SciELO - Scientific Electronic Library Online

 
vol.22 número1O que esperar depois do (in)esperado?: Saúde mental no trânsito (pós)pandemiaRecebimento e encaminhamentos de notificações de casos de violência sexual pelo conselho tutelar índice de autoresíndice de assuntospesquisa de artigos
Home Pagelista alfabética de periódicos  

Serviços Personalizados

Journal

artigo

Indicadores

Compartilhar


Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.22 no.1 Ribeirão Preto ene./jun. 2021

 

ARTIGOS

 

Registros Reflexivos na facilitação de processos de Educação Permanente em Saúde

 

Reflective Records in the facilitation of Continuing Education processes in Health

 

Registros Reflexivos en la facilitación de processos de Educación Permanente en Salud

 

 

Gabriela Martins Silva1,I; Carla Guanaes-Lorenzi2,I

IUniversidade Federal de Uberlândia, Uberlândia-MG, Brasil
II
Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto-SP, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este artigo visa a analisar o uso dos Registros Reflexivos como recursos conversacionais para a facilitação de processos grupais, organizados como parte de um processo de Educação Permanente em Saúde (EPS). A EPS é uma proposta de educação em serviço pautada no cotidiano das práticas como fonte de aprendizagem. Realizamos sete encontros para EPS com profissionais de saúde mental, a partir da perspectiva construcionista social. Para cada encontro realizado, construímos um Registro Reflexivo que era lido no início de cada encontro subsequente. A análise enfocou a produção dos Registros e os efeitos de sua leitura na interação grupal. Com isso, pudemos entender que os Registros Reflexivos se configuraram em importantes recursos para promoção da dialogia e para a preparação da facilitadora.

Palavras-chave: Interações dialógicas; Educação permanente; Serviços de saúde mental; Construcionismo social.


ABSTRACT

This article aims to analyze the Reflective Records as conversational resources for the facilitation of group processes, organized as part of a process of Continuing Education in Health (CEH). CEH is a proposal for permanent education based on daily practices as a source of learning. CEH meetings were held with mental health professionals, guided by the social constructionist perspective. For each meeting held, we built a Reflective Record that was read at the beginning of each subsequent meeting. The analysis focused on the production of the Records and the effects of their reading on group interaction. With this, we showed that Reflective Records configured important resources for the promotion of dialogism and preparation of the facilitator's action.

Keywords: Dialogic interactions; Continuing education; Mental health services; Social constructionism.


RESUMEN

Este artículo analiza los Registros Reflexivos como recursos de conversación para facilitar los procesos grupales, organizados como parte de un proceso de Educación Permanente en Salud (EPS). EPS es una propuesta de educación en el servicio basada en prácticas diarias como fuente de aprendizaje. Realizamos reuniones de EPS con profesionales de la salud mental, desde la perspectiva construcionista social. Para cada reunión realizada, creamos un Registro Reflexivo que se leía al comienzo de cada reunión posterior. El análisis se centró en la producción de los Registros y los efectos de su lectura en la interacción grupal. Con esto, pudimos entender que los Registros Reflexivos se configuraron como recursos importantes para la promoción del dialogismo y para la preparación del facilitador.

Palabras clave: Interacciones dialógicas; Educación continua; Servicios de salud mental; Construccionismo social.


 

 

(...) Fiquei pensando ainda: por quanto tempo as pessoas que viveram antes de nós não acharam que quando tivéssemos uma legislação adequada e pesquisas comprometidas, as coisas mudariam. (...) Contudo, agora estamos cheias de leis, a reforma psiquiátrica está na lei, as residências terapêuticas estão na lei, o ECA está em pleno vigor, mas os problemas não se dissolveram. Isso me faz pensar que o reinventar da prática e da saúde mental - da saúde mental de cada uma de nós, inclusive - está na potência desses encontros vivos, cheios de complexidade e que não se enquadram em teorias e leis. "Todo abismo é navegável a barquinhos de papel", disse Guimarães Rosa. Se não é pela teoria, nem pela lei, pode ser pela poesia... Será?" (Trecho do Registro Reflexivo sobre o segundo encontro).

A Educação Permanente em Saúde (EPS) é uma proposta que visa reorientar o método educacional em saúde, valorizando o trabalho realizado no cotidiano dos serviços como fonte de conhecimento e aprendizagem, se caracterizando em um processo contínuo, participativo e multiprofissional (Brasil, 2009).

A EPS tem como fundamento a relevância social do processo ensino-aprendizagem, tomando as dimensões éticas da vida, do trabalho, das pessoas e das relações como balizadores dos saberes técnicos e científicos. Para isso se faz necessária a construção de coletivos de trabalho e aprendizagem, nos quais o trabalho cotidiano possa ser colocado em discussão e reflexão pela equipe, de modo a se exercer conjuntamente o "aprender a aprender". A permeabilidade aos contextos, às necessidades específicas de cada população atendida, bem como ao relacionamento e às condições de trabalho das/os profissionais é, assim, imprescindível à EPS, não na busca por respostas "certas" e previamente disponíveis, mas, justamente, com vistas à produção coletiva de atos de ensino e aprendizagem (Campos, Cunha, & Figueiredo, 2013; Ceccim, 2010; Feuerwerker, 2014).

A aprendizagem significativa, a problematização do cotidiano e a construção de sujeitos críticos e transformadores são pilares da EPS, inspirados na pedagogia da libertação de Paulo Freire. A aprendizagem significativa diz respeito à conexão do conteúdo a ser aprendido com a realidade das pessoas envolvidas, de modo que elas possam, de maneira ativa, fazer conexões entre o que já sabem e o que se apresenta como novo conhecimento, transformando sentidos. A problematização do cotidiano se dá a partir da desnaturalização de conceitos e ideias, de modo a fomentar o "pensar crítico", a convidar ao questionamento e à desestabilização de sentidos, processo que permite vislumbrar potencialidades e realidades preferíveis. Desta maneira, é possível fomentar a construção de sujeitos capazes de colocar as próprias ações em questão, reconhecendo-as como parte da micropolítica da construção dos problemas enfrentados, mas também de suas soluções. Assim, é um processo dialógico (Campos et al., 2013; Ceccim & Ferla, 2008; Freire, 2015; Schnitman, 2011, 2016).

Para fomentar esses processos, a EPS conta com a função de facilitador/a. Esse/a profissional tem como tarefa promover reflexões sobre o cotidiano do trabalho, em conjunto com a equipe, de forma que essa se aproprie dos impasses nos seus processos de trabalho, refletindo sobre as diversas dimensões da vida que os compõem e neles se reconhecendo, de modo a encontrarem formas de ação conjunta diante deles (Campos et al., 2013).

Dessa forma, a literatura científica nos oferece princípios orientadores para a realização da EPS, cabendo a nós tê-los no horizonte para a construção de aportes operacionais para colocá-los em ação na relação com as especificidades de cada contexto. Reconhecendo a complexidade dessa tarefa e visando colaborar nessa construção, apresentamos, neste artigo, a análise de um recurso específico que se mostrou muito útil na facilitação de processos grupais de EPS: o Registro Reflexivo.

Como o nome sugere, os Registros Reflexivos são narrativas sobre o encontro grupal que visam à reflexão. Tal como ilustra o trecho citado na epígrafe desta introdução, eles foram produzidos como parte do processo de facilitação, trazendo elementos reflexivos, teóricos e/ou poéticos que pudessem contribuir com o processo de problematização e aprendizagem significativa ou, em termos construcionistas sociais, de dialogia e transformação de sentidos. Nesse sentido, os Registros Reflexivos podem ser aplicados em diversos contextos grupais.

O processo de facilitação grupal, em suas diferentes modalidades teóricas e práticas, tem sido estudado por diversos/as autores/as que buscam explicitar recursos para a prática, com vistas à contribuição para o campo (Barros, 2013; Guanaes-Lorenzi, 2017; Rasera, 2015; Yalom, 2006; Zimerman & Osorio, 1997). Nesse sentido, o uso de registros escritos já foi documentado por outras/os estudiosos/as, que assinalam sua contribuição para vários fins, dentre eles: registro narrativo do processo grupal, finalização de intervenções grupais, documentação de encontros ou sessões, construção de perspectivas de futuro e promoção de reflexões após encontros ou sessões (Guanaes & Japur, 2005; Guanaes-Lorenzi, 2015; Paiva & Rasera, 2012; White & Epston, 1993; Yalom, 2006).

Somando-se a essas contribuições, esse estudo aborda uma forma de registro escrito elaborado para a facilitação de processos grupais voltados à EPS. Temos como objetivo analisar o uso dos Registros Reflexivos como recursos conversacionais para a promoção do diálogo generativo e da transformação de sentidos em um processo de EPS.

 

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa e exploratória, realizada a partir da perspectiva construcionista social. Essa perspectiva nos convida a examinar os fenômenos a partir dos relacionamentos entre as pessoas, tomados como fundamentos da construção dos sentidos e das realidades nos quais e com os quais vivemos. Nesse processo, a linguagem tem papel central, entendida não apenas como mera representação, mas como forma genuína de construção do mundo, das pessoas e das instituições (Gergen, 2014; McNamee, 2014). Dessa forma, essa é uma perspectiva teórico-metodológica que nos confere aportes tanto para a investigação científica quanto para a intervenção em contextos terapêuticos, grupais e institucionais (Guanaes-Lorenzi, 2015; McNamee, 2014; Rasera, 2015). Em uma perspectiva construcionista social, a pesquisa é uma forma de ação no mundo, portanto, momento de construção de sentidos e futuros preferíveis (Gergen, 2014; Hersted, Ness, & Frimann, 2020).

A intervenção estudada neste texto foi desenvolvida como parte de uma pesquisa que visava estudar a EPS como recurso para qualificação do cuidado às famílias de usuários/as de serviços de saúde mental (Silva, 2017). Para tanto, foram organizados encontros de EPS com profissionais de saúde mental dos dois Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) de um município da região sudeste do Brasil que se interessaram em participar do estudo.

A pesquisa teve aprovação do comitê de ética local (CAAE: 32777414.4.0000.5407) e seguiu todas as recomendações éticas, dentre elas o uso de nomes fictícios para todas as participantes e pacientes eventualmente citados/as nas conversas.

Foram organizados sete encontros – número médio que se mostrou produtivo em outras pesquisas com enfoque na produção de sentidos (Jesus, 2012; Moscheta, 2011) – contando com 10 profissionais de dois CAPS. As profissionais participantes foram: Beatriz, Renata, Rosane e Tereza, psicólogas; Emília e Luciana, assistentes sociais; Fabiana, terapeuta ocupacional; Joana, enfermeira; Júlia, médica pediatra; e Maria, estagiária de psicologia. Com exceção de Rosana, que trabalhava na saúde mental há 15 anos, e de Emília que estava em um dos CAPS há seis anos, as demais participantes trabalhavam nos serviços há pouco mais de três anos, pois assumiram suas funções a partir da aprovação no mesmo concurso público. Além delas, o grupo contou também com Gabriela, psicóloga, pesquisadora e facilitadora do grupo. Os encontros foram realizados durante o horário de trabalho das profissionais, em um dos serviços participantes, e tiveram, em média, uma hora e quinze minutos de duração. Foram audiogravados e transcritos, possibilitando a análise posterior.

A facilitação dos processos de EPS foi feita a partir de orientadores construcionistas socias para a prática com grupos. O construcionismo social entende o/a facilitador/a como um/a especialista do processo conversacional, ou seja, como um especialista em promover o diálogo e trocas generativas entre as pessoas. Isso é feito, especialmente, a partir da responsividade, que implica em fazer uma escuta legítima e curiosa, respondendo de forma a investir no potencial generativo do diálogo e da reflexão (Guanaes-Lorenzi, 2017).

Investir no potencial generativo do diálogo demanda ir além da pergunta "por que as coisas são assim" e/ou da interpretação de processos subjacentes, nos levando à compreensão do modo de nos relacionarmos que constrói as realidades como elas estão. Deste modo, entendemos que a realidade – incluindo nela o próprio processo grupal – não existe sem os sujeitos que a produzem. Assim, dedicamo-nos a refletir sobre como nosso modo de agir e conversar contribui para a construção dos problemas que nos incomodam e incomodam as pessoas usuárias dos serviços, e até mesmo na construção do que não nos incomoda, do que é dado como certo e normal, mas que pode ser foco de problematizações.

Para que ocorra o diálogo generativo é preciso investir na construção de um padrão de relacionamento no qual as pessoas possam considerar suas diferentes necessidades, elaborando ações que sejam significativas, possibilitando que continuem trabalhando juntas. Trata-se, assim, de um foco pragmático e orientado para as potencialidades e para a construção de futuros preferíveis (Schnitman, 2016). Entendemos que essas noções guardam estreita sintonia com a proposta e princípios da EPS, uma vez que facilita as construções conjuntas, a valorização dos diferentes saberes, a conexão com os contextos e a proposição de ideias e aprendizagens que façam sentido para as necessidades de cada grupo.

Ainda com base nessas noções, a facilitadora procedeu na escrita do Registro Reflexivo, feita entre um encontro e outro. Inspirados na proposta das Cartas Terapêuticas (Chen, Noosbond, & Bruce, 1998), que visam documentar as sessões de terapia de forma transparente, fazendo desses documentos intervenções, os Registros Reflexivos tinham cinco objetivos: propiciar uma memória dos encontros, possibilitando que as pessoas relembrassem o que havia sido discutido no encontro anterior; documentar o conjunto de encontros realizados; configurar uma possibilidade de intervenção dialógica no momento interacional; cuidar do processo grupal; e ser um exercício reflexivo para a facilitadora, sobre sua própria prática, visando sua preparação para cada encontro subsequente.

Partindo desses objetivos, dos orientadores construcionistas sociais para práticas grupais e dos princípios da EPS, algumas regras práticas guiaram a produção dos Registros: ter, no máximo, uma página, de modo que sua leitura não tomasse muito tempo do encontro; abordar os assuntos que mais suscitaram o engajamento grupal em sua discussão; ressaltar a produção relacional dos sentidos, citando o grupo, e não pessoas individualmente, como autor das discussões e sentidos; cuidar do processo conversacional, para que ele fosse útil e conectado ao cotidiano das participantes.

Dessa forma, os Registros Reflexivos se configuraram como elo narrativo entre os encontros realizados. Neles a facilitadora se posicionava a favor de algumas posturas e sentidos que ampliavam as possibilidades dialógicas e de ação à equipe, bem como falava explicitamente de sua leitura sobre o processo grupal, apontando caminhos que podiam se configurar úteis na construção de parcerias e aprendizagens. Cada Registro Reflexivo era lido no início de cada encontro subsequente e uma cópia era entregue a cada participante. A leitura era feita de maneira livre, sem o convite para que a equipe o tomasse como foco de discussão. Assim, a tematização do Registro nas conversas, quando se deu, foi por motivação espontânea das participantes.

O corpus de análise foi composto pelos Registros Reflexivos e pelas transcrições dos encontros. O procedimento de análise se deu a partir dos seguintes passos: 1-Leituras atentas e flutuantes das transcrições e Registros Reflexivos, identificando quais trechos deles foram tematizados em quais momentos dos encontros; 2-Identificação e análise dos orientadores construcionistas sociais utilizados na construção desses Registros citados; 3-Identificação e análise dos efeitos desses Registros na promoção de diálogos generativos; 4-Construção de resumos das interações, com edição das falas literais, de modo a dar visibilidade aos efeitos dos Registros Reflexivos na promoção de diálogos generativos.

Considerando os objetivos deste estudo, focaremos na análise do Registro Reflexivo sobre o quinto encontro, seguida da análise dos seus efeitos imediatos no sexto encontro. Chamamos de efeitos imediatos do Registro Reflexivo os impactos de sua leitura na interação grupal, especificamente para a promoção da dialogia. Esse Registro foi delimitado para análise neste artigo devido a seus efeitos na promoção do diálogo generativo. Iniciaremos essa análise, contudo, pela contextualização de sua produção, que se deu conectada com as interações ocorridas no quinto encontro. Os trechos de interação, especialmente o relativo ao sexto encontro, serão apresentados de forma extensa, com o objetivo de dar visibilidade ao processo grupal e ao efeito do Registro Reflexivo neste.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A partir da análise realizada, pudemos identificar que os Registros Reflexivos foram importantes para disparar as conversas em todos os encontros, tendo efeitos generativos imediatos na interação grupal que se seguiu após a leitura deles. Na Tabela 1, apresentamos um breve resumo de todos os encontros, possibilitando a compreensão do processo.

 

 

Para subsidiar a contextualização do Registro Reflexivo sobre o quinto encontro, que será analisado integralmente adiante, apresentaremos um trecho editado da interação ocorrida no quinto encontro, visando ilustrar a dificuldade da equipe em construir um senso compartilhado e caminhos para seguirem juntas no trabalho no CAPS.

Rosana: (...) talvez a gente precisasse falar um pouco mais dessas teorias que tão embasando a gente, o trabalho da gente. (...) e eu tive que falar pra ele "não, nós não funcionamos desse jeito". (...) Eu pus como uma posição do CAPS. Mas nós, não sei se essa é uma posição unânime no CAPS. (...) É esse teórico e essa confiança um no outro. Eu acho que, às vezes, a gente não confia um no outro. Sabe?

Facilitadora: No outro... equipe?

Rosana: Da própria equipe! Da própria equipe. Eu tenho essa sensação assim, que não confiam em mim ou que eu não confio no outro ou que eu tô sozinha nessa situação. Mas também não me sinto à vontade de chegar e falar "ô gente, porque que vocês me deixaram sozinha nessa situação" (...)

Tereza: (...) Mas acho que você tá falando de uma outra coisa, que é discutir um caso, fazer um plano pra esse caso e na hora H fazer outro. (...)

Renata: (...) às vezes, na reunião, você até tem sua teoria internalizada ali, mas na hora de discutir um caso você não consegue, às vezes, passar muito bem o que você sabe, a sua ideia, e. às vezes. você se cala, no momento. Aí depois tem a questão "mas eu posso fazer diferente" (...)

Tereza: eu pensei em duas possibilidades (fala rindo e grupo ri), que é: a situação me apresenta uma outra coisa, que não combina com aquela discussão e aí eu vou improvisar, porque eu acho que o que a gente combinou não vai combinar com a situação.(...) E tem a outra situação, que eu pensei agora, né, de que é, eu me calo, não consegui falar, fiquei com raiva da Lu porque a Lu pensa diferente e a Lu falou e aí o pessoal concordou com a Lu, e aí eu vou fazer o contrário porque eu não quero fazer o que a Lu mandou. Aí eu acho difícil, aí eu acho complicado. (...) Porque daí você tá atendendo sua relação com a Lu e não o paciente. (...)

Rosana: (...) não sei se eu tô querendo demais ou se eu esperei muito, mas, sobre isso, eu acho que a gente poderia caminhar um pouco mais de ter momentos assim, de ter uma discussão do plano terapêutico com o próprio adolescente (...). Assim, a gente perde um pouco dessa possibilidade de ser interdisciplinar (é interrompida por Tereza)

Tereza: A gente tem espaço pra isso hoje? (...) A equipe quer? (fala em tom desafiador)

Rosana: Não sei, a gente tem que pensar... Você quer que eu responda hoje? (rindo ironicamente). (Transcrição editada do quinto encontro).

No trecho apresentado a equipe se dedica à discussão de questões consideradas dificultadoras da prática conjunta, quais sejam: o pouco embasamento teórico para as ações, a falta de coerência de ações na equipe, a ausência de confiança mútua e a dificuldade de se colocar e de ouvir diante da discordância. Nessa conversa, observamos a instauração progressiva de um clima tenso e irônico. As participantes se dedicam a pensar e conversar sobre as dificuldades de relacionamento da equipe, mas essa conversa não encontra possibilidades de caminhar para a construção de uma perspectiva compartilhada de futuro.

É importante observar que a conversa se desenrola em torno de ideias abstratas sobre confiança, coerência e trabalho conjunto, dificultando a compreensão de como aquelas ideias se manifestavam na experiência cotidiana e afetavam a vida de cada uma. Talvez, por isso, a conversa tenha se mostrado pouco dialógica – isto é, com pouca escuta e reflexão sobre as ideias e emoções manifestadas por cada uma das participantes na conversa.

Nesse sentido, o Registro Reflexivo sobre o quinto encontro foi elaborado com o objetivo principal de cuidar do processo grupal, reestabelecendo o potencial generativo do diálogo. Apresentamos o Registro na íntegra, com a intenção tanto de dar visibilidade para os aspectos que nortearam sua redação (tal como descrito no item método), como de mostrar como ele se constituiu como uma forma responsiva às interações vivenciadas pelas participantes durante o encontro vivido.

Nosso quinto encontro foi intenso. Penso que a equipe mergulhou no desafio de pensar as práticas e o trabalho como produção de cuidado e de sentido para a vida, fugindo de uma lógica taylorista de trabalho em esteira, onde cada um coloca seu parafuso e encaminha, sem envolvimento.

E essa conversa nos levou para uma outra conversa sobre os relacionamentos dentro da equipe. Falamos de confiança mútua, da dificuldade de falar e ouvir críticas, apesar do reconhecimento de que é pela divergência – e não pela unanimidade – que crescemos e melhoramos nossas práticas. Fiquei pensando que talvez seja este envolvimento – que é positivo – que faça com que em alguns momentos não consigamos ouvir críticas ao nosso trabalho. Acho que estamos diante de uma tarefa complexa, mas importantíssima: tomarmos o trabalho como algo inseparável da vida, nos envolvendo com ele, mas ao mesmo tempo conseguirmos ter o distanciamento necessário, em algumas situações, que nos permita não nos ofender pessoalmente com algumas divergências relacionadas às nossas práticas profissionais. O que vocês pensam disso?

A equipe ressaltou o quanto é importante não se sentir sozinha nas práticas cotidianas de cuidado. Fiquei pensando: Quando vocês se sentiram sozinhas no trabalho? Quando não se sentiram? E o mais importante: o que aconteceu para que vocês não se sentissem sozinhas? Que ações cada uma pode ter para construir junto a outra essa sensação de apoio?

Falamos também das consequências do pensamento crítico, compartilhando as angústias que se colocar sempre em dúvida nos causa. O grupo concordou que optar pelo pensamento crítico, questionador do status quo e do caminho mais fácil, é a opção mais honesta, apesar de mais angustiante. Envolve reconhecer nossas limitações e erros, ao invés de travesti-los de naturalidade e imparcialidade. Fiquei pensando que para o trabalho em saúde mental isso é essencial. E me lembrei de uma frase do Popper, filósofo da ciência: "nunca se pretenda mais precisão do que a exigida pelo problema que se tem em mãos". Se na saúde mental nossos problemas são tão complexos, subjetivos, multicausais e imprecisos, penso que aprendermos a tolerar a imprecisão e a incerteza é parte fundamental das nossas ações. O que vocês acham dessa colocação?

Estou ansiosa por nossas conversas de hoje... (Registro Reflexivo sobre o quinto encontro).

Considerando o objetivo de cuidar do processo grupal, buscamos, no Registro Reflexivo sobre o quinto encontro, acolher as discussões e desconfortos compartilhados no grupo, num exercício de responsividade, ressaltando as potencialidades delas, isto é, investindo na dialogia, com foco no futuro.

Nesse sentido, já na primeira frase utilizamos o adjetivo "intenso" como descritor do quinto encontro, cuidadosamente escolhido para evitar o uso da palavra "tenso". Ao substituir a ideia de tensão pela de intensidade, visamos a ressignificação da experiência vivida pela equipe, ao mesmo tempo que legitimando a emocionalidade presente naquela interação.

Na sequência e no parágrafo seguinte, buscamos nomear uma potencialidade da equipe que aquela discussão revelava, indicando que ela significava que a equipe se recusava a ter um trabalho sem envolvimento e sem sentido. Reforçando a potencialidade e a responsividade ao grupo, compartilhamos uma interpretação sobre o que tornava complexa a conversa sobre críticas ao trabalho. Contudo, numa perspectiva de autocrítica reflexiva, buscamos colocar em perspectiva nossa interpretação, convidando o grupo a conversar sobre ela com a pergunta "o que vocês pensam disso?".

O uso da autocrítica reflexiva significa empregar o processo de autoquestionamento, de colocar em dúvida ou sob avaliação nossas próprias certezas, a partir de maneiras alternativas de considerá-las. Trata-se, assim, de um processo de desconstrução das certezas e metanarrativas. As/os autoras/es construcionistas explicam que as certezas são problemáticas porque travam o processo generativo dos diálogos, na medida em que limitam visões alternativas e estabelecem graus de inteligência e especialidade, hierarquizando as/os participantes (McNamee & Moscheta, 2015; McNamee & Shotter, 2004).

No terceiro parágrafo o convite está em ir além do ocorrido no quinto encontro, ampliando as reflexões, com foco pragmático e em situações concretas, evitando o uso de ideias abstratas. Buscamos convidar as participantes a conversarem sobre situações vivenciadas por elas como situações em que sentiram sozinhas e em que não se sentiram sozinhas, identificando as ações de cada uma que subsidiaram ou não a possibilidade de parceria. Assim, as convidamos a um movimento diferente do realizado no quinto encontro, em que queixas sobre o relacionamento entre a equipe foram tratadas de modo abstrato e generalista. Entendemos que conhecer os contextos específicos dos quais as opiniões e sentimentos das pessoas vieram nos ajuda a entender a coerência situada da posição de cada uma. Ao evitar a abstração, convidando as pessoas a explicarem estes conceitos a partir de suas histórias de vida, de suas experiências pessoais e de suas práticas, o/a facilitador/a convida o grupo ao diálogo generativo (McNamee & Moscheta, 2015).

No quarto e último parágrafo, ao abordarmos outro aspecto tratado no quinto encontro e que dizia respeito ao âmbito mais macro e filosófico sobre a prática em saúde mental, utilizamos outro recurso para a promoção da responsividade e dialogia, que é o uso de reflexões metonímicas. Esse recurso consiste em tomar parte do que outra pessoa disse como o início para uma reflexão ou ideia, gerando a sensação de algo compartilhado, construído conjuntamente (Green & Wheeler, 2004). Assim, relembramos o que fora trazido pelo grupo com nossas palavras, reconhecendo a importância da conclusão a que o grupo chegara, relacionada à assunção de "nossas limitações e erros, ao invés de travesti-los de naturalidade e imparcialidade". A partir disso, e ainda na tarefa da promoção da dialogia e no exercício de autocrítica reflexiva, trazemos as palavras de Popper (Popper, 1987), convidando-as a refletirem e opinarem sobre a conexão de ideias feita.

Esse Registro Reflexivo foi lido no sexto encontro contribuindo para a interação a seguir:

Luciana: Você é praticamente uma poeta, assim, né?! (fala rindo, se referindo à facilitadora e facilitadora ri). Né, muito chique, assim, você viaja, né, pra escrever esses relatos (fala rindo e facilitadora ri). É muito bom! (...)

Tereza: Esse fim foi demais!

Júlia: Eu gostei do meio, esse negócio de não dissociar o trabalho do, como é que é? "o trabalho é algo inseparável da vida". (...) ai, adorei isso! (facilitadora ri).

Maria: Mas eu acho que o que ela fala aqui é não só que o trabalho tem que ser inseparável, mas que você tem que saber, às vezes, separar algo, quando alguém te fala alguma coisa (Júlia fala junto: isso!) no trabalho não é pra você, né?! (...)

Júlia: É, pensar no coletivo, né, com pensamento de grupo. Se ele tá falando aquilo, é pra melhorar o trabalho do grupo. Então, você não leva pro lado pessoal/ (é interrompida por Tereza)

Tereza: É pra você! Acho que não é "não é pra você", é pra você, mas é a diferença de falar pra criança assim: "Você faz tudo errado, você é ruim" (Facilitadora fala junto: u-hum) e de falar pra criança: "Esse seu comportamento não tá funcionando".

Renata: Que vem de acordo com a frase aqui embaixo, né, (referindo-se ao Registro Reflexivo) gostei dessa parte da frase aqui: "saber tolerar a incerteza é parte fundamental do nosso trabalho", ser tolerante às vezes é complicado, né?! Porque ser tolerante com o paciente é uma coisa. Agora, ser tolerante com alguém da sua equipe... é complexo. Porque a gente, às vezes, se coloca "o que eu faria naquele lugar? Ah, eu faria diferente no lugar daquela pessoa", mas essa é a questão, você não é aquela pessoa! (...). Eu vou dar o exemplo de um caso concreto. Esses tempos atrás, chegou uma paciente nova, né, que eu fiz o acolhimento dela, mas na verdade ela tinha procurado pela primeira vez o serviço pra filha dela. Né?! E aí a filha dela tá em isolamento social há vinte anos e aí ela chegou né, pedindo ajuda lá no CAPS e foi feito um acolhimento pra filha dela (...). Foi essa mãe que chegou pra mim. (...) E de repente na hora que eu abri a pasta dessa paciente em isolamento social há vinte anos, tinha, assim, quatro linhas de acolhimento e o procedimento foi marcar uma consulta com psiquiatra. Aquilo me deu uma angústia tão grande, ver aquele tipo de acolhimento, aquele tipo de situação e eu queria matar o colega! (fala rindo e grupo ri). (...) E aí eu respirei, você respira, não tem como discutir esse caso em equipe, expor a pessoa, primeiro eu vou ter conversar com o colega (...) E aí o colega: "(...) na verdade a paciente não tinha vindo no dia, só veio a mãe, porque a paciente estava em isolamento social" (...). Tem que ter jeito pra falar, você tem que falar com paciência, com tolerância, com educação, ver por que que a pessoa tá fazendo aquilo ou não fez aquilo, mesmo porque se fosse ao contrário você também aceitaria que qualquer pessoa chegasse pra te intimar "ó, por que que você não fez isso?", né?! (...)

Fabiana: Eu vejo que é o desafio do trabalho interdisciplinar (...) E eu acho que a hora que pega é a hora que eu quero que o outro faça o que eu sei, o que eu aprendi, o que eu estudei ou o que eu faria. Isso fica complicado! (facilitadora diz junto: u-hum).

Luciana: (...) Dá nó, por exemplo, quando você acha que, é, que tem umas coisas de ego, você olha assim e você fala "nossa, mas a pessoa tá falando de social, tá falando bem do social, nossa, olha só!" (fala rindo, em tom descontraído).

Facilitadora: Pára! Pára, isso sou eu que falo! (diz rindo, em tom descontraído).

Luciana: Essa fala não! (fala rindo). Deixa eu falar! Deixa eu falar! (fala rindo). (...)

Fabiana: (...) Lembra um grupo que você falou assim (referindo-se à Tereza): "ó, na hora que eu dei o corte, era pra ela ir embora pra pensar nisso"? E eu "vamos continuar, e vamos conversar!", e a Tereza falou "olha, eu pensei nisso, mas por conta da teoria, da formação da, que é da psicologia" (Tereza fala junto: u-hum) e no grupo eu não percebi, lógico, eu não tinha ideia de que isso existia (fala rindo) (...).

Tereza: O meu lado otimista diz que isso é uma questão de afinar (...). Porque eu não fiquei brava com você nessa hora (...). Teve uma vez no grupo de família também, faz muito tempo atrás, que a, a gente tava numa toada "tititi-tatata", aquela coisa, né, a falação, "blá-blá-blá", "tititi-tatata", a Lu deu um corte na mãe (Tereza e Luciana riem em tom descontraído) que, assim, a primeira coisa que eu falei foi "pelo amor de deus! O que que a Luciana tá se metendo a ser psicóloga neste momento, né?!" (Júlia fala junto: nesse exato momento!). Em seguidinha, a mãe tirou uma foto do menino bebê e resgatou um cuidado, um carinho, eu falei "Lu!" (...) Fez um super efeito na família, acabou o "blá-blá-blá", assim, mudou completamente a conversa, e resgatou, eu falei "nossa, que legal!". Vou brigar com ela porque ela é assistente social e não podia fazer isso? (fala rindo em tom descontraído). Não tem sentido!

Facilitadora: "Lu, você me fala que eu falo!" (diz rindo, em tom descontraído, como que imitando Tereza; grupo ri). "Manda no Whatsapp!"

Renata: Peraí, escreve um bilhetinho, passa! (fala rindo, em tom descontraído e grupo ri). (...) (Transcrição editada do Encontro 6).

Nessa interação podemos ver que leitura do Registro Reflexivo sobre o quinto encontro subsidiou a discussão que se iniciou no grupo. A partir da ideia, apresentada no Registro, de que o trabalho seria indissociável da vida, as participantes se engajaram em um diálogo sobre dificuldades de relacionamento na equipe e de construção de prática conjuntas, assunto semelhante ao tratado no encontro anterior, mas, dessa vez, em tom amistoso, acolhedor, alegre e descontraído. As reflexões puderam ser sobre o coletivo "nós" e a conversa caminhou de uma discussão de conflitos para as potencialidades da prática interdisciplinar, típica dos CAPSs.

Para isso, foi importante a mudança da conversa sobre questões abstratas, como a dificuldade de não levar as críticas para o lado pessoal e o modo ideal de se fazer críticas à colega, para as situações específicas vivenciadas. Tal como o convite feito no Registro Reflexivo, as participantes exploram algumas experiências de divergências vivenciadas no cotidiano do serviço, ressignificando-as e tomando-as como possibilidade de construção de aprendizagens e parcerias. Isso é iniciado por Renata, que compartilha um exemplo de como havia conversado com um colega de seu serviço, sobre a insatisfação com o acolhimento que ele fizera com uma paciente.

Nesse movimento, Tereza tem a chance de explicar para Fabiana que, na situação vivida por elas na coordenação conjunta de um grupo de família, ela havia compreendido o "corte" que Fabiana fizera em sua intervenção, ressaltando acreditar na possibilidade de "afinação" entre coordenadora e cocoordenadora. Em seguida, citando o exemplo de outra situação vivida, Tereza faz um relato na qual havia sido ela a pessoa que, no momento do grupo, não compreendera uma intervenção feita por Luciana, mas reconhecendo, em seguida, o efeito transformador que a mesma tivera junto à família. Assim, o grupo pôde conversar sobre duas situações distintas em que a mesma profissional ocupou posições diferentes, dando concretude às falas sobre a potência do trabalho interdisciplinar e a possibilidade de afinação entre as diferentes áreas e profissionais.

Reconhecendo a potência desse trabalho em conjunto, as participantes, juntamente com a facilitadora, se engajam, inclusive, em fazer piada com a possibilidade de uma profissional de uma área se ofender com a intervenção de sucesso feita por outra, por considerá-la exclusiva de seu campo profissional. Rir do que é considerado difícil, polêmico ou conflituoso é um caminho para o autoquestionamento e questionamento mútuo, contribuindo para trocas dialógicas e transformativas, que constroem novos cenários e possibilidades de ação (Barret, 2004). Assim, o processo conversacional, do qual o Registro Reflexivo fez parte, delineou as possibilidades de transformação, iniciando pela discussão de conflitos da equipe, em clima tenso, para a construção de sentidos que convidam a parcerias e práticas interdisciplinares, em tom bem-humorado.

Pudemos ver, portanto, que apesar de lidos sem a obrigação de serem tematizados nas conversas do grupo, os Registros Reflexivos foram tomados como disparadores de reflexão pelas participantes, contribuindo para a abertura de caminhos para transformações das relações ali construídas e de sentidos sobre as práticas de cuidado. Assim, se configuram em recurso útil para o momento interacional, auxiliando na facilitação grupal para a EPS.

Além disso, os Registros Reflexivos se mostraram importantes para preparação da facilitadora para os encontros grupais. No momento da sua escrita, eles se configuraram como recurso de reflexão para a facilitadora, auxiliando-a na visualização de alternativas a serem desenvolvidas por ela na posição de facilitação e incentivando-a a colocar em perspectiva suas ações, intervenções e interpretações, exercitando a dialogia e priorizando as produções relacionais do grupo. Assim, no exercício de construí-los, a facilitadora colocou em prática os orientadores construcionistas para a o desenvolvimento da responsividade, da responsabilidade relacional, do foco nas potencialidades e da dialogia, com base em situações contextualizadas (Schnitman, 2016; Guanaes-Lorenzi, 2017; McNamee & Moscheta, 2015). Dessa forma, fez o exercício de interligação entre teoria e prática, com relação à sua própria prática como facilitadora.

Os Registros Reflexivos constituíram, portanto, recursos úteis para a prática grupal, especificamente para a promoção da EPS, pois possibilitaram tanto o processo de aprendizagem conjunta no momento interativo, quanto o processo de aprendizagem da facilitadora, ao debruçar-se sobre a própria prática para a proposição dos Registros.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise aqui apresentada mostra a utilidade dos Registros Reflexivos na facilitação de processos grupais, a partir da experiência com sua utilização em um processo voltado à EPS, enfatizando o modo de produção do mesmo e seus efeitos no momento interacional. Como vimos, eles contribuíram para a preparação da facilitadora e para o processo grupal, enfatizando a potência do grupo para a construção de reflexões e aprendizagens sobre a prática, bem como para a transformação de sentidos.

A utilização dos Registros Reflexivos, como parte de uma facilitação grupal pautada nos aportes construcionistas sociais, se mostrou conectada com os princípios da EPS. Os Registros, tal como todo o processo de facilitação, foram construídos a partir da permeabilidade ao contexto e às necessidades da equipe, considerando o relacionamento entre as profissionais, possibilitando a problematização e a aprendizagem significativa e conjunta, com vistas à construção de sujeitos críticos, capazes de se engajar na construção de futuros preferíveis.

Vale destacar que, além dos efeitos para a interação e preparação da facilitadora, os Registros Reflexivos cumpriram também a função de documentar e registrar o que fora conversado em cada encontro. Esse aspecto é relevante pois os Registros configuram, ainda, uma forma memorável e perene de aprendizagem, podendo ser resgatados no futuro, incitando novas reflexões.

Como trata-se de estudo qualitativo e com validade local, é importante ressaltar que os Registros Reflexivos não configuram uma técnica que pode ser adotada como padrão em processos grupais. Na verdade, vale ressaltar que nenhuma técnica pode ser considerada dialógica por si só. Ao contrário, o construcionismo social, ao oferecer aportes dialógicos para facilitação de grupos, nos convida à construção cuidadosa do contexto conversacional, com permanente tolerância e abertura para a imprevisibilidade que caracteriza o diálogo e a interação em grupo, aspectos que apresentam uma importante contribuição para o planejamento e realização de práticas que se voltam à EPS. Em nosso estudo, o uso de alguns recursos retóricos na construção do texto, como a autocrítica reflexiva, o foco pragmático e nas potencialidades e na produção relacional dos sentidos e as reflexões metonímicas parecem ter sido fundamentais, construindo os Registros como um recurso conversacional útil pra construção da dialogia no interior do grupo. Desta forma, entendemos que os Registros Reflexivos podem se configurar em recursos para diferentes práticas grupais, com diversos fins e objetivos, desde que elaborados em conexão com cada contexto e com a finalidade de cada grupo.

 

REFERÊNCIAS

Barret, F. J. (2004). Critical moments as "change" in negotiation. Negotiation Journal, 20(2), 213-219. https://doi.org/10.1111/j.1571-9979.2004.00018.x        [ Links ]

Barros, R. B. (2013). Grupo: A afirmação de um simulacro (3a ed). Sulina/Editora de UFRGS.         [ Links ]

Brasil. (2009). Política nacional de educação permanente em saúde. Ministério da Saúde. http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/pacto_saude_volume9.pdf        [ Links ]

Campos, G. W. S., Cunha, G. T., & Figueiredo, M. D. (2013). A formação em saúde e o apoio paideia: Referenciais teórico e metodológicos. In Práxis e formação paideia: Apoio e cogestão em saúde (pp. 123-200). Hucitec.         [ Links ]

Ceccim, R. B. (2010). A educação permanente em saúde e as questões permanentes à formação em saúde mental. Caderno Saúde Mental, 3, 67-90. https://docs.bvsalud.org/biblioref/coleciona-sus/2010/27383/27383-319.pdf        [ Links ]

Ceccim, R. B., & Ferla, A. A. (2008). Educação e saúde: Ensino e cidadania como travessia de fronteiras. Trabalho Educação e Saúde, 6(3), 443-456. https://doi.org/10.1590/S1981-77462008000300003        [ Links ]

Chen, M., Noosbond, J. P., & Bruce, M. A. (1998). Therapeutic document in group counseling: An active change agent. Journal of Counseling & Development, 76, 406-411. https://doi.org/10.1002/j.1556-6676.1998.tb02699.x        [ Links ]

Feuerwerker, L. C. (2014). Micropolítica e saúde: Produção do cuidado, gestão e formação. Rede Unida.         [ Links ]

Freire, P. (2015). Pedagogia do oprimido (59a ed). Paz e Terra.         [ Links ]

Schnitman, D. F. (2011). Procesos generativos y prácticas dialógicas. Nova perspectiva sistêmica, 20(41), 9-34. https://www.revistanps.com.br/nps/article/view/199        [ Links ]

Schnitman, D. F. (2016). Perspectiva e prática generativa. Nova Perspectiva Sistêmica, 25(56), 55-75. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-78412016000300006        [ Links ]

Gergen, K. J. (2014). From mirroring to world-making: Research as future forming. Journal for the Theory of Social Behaviour, 45(3), 287-310. https://doi.org/10.1111/jtsb.12075        [ Links ]

Green, G. M., & Wheeler, M. (2004). Awareness and action in critical moments. Negotiation Journal, 20(2), 349-364. https://doi.org/10.1111/j.1571-9979.2004.00028.x        [ Links ]

Guanaes, C., & Japur, M. (2005). Sentidos de doença mental em um grupo terapêutico e suas implicações. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 21(2), 227-235. https://doi.org/10.1590/S0102-37722005000200013        [ Links ]

Guanaes-Lorenzi, C. (2015). From working with groups to working as a group: Reflections of group practice in the family health strategy. In E. Rasera (Org.), Social constructionist perspectives on group work (p. 41-50). Taos Institute Publications.         [ Links ]

Guanaes-Lorenzi, C. (2017). Recursos para facilitação de grupos em um enfoque construcionista social. In M. Grandesso, Práticas colaborativas e dialógicas em distintos contextos e populações: Um diálogo entre teoria e prática (p. 399-418). CRV.         [ Links ]

Hersted, L., Ness, O., & Frimann, S. (2020). Action research in a relational perspective. Routledge.         [ Links ]

Jesus, M. J. B. S. (2012). Sentidos sobre ética em conversas profissionais: Perspectivas discursivas (Dissertação de mestrado). Instituto de Psicologia, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia.         [ Links ]

McNamee, S. (2014). Construindo conhecimento/construindo investigação: Coordenando mundos de pesquisa. In C. Guanaes-Lorenzi, M. Moscheta, C. M. Corradi-Webster, & L. V. e Souza, Construcionismo Social: Discurso, prática e produção do conhecimento (pp. 105-131). Instituto Noos.         [ Links ]

McNamee, S., & Moscheta, M. (2015). Relational intelligence and collaborative learning. New Directions for Teaching and Learning, 2015(143), 25-40. https://doi.org/10.1002/tl.20134        [ Links ]

McNamee, S., & Shotter, J. (2004). Dialogue, creativity, and change. In R. Anderson, L. Baxter, & K. Cissna, Dialogic approaches to communications (p. 91-104). Sage.         [ Links ]

Moscheta, M. S. (2011). Responsividade como recurso relacional para a qualificação da assistência à saúde da população LGBT (Tese de doutorado). Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto.         [ Links ]

Paiva, L. P. C., & Rasera, E. (2012). O uso das cartas terapêuticas na prática clínica. Psicologia Clínica, 24(1), 193-207. https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-56652012000100013        [ Links ]

Popper, K. (1987). O realismo e o objectivo da ciência. Dom Quixote.         [ Links ]

Rasera, E. (2015). The group as social construction: From the clinical setting to the community. In E. Rasera (Org.), Social constructionist perspectives on group work (p. 81-89). Taos Institute Publications.         [ Links ]

Silva, G. M. (2017). A Educação Permanente em Saúde na formação para o cuidado às famílias em saúde mental (Tese de Doutorado). Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto.         [ Links ]

White, M., & Epston, D. (1993). Medios narrativos para fines terapéuticos. Paidós.         [ Links ]

Yalom, I. D. (2006). Psicoterapia de grupo: Teoria e prática (5a ed). Artmed.         [ Links ]

Zimerman, D. E. & Osorio, L. C. (1997). Como trabalhamos com grupos. Artes Médicas.         [ Links ]

 

 

Financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo - FAPESP nº 2014/09444-1 e 2016/03467-5.

 

 

Endereço para correspondência
Gabriela Martins Silva
E-mail: gabrielampsico@gmail.com

Recebido: 15/05/2020
Reformulado: 24/06/2020
Aceito: 25/06/2020

 

 

1 Gabriela Martins Silva é doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo e docente do Colégio de Aplicação Escola de Educação Básica da Universidade Federal de Uberlândia.
2 Carla Guanaes-Lorenzi é doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo e docente do Departamento de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

Creative Commons License Todo o conteúdo deste periódico, exceto onde está identificado, está licenciado sob uma Licença Creative Commons