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Revista da SPAGESP

versão impressa ISSN 1677-2970

Rev. SPAGESP vol.22 no.2 Ribeirão Preto jul./dez. 2021

 

ARTIGOS

 

Condução de um caso de violência contra a criança: relato de experiência

 

Conducting a case of violence against children: an experience report

 

Conduciendo un caso de violencia contra los niños: un relato de experiencia

 

 

Carolina Schmitt Colomé1; Juliana Kuster de Lima Maliska2; Jana Gonçalves Zappe3

Universidade Federal de Santa Maria, Santa Maria-RS, Brasil

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo apresenta o relato de uma experiência de enfrentamento de um caso de violência contra a criança, discutindo a condução do caso pelos profissionais. Foram utilizados registros de prontuários, supervisões e reuniões de equipe, estruturados como um relato de caso analisado por meio da literatura científica, técnica e legal. Os resultados evidenciaram divergências relativas à construção de uma linguagem comum entre os diferentes profissionais, bem como sobre a construção de uma estratégia conjunta de notificação e de enfrentamento, envolvendo questões sobre sigilo e a busca do menor prejuízo ao paciente. Salienta-se a importância de abordar tais questões na formação profissional inicial e continuada, para que situações de violação de direitos de crianças e adolescentes sejam enfrentadas com maior resolutividade.

Palavras-chave: Direitos da Criança; Saúde Mental; Atuação do Psicólogo.


ABSTRACT

This study presents the report from a coping experience concerning about case of violence against the child, discussing the professionals' handling of the situation. Medical records, supervisions, and team meetings were used to structure the case report, which was analyzed through scientific, technical, and legal literature. The results showed divergences regarding the construction of a common language among the different professionals involved. Even as divergences on how to elaborate a joint strategy of notification and coping, especially involving confidentiality matters, seeking for the least prejudice to the patient. It concludes by indicating the importance of addressing such issues in health professionals' graduation, aiming to prepare them to face situations of violation of children's and adolescents' rights with better resolution.

Keywords: Children Rights; Mental Health; Psychologist Performance.


RESUMEN

Este estudio presenta un relato de experiencia de albardilla de un caso de violencia contra el niño, discutiendo el manejo de este por parte de los profesionales. Se utilizaron registros médicos, supervisión y reuniones de equipo. El caso fue analizado a través de la literatura científica, técnica y jurídica. Se evidenciaron divergencias relativas a la construcción de un lenguaje común entre los profesionales del servicio, así como sobre cómo construir una estrategia conjunta de notificación, involucrando especialmente cuestiones sobre secreto profesional y la búsqueda del menor perjuicio al paciente. Se concluye indicando la importancia de abordar tales cuestiones en la formación de profesionales de salud, a fin de que enfrenten las situaciones de violación de derechos con mayor resolución.

Palabras clave: Derechos del Niño; Salud Mental; Actuación del Psicólogo.


 

 

A exposição à violência se constitui como fator de risco para a socialização e para o estabelecimento de relações familiares satisfatórias na infância e na adolescência, podendo se materializar através do uso de castigos, ameaças, privação de amor e afeto, xingamentos depreciativos e humilhantes, além da agressão física (Brasil, 1990; 2006; Fonseca, 2015; Gershoff & Grogan-Kaylor, 2016). Definida pela Organização Mundial da Saúde, a violência seria caracterizada pelo "[...] uso intencional da força ou poder em uma forma de ameaça ou efetivamente, contra si mesmo, outra pessoa ou grupo ou comunidade, que ocasiona ou tem grandes probabilidades de ocasionar lesão, morte, dano psíquico, alterações do desenvolvimento ou privações" (World Health Organization, 2002, p. 5).

De acordo com o Relatório de Status Global sobre a Prevenção da Violência Contra Crianças em 2020, estima-se, em âmbito mundial, que uma a cada duas crianças entre 2 e 17 anos sofra algum tipo de violência a cada ano (World Health Organization, 2020). Assim, destaca-se a importância de diretrizes legais, de orientações técnicas e de concepções sociais que garantam que crianças e adolescentes não devem sofrer nenhuma forma de negligência, violência e/ou discriminação (Brasil, 1990; 2006; Fonseca, 2015; Gershoff & Grogan-Kaylor, 2016).

Historicamente, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), instituído pela Lei n° 8.069 de 1990, foi caracterizado como conquista relevante para regulamentação dos direitos das crianças e adolescentes, os quais, em vez de objetos de tutela, passaram a ser socialmente reconhecidos como sujeitos de direitos (Barbiani, 2016; Brasil, 1990; 2006; Fonseca, 2015). A infância e a adolescência são períodos peculiares do desenvolvimento que se caracterizam pela necessidade de proteção e cuidados, de forma que a oferta de uma rede de atenção integral se constitui medida necessária para garantir os direitos dessa população (Brasil, 2014a).

O Ministério da Saúde estabeleceu em 2010 a "Linha de Cuidado para a Atenção Integral à Saúde de Crianças, Adolescentes e suas Famílias em Situação de Violência", a qual se caracteriza como estratégia de ação que busca alcançar a integralidade da atenção em saúde, princípio proposto como um dos pilares do Sistema Único de Saúde (SUS). Para isso, apresenta orientações baseadas em princípios de humanização e proteção integral, que valorizam a importância da continuidade de cuidados em rede, envolvendo a proteção social e os serviços de atenção psicossocial, que recebem casos e oferecem atendimentos às demandas relacionadas à violação de direitos. Nessa perspectiva, consolida-se a ideia de que o cuidado em rede é um passo fundamental para assegurar a proteção social e estruturar a atenção integral à saúde de crianças, adolescentes e suas famílias, destacando-se que, para isso, não se trata da criação de novos serviços, mas da adoção de uma concepção de trabalho que requer a articulação intrasetorial e intersetorial (Brasil, 2010b).

Nesse sentido, em termos intrasetoriais, a rede de atenção psicossocial envolve a participação de diversos dispositivos assistenciais nos quais atuam diferentes profissionais que oferecem cuidados em saúde, desde a Atenção Básica até a Especializada, incluindo os Centros de Atenção Psicossocial, os Serviços de Urgência e Emergência e os Serviços de Atenção Hospitalar, todos em fundamental parceria com as Redes Intersetoriais (Brasil, 2010a; 2010b; 2014a). Com relação a estas últimas, no espaço do território, o SUS deve atuar em interação com os sistemas de proteção social, assistência social, segurança pública, justiça e direitos humanos, buscando a construção de um planejamento conjunto de ações que melhor atendam às necessidades das crianças em situação de violação de direitos.

Assim, pautada pela Política Nacional de Humanização (PNH), a Linha de Cuidado para a Atenção Integral à Saúde de Crianças, Adolescentes e Suas Famílias em Situação de Violência deve seguir o seguinte fluxo: Acolhimento, Atendimento, Notificação, e Seguimento na rede de cuidado e proteção social (Brasil, 2010a; 2010b; 2013). O Acolhimento não se configura como um espaço ou um local exato, mas um posicionamento ético que não pressupõe hora nem profissional específico para realizá-lo. É quando o profissional de saúde toma para si a responsabilidade de acolher a criança ou o adolescente em suas demandas, com resolutividade e de acordo com cada situação. No caso da identificação de situações de violência durante o acolhimento, destaca-se que é frequente o aparecimento do sentimento de medo, por parte da criança ou adolescente violentados, o que precisará ser manejado de forma cuidadosa pelos profissionais implicados (Baptista, 2015; Brasil, 2010a; 2010b; 2013; Ramos & Silva, 2011).

Em seguida, o usuário é encaminhado para o Atendimento, considerado como ação multiprofissional no próprio serviço e também em articulação com a rede de cuidado e de proteção social. Nesse contexto, enfatiza-se que a atuação do profissional diante da criança ou adolescente em situação de violação de direitos também deve incluir a família na construção das propostas de cuidado (Brasil, 2010a; 2010b; 2013).

Em sequência, deve ocorrer a Notificação ao Conselho Tutelar, obrigatória diante de qualquer suspeita ou confirmação de maus-tratos e/ou violência contra criança e/ou adolescente (Brasil, 1990, 2014b; Fonseca, 2015; Garbin et al., 2015). Nesse contexto, o Conselho Tutelar é indicado pelo ECA como ponto importante da complexa rede de apoio e proteção, sendo o órgão do sistema de garantia de direitos responsável por zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente (Brasil, 2010a; 2010b; Fonseca, 2015). Porém, apesar da obrigatoriedade da notificação, cabe ao serviço de saúde, por meio da discussão em equipe e avaliação de cada caso a partir das suas singularidades, avaliar qual o melhor momento de registro e encaminhamento do caso ao Conselho Tutelar. Nesse ponto, é importante atentar para os obstáculos que podem dificultar o processo de notificação para os profissionais, como o medo, a insegurança emocional e o manejo do processo de quebra de sigilo. Dessa forma, embora os profissionais possam compreender a obrigatoriedade da notificação frente à identificação da violência, podem não saber como proceder para realizá-la de forma efetiva. Para superar essas dificuldades, considera-se fundamental tomar a notificação como um instrumento de proteção, e não meramente de denúncia ou punição (Brasil, 2010a; 2010b; 2013; Garbin et al. 2015).

Por fim, o Seguimento na rede de cuidado e proteção integral compreende os cuidados clínicos e psicológicos de crianças, adolescentes e suas famílias em situação de violência, incluindo protocolos e fluxos específicos que devem envolver a rede de saúde organizada nos três níveis de atenção. Assim, embora desafiadora, a tarefa dos profissionais envolve auxiliar a família a encontrar estratégias mais resolutivas para lidar com a situação de violência. Portanto, a equipe responsável precisa ser vista como fonte de suporte para o estabelecimento e manutenção de formas de relação mais saudáveis e funcionais para todos os membros envolvidos. Nesse ponto, coloca-se a importância da não culpabilização dos pais, de modo que estes possam se sentir seguros com a notificação e que esta possa representar uma oportunidade de modificação da dinâmica familiar, não uma retaliação. Caso contrário, eles podem enxergar os profissionais como responsáveis pela notificação de uma forma negativa, ou até mesmo culpabilizar a criança ou adolescente violentado, prejudicando ou até impedindo a continuidade do cuidado (Arpini et al., 2008; Brasil, 2010a; 2010b; 2013; Ramos & Silva, 2011).

No que tange à Rede de Atenção Psicossocial, os Centros de Atenção Psicossocial para Infância e Adolescência (CAPSi) são destinados ao atendimento de crianças e adolescentes comprometidos psiquicamente, portadores de psicopatologias relacionadas ao autismo, psicoses, neuroses graves, e aqueles que, por sua condição psíquica, estão impossibilitados de manter ou estabelecer laços sociais. A esse respeito, é fundamental considerar que a saúde mental é definida como algo que não se restringe à ausência de transtornos mentais, mas consiste em que o indivíduo consiga lidar com as tensões da vida e pertencer a uma comunidade, reconhecendo suas próprias habilidades, potencialidades e limitações, o que é determinado por fatores socioeconômicos, biológicos, psicológicos e ambientais. Destaca-se, nesse sentido, que a violência é significativo fator de risco à saúde mental, de forma que promover ações que visem à proteção dos direitos fundamentais relacionados a este aspecto se constitui como foco das políticas internacionais e nacionais de prevenção e promoção de saúde mental. De forma mais direta, a Organização Mundial de Saúde preconiza que intervenções na primeira infância, apoio às crianças e programas de prevenção de violência são importantes ações de promoção de saúde mental (World Health Organization, 2018).

Entretanto, apesar das crescentes reflexões e discussões, além do estabelecimento de diretrizes, normativas e legislações acerca do enfrentamento da violação de direitos de crianças e adolescentes, ainda é possível identificar uma certa "passividade" social e cultural em relação a essa problemática (Brasil, 2006; Fonseca, 2015; Gershoff & Grogan-Kaylor, 2016). Na realidade brasileira, a alteração no ECA conhecida popularmente como "Lei da Palmada" ou "Lei Menino Bernardo" (Lei 13.010/2014), que esclareceu o direito à educação sem o uso de castigos físicos e/ou tratamento cruel ou degradante (Brasil, 2014b; Fonseca, 2015; Garbin et al. 2015), buscou romper com essa passividade, mas ainda precisa ser assimilada pelo conjunto da população.

Nesse sentido, coloca-se a importância dos CAPSi direcionarem sua atenção não apenas para o tratamento de transtornos mentais, como também para a promoção de ações mais amplas no campo da saúde mental. Sob este ângulo, destaca-se a relevância da apropriação e do cumprimento da legislação acerca dos direitos das crianças e adolescentes por parte dos profissionais atuantes nos CAPSi, os quais costumeiramente se defrontam com práticas diretas de violência e negligência por parte dos familiares e cuidadores, as quais despontam com altos índices, atingindo milhões de crianças e adolescentes em todo o mundo (Organização Mundial de Saúde, 2015).

As equipes técnicas dos CAPSi devem sempre buscar atuar de forma interdisciplinar, sendo recomendada a participação de médicos, psicólogos, enfermeiros, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais e assistentes sociais, por exemplo. O tratamento dos usuários deve ter estratégias e objetivos múltiplos, de maneira a garantir a atenção e proteção integrais às crianças e aos adolescentes, envolvendo a adoção de ações intra e intersetoriais. Questões relacionadas às relações familiares, afetivas, comunitárias, com a justiça, a educação, a saúde, a assistência e a moradia, dentre outras, fazem parte do trabalho realizado nos CAPSi para a oferta de uma atenção integral (Brasil, 2004; 2014a; Couto & Delgado, 2015).

Todavia, um fator merece atenção: na prática, o funcionamento dos CAPSi pode estar distante do que é preconizado em legislação. Segundo o que foi apontado por Taño (2014), cujo estudo buscou identificar as práticas de cuidado desenvolvidas no CAPSi a partir da percepção de profissionais e familiares, atende-se uma população muito maior do que a recomendada, prevalecem os atendimentos individuais em detrimento dos grupais, e muitos pais ou familiares não participam de nenhuma atividade dentro do serviço. Além disso, Silva et al. (2019), cujo estudo objetivou compreender como ocorre a inserção e a participação do usuário e a sua singularidade na construção do seu Projeto Terapêutico Singular (PTS) a partir da percepção dos profissionais da equipe de um CAPSi, destacaram que os médicos psiquiatras não têm o costume de participar da construção do PTS, de modo que, na opinião dos demais profissionais do serviço nesse contexto, a medicalização pode vir a ser um atravessamento na construção do "singular" do plano terapêutico dos usuários.

O PTS, principal instrumento de trabalho interdisciplinar dos CAPS, possibilita a participação, reinserção e construção de autonomia para o usuário e sua família, através do diálogo claro entre estes últimos e os diferentes profissionais componentes da equipe. O PTS deve levar em consideração a história, as potencialidades, necessidades, possibilidades e o contexto do usuário, construindo uma terapêutica que faça sentido para ele (Brasil, 2006; 2014a; Diniz, 2017). Nesse ponto, torna-se importante destacar o modo como a família se distribui na rede de cuidados das crianças e adolescentes, o que implica diretamente no manejo das situações de violação de direitos. É importante considerar as novas configurações familiares e suas dinâmicas diante desse cenário, tendo em vista que a família pós-moderna se configura a partir de laços afetivos construídos e não somente por laços biológicos ou proximidade de parentesco (Roudinesco, 2003).

Através da construção do PTS, evidencia-se a proposta multi e interdisciplinar de atuação, pois compreende-se que nenhum profissional, de modo isolado, poderá garantir uma abordagem integral. Desse modo, a equipe de referência tem como papel justamente deslocar o poder das profissões especialistas e reforçar a potência do trabalho interdisciplinar. Assim, após uma avaliação de risco e vulnerabilidade compartilhada, são acordados procedimentos e delegadas tarefas aos diferentes membros da equipe (Campos & Domitti, 2007; Oliveira & Ferrarini, 2020).

Nessa linha, entende-se que a participação de profissionais com formações diversas na abordagem dos casos de violência contra crianças e adolescentes pode ajudar a evidenciar as marcas e sequelas que não se encontram na pele ou nos órgãos, mas que, muitas vezes, podem ser desastrosas. Desde a identificação da suspeita, é necessária a avaliação multidisciplinar para diagnosticar o nível de gravidade da situação, determinado pela análise de vários fatores (Brasil, 2010b).

Por outro lado, também se torna importante destacar alguns obstáculos ao trabalho interdisciplinar, uma vez que este depende de uma certa predisposição subjetiva para se tomar decisões de modo compartilhado, lidar com a incerteza e aceitar/fazer críticas. Além disso, é preciso que o profissional se desapegue parcialmente da identidade de seu grupo de especialidade, de forma a estar aberto às maneiras de saber/fazer dos demais núcleos profissionais. Ainda, destaca-se os obstáculos éticos que podem advir, principalmente no que tange ao compartilhamento de informações sobre os usuários, sua história e sua privacidade (Campos & Domitti, 2007; Oliveira & Ferrarini, 2020).

A obrigatoriedade de notificação ao Conselho Tutelar em caso de suspeita de maus-tratos e/ou violência é um imperativo que se coloca como imprescindível aos profissionais de saúde atuantes nos CAPSi, quando se defrontam com situações de violação dos direitos de seus usuários. Todavia, pensando-se mais especificamente no contexto do atendimento psicológico, a notificação implica dificuldades relacionadas à quebra do sigilo profissional, acarretando, inevitavelmente, implicações para o processo psicoterapêutico (Almeida et al., 2012; Conselho Federal de Psicologia, 2005).

No seu Artigo 2°, o Código de Ética do Profissional de Psicologia prevê que ao psicólogo é vedado praticar ou ser conivente com quaisquer atos que caracterizem negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade ou opressão; bem como ser conivente com erros, faltas éticas, violação de direitos, crimes ou contravenções penais praticadas por psicólogos na prestação de serviços profissionais. Ainda, em seu Artigo 8°, consta que para se realizar atendimento não eventual de criança, adolescente ou interdito, o psicólogo responsabilizar-se-á pelos encaminhamentos que se fizerem necessários para garantir a proteção integral do atendido. Ademais, seu Artigo 10°, aponta que o psicólogo poderá decidir pela quebra de sigilo, baseando sua decisão na busca do menor prejuízo, devendo restringir-se a prestar as informações estritamente necessárias (Conselho Federal de Psicologia, 2005). Frente a tais prerrogativas, cabe, portanto, considerar o papel ocupado pelo psicólogo dentro de um CAPSi, destacando a importância da atenção psicossocial nos casos de violação dos direitos de crianças e adolescentes, da atuação em rede e da oferta de intervenções fundamentadas tanto do ponto de vista técnico quanto do ponto de vista ético, apesar dos impasses ou divergências que possam advir do enfrentamento dessas situações.

Partindo dessas considerações, este estudo apresenta um relato de experiência de estágio em Psicologia no contexto da atenção psicossocial, tendo como objetivo descrever e analisar o processo conjunto de decisão da equipe interdisciplinar diante de um caso de violação dos direitos das crianças e adolescentes. Considerando que a formação em psicologia tem progressivamente assumido a luta pelos direitos sociais e políticos de todos, contexto no qual se situa o enfrentamento da violência contra crianças e adolescentes, acredita-se que esse relato de experiência evidencia um processo de formação que prioriza a dimensão ética da atuação e valoriza as singularidades e experiências que se manifestam no cotidiano do exercício profissional (Guareschi, 2018; Barros & Almeida, 2019).

 

CONTEXTO DO ESTUDO

A experiência aqui relatada ocorreu durante o desenvolvimento das atividades de estágio em Psicologia, no período de março a dezembro de 2018, em um CAPSi de uma cidade do interior do Rio Grande do Sul. No referido ano, o CAPSi funcionava em uma casa alugada no centro da cidade, que possuía pátio, sete salas para atendimento individual, realização de grupos/oficinas e acolhimento, uma sala para apoio administrativo, uma sala para os profissionais e estagiários, uma sala de espera, uma cozinha e três banheiros. Tal disposição se aproxima do preconizado pelo Ministério da Saúde (Brasil, 2004).

A equipe multiprofissional contava, dentre os profissionais e estagiários, com integrantes das áreas da psicologia, psiquiatria, psicopedagogia, arte-terapia, fonoaudiologia, enfermagem, terapia ocupacional, educação física, assistência social, fisioterapia e assistência administrativa. A carga horária da estagiária de psicologia no CAPSi era de 16 horas e, dentre as suas atividades, estavam incluídas participação em grupos e oficinas, participação nas reuniões de equipe, supervisão local e acadêmica, atendimentos individuais e acolhimento.

Neste artigo será abordada a condução de um caso em que foi identificada a violação dos direitos da criança e do adolescente durante o atendimento individual realizado pela estagiária de psicologia. Para tanto, foram utilizados registros de prontuários, supervisões e reuniões de equipe, os quais foram estruturados como um relato de caso analisado por meio da literatura científica, técnica e legal sobre o tema da violência contra crianças.

Serão relatadas as dificuldades encontradas e quais caminhos foram construídos pela equipe multidisciplinar em busca de uma atuação profissional dentro dos princípios do ECA e, no caso da estagiária, também do Código de Ética do Profissional de Psicologia. Foram assegurados os princípios éticos previstos pelas Resoluções 466/2012 e 510/2016 (Brasil, 2012; 2016), respeitando-se os aspectos relacionados à autonomia, beneficência, não maleficência, justiça e equidade. O texto está estruturado de forma a conjugar o relato da experiência com a literatura científica e a legislação pertinente.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O relato de experiência se refere ao caso de uma usuária, a qual será identificada por "M.", que contava com 11 anos de idade e havia sido encaminhada ao CAPSi pela escola que frequentava. As principais demandas referidas pelos pais de M. eram o seu baixo desempenho escolar, bem como sua agressividade excessiva e a realização de pequenos furtos. M. demonstrava ser bem organizada e reconhecia as demandas que os pais apontavam, relatando não ter controle sobre si durante as crises de agressividade, embora as julgasse como um comportamento inadequado. Os mesmos sentimentos se aplicavam à insuficiência no desempenho escolar e aos furtos.

Desde o primeiro atendimento, ficou claro que M. não mantinha um bom relacionamento com seu pai. Após realizado o contrato referente ao sigilo, a usuária relatou que sofria maus-tratos em casa, sendo o pai o principal autor, mas pediu que não houvesse denúncia do fato, revelando o medo que é frequente em casos de violência doméstica (Baptista, 2015; Ramos & Silva, 2011). A partir disso, foi explicado que qualquer encaminhamento necessário seria comunicado a ela e sua família, e que as decisões eram tomadas em equipe multiprofissional, buscando a proteção dos usuários (Brasil, 2004). No próximo encontro, contudo, M. modificou o que havia dito anteriormente: comentou que seu pai não a maltratava há mais de um ano. Suspeitou-se que esta retratação pudesse estar relacionada com o medo de uma denúncia.

No terceiro atendimento, um membro da família estendida de M., que será chamada de L., veio trazê-la, solicitando uma conversa com a estagiária de Psicologia. Nesse momento, L. relatou que estava muito preocupada com o fato de que M. sofria severas agressões físicas e psicológicas de ambos os pais, pedindo que a estagiária tomasse alguma atitude frente aos fatos apresentados. A partir disso, ao longo dos atendimentos seguintes, com o desenvolvimento do vínculo paciente-terapeuta, M. voltou a relatar que seu pai a agredia.

A partir da identificação da suspeita de maus-tratos, o caso foi discutido em supervisão local e acadêmica, sendo decidido que o mesmo deveria ser debatido em reunião de equipe multiprofissional. Como visto, o Código de Ética do profissional do Psicólogo prevê que, em situação de atendimento não eventual a crianças ou adolescentes, o profissional responsabilizar-se-á pelos encaminhamentos que se fizerem necessários para garantir a proteção integral do atendido. Além disso, destaca-se que, eu seu Artigo 6°, o qual dispõe acerca do relacionamento com profissionais não psicólogos, o Código prevê o dever de se encaminhar o paciente a profissionais ou entidades habilitados e qualificados às demandas que extrapolem seu campo de atuação, o que justifica o enfoque multiprofissional, indo além do núcleo da Psicologia e englobando todos os profissionais do serviço (Conselho Federal de Psicologia, 2005). Assim, a partir da reunião, os técnicos das diferentes áreas concordaram com uma parceria entre a Psicologia e outro núcleo profissional – o qual não será explicitado com o propósito de atender às questões éticas envolvidas, mantendo-se a confidencialidade –, a fim de construir em conjunto uma estratégia para notificação ao Conselho Tutelar. Como abordado anteriormente, as ações multiprofissionais e intersetoriais são fundamentais para o trabalho efetivo frente à violência contra crianças e adolescentes (Brasil, 2006; 2014a; Eichherr & Cruz, 2017).

Todavia, nesse ponto surgiram algumas divergências. A estagiária e as supervisoras da área da Psicologia entendiam que a melhor maneira de realizar o processo de notificação da violência seria, primeiramente, entrando em contato com a usuária e sua família para explicar as circunstâncias e especialmente a obrigatoriedade da denúncia e o processo da quebra do sigilo. Contudo, as técnicas da outra área profissional envolvida compreendiam que a melhor maneira seria continuar os atendimentos sem comunicar a notificação ao Conselho Tutelar. Era esperado que a família entendesse que a denúncia havia sido realizada por outro órgão ou pessoa de sua convivência (como vizinhos, ou a escola), que não o serviço de saúde mental. Essa abordagem seria uma forma de garantir o não rompimento do vínculo usuário-serviço, uma vez que as profissionais desse núcleo entendiam que contar à M. e à sua família sobre a denúncia resultaria inevitavelmente no seu afastamento do serviço.

É nesse sentido que autores como Garbin et al. (2015) e Ramos e Silva (2011) apontam que, muitas vezes, o medo e a insegurança emocional para lidar com a vítima e sua família, bem como a dificuldade de lidar com o processo de quebra de sigilo, atuam como obstáculos à efetivação da realização da notificação. Os autores defendem que, embora se perceba a obrigatoriedade de notificar como clara, não se dispõe de uma boa orientação aos profissionais de saúde sobre como procedê-la, tornando necessário o treinamento e a articulação entre assistentes sociais, psicólogos, profissionais da educação, dentre outros, para um trabalho interdisciplinar na prevenção e combate da violência (Garbin et al., 2015; Ramos & Silva, 2011). É digno de nota que, mesmo propondo estratégias diferentes, todos estavam preocupados com a preservação do vínculo entre a usuária, a família e os profissionais do CAPSi.

Uma vez que a profissional de referência do caso era da área da Psicologia, para resolver o conflito buscou-se amparo no Código de Ética Profissional do Psicólogo, o qual, como visto, prevê ser dever do psicólogo respeitar o sigilo profissional a fim de proteger, por meio da confidencialidade, a intimidade das pessoas que tenha acesso no exercício profissional (Conselho Federal de Psicologia, 2005). É importante considerar que o contrato referente ao sigilo havia sido feito com M., e que foi a partir dele que a usuária optou por relatar sobre os maus-tratos que sofria, pedindo que não fossem denunciados.

Porém, também é previsto que o psicólogo pode decidir pela quebra desse sigilo, baseando sua decisão na busca do menor prejuízo ao paciente, devendo se restringir a prestar as informações estritamente necessárias (Almeida et al. 2012; Conselho Federal de Psicologia, 2005). Nesse sentido, para a estagiária e supervisoras da área da Psicologia, o ideal seria que o processo de quebra do sigilo fosse realizado de maneira clara e transparente com a usuária e sua família, uma vez que o objetivo do referido processo é justamente o menor prejuízo ao paciente. Feito de outra forma, que não através da clareza e da honestidade, o vínculo terapêutico poderia ser irremediavelmente prejudicado, o que impossibilitaria a continuidade do tratamento psicológico, e, consequentemente, traria empecilhos para a resolução das demandas já apresentadas pela paciente (Brasil, 2006).

A esse respeito, considerou-se especialmente problemático o fato de que a revelação da violência se deu exatamente após o estabelecimento do contrato de sigilo entre a estagiária de Psicologia e M. Como poderia a estagiária, ocupando o papel de profissional que deve cumprir seu Código de Ética, romper com o contrato do sigilo realizado com a usuária e realizar a notificação sem o seu conhecimento? Sabe-se que a saúde mental de crianças e adolescentes não pode se desenvolver de maneira ideal ou esperada frente à convivência diária com agressões físicas. Contudo, o rompimento do vínculo terapêutico – uma vez que se fazem presentes demandas psicológicas importantes, as quais denotam a necessidade do tratamento – tampouco pode ajudar a promover a saúde mental das pessoas em atendimento. Ainda, na busca de se manter a transparência com o usuário e sua família, torna-se imprescindível o cuidado para não acusar nenhum dos envolvidos, bem como para que a "culpa" pela denúncia de violência não recaia sobre a criança violentada (Brasil, 2006; Ramos & Silva, 2011). Por meio do trabalho conjunto com a família, o prognóstico do caso tende a se tornar muito mais promissor, então é importante, se possível, que os pais entendam os reais motivos para não baterem na filha, em vez de deixarem de fazê-lo apenas por uma determinação imposta (Brasil, 2006).

Dessa forma, o desafio colocado para interlocução entre as diferentes áreas – Psicologia e o outro núcleo profissional responsável pelo caso – envolveu a construção de uma linguagem comum entre as mesmas, capaz de (des)construir concepções pré-estabelecidas e isoladas, para desenvolver em conjunto ações que buscassem, acima de tudo, o maior benefício do paciente/usuário e sua família. Sabe-se que o momento de notificação é, por si só, provocador de sentimentos como medo, frustração e angústia tanto para a família quanto para a equipe profissional envolvida, o que se reforça a necessidade de construção de um fazer fundamentado e unificado, considerando todos os envolvidos (Eichherr & Cruz, 2017).

Partindo disso, entendeu-se que, para fins terapêuticos, o mais aconselhável seria buscar desenvolver nos pais a capacidade de manter equilíbrio sob estresse e ajudá-los a construir estratégias de enfrentamento frente às dificuldades com os filhos. Trata-se de oferecer recursos para que os pais possam melhorar suas atitudes em direção à criança, com o objetivo de reduzir o abuso potencial e o abuso real (Brasil, 2006). Para isso, vale o empenho em se quebrar os pactos do silêncio e os segredos que se criam em torno das situações de violação de direitos. No caso de M., embora desafiador, o ideal a ser feito pareceu ser justamente esclarecer as circunstâncias à família para assim poder auxiliá-los, como um todo, a lidar da melhor maneira com as problemáticas decorrentes da violência (Arpini et al. 2008). A notificação ao Conselho Tutelar precisava ser feita de maneira que a usuária e sua família pudessem se sentir seguros e protegidos, ao invés de acusados, julgados ou punidos. Não poderia correr-se o risco de os pais de M. responsabilizarem apenas a filha, ou até mesmo L., pela comunicação ao Conselho Tutelar. Todos precisariam entender a obrigatoriedade da denúncia frente à suspeita de violação de direitos como uma ferramenta de proteção e promoção de saúde mental e física às crianças e adolescentes. Ainda, era necessária a compreensão de que o papel da instituição é ajudar a família a construir uma nova dinâmica de relações, mais funcional para os seus componentes, sem julgá-los ou culpabilizá-los (Ramos & Silva, 2011).

Após discutirem o caso diversas vezes, os técnicos da Psicologia e da outra área profissional envolvida decidiram que o primeiro passo a ser dado seria ter um encontro entre os pais de M, a estagiária de Psicologia e duas representantes do outro núcleo profissional envolvido. Nesse encontro, foi conversado sobre a história de M., bem como sobre suas demandas e sua situação frente ao tratamento. Ao longo da conversa, os pais relataram que por vezes "perdem o controle" e "passam dos limites", referindo-se às agressões físicas relatadas por M. e por L. Assim, sem a necessidade da quebra do sigilo, pôde-se explicar abertamente sobre a existência da legislação (ECA) que defende os direitos das crianças e adolescentes e enfatizar a importância de uma educação sem violência para o desenvolvimento saudável.

A partir desse ponto, tornou-se possível realizar a construção do Projeto Terapêutico Singular (PTS) de M., contando, além da sua própria participação, com a contribuição de seus familiares e dos componentes da equipe multidisciplinar envolvidos com o caso, prioritariamente das áreas da Psicologia e do outro núcleo profissional responsável pelo caso. É importante destacar que a construção do PTS permitiu a aproximação entre familiares, usuária e equipe, focando nas particularidades e singularidades do caso e adequando as prerrogativas da legislação e dos códigos de ética profissionais à realidade, ao contexto e às possibilidades de M. e sua família (Brasil, 2006; Diniz, 2017).

A seguir, conforme previsto pelas Linhas de Cuidado (Brasil, 2010b), foram marcados diversos encontros apenas com os pais e a estagiária de Psicologia, que ofereceu orientações sobre o desenvolvimento infantil e forneceu mais detalhes acerca da legislação e da obrigatoriedade da denúncia, caso as agressões não parassem. Paralelamente, foi trabalhado com M., em terapia, que, caso fosse preciso, a notificação seria realizada. Nesse ponto, torna-se importante atentar ao que é preconizado pelo referido documento acerca das entrevistas com os responsáveis: coloca-se como fundamental "estabelecer uma relação empática, deixando claro que o objetivo maior é a proteção da criança ou do adolescente, mantendo sempre uma atitude de isenção e bom senso.". Ainda, aponta-se: "A abertura e a honestidade ao lidar com os pais são os princípios básicos nos atendimentos da criança, do adolescente e de sua família." (Brasil, 2010b, p. 54, p. 56).

Assim, a família reorganizou-se de uma maneira que facilitou a convivência entre M. e seus pais: optaram por M. morar com um membro da família estendida com a qual tinha um bom relacionamento, visitando os pais nos finais de semana. Segundo os relatos de M., L. e dos pais, as agressões cessaram, e, além disso, M. conseguiu melhorar também seu desempenho escolar. Coloca-se, assim, a importância da atenção em rede e do papel que a família ocupa na mesma, destacando-se a abertura à uma nova configuração familiar, que se apresentou, neste caso, como uma ferramenta de promoção de saúde mental, dentro das possibilidades e singularidades de M. e sua família (Roudinesco, 2003). Para isso, foi fundamental proporcionar um ambiente em que a criança e sua família se sentissem seguros e confiantes, com oportunidade de expressar o que sentiam e conversar sobre a situação de violência na qual estavam envolvidos (Brasil, 2010b).

Desse modo, o caso foi mais uma vez discutido entre os profissionais da Psicologia e os técnicos do outro núcleo implicado, ficando decidido que este último acionaria o Conselho Tutelar para acompanhamento da família, após o entendimento desta acerca da situação, muito mais como prevenção e suporte do que como "retaliação", como era inicialmente temido por M. Ressalta-se a importância dos vínculos construídos ao longo do processo de inserção num serviço de saúde mental como o CAPSi, os quais foram considerados como prioridade. Buscou-se sempre a abertura e a clareza, o que permitiu uma mudança significativa na condução do caso que talvez a simples notificação ao Conselho Tutelar, sem uma comunicação transparente com os envolvidos, não alcançasse. Tanto M. quanto seus pais confiaram nos profissionais envolvidos, comprometendo-se com a reorganização do funcionamento familiar em prol da saúde mental de M., o que não se conquista apenas com a notificação de forma isolada.

Assim, considera-se que foram seguidos os passos recomendados pelas Linhas de Cuidado – Acolhimento, Atendimento, Notificação e Seguimento na rede de cuidado e proteção social –, adequando-os à singularidade do caso de M. e sua família (Brasil, 2010b). Nesse sentido, aponta-se, por fim, para a importância da flexibilização, discussão e (re)construção dos modos de cuidado possíveis, partindo dos obstáculos encontrados na prática em relação ao que a teoria e a legislação preconizam. Considera-se, assim, a importância de transformar as prescrições em modos flexíveis de ser e de fazer, a partir de posturas ético-estético-políticas que levem em consideração as singularidades e especificidades de cada caso e da complexidade e multiplicidade de fatores, sujeitos e implicações que o envolvem (Amorim & Lavrador, 2017; Barros & Almeida, 2019).

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em conclusão, destaca-se o valor da condução singular de cada caso, bem como a importância da abertura dos diferentes profissionais pertencentes aos CAPSi para ouvir e trabalhar 'junto com', e não 'para' as crianças e suas famílias. Destaca-se, nesse sentido, a utilidade e relevância da elaboração conjunta do Projeto Terapêutico Singular (PTS), com a participação da família, da usuária e da equipe responsável. Foi possível constatar que a interação recíproca de todos os membros da família é que resultou na manutenção da totalidade do seu sistema, de forma que, para que ocorram mudanças nas formas de relação, todo o conjunto precisa de um olhar de assistência e cuidado.

Embora esse relato apresente limitações por se caracterizar como uma análise retrospectiva de um caso único, o que impede generalizações, a condução pertinente e sensível desse caso contribuiu com a apresentação de caminhos para o enfrentamento da violência e violação de direitos de crianças e adolescentes. Nesse sentido, espera-se que possa auxiliar outros estagiários e profissionais que se depararem com situações semelhantes, que.

A esse respeito, destaca-se a importância de que os direitos das crianças e adolescentes, a conduta ética do profissional frente à situação de violação de direitos e a necessidade de construção de uma linguagem multidisciplinar comum no atendimento dos casos sejam mais bem trabalhados e explorados nos cursos de graduação, especialmente na área da saúde, a fim de que os futuros profissionais encontrem-se devidamente instrumentalizados para agir da melhor maneira frente à complexidade dos casos de violência. As experiências de estágio, em particular, exercem um papel demasiado importante na formação profissional, oportunizando vivências que permitem aproximações da teoria com a prática profissional e, assim, novas formas de relacionamento e estratégias para resolução de problemas podem ser aprendidas (Barros & Almeida, 2019).

Diversos aprofundamentos são necessários para que se possa adotar uma postura devidamente ética e responsável frente às crianças, adolescentes e famílias em sofrimento. Nesse sentido, considera-se que há, ainda, um longo caminho a ser trilhado visando à transformação do imaginário social e cultural acerca da violência, de modo que esta possa ser internalizada como algo inerentemente negativo e prejudicial. Almejam-se mais ações de promoção e proteção de saúde mental que possam ser promovidas por serviços que se deparam com a violência cotidianamente, como os CAPSi.

 

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Endereço para correspondência
Jana Gonçalves Zappe
E-mail: zappe.jana@gmail.com

Submetido: 28/01/2021
Reformulado: 19/03/2021
Aceito: 22/03/2021

 

 

1 Carolina Schmitt Colomé é psicóloga e mestranda em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Maria.
2 Juliana Kuster de Lima Maliska é psicóloga pela Universidade Federal de Santa Maria.
3 Jana Gonçalves Zappe é Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul e docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Santa Maria.

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