente dividido entre as duas tarefas e por isso esclareceu que a pesquisa poderia ser realizada em outro momento. Dessa forma, a aplicação foi interrompida com a concordância do participante, preservando-se a autonomia e disponibilidade dele.
5. A EQUIPE DE PESQUISA COMO AGENTE DE PROTEÇÃO
Um dos constantes e frequentes dilemas enfrentados por quem trabalha com a população em situação de rua é a questão de denúncia de violências vivenciadas pelos participantes, sejam estas institucionais, sejam no âmbito familiar e/ou no contexto de rua. No caso das instituições de atendimento, as situações de violência são muitas vezes perpetradas pelos técnicos, profissionais e funcionários que deveriam ser responsáveis pelo cuidado.
CASO 5– JOSÉ
VIOLÊNCIA INSTITUCIONAL
Durante a pesquisa, José denunciou violências física e psicológica sofridas por ele em uma instituição. Relatou que o educador social o trancava no quarto para sair para festas à noite e praticava outras agressões como punição ao seu comportamento. A pesquisadora imediatamente cessou as atividades de pesquisa e passou a escutar o relato do adolescente com atenção, buscando entender o caso. Em seguida, a pesquisadora encaminhou, em concordância com José, a informação aos superiores da instituição. Houve acompanhamento da equipe de pesquisa sobre a resolução do caso com o afastamento do agressor. Por um lado, denunciar situações de violência é um dever ético e profissional, por outro coloca-se sempre como uma situação que exige cautela. Os pesquisadores devem ponderar que a denúncia precisa ser cuidadosamente investigada, buscando salvaguardar a vida, o trabalho, as relações institucionais, os laços familiares e comunitários e, principalmente, os direitos dos envolvidos.
É preciso que toda denúncia, assim como todo encaminhamento seja responsável e implicado, o que consiste na avaliação das consequências e acompanhamento do caso em seu desdobramento, tanto em relação à efetividade do encaminhamento como junto ao participante envolvido nessa situação. Diante da necessidade de intervenção imediata do pesquisador para proteção da criança/adolescente, o contrato inicial de sigilo e confidencialidade das informações obtidas na pesquisa deve ser renegociado com prudência para evitar qualquer prejuízo ao participante (Neiva-Silva et al., 2010).
6. ADAPTAÇÃO DE INSTRUMENTOS AO CONTEXTO DE VIDA DOS PARTICIPANTES
O uso de material formal de pesquisa pode ser um desafio na coleta em espaços de rua ou institucionais. Os instrumentos psicológicos usados regularmente com crianças e adolescentes escolares que vivem com suas famílias em ambientes seguros, nem sempre podem ser usados com aquelas que estão em situação de rua. Estes se não atendem à escola regularmente, podem não desenvolver capacidades de concentração em tarefas regulares de escrita e leitura. Além disto, a aplicação de instrumentos na rua não coincide com as condições regulares de uma sala de aula. Quando foram utilizados instrumentos com figuras e fichas, por exemplo, a aplicação precisou ser adaptada para locais públicos, visto que o intenso vento e o trânsito de pessoas impediam a exposição do material no chão das praças, calçadas de beira-mar, entre outros. Portanto, outras formas de aplicação precisaram ser desenvolvidas, como por exemplo, apresentando-se o instrumento completo para os participantes, ao invés de figura por figura, no caso do Mapa dos Cinco Campos (Lima & Morais, 2016).
CASO 6 – BRUNO
ALTERNATIVAS PARA O USO DE ESCALAS PSICOMÉTRICAS
Além de questionários de respostas abertas, também foram aplicadas escalas psicométricas para investigação de fenômenos psicossociais. Todos os instrumentos utilizados foram adaptados para a população em vulnerabilidade (Raffaelli, Koller, & Morais, 2007) e optou-se pela aplicação acompanhada pelos pesquisadores, buscando facilitar a compreensão do conteúdo, bem como oferecer apoio constante quando explicitadas situações de violência e demais adversidades. Para entendimento específico da graduação das escalas de avaliação foram utilizadas figuras com desenhos de dedos para ilustrar os diferentes graus de concordância (de "discordo totalmente" a "concordo totalmente") e cubos crescentes que representavam a intensidade (de "nunca" a "quase sempre") com que os participantes respondiam aos itens da escala. Nem todos os participantes utilizavam o auxílio dessas figuras, mas foi essencial para Bruno, acompanhado dos nove anos aos dez anos. Para que ele entendesse a variação dos valores, foi utilizada a escala com desenhos de dedos. Logo após a aplicação de alguns itens, ele afirmou que não precisava mais da escala e mostrou sua resposta usando seu polegar em sinal de concordância com o item questionado.
CASO 7 – ANDRÉ
EPISÓDIO DE INSUCESSO NA ADAPTAÇÃO DO INSTRUMENTO
Por mais que a equipe de pesquisa seja flexível, durante todo o processo de pesquisa, em busca de metodologias que melhor se adaptam ao contexto específico da população em situação de rua, nem sempre se obtém sucesso na aplicação dos instrumentos, especialmente de alguns deles. Por exemplo, o mapa dos cinco campos é um instrumento que avalia a rede social de apoio dos participantes. Ele é ilustrado em um pano de feltro e contém bonecos de papel que precisam ser localizados no mapa (Hoppe, 1998). A aplicação desse instrumento no espaço da rua foi inviável com o André, acompanhado dos 17 anos aos 18 anos, pois além do intenso vento à beira-mar, André sentiu-se desconfortável em responder esse instrumento próximo a seus amigos e demais transeuntes. Esse caso é trazido aqui para mostrar que, diante da especificidade dos contextos de vida das crianças e adolescentes em situação de rua, muitas vezes a aplicação de alguns instrumentos – ainda que adaptados – poderá não lograr êxito. Em última instância, a liberdade e disposição pessoal dos participantes prevalecem.
7. DESENVOLVIMENTO EM CONTEXTOS ATÍPICOS: O QUE É ESPERADO, AFINAL?
Além da adaptação de métodos considerando as singularidades do contexto e a população-alvo da pesquisa, os pesquisadores devem utilizar e construir teorias adequadas às crianças e adolescentes em situação de rua. Na utilização de perspectivas teóricas que avançam no conhecimento do desenvolvimento em contexto atípico tem-se a escolha ética de apresentar os dados relacionados às crianças e os adolescentes em situação de rua que se diferenciam da população normativa. Rejeitam-se terminantemente comparações equivocadas entre essas populações, as quais deslizam na problemática de priorizar a identificação de déficits, em detrimento de recursos e potencialidades. Enfatizar os prejuízos ao desenvolvimento sem a efetiva contextualização da diversidade de trajetórias de vida e tendo como juízo um padrão ideal naturalizado, pode culminar na reprodução de estereótipos e preconceitos.
Existe uma dupla alteridade quando se trabalha com crianças e adolescentes em situação de rua, trata-se da noção de que estes diferem tanto das crianças e adolescentes que se desenvolvem em contextos típicos, como também se diferem dos adultos (Marchi, 2007). Isso se traduz, por exemplo, num dilema entre percebê-las como sujeitos de direitos, tal como descrito no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA, 1990), e ao mesmo tempo não as perceber como crianças em situação peculiar de desenvolvimento, já que possuem vivências e experiências tipicamente fora da perspectiva de suas linhas de desenvolvimento. Tal incongruência coloca em cheque aquilo que são as expectativas sociais e acadêmicas para crianças e adolescentes, em comparação com que é a realidade vivida por eles. Na verdade, há possibilidades de que este alinhamento idade-aquisição/habilidade possa efetivamente não ser evidenciado. Assim como crianças que não frequentam escolas podem ter dificuldade em se concentrarem em tarefas psicométricas quando estão no espaço da rua, elas mesmas desenvolvem habilidades de atenção difusa e capacidade de defender-se e de antecipar ocorrências, que crianças de escola possivelmente teriam mais dificuldade de expressar.
CASO 8 – RAVI
DESENVOLVIMENTO SEXUAL FORA DA IDADE CRONOLÓGICA
Ravi, acompanhado entre os 12 e 14 anos, relatou ao pesquisador experiências sexuais incongruentes com a sua idade cronológica. Destacou a alta rotatividade de parceiros sexuais, em sua maioria jovens com idade acima de 18 anos e, em alguns casos, homens adultos mais velhos. Ravi descrevia com riquezas de detalhes seus envolvimentos sexuais, parecendo não os reconhecer como atos de violência aos quais vinha sendo submetido. Como trabalhar com uma criança questões de abuso sexual, encaradas por ela apenas como experiências de sexo, amor e liberdade? As perguntas que o participante colocava para o pesquisador sobre sua vida sexual geravam uma mistura de sentimentos em função da tenra idade e do contexto. Uma vez que o adolescente já vinha sendo atendido pelo Conselho Tutelar, a equipe de pesquisa optou por atuar como redutora de riscos e danos, fornecendo informações sobre doenças sexualmente transmissíveis (DSTs) e práticas sexuais seguras.
As crianças e adolescentes são pessoas em condição peculiar de desenvolvimento, tal como preconiza o ECA (1990). Isso implica para fins legais e éticos, que "a criança e o adolescente têm todos os direitos, de que são detentores os adultos, desde que sejam aplicáveis à sua idade, ao grau de desenvolvimento físico ou mental e à sua capacidade de autonomia e discernimento". Para a maioria dos CEP, isso significa que as pesquisas com crianças não tratarão de temas como práticas sexuais, uso de drogas e uma série de comportamentos desviantes e práticas ilícitas. Abordar esses temas com crianças e adolescentes em situação de rua, no entanto, é prática corrente. Não cabe neste texto discutir que esta prática pode, inclusive, reforçar a estigmatização e o preconceito sobre este grupo. No entanto, o fato desses temas serem abordados com frequência não diminui a quantidade de conflitos envolvidos. Falar sobre esses temas pode ser uma oportunidade das crianças e adolescentes relatarem, pela primeira vez, as violências que sofreram, mas também pode ser uma prática de revitimização e isso deve ser rigorosamente evitado. De todo modo, a realização dessas questões impõe aos pesquisadores conflitos de concepções do que é socialmente esperado, do que é desenvolvimentalmente "adequado" e do que é realmente vivido. Seear e McLean (2008) relataram o trabalho emocional envolvido na realização das pesquisas com populações minoritárias e o quanto há um silêncio sobre este tema na academia. A formação dos pesquisadores é fundamental para a investigação com esse público, pois a sobrecarga emocional é muito elevada.
8. SEGURANÇA DA EQUIPE DE PESQUISA
Uma das garantias da pesquisa com seres humanos deve ser não colocar os participantes em risco (Art. n.19). Nesse sentido, as resoluções de ética nas pesquisas, incluindo a Resolução n. 510/2016, parece focar nos riscos para os participantes, mas não nos riscos para os pesquisadores, sendo que, no caso da pesquisa com crianças e adolescentes em situação de rua, muitas vezes, o risco abrange todos os envolvidos. Isto reflete a violência em torno da vida das crianças e adolescentes em situação de rua.
CASO 9 – HEBE
DESAFIOS PARA GARANTIR A SEGURANÇA DOS PESQUISADORES
Alguns questionamentos devem ser considerados ao se adentrar no território dos participantes: como se pergunta sobre sua localização sem identificá-lo? O que se diz? Deve-se usar identificação institucional? Essas questões se fizeram presentes na busca ativa pelos participantes. No caso de Hebe, acompanhada dos 17 aos 18 anos, foi preciso muito cuidado para não pôr em risco a equipe e a própria participante ao identificá-la durante uma tentativa de localizá-la no seu bairro de origem. Os pesquisadores foram abordados por um homem armado que questionou o motivo da presença dos mesmos, sendo que priorizaram sua própria identificação como vinculados à Universidade. A participante reconheceu esse cuidado, confirmando que não acharia bom se chamássemos atenção para ela.
Para a inserção em bairros com alto índice de violência foram utilizadas medidas protetivas visando à segurança dos pesquisadores, como por exemplo, o acompanhamento de educadores sociais que já atuavam no território. Além disso, as visitas a esses bairros eram realizadas por uma dupla de pesquisadores, que evitavam o uso de objetos que podiam atrair a atenção para eles (e. g. celulares, joias, relógios, etc.).
Outros acompanhamentos foram interrompidos em virtude de risco direto aos pesquisadores no local de moradia dos participantes, que ameaçavam a sua integridade física, sendo que os próprios participantes e seus familiares alertavam sobre os perigos. Para solucionar ameaças envolvendo ciúmes dos companheiros(as) amorosos(as), por exemplo,optava-se pela troca da dupla de pesquisadores.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse artigo descreve dilemas éticos vivenciados em um estudo longitudinal sobre o impacto da rua na vida de crianças e adolescentes em situação de rua, dando especial relevo às contribuições trazidas pela Resolução n. 510/2016 na forma de lidar com cada uma dessas situações. Os desafios são amplos e dizem respeito, sobretudo, a questões relacionadas à vinculação entre pesquisadores e participantes; à ênfase no bem-estar dos participantes; ao papel protetivo da equipe de pesquisa; à necessidade de adequação metodológica dos estudos com essa população; à relativização do que é considerado típico a cada etapa desenvolvimental; e, por fim, à segurança da equipe de pesquisa.
Nas situações retratadas, a partir dos nove fragmentos dos casos escolhidos, fica evidenciada a importância de uma postura crítica e reflexiva por parte dos pesquisadores, buscando sempre garantir a proteção integral dos participantes. Para atuar com essa população, faz-se necessário que as equipes de pesquisa desenvolvam uma postura radical de abertura e aceitação às diferenças, uma vez que as concepções tradicionais de infância, de risco, de proteção, de família, de rua, de drogas são, muitas vezes diametralmente opostas àquelas apresentadas e vivenciadas pelos participantes. É preciso, portanto, um interesse genuíno pelos participantes e um respeito por suas escolhas e trajetórias de vida, sem desconsiderar o contexto de risco e os condicionantes estruturais dessas "escolhas".
A Resolução n. 510/2016 menciona o "respeito aos valores culturais, sociais, morais e religiosos, bem como aos hábitos e costumes, dos participantes das pesquisas", cabendo aqui a aplicação do conceito de simetria ética proposto por Christensen e Prout (2002). Isto é, este respeito deve valer não apenas para participantes adultos, mas também para crianças e adolescentes. Esta ressalva pode parecer estranha, mas nas relações cotidianas, os adultos tendem a supor e agir ainda pautados pela lógica menorista do "melhor interesse da criança", sem que esta seja de fato considerada como sujeito ativo do processo de pesquisa.
Outro princípio que rege a Resolução n. 510/2016 é a "defesa dos direitos humanos e recusa do arbítrio e do autoritarismo nas relações que envolvem os processos de pesquisa". Quando se considera que a relação entre crianças e adultos é uma relação de poder assimétrica e que isso se acentua com as crianças e adolescentes em situação de rua, este princípio torna-se ainda mais indispensável. A postura de reflexividade do(a) pesquisador(a) é imperativa e o princípio de recusa de autoritarismo neste contexto pode ser um importante alerta para isto.
Por fim, outro avanço proposto pela Resolução n. 510/2016refere-se ao fato dos termos de consentimento e assentimento não precisarem mais ser por escrito (Artigo nº 2). Trata-se de um avanço para a população em situação de risco, especialmente àqueles em situação de rua, cujos modos de interação e confiança não se pautam pela assinatura de um documento e que, em geral, não possuem o domínio da leitura e escrita, o que dificultava a assinatura dos termos. No entanto, conforme mencionado ao longo desse artigo, a compreensão do que vem a ser uma pesquisa eticamente comprometida, extrapola em muito a aquiescência, seja verbal ou escrita, de uma criança, adolescente ou mesmo seu responsável legal. Diz respeito a todo o processo de pesquisa e é fundada, sobretudo, no respeito à dignidade da criança e adolescente participante, na sua concepção enquanto sujeitos de direitos e no reconhecimento das mesmas como atores sociais, protagonistas do processo de pesquisa.
REFERÊNCIAS
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Normanda Araujo de Morais
E-mail: normandaaraujo@gmail.com
Recebido: 10/07/2017
1ª revisão: 15/11/2017
Aprovado: 22/11/2017
1 Normanda Araujo de Morais é docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza.
2 Rebeca Fernandes Ferreira Lima é doutoranda pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade de Fortaleza.
3 Lucas Vezedek é graduando em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia.
4 Juliana Prates Santana é docente da Universidade Federal da Bahia.
5 Sílvia Helena Koller é docente do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.