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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.18 no.2 Ribeirão Preto  2017

 

ARTIGOS

 

Desafios éticos e metodológicos em pesquisa com famílias e crianças no contexto da adoção

 

Ethical and methodological challenges present in the study with families and children in the adoptive context

 

Los desafíos éticos y metodológicos en el estudio de las familias y los niños en el contexto de la adopción

 

 

Ivy Campista Campanha de Araujo1; Danielly Bart do Nascimento2; Célia Regina Rangel Nascimento3

Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória-ES, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Esse estudo buscou analisar os desafios éticos e metodológicos presentes no estudo com famílias e crianças no contexto da adoção, tendo por referência a Resolução nº 510 de 2016. Discutem-se as modificações na adoção no Brasil ao longo do tempo, a valorização da perspectiva das crianças nas pesquisas e considera-se os cuidados na abordagem da família e da criança adotiva no início da pesquisa e ao longo da coleta de dados, ilustrando procedimentos éticos e metodológicos com um estudo de caso. Considera-se que a postura ética e a adequação metodológica possibilitam o estabelecimento da confiança necessária entre pesquisador e participantes, para que a convivência familiar seja revelada e as dificuldades e alegrias do processo adotivo sejam conhecidas, o que pode subsidiar intervenções psicossociais eficazes na busca do bem-estar das famílias adotantes.

Palavras-chave: ética em pesquisa; adoção; criança; família.


ABSTRACT

This study aims to analyze the ethical and methodological challenges present in the study of families and children in the adoptive context based on the Resolution n. 510, from 2016. It discusses the historical changes to the process of adoption in Brazil and the value of the children’s perspective in research. It considers the subject of care in approaching the adoptive family and children when presenting a research and along the data collection by illustrating ethical and methodological procedures using a case study. It is suggested that an ethical stance and methodological adequacy allows the establishment of the necessary trust between researcher and participants in order to reveal the family relationship, and the difficulties and joys of the adoptive process, which can subsidize effective psychosocial interventions in search of the well-being of adoptive families.

Keywords: ethics in research; adoption; child; family.


RESUMEN

Este estudio tiene como objetivo analizar los desafíos éticos y metodológicos en el estudio de las familias y los niños en el contexto de la adopción con referencia a la Resolución 510 de 2016. Se discuten las modificaciones en la adopción en Brasil a lo largo del tiempo, la valorización de la perspectiva de los niños en las encuestas y se considera los cuidados en el abordaje de la familia y del niño adoptivo al inicio de la investigación y a lo largo de la recolección de datos, ilustrando procedimientos éticos y metodológicos con un estudio de caso. Se considera que la postura ética y la adecuación metodología posibilita el establecimiento de la confianza necesaria entre el investigador y los participantes, para que la relación familiar sea revelada y las dificultades y alegrías del proceso adoptivo sean conocidos, lo que puede subsidiar intervenciones psicosocial eficaces en la búsqueda del bienestar de las familias que adoptan.

Palabras clave: ética en la investigación; adopción; niño; familia.


 

 

De acordo com Kottow (2008, p. 9): "A pesquisa com seres humanos como procedimento estabelecido é muito recente, podendo-se mesmo afirmar que, até o final do primeiro terço do século XX, não havia motivos considerados urgentes para se dedicar reflexão moral a essa prática tão incipiente". Assim, justifica-se que a análise em torno dos procedimentos éticos que o pesquisador deve ter, envolvendo a preocupação com os direitos dos participantes, ainda seja motivo de reflexão por parte da comunidade científica e de pesquisadores. Desde o código de Nurembergue, organizado após a revelação dos experimentos realizados durante a Segunda Guerra Mundial para regulamentar procedimentos de pesquisa e garantira integridade do participante, têm sido elaborados outros documentos sobre ética em pesquisa e realizadas discussões a respeito de como realizar pesquisa com pessoas preservando seus direitos e sua dignidade (Barbosa, 2014; Guerriero, 2016; Kottow, 2008; Oliveira, Carlotto & Dias, 2016).

No Brasil, vários pesquisadores têm se debruçado sobre o tema da ética em pesquisa com seres humanos, particularmente no que diz respeito à pesquisa com a participação de crianças e adolescentes (Alvarenga et al., 2012; Barbosa, 2014; Francischini & Fernandes, 2016; Kipper, 2016; Kramer, 2002; Oliveira et al., 2016). A focalização desse tema assume relevância, quando consideramos na pesquisa em Ciências Humanas, e particularmente em Psicologia, a abordagem de questões que afetam o cotidiano das famílias e de seus membros, suas percepções e afetos em relação a temas que podem ser delicados e expor suas vulnerabilidades.

Ao longo do desenvolvimento das pesquisas, e da vivência de situações com as quais o pesquisador se depara, a partir do planejamento da investigação e da sua inserção em campo, diferentes questionamentos emergem sobre como abordar os participantes e lidar com os resultados dessas abordagens, questões que nem sempre estão contempladas nos textos dos documentos e das resoluções, ou que são abordadas de forma ampla. Como afirmam Alvarenga et al. (2012, p. 858) "[...] a prática em pesquisa, como um processo dinâmico, apresenta continuamente novas questões [...]".

É o que explicita Kramer (2002) ao analisar os dilemas vivenciados pelo pesquisador diante dos desafios apresentados pela pesquisa com crianças. A autora discute os paradoxos às vezes presentes nas decisões que são tomadas pelo pesquisador com o intuito de proteger a criança que participa da pesquisa, especialmente com relação ao anonimato ou com a exposição da imagem da criança. A autora avalia que, por outro lado, as decisões com esse intuito podem diminuir o papel protagonista da criança e seu direito a ter uma voz, um nome, um papel reconhecido no trabalho produzido. Outra questão analisada por Kramer, que permanece atual e é contemplada na Resolução nº 510 de 07 de abril de 2016 do Conselho Nacional de Saúde, no item IX do Capítulo II: Dos princípios éticos das pesquisas em Ciências Humanas e Sociais, diz respeito a como trabalhar as devolutivas em relação ao que é exposto, principalmente quando as narrativas denunciam situações de risco às crianças pesquisadas. Com essas questões a autora alerta para a responsabilidade do papel do pesquisador junto àqueles que cederam seu tempo e expuseram parte de suas vivências e ideias para que a pesquisa ocorresse.

Nas pesquisas com família, Dessen e Silva Neto (2000) também alertam para os cuidados que o pesquisador precisa ter ao abordar as famílias, considerando sua diversidade e complexidade. Reflexões a respeito dos conceitos de família que norteiam o olhar do pesquisador, sobre a adequação dos métodos e técnicas para apreender a realidade pesquisada, bem como sobre o quanto as questões formuladas são apropriadas ao contexto no qual a pesquisa estará inserida, além de conhecer as diretrizes que regulamentam as pesquisas com seres humanos, são passos importantes não só para a produção de um conhecimento mais aprofundado e amplo sobre como as famílias funcionam, mas também para acessar seus membros de forma sensível, respeitosa e ética.

No Brasil, a Resolução nº 510, de 07 de abril de 2016 do Conselho Nacional de Saúde, trata de especificidades éticas das pesquisas em ciências humanas e sociais (Brasil, 2016; Guerriero, 2016) e aborda princípios e diretrizes éticas que contemplam os aspectos analisados pelos autores antes citados. Contudo, explicitar nas publicações as dificuldades, procedimentos e reflexões realizadas ao longo das investigações, colabora para que os parâmetros éticos mencionados nas resoluções sejam visualizados e analisados a partir da prática, como pode ser verificado em outros estudos (Alvarenga et al., 2012; Krammer, 2002; Oliveira et al., 2016). É tendo em vista essas considerações que esse estudo tem como propósito apresentar algumas reflexões a respeito dos desafios éticos e metodológicos presentes no estudo com famílias e crianças no contexto da adoção, principalmente no que diz respeito à forma de abordagem da família e da criança adotiva no início da pesquisa e ao longo da coleta de dados.

 

DESAFIOS E ÉTICA EM PESQUISA COM A FAMÍLIA ADOTIVA

A família tem sido objeto de estudo de diversas áreas das ciências humanas, sendo alvo de investigações as mudanças ocorridas em sua constituição ao longo do tempo, seu papel no desenvolvimento de seus membros, a origem de parentesco e suas relações interpessoais (Dessen, 2010; Martins, & Szymanski, 2004; Morgado, Dias, & Paixão, 2013). Desse modo, a adoção, meio pelo qual é possibilitado o surgimento de várias relações no contexto familiar, é uma das questões que tem sido explorada pelos pesquisadores devido às influências que sofre de valores, crenças, mudanças culturais e legais na sociedade.

A circulação de crianças que já existia antes da regulamentação legal da adoção no país, juntamente com a entrega ilegal de crianças por meio da popularmente conhecida "adoção à brasileira" (Fonseca, 2006) são práticas que continuam a coexistir no Brasil. Entretanto, no que se refere à legislação brasileira, a família adotiva tem mudado sua configuração ao longo do tempo, passando pela adoção permitida somente a casais sem filhos (Brasil, 1916), estéreis, viúvos ou desquitados (Brasil, 1965), à possibilidade da adoção por casais com filhos (Brasil, 1957), por pessoas com mais de 21 anos independente do estado civil (Brasil, 1990) e, posteriormente, por pessoas maiores de 18 anos independente do estado civil, além de pessoas separadas, divorciadas ou ex-companheiros que queiram adotar conjuntamente, desde que comprovado vínculo do adotado com o adotante que não possui a guarda (Brasil, 2009).

Da mesma forma, o perfil de crianças legalmente destinadas à adoção mudou ao longo do tempo, pois, conforme a lei 4.655 de 1965, apenas crianças com idade até sete anos poderiam ser adotadas. A partir da lei 6.697 de 1979 passou a ser admitida a adoção de crianças com mais de sete anos de idade, se a criança já convivesse com a família substituta antes dessa idade. Além disso, pela primeira vez, à criança foi conferido o status de filho do casal adotante. Somente a partir da lei 8.069 de 1990 a adoção passou a ser um direito de crianças e adolescentes com idade até 18 anos. Também o vínculo de parentesco legalmente reconhecido entre irmãos ocorreu somente a partir da Constituição Federal de 1988. Outras questões legais inseridas na legislação da adoção como, por exemplo, o próprio processo legal e o período de convivência, além de outras questões tais como crenças, preconceitos e expectativas, afetam as famílias adotivas para além de sua configuração.

Todas essas mudanças e realidades coexistentes instigam pesquisas com membros de famílias adotantes para compreender como suas relações se constituem e se modificam ao longo do tempo. Essa compreensão justifica-se pela importância de subsidiar uma adequação legal que favoreça cada vez mais o melhor interesse da criança e do adolescente, além de contribuir com intervenções psicossociais cada vez mais eficazes na busca do bem-estar das famílias adotantes.

Assim como para a pesquisa em outros contextos, na pesquisa em ciências humanas e sociais com a família adotiva no Brasil é pressuposto que sejam respeitadas todas as determinações da Resolução nº 510, de 07 de abril de 2016 do Conselho Nacional de Saúde que dispõe sobre a ética em pesquisa com seres humanos. A família participante deve conhecer aspectos da pesquisa tais como sua natureza, objetivo, justificativa, métodos, além de procedimentos como o tempo de duração da pesquisa e suas etapas. Os potenciais benefícios que os resultados da pesquisa podem ocasionar devem ser bem esclarecidos para a família, para que essa compreenda o valor de sua participação e de seu conhecimento acerca da adoção para o âmbito cultural, social, jurídico e psicológico, para todos os envolvidos nessa temática, como técnicos judiciários, famílias, crianças e adolescentes. A família também deve ter conhecimento sobre potenciais riscos materiais, se for o caso e, sobretudo riscos imateriais, relativos a possíveis consequências psicológicas negativas, visto que, principalmente o membro familiar que foi adotado, pode ter reativadas lembranças dolorosas decorrentes de sua vida pregressa. Assim, é importante assegurar à família que os participantes terão suporte psicológico, caso sejam desencadeados processos de sofrimento psíquico em decorrência da pesquisa (Brasil, 2016).

Dessen, Avelar e Dias (1998), ao discutirem a ética em pesquisa com família, ressaltam que o planejamento anterior dos procedimentos que a pesquisa deve adotar auxilia nessa avaliação dos riscos e benefícios que o trabalho pode produzir ao intervir no contexto estudado, e nos acordos que deverão ser realizados com os participantes, que devem estar explicitados nos Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e no Termo de Assentimento (Brasil, 2016).

Nessa primeira abordagem da família por adoção e de seus membros, um dos primeiros procedimentos éticos a serem considerados diz respeito à aproximação do pesquisador com tais famílias. Os adotantes podem ser resistentes à ideia de participar de uma pesquisa, haja vista que estão passando ou já passaram por um estudo psicossocial no processo de habilitação à adoção que, muitas vezes, pode ser percebido como desgastante por se sentirem avaliados (Campos & Costa, 2004). Além disso, muitas famílias que ainda não concluíram o processo adotivo podem temer que a participação em uma pesquisa, na qual muitas informações sobre a família serão coletadas, possa prejudicar a efetivação da adoção. Assim, especial atenção deve ser dada ao pressuposto de que: "O processo de consentimento e do assentimento livre e esclarecido envolve o estabelecimento de relação de confiança entre pesquisador e participante [...] (Guerriero, 2016, p. 2625).

Verifica-se, assim, que a aproximação do pesquisador exige cuidado, pois se a indicação da família adotante ocorrer por meio da equipe técnica do judiciário, deve-se buscar autorização do juiz responsável para que se possa abordá-la. Há outras formas de busca de famílias participantes, como, por meio de grupos de apoio à adoção e a indicação por conveniência, mas em todos é importante contatar a família após a indicação, para saber se concordam em tomar conhecimento da pesquisa e, posteriormente, se desejam participar. Essa medida pode ajudar a diminuir um possível desconforto da família no contato com o pesquisador.

Seguindo as orientações da Resolução nº 510, a família precisa ter ciência de que a qualquer momento poderá suspender sua participação na pesquisa sem qualquer prejuízo ou punição. Deve ser assegurada que não será alvo de possíveis atitudes ou julgamentos preconceituosos, discriminatórios e estigmatizantes, tanto por parte dos pesquisadores quanto por parte da sociedade, por isso, deve ser garantida a segurança sobre a confidencialidade dos dados, bem como do anonimato dos participantes, para que suas identidades sejam preservadas. Também deve ser assegurada à família que as informações coletadas jamais serão alteradas ou utilizadas em desacordo com a realidade, ou que seus membros serão coagidos a fornecê-las.

Além do conhecimento sobre as formas de registro e armazenamento dos dados, a família deve ser esclarecida a respeito de que informações se tornarão de acesso público por meio de publicações (Brasil, 2016). Assim, o pesquisador deve ter clareza sobre os objetivos do estudo, para que não torne públicas informações que não dizem respeito ao problema de pesquisa e que possam expor a família de forma indevida e não consentida.

Essas considerações são importantes no que diz respeito à família por adoção, porque, tanto nas primeiras abordagens como em todo o processo de coleta de dados, é preciso sensibilidade por parte do pesquisador para acolher toda a narrativa da família, mesmo que nem todo conteúdo atenda aos objetivos da pesquisa e por isso não possa integrar os dados que serão analisados. É possível que o pesquisador se depare com famílias que estejam enfrentando dificuldades de adaptação em relação à criança ou adolescente; em relação à divisão de papéis entre os cônjuges na nova situação familiar, em relação à dificuldade em lidar com a reação de filhos pré-existentes à adoção; dificuldades em lidar com hábitos e costumes trazidos pela criança ou adolescente, em caso de adoção tardia, ou ainda que efetuem comparações entre os filhos, externando frustrações e avaliações ocorridas na convivência que nem sempre dizem respeito ao que a pesquisa se propôs a investigar.

Pode-se considerar ainda a situação na qual o critério de participação inclua apenas os pais e a criança ou adolescente adotado. Entretanto, se a família participante tiver outros filhos, o pesquisador deve considerá-los em seu rapport no intuito de evitar que a atenção dispensada pelo pesquisador à criança ou adolescente adotado torne-se um alvo de divergências entre irmãos, causando constrangimentos e sentimentos negativos que possam comprometer a relação da família e posteriormente, a coleta de dados.

Tendo em vista essa situação, é importante que o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido contemple a autorização da participação do adulto da criança ou adolescente sob sua responsabilidade, além das informações de como procederá à pesquisa com ambos (Brasil, 2016). Assim, deve ficar claro que crianças e adolescentes menores de 18 anos também possuem direito de manifestar se concordam ou não em participar da pesquisa, mesmo com a autorização dos responsáveis, sendo a eles destinado o Termo de Assentimento Livre e Esclarecido. Os pesquisadores devem ter o cuidado ao transmitir as informações dos termos aos participantes, respeitando seu grau de escolaridade, nível de desenvolvimento e possíveis limitações que possam comprometer a compreensão, utilizando uma comunicação e uma forma de registro que respeite as características singulares de cada participante, além de possibilitar a retirada de todas as dúvidas que a família apresentar sobre a pesquisa (Brasil, 2016).

Em relação à abordagem com a criança na pesquisa sobre adoção, considera-se que direcionar o olhar dos pesquisadores de temas relacionados à adoção para a criança enquanto protagonista do processo adotivo também exige reflexão a respeito de como abordar eticamente a criança para acolher sua narrativa e vivência. As diretrizes da Resolução 510 alertam para a importância de que a transmissão das informações sobre a pesquisa seja acessível ao participante, e de que o pesquisador se preocupe em proteger e reconhecer a situação de maior vulnerabilidade da criança e do adolescente, no que diz respeito à autonomia e tomada de decisão. Essas preocupações também envolvem a construção de metodologias de pesquisa apropriadas à investigação com a criança sobre o processo de adoção e sobre a filiação nesse contexto, temas que tem que despertado o interesse de outras pesquisas (Guimarães, 2010; Moraes & Faleiros, 2014) e que será abordado a seguir.

 

A CRIANÇA COMO SUJEITO DE PESQUISA

O interesse em conhecer o que a criança tem a dizer sobre fenômenos que podem subsidiar ações que a favoreçam e contribuam com ações e políticas públicas que as beneficiem têm aumentado (Cruz, 2008). De forma que, se antes o conhecimento sobre as crianças era obtido por meio de relatos dos adultos, atualmente "busca-se formas de ouvir as crianças explorando as suas múltiplas linguagens" (Cruz, 2008, p. 11).

Informações fornecidas pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), a partir de um relatório chamado Justiça em Números 2016, indicam um aumento no número de ações que tramitam no sistema de justiça envolvendo o destino das crianças (como processos de guarda, destituição de poder familiar, medida protetiva, adoção e extensão de medida protetiva no contexto da violência doméstica, entre outros). Esse panorama destaca, portanto, a necessidade de avanços na área científica que estimulem pesquisas sobre a perspectiva das crianças sobre tais vivências, no intuito de conhecer como elas reagem, sentem e compreendem suas experiências (Cordeiro & Penitente, 2014).

No caso da criança no contexto da adoção, valorizar sua narrativa é importante, pois, geralmente, o lugar do discurso da criança na esfera do sistema de justiça oscila entre duas posições, ora ela é excluída do processo decisório que muitas vezes define seu destino de forma derradeira, ora é colocado sobre seus ombros o peso da responsabilidade sobre seu futuro (Brito, 1999). Não obstante, estudos sobre a relevância da voz da criança em ações judiciais que envolvem sua vida apontam que é possível conceder um lugar à narrativa da criança sem que sua fala se posicione em um desses extremos, como ilustram algumas pesquisas que se dedicaram a conhecer a perspectiva das crianças, que, de algum modo, vivenciaram situações perpassadas pelo sistema de justiça (Marzol, Bonafé, & Yunes, 2012; Oliveira & Próchno, 2010; Silva, 2010; Levy, Pinho, & Faria, 2009).

Na abordagem com a criança adotiva, um estudo que se destaca é o de Guimarães (2010), também descrito em Guimarães (2015). A autora elegeu crianças como participantes centrais em uma pesquisa sobre a experiência adotiva, mergulhando no que chamou de "desafio metodológico". Foram selecionadas três crianças que na ocasião da pesquisa tinham sete anos de idade e foram adotadas no contexto da adoção tardia. A pesquisadora realizou seis encontros com cada participante e coletou seus dados a partir de instrumentos lúdicos e verbais, tendo destacado as questões relacionadas à percepção sobre o processo adotivo. O cuidado metodológico descrito em seu trabalho é uma referência importante para a pesquisa com as crianças no contexto da adoção. Ao considerar a narrativa das crianças, a autora enfatiza que, para contribuir com seu desenvolvimento e proteção, além de garantir seus direitos é preciso compreender como a criança representa e dá significado às suas experiências (Guimarães, 2015).

Destarte, pesquisas que falem com as crianças e não sobre elas permitem ao pesquisador qualificar o modo especial como uma criança se expressa, tomando-as como participantes plenos na construção do conhecimento sobre aspectos ligados à infância, que são vivenciados de formas diversas (Kramer, 2002). Assim, a abordagem com a criança pode auxiliar de forma substancial na construção de estratégias de intervenção junto a esse grupo, especialmente quando as crianças têm suas vidas perscrutadas por atores do sistema de justiça e outros espaços institucionais, colaborando para a construção de recursos técnicos adequados para o acolhimento da narrativa da criança em ações diretamente ligadas à sua existência e ao seu futuro.

O foco dessa modalidade de pesquisa "visa a conhecer as crianças a partir delas mesmas, ou seja, efetuar um exercício de observação, percepção, penetração, participação e interação no aqui e agora delas" (Martins Filho & Barbosa, 2010, p. 13). O pesquisador terá, portanto, além de ser a testemunha da emergência das narrativas da criança, ceder sua escuta num trabalho que permita, segundo Corsaro (2005), realizar um descolamento do lugar de adulto para um lugar de quem se faça compreender por uma criança, com quem ela poderá falar, trocar e brincar, ideias reforçadas também por Cordeiro e Penitente (2014). Dias, Leme e Koller (2009, p. 495) destacam ainda que a escuta da criança no contexto da pesquisa deve ser guiada pelo princípio de melhor interesse da criança no sentido de que pesquisas devem ser desenvolvidas levando em consideração "a questão da proteção e promoção do desenvolvimento físico, mental, espiritual, moral e social da criança, com dignidade e liberdade".

Nos processos que envolvem especificamente a temática da adoção, Hueb (2016, p. 34) pondera sobre a importância de que não somente os postulantes à adoção, mas também a criança a ser adotada possa ser ouvida e preparada "para a travessia de um caminho até então desconhecido, que pode desencadear conflitos, ansiedades, medos, mas que pode promover alegrias no estabelecimento de um novo encontro". Espera-se também que os resultados de pesquisas que escutam crianças nesse contexto possam contribuir para subsidiar a reflexão sobre diversos aspectos da adoção que ocupam o imaginário popular, como por exemplo, o receio de que a criança cresça e queira retornar para a família biológica, medo de que a criança não se sinta filha dos novos pais, dúvidas quanto ao processo de adaptação da criança à nova realidade familiar e em relação às questões identitárias dentre outros, auxiliando, portanto, a elaboração de estratégias de apoio às crianças e famílias que vivenciam esse processo.

 

PONDERAÇÕES ÉTICAS E METODOLÓGICAS SOBRE A PESQUISA COM CRIANÇAS NO CONTEXTO DA ADOÇÃO

As principais ponderações éticas destacadas pela Resolução 510/2016 do CNS no que diz respeito às pesquisas realizadas com crianças estão relacionadas à questão da relevância de que os responsáveis assinem o termo de consentimento livre esclarecido e a própria criança assine o termo de assentimento (Art. 2), da importância de justificar o motivo da escolha desse tipo de participante (Art. 12), à necessidade da aprovação da pesquisa pelo CEP (Art. 12) e às medidas de proteção que devem ser tomadas pelo pesquisador de forma a reconhecer a situação de peculiar vulnerabilidade das crianças enquanto participantes de uma pesquisa (Art. 20). Rossetti-Ferreira (2010) alerta para o fato de que escutar crianças, em um contexto de interesse científico, significa preservar o cuidado de conversar com elas sobre eventos de sua vida, sempre levando em consideração que a capacidade de compreensão e o interesse da criança estão relacionados aos diferentes momentos do desenvolvimento.

Leituras sobre estudos que elegeram crianças como protagonistas de pesquisas sobre a temática da adoção permitem a identificação de apontamentos sobre alguns cuidados específicos a serem levados em conta ao coletar dados com crianças. Guimarães (2010), por exemplo, destacou a importância de que as intervenções com a criança sejam feitas em um ambiente no qual ela se sente identificada e realizou todos os procedimentos de coleta de dados na residência das crianças. Ressaltou também a importância de que sejam utilizados instrumentos diversificados, uma vez que a criança não fala de forma linear e pontual e necessita de instrumentos que estimulem, de diferentes maneiras, seu desejo de revelar sua percepção sobre o fenômeno investigado. A autora avaliou como algo relevante, realizar as intervenções com a criança de forma a garantir a privacidade e o sigilo. É possível observar na pesquisa realizada pela autora o cuidado e o respeito pela criança, no sentido de compreender os momentos em que a criança responde às questões com silêncios, sem pressioná-la a dizer além do que ela deseja, atitudes que Silva, Barbosa e Kramer (2005) apontaram como essenciais numa pesquisa realizada com crianças.

 

A PESQUISA COM A CRIANÇA NO CONTEXTO DA ADOÇÃO: ILUSTRAÇÃO DA PRÁTICA

No intuito de apresentar alguns recortes que possibilitem ilustrar alguns dos apontamentos realizados no presente texto, foram selecionados trechos de uma dissertação de mestrado, realizado entre 2015 e 2017, que teve como principal objetivo conhecer as relações cotidianas de crianças adotadas tardiamente e suas famílias e caracterizar o momento da percepção da filiação. Tal estudo também se articula a uma pesquisa mais ampla intitulada "Pelos caminhos da adoção: Do interesse dos pretendentes ao convívio das famílias adotivas" inscrita no CNPq, vinculada ao Núcleo de Estudos, Pesquisa e Intervenção com Crianças, Adolescentes e Famílias – NECRIAD, do PPGP-UFES.

No intuito de viabilizar a coleta de dados, foi buscado junto ao Poder Judiciário do Espírito Santo autorização para realização da pesquisa junto às Varas de Infância existentes no estado. Foi buscado contato com tais Varas porque são essas equipes que realizam a inserção das crianças e adolescentes nas famílias substitutas e que possuem, portanto, informações sobre as adoções tardias realizadas no âmbito de sua região territorial de atuação. Como o objetivo do estudo previa que as crianças pudessem relatar o momento de chegada na família, utilizou-se como critério que as crianças a serem incluídas no estudo como participantes deveriam ter sido adotadas, há aproximadamente um ano, com idade a partir de seis anos, e ter na ocasião da pesquisa entre sete a doze anos. Com esse critério, foi selecionada uma família que havia adotado um grupo de irmãos composto por quatro crianças. Na ocasião da adoção elas tinham: dez anos de idade (Lara), sete anos de idade (Gustavo), quatro anos de idade (Lucas) e um ano de idade (Marina) e estavam inseridas na nova família há um ano e três meses. O processo jurídico da adoção ainda estava tramitando, o que significa que na ocasião da pesquisa os pais detinham a guarda provisória de cada uma das crianças.

A coleta de dados foi realizada a partir do uso de três instrumentos que foram aplicados em seis encontros realizados na casa da família. Os instrumentos utilizados foram: entrevistas semiestruturadas, diário de campo e genograma. Neste trabalho focalizaremos momentos do uso das entrevistas e da observação e registro do diário de campo. Todas as crianças assinaram o termo de assentimento livre esclarecido antes de participar da pesquisa. Ressalta-se que os nomes utilizados para se referir a elas neste estudo são fictícios.

 

DESAFIOS EM RELAÇÃO AO ASSENTIMENTO DAS CRIANÇAS

O primeiro passo que é uma importante demonstração de respeito com a criança participante de uma pesquisa é garantir que ela está compreendendo o motivo pelo qual ela foi eleita como protagonista num certo contexto de investigação, pois, como aponta Ferreira (2010, p. 161), as crianças não são vistas como meros objetos de investigação, mas como sujeitos com direitos e "atores sociais capazes de interpretar o que se passa, de decidirem ou não a sua participação [...]". Desse modo, antes de trabalhar o conteúdo do termo de assentimento junto às crianças foi explorado com os pais se a temática da adoção era algo que circulava no discurso familiar e se as crianças se sentiam à vontade para conversar sobre isso.

Após constatado que a adoção era um assunto abordado com naturalidade na família, houve um esforço, ao final do primeiro encontro para esclarecer às crianças o motivo pelo qual elas eram o foco das perguntas. Esclareceu-se que a pesquisa buscava entender o processo de adaptação ao novo ambiente familiar de crianças já "grandinhas" que foram adotadas. Foi explicado que com essa compreensão esperava-se construir estratégias que permitissem que os casais que queriam adotar conhecessem um pouco sobre a realidade da adoção tardia e assim pudessem se preparar para adotar crianças que aguardavam por uma nova família. As crianças mostraram-se muito animadas ao ouvir tal explanação e passaram a questionar as pesquisadoras sobre os objetos que elas portavam: prancheta, gravador, folhas, caixa com materiais de desenho. Também fizeram muitas perguntas, sobre quem elas eram e outros questionamentos buscando desvendar quem eram as duas estranhas sentadas à mesa de jantar.

Após as explicações e a assinatura do termo de consentimento e autorização dos pais, as três crianças assinaram o termo de assentimento. Contudo Lara, a mais velha, demorou um pouco mais para aderir à proposta. Mencionou que não gostaria de participar porque tudo o que estava relacionado à justiça não trazia coisas boas para ela. A criança foi respeitada e foi explicado que ela só participaria se realmente desejasse. Apenas depois de realizado o segundo encontro na casa da família, Lara sentiu desejo de participar e formalizou sua iniciativa em responder às questões propostas pelo estudo.

 

QUESTÕES FACILITADORAS E DESAFIADORAS EM RELAÇÃO À COLETA DE DADOS

Os temas explorados com as crianças a partir das entrevistas semiestruturadas estavam relacionados à interação cotidiana junto à nova família, percepção sobre o processo adotivo, vínculos parentais e sentimento de pertencimento e filiação. As entrevistas foram aplicadas na casa das crianças, de forma individual ao longo de seis diferentes encontros. O fato de as entrevistas terem ocorrido no ambiente familiar não trouxe nenhum obstáculo à sua realização, pelo contrário, observou-se que as crianças se sentiram à vontade para interagir com as pesquisadoras e fizeram questão de mostrar objetos e símbolos significativos para elas: como caderno de escola, tablet, brinquedos favoritos, fotos, galinheiro e dentre outros, fatores que facilitaram a interação de pesquisa. Além disso, a privacidade foi respeitada em todos os momentos da coleta de dados e nenhuma criança invadiu o espaço do irmão ou da irmã durante a realização das intervenções, o mesmo se deu em relação aos pais que não se aproximavam do local no qual estavam sendo realizadas as entrevistas.

Foi percebido que o fato das questões terem sido estruturadas de modo que as crianças falassem primeiro sobre aspectos ligados à vida escolar, para depois expressarem suas percepções sobre o processo adotivo e por último sobre o sentimento de filiação e convivência familiar, contribuiu com a possibilidade de as crianças responderem às questões com menos inibições, pois foi possível um tempo de aproximação e interação com as pesquisadoras antes de iniciar a abordagem de temas mais delicados.

Um primeiro desafio diz respeito à sustentação da narrativa sobre questões que tocavam as crianças com profundidade. Desse modo, as respostas a algumas questões foram marcadas por tentativas de mudar de assunto, de dedicar-se mais a um desenho ou às atividades lúdicas, como pular e correr, do que a falar, situações que foram respeitadas pelas pesquisadoras. Um segundo desafio compareceu no momento em que as crianças tinham que responder questões relacionadas ao que sentiram quando souberam que seriam adotados por aqueles que seriam seus novos pais, pois embora tenham conseguido falar um pouco sobre como perceberam a nova situação, antes de responder às questões reagiram com respostas como "não me lembro muito bem" (Gustavo) ou "eu não sou de querer saber o histórico das coisas" (Lara) ou "eu sinto saudades da Luísa – mãe biológica" (Lucas). Contudo, ao longo da entrevista eles formularam da seguinte forma seus sentimentos sobre a iminência da adoção: "Eu me senti muito, muito, muito, muito, alegre" (Lara, 10 anos). / "Eu senti medo de vir sozinho, sem meus irmãos e a primeira coisa que pensei foi que eles (os pais) moravam pertinho da praia" (Gustavo, 8 anos). / "A primeira coisa que pensei quando vi eles (os pais) era que eles eram muito legais" (Lucas, 5 anos).

Coube às pesquisadoras, nesses momentos, demarcar junto às crianças participantes uma dupla dimensão da pesquisa com esse público: a abertura à escuta do que elas desejam contar, mas também o respeito à possibilidade do silêncio diante de questões que as sensibilizam, como mencionam Silva et al. (2005). Assim, foi explicado que a ciência possui um interesse em conhecer um pouco mais a respeito de como as crianças se sentem durante o processo de se tornarem filhos de novos pais, pois a visão delas tem uma grande relevância para outras famílias que também estão vivenciando experiências semelhantes, ao mesmo tempo, porém, foi esclarecido que as pesquisadoras estavam ali para ouvir apenas o que elas quisessem dizer. Dessa forma, foi possível construir uma relação de confiança a partir da qual as crianças puderam expressar com palavras e silêncios seus sentimentos.

A coleta de dados também envolveu a observação durante as visitas realizadas à família e o registro em diário de campo. Embora não haja estudos específicos que relacionem a interação com objetos ao sentimento de pertencimento no contexto adotivo, acredita-se que especificamente no caso da adoção tardia, a forma como a criança se apropria de sua nova casa e de seus novos objetos tem grande participação na construção do sentimento de pertencimento a esse novo ambiente. Por isso, elegeu-se o diário de campo como um instrumento complementar que tinha como finalidade principal registrar as observações das interações das crianças com os pais e com o ambiente familiar durante as visitas realizadas para a coleta de dados.

O diário de campo constitui-se como um dos "instrumentos que contém elementos descritivos e sintéticos, construídos a partir do olhar do psicólogo sobre a dinâmica vivenciada por ele no ambiente natural" (Meireles, Moreira, Mezzalira, & Guzzo, 2014, p. 719). Configurando-se, portanto, como um instrumento que pode ser utilizado de forma complementar à realização das entrevistas. Embora o registro escrito em diários de campo seja uma técnica própria da etnografia, método de coleta de dados da Antropologia (Eckert & Rocha, 2008), o registro das vivências em campo tem sido aplicado como método de coleta de informações e dados por diferentes áreas, tanto na pesquisa como em experiências profissionais (Lima, Mioto, & Dal Prá, 2007). No trabalho aqui descrito, esse instrumento se mostrou de extrema relevância durante a coleta de dados, pois havia um roteiro de aspectos que mereciam um olhar especial do pesquisador e que guiaram os registros no diário: a) A inscrição simbólica da criança no ambiente (como exposição de fotos, brinquedos, objetos de uso pessoal da criança); b) A maneira como a criança circulava e manipulava objetos no ambiente; c) Aspectos não verbais da interação entre a criança e seus familiares.

A possibilidade de interagir com as crianças sem a mediação de um instrumento pré-formatado mostrou-se como um dos principais elementos de facilitação na utilização da observação e do registro no diário de campo. Houve um receio inicial de que a presença das pesquisadoras no ambiente da família durante cindo tardes de domingo pudesse representar um desafio para a utilização do diário de campo, contudo, não foi o que ocorreu. Tanto as crianças quanto seus pais recebiam as pesquisadoras de forma alegre e acolhedora. As crianças demonstraram satisfação em perceber que a pesquisadora se interessava pelos seus objetos de uso pessoal, pelo espaço físico que ocupavam na nova casa, por seus brinquedos e fotos e insistiam em mostrar "novidades" como um brinquedo novo, uma nova foto ou um novo alimento que a mãe havia preparado. Assim a observação e o registro no diário abriram caminhos para uma compreensão mais profunda do campo que estava sendo analisado.

Foi a partir desses recursos que foi possível apreender de forma perene os afetos e tensões que circulavam na interação familiar, que talvez não teriam sido percebidas de outro modo. Por exemplo, numa das visitas à família, nos deparamos com a mãe das crianças falando nervosa sobre um episódio no qual o menino mais novo havia passado cola na cachorrinha da família. Tal cena foi o disparador para que se pudesse observar como as crianças estavam se deparando com os limites e as regras nesse novo espaço e quanto Lucas, o mais novo, ainda estava construindo a possibilidade de obedecer algumas regras colocadas por seus pais. Em outra visita, nos surpreendemos com a intensa alegria das crianças. O pai havia construído um galinheiro no qual colocou uma galinha para cada um de seus quatro filhos. Esse episódio e a maneira como as crianças estavam exultantes demonstraram que detalhes do cotidiano aumentavam ainda mais o sentimento de pertencimento delas ao novo ambiente, o que foi algo que só compareceu durante a observação e pode ficar registrado como um dado no diário de campo.

Destaca-se, contudo, que na utilização desse método deve-se dar especial ênfase aos princípios éticos descritos na Resolução nº 510 de 7 de abril de 2016 quanto ao que se refere ao "respeito aos valores culturais, sociais, morais e religiosos, bem como aos hábitos e costumes, dos participantes das pesquisas" (Guerriero, 2016, p. 2624). Além disso, ao organizar os dados a partir dos registros obtidos, é importante, como alertam Dessen e Silva Neto (2000), que o pesquisador, ao observar e conviver com o cotidiano das famílias tenha clareza de que a dinâmica familiar é complexa e diversa e de que os métodos utilizados por ele constituem também um "filtro" na representação da realidade que se pretende discutir a partir da pesquisa. Assim, deve ser garantida a postura ética do pesquisador durante os períodos de observação das interações e da convivência entre os membros da família para que haja espontaneidade e se estabeleça a confiança na inserção do pesquisador no ambiente familiar.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tanto cuidados éticos como metodológicos são importantes para garantir a proximidade e a obtenção de informações com os participantes de uma pesquisa, especialmente quando esta trata de temas que podem sensibilizar os participantes e quando estes são crianças e adolescentes. Este estudo buscou discutir e exemplificar aspectos dessa abordagem com famílias e crianças adotivas. Embora o assunto não se esgote no que foi aqui apresentado, espera-se ter contribuído para a reflexão a respeito de como a postura ética e a adequação metodológica possibilitam o estabelecimento da confiança necessária entre pesquisador e participantes para que a convivência familiar seja revelada e as dificuldades e alegrias do processo adotivo sejam conhecidos. Pesquisas realizadas no contexto da adoção possuem relevância científica e social, na medida em que possibilitam o conhecimento tanto das ansiedades e motivações envolvidas na decisão e espera, como também a respeito da construção da convivência afetiva, das dificuldades e gratificações presentes no cotidiano da família por adoção para todos os membros envolvidos, auxiliando na elaboração de estratégias de apoio às crianças e famílias que vivenciam esse processo.

 

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Endereço para correspondência
Célia Regina Rangel Nascimento
E-mail: celiarrn@gmail.com

Recebido: 11/07/2017
1ª revisão: 09/11/2017
Aprovado: 16/11/2017

 

 

1 Ivy Campista Campanha de Araujo é mestre em Psicologia pelo Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo.
2 Danielly Bart do Nascimento é doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo.
3 Célia Regina Rangel Nascimento é docente do Departamento de Psicologia Social e do Desenvolvimento e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Espírito Santo.

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