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Psicologia Hospitalar

versão impressa ISSN 1677-7409

Psicol. hosp. (São Paulo) vol.13 no.1 São Paulo jan. 2015

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

O processo de luto pela perda de um filho em uma idosa cuidadora de um paciente crônico

 

The process of mourning for the loss of a son in an elderly caregiver of a chronic patient

 

 

Simone Santana GomesI,1; Cláudia Fernandes LahamII2; Solimar FerrariII,3;Gláucia Rosana Guerra BenuteII,4; Mara Cristina Souza de LuciaII,5

IInstituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
IIDivisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Este estudo de caso teve como objetivo a compreensão do processo de luto pela perda de um filho numa idosa cuidadora de um paciente crônico. Foram realizadas 16 sessões de psicoterapia breve no domicílio. Compreendeu-se o luto como um processo permeado de dor e apego, especialmente devido ao intenso vínculo estabelecido entre mãe e filho, falta de representação para esse tipo de perda e ocorrência da situação em meio às perdas do envelhecimento. Constatou-se que o processo de luto não tem tempo definido e que a sua não elaboração não acarreta, necessariamente, a melancolia. O seu trabalho, na circunstância da perda de um filho, pode ser lento e parcial, ainda mais quando essa ocorre de forma abrupta. Verificou-se a função de cuidadora como fator positivo nesse processo e a psicoterapia como possível auxílio na nomeação dessa perda inominável, principalmente frente às exigências sociais de combate à tristeza na atualidade.

Palavras-chave: Luto, Idoso, Cuidadores.


ABSTRACT

This case study aimed at understanding the grieving process for the loss of a child in an elderly caregiver of a chronic patient. Sixteen brief psychotherapy sessions were held at home. Mourning was understood as a process permeated with pain and addiction, especially due to the intense bond established between mother and child, lack of representation for this type of loss and the occurrence of this situation among the other losses during aging. It was found that the grieving process has no defined time period and that its psychic process does not necessarily result in melancholy. The work of caregivers, in the circumstance of the loss of a child, can be slow and partial, especially when the loss occurs abruptly. The caregiver role as a positive factor during this process was confirmed and psychotherapy as a possible aid in helping a person to cope with this symbolic process of this loss, especially given the social necessity of combating in the light of social requirements to combat sadness in current times.

Keywords: Mourning, Elderly, Caregivers.


 

 

INTRODUÇÃO

Atualmente, devido à diminuição das taxas de mortalidade e fecundidade, se vivencia na sociedade o aumento da expectativa de vida e, consequentemente, o crescimento da população idosa. No entanto, no Brasil, fica evidenciado que essa população carece de subsídios para que possa viver essa fase da vida com qualidade (Paschoal, Franco & Salles, 2007). Principalmente a grande prevalência de doenças crônicas entre os idosos enfatiza a necessidade de elaboração de estratégias e criação de serviços que melhor possam atendê-los em suas demandas de saúde, levando em consideração a sua subjetividade (Curiati, Kasai & Nóbrega, 2012).

A assistência domiciliar se insere como uma opção de serviço, que visa a desospitalização, diminuição de custos e humanização do atendimento (Silva, Sena, Seixas, Feuerwerker & Merhy, 2010). Tal prática cada vez mais se apresenta como uma alternativa na atenção à população idosa, por fornecer um suporte que envolve afeto, preocupação e disposição, além de tender a reduzir os efeitos negativos da situação de doença. Contudo, ainda se faz necessário que o Estado divida mais a responsabilidade e forneça o suporte adequado ao cuidador, figura que auxilia a equipe de saúde, realizando os cuidados em casa (Resende & Dias, 2008).

Diversas pesquisas constatam que a atividade de cuidar de idosos no Brasil é predominantemente realizada informalmente, por familiares, do gênero feminino, sendo grande parte desses também idosos (Resende & Dias, 2008).

Guimarães e Lipp (2012) referem o cuidador de um paciente crônico como figura fundamental no processo da doença, que oferece um cuidado não só prático, mas também emocional, mediando as relações do paciente com a equipe de saúde e demais familiares. Para Gavião (2000), principalmente no domicílio, o cuidador é figura de destaque por auxiliar no bem-estar psíquico do paciente, sendo importante seu equilíbrio emocional para lidar com as angústias do paciente e da situação.

Estudos apontam que os cuidadores estão sujeitos a altos índices de estresse devido à situação à qual estão submetidos, tendo suas atividades restringidas, sobrecarga de tarefas, diversas preocupações e inseguranças. Entretanto, também se evidencia a existência de aspectos positivos no cuidado, atribuídos a um bom relacionamento prévio com o paciente, sentimentos de utilidade, satisfação com a evolução deste, capacidade de aprendizagem e valorização social (Guimarães & Lipp, 2012; Laham, 2010; Resende & Dias, 2008).

Levando-se em consideração essa demanda cada vez mais crescente por atendimento de saúde para a população idosa e a inserção do psicólogo como integrante de uma equipe multidisciplinar no contexto hospitalar e de atendimento domiciliar, se torna importante que sejam pensados os aspectos psicológicos e as vivências do processo de envelhecimento.

De acordo com os preceitos da psicanálise, o sujeito é movido por forças inconscientes, atemporais e onipotentes; diante destas, a velhice surge como imposição da existência da finitude e das limitações crescentes. A adaptação do sujeito a essa fase está ligada ao seu modo de lidar com perdas e frustrações, como realizado em fases anteriores da vida (Aranha, 2012; Gavião, 2000).

Para Goldfarb (1998), a problemática do envelhecimento faz parte da evolução da temporalidade humana e, como momento de crise, exige uma reorganização dos recursos disponíveis, assim como outras situações que a passagem do tempo impõe ao sujeito. Cada velhice é uma construção subjetiva particular e, no trabalho com idosos, o que se deve escutar é aquilo que se refere ao que cada sujeito faz com a sua.

Quando se pensa sobre o envelhecimento, não há como não abordar as perdas vivenciadas nesse processo, como evidenciado por diversos autores. Gavião (2000) afirma que o sujeito que envelhece se torna naturalmente mais vulnerável e se depara com diversas situações de perda. Cocentino e Viana (2011) também apontam que, ao longo do envelhecimento, o idoso vivencia sucessivas perdas, reais e simbólicas, que estão relacionadas à morte de amigos e companheiros, ao corpo, ao fim das relações de trabalho, ao relacionamento social e familiar, fazendo com que a morte seja vivida simbolicamente.

Siqueira (2007) assinala que a velhice é um momento peculiar, em que as perdas aparecem de forma mais frequente, o que requer a elaboração de um trabalho de luto. São perdas sucessivas e variadas e, nesse contexto, nem sempre o sujeito consegue elaborar os lutos, o que pode justificar o aumento da depressão em idosos. Essa noção também é abordada por Aranha (2012), ao afirmar que no envelhecimento podem surgir dificuldades de adaptação e frustração diante das perdas e dores vivenciadas. Os idosos tendem a apresentar queixas somáticas que representam conflitos emocionais não elaborados, que encontram sua via de manifestação no corpo, podendo também estar presentes depressão e dificuldades de relacionamento.

A partir dessas constatações, se enfoca agora o processo de luto, principalmente segundo as considerações de Sigmund Freud, refletindo-se em seguida sobre seu trabalho na circunstância da perda de um filho.

Freud (1917/1974), no texto Luto e melancolia, explica o luto como a reação provocada pelo impacto da perda de um objeto de investimento libidinal, podendo ser uma pessoa ou uma abstração. O processo de luto que se segue à perda é permeado de intensa dor e se refere a uma reação natural que deverá ser superada com o tempo.

O autor apresenta o trabalho psíquico realizado no processo de luto da seguinte forma: o teste da realidade revela ao sujeito que o objeto amado não existe mais, passando a exigir que toda a libido investida seja retirada de suas ligações com ele. Tal exigência provoca uma oposição que, de tão intensa, pode dar lugar a um desvio da realidade e a um apego ao objeto, por intermédio de uma psicose alucinatória. No entanto, geralmente o respeito pela realidade prevalece e, com grande consumo de tempo e energia, suas exigências são, aos poucos, executadas. Nesse meio tempo, a existência do objeto perdido é prolongada psiquicamente e, quando esse trabalho é concluído, o ego fica outra vez livre e desinibido (Freud, 1917/1974).

Em suas reflexões a respeito da dor presente no trabalho de luto a partir das considerações de Freud, Nasio (1996) apresenta o trabalho de elaboração do luto como uma lenta e minuciosa retomada de cada um dos detalhes do vínculo que ligava o sujeito ao objeto, que consistem num superinvestimento afetivo, chamado de focalização. Após este, se produz um desinvestimento, para que, por fim, a libido seja transportada para uma grande parte do eu, gerando a identificação com a imagem do objeto. Devido a esse superinvestimento, “a dor do luto não é a dor de separação, mas dor de ligação” (p. 166).

Quando o fim espontâneo do luto não acontece, Freud (1917/1974) aborda um estado chamado por ele de melancolia. Assim como no luto, na melancolia se identifica um desânimo profundo, falta de interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar e inibição de toda e qualquer atividade. No entanto, ao contrário do luto, na melancolia também ocorre a diminuição dos sentimentos de autoestima. Segundo Freud, embora pareça haver uma perda referente ao ego, as variadas autorrecriminações do melancólico são feitas a um objeto amado, que foram deslocadas desse objeto para o seu próprio ego.

A melancolia é também uma reação à perda de um objeto amado, porém é assinalada por um determinante ausente no luto normal ou que, se estiver presente, transforma esse em luto patológico: o conflito devido a uma ambivalência. Na melancolia, se travam inúmeras lutas em torno do objeto entre o ódio e o amor; um na busca de separar a libido do objeto, o outro, defendendo essa posição da libido contra o assédio (Freud 1917/1974).

É interessante pontuar que, para Mendlowicz (2000), as contribuições de Freud foram importantes, porém o processo de luto ainda permanece misterioso. A autora propõe que, de acordo com a experiência clínica, diante da perda de uma pessoa amada, podem emergir outros tipos de perturbações psíquicas, não acontecendo a elaboração do luto ou a melancolia.

Tal fato fica evidenciado quando se reflete sobre o luto diante da perda de um filho, considerado, na literatura, como um dos fatores traumáticos de risco para formas complicadas de luto e o desenvolvimento de um transtorno psiquiátrico (Parkes, 1998).

Para Casellato (2002), a perda de um filho, em geral, é considerada um fator de risco para o desenvolvimento de um luto complicado, pelo complexo e intenso vínculo estabelecido entre pais e filhos. As reações de pesar pela morte de um filho são semelhantes àquelas por qualquer outro tipo de perda, variando quanto à intensidade e duração dos sintomas como dor, ansiedade, raiva, culpa e saudade, sendo também frequente o desenvolvimento de depressão, obsessão em tentar encontrar uma justificativa para o ocorrido, ataques oscilantes de pesar e identificação com o filho morto.

Em relação ao idoso, Oliveira e Lopes (2008) salientam a importância de se considerar o impacto que a morte de um cônjuge ou, principalmente, de um filho, pode ter para este. Os autores abordam a possibilidade de maior dificuldade de elaboração do luto dos pais pela morte de um filho e a intensidade dos sentimentos surgidos, devido ao investimento afetivo objetal realizado, podendo surgir também o sentimento de culpa por ter sobrevivido ao filho e impotência por não ter podido impedir sua morte.

Agnese, Batista, Oliveira, Rose e Lescano (2012) abordam a noção de que a perda de um filho é uma perda sem nome. A inversão da sequência de eventos, considerada como natural da vida, causada pela morte de um filho desafia e deixa sem palavras para nomeá-la. As autoras destacam que no luto de pais, com o passar do tempo, a perda não se acomoda, e apontam a existência de uma exigência social de esquecimento ou “superação” que constrange e exclui os pais no seu cotidiano, por não conseguirem responder de maneira adequada.

Tal exigência social apontada pelas autoras destaca a necessidade de uma reflexão acerca do luto e das mudanças na sociedade, onde cada vez mais parece haver uma busca pela felicidade a qualquer custo e repressão de manifestações de tristeza.

Tavares (2010) aponta que, atualmente, manifestações de dor e sofrimento são diagnosticadas como depressão, se observando, dessa forma, uma "patologização" de qualquer indício de mal-estar. O que revela a intolerância frente aos modos de subjetivação opostos aos ideais contemporâneos, não podendo haver um tempo para a introspecção e a reflexão. Di Loreto (1997), treze anos antes, já pontuava a percepção de uma cruzada contra qualquer tipo de tristeza, acreditando que as pessoas estavam sendo alvo de uma ilusão de tratamento medicamentoso fácil e rápido. O autor não desqualifica a importância dos medicamentos, mas defende que a tristeza, embora dolorosa, é uma capacidade humana necessária e boa, pois permite a adaptação, além de exercer funções protetoras, assim como a dor exerce no corpo.

Uma discussão atual envolvendo essa questão é a mudança na nova edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o DSM 5, onde a recomendação de que o diagnóstico de episódio depressivo maior não fosse realizado em casos em que houve a perda de um ente querido, há pelo menos dois meses, foi retirada e substituída por uma nota que adverte sobre a necessidade de cautela nesses casos (APA, 2013).

De acordo com a nota, reações a uma perda significativa podem incluir sentimentos de tristeza intensa, pensamento obsessivo sobre a perda, insônia, diminuição de apetite e de peso, que podem lembrar um episódio depressivo. No entanto, ainda que tais sintomas possam ser considerados apropriados à situação, a ocorrência de um episódio depressivo maior em conjunto com a reação normal a uma perda significativa também deve ser considerada com cuidado. Dessa forma, para tal decisão será necessário o julgamento clínico baseado na história pessoal do indivíduo e nas normas culturais de expressão de tristeza no contexto da perda (APA, 2013).

Diante disso, se considera importante a proposição de Tavares (2010) de uma compreensão psicanalítica do fenômeno depressivo, diferente da leitura sintomatológica realizada pelos manuais de psiquiatria. Para o autor, a depressão se mostra como um tempo de subjetivação necessário, que se apresenta como uma possibilidade e oportunidade únicas para a tarefa de saber-de-si, o que pode e deverá ser proporcionado mediante um trabalho clínico em psicoterapia.

Finalmente, frente ao exposto, se ressalta a atenção para a temática do luto, principalmente diante das mudanças demográficas e sociais ocorridas, como o aumento da população idosa (entre pacientes e cuidadores) e sua demanda para atendimento de saúde. Segundo Kovács (1992), o trabalho psicoterápico, embora não obrigatório, pode auxiliar no processo de luto, por oferecer um ambiente acolhedor e de continência, tão necessários nesse momento.

Colocados esses pontos, o objetivo do presente trabalho é compreender o processo de luto pela perda de um filho numa idosa cuidadora de um paciente crônico.

 

MÉTODO

Trata-se de uma pesquisa qualitativa, cuja estratégia metodológica é o estudo de caso, ressaltado por Hilário, Piovesan e Lago (2010) como um processo de atualização da teoria, técnica e psicoterapia. O estudo de caso é considerado como o relato de uma experiência que se refere às singularidades do sujeito e de seu discurso durante as sessões com o analista, escrito pelo último na busca de uma discussão teórica. Não se caracteriza por uma reprodução fiel do caso clínico, pois o analista, com o auxílio da teoria, faz uma reconstrução, cuja função é didática e na qual há interferências suas, hipóteses criadas a partir da sua escuta e lembrança.

O sujeito do estudo é uma mulher, Ana (nome fictício), 74 anos, atendida em psicoterapia por meio de um programa de assistência domiciliar de um hospital universitário de nível terciário da cidade de São Paulo. Esse serviço realiza o acompanhamento de seu marido, um paciente crônico, cujas doenças principais são insuficiência cardíaca, diabetes melittus e osteoartrose, que dificultam sua deambulação e de quem Ana é a cuidadora responsável. Aposentada, ela não exerce nenhuma função remunerada e reside com o marido de 85 anos, também aposentado, e a filha de 37 anos. O filho primogênito, que também residia com eles, faleceu, aos 46 anos, de embolia pulmonar causada por trombose venosa profunda, há aproximadamente dois anos e meio.

O processo psicoterápico foi realizado no domicílio, conforme a proposta da assistência domiciliar e pela dificuldade de locomoção de Ana ao hospital devido à sua função de cuidadora do marido. Foram realizadas entrevistas psicológicas iniciais e sessões de psicoterapia.

As sessões foram realizadas no modelo de atendimento de psicoterapia breve individual. Conforme explicitado por Oliveira (1999), a psicoterapia breve tem se constituído numa das principais opções para se tentar estender o atendimento psicoterápico a parcelas mais amplas da população. Basicamente, consiste numa intervenção terapêutica com tempo e objetivos limitados, que são estabelecidos a partir de uma compreensão diagnóstica e delimitação de um foco a ser trabalhado, através de estratégias clínicas, num determinado período de tempo (que pode ou não ser estabelecido).

Os atendimentos ocorreram com frequência semanal e duração aproximada de 50 minutos, entretanto, como na assistência domiciliar ocorre o deslocamento do terapeuta até a residência do paciente, houve fatores como logística de transporte, trânsito, entre outros, que geraram o cancelamento de quatro sessões. A possibilidade da ocorrência de tais situações foi previamente estabelecida durante o enquadre. Também ocorreram seis cancelamentos devido a ocorrências com Ana, todos justificados.

Durante o processo psicoterápico foi verificada a possibilidade de realização do estudo de caso visando, através do recorte dos atendimentos realizados, a compreensão do processo de luto pela perda do filho vivenciado por Ana, à luz da teoria psicanalítica de orientação freudiana. Ressalta-se que tal possibilidade foi aberta com a anuência dela, através da assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido. Para a discussão do caso foram utilizados os dados obtidos nos atendimentos realizados entre maio e outubro de 2013, totalizando 16 sessões.

 

APRESENTAÇÃO DO CASO E DISCUSSÃO

O atendimento psicológico foi oferecido a Ana após ela contar, em uma visita domiciliar realizada junto à equipe de saúde, o quanto estava difícil lidar com a morte do filho, ocorrida há dois anos e meio.

Apesar do bom cuidado com a aparência, Ana tinha um aspecto triste, cabisbaixo, que denotava pouco ânimo. Em seu discurso, carregado de emoção, ela falou sobre duas questões que permaneceriam constantes durante grande parte de seus atendimentos posteriores: não se conformar com o ocorrido e episódios de choro frequentes. Afirmou que sua reação não era normal e que estava prejudicando seu relacionamento com a filha.

Nesse momento, a possibilidade de acompanhamento psicológico foi considerada desnecessária por ela, pois tinha como crença que, sendo uma pessoa extrovertida, não precisava, pois “psicólogo é para quem é quieto” (sic). Além disso, no passado já havia realizado terapia e desistido por pensar que estava tirando o lugar de outra pessoa.

Entretanto, a angústia apresentada por ela chamou atenção para um sofrimento que necessitava ser expresso e cuidado, o que lhe foi sinalizado e auxiliou para que concordasse em receber ajuda.

Essa noção de como o sofrimento de Ana foi apresentando faz refletir sobre o papel do psicólogo na assistência domiciliar. Gavião (2000) aponta que, diante das repercussões psíquicas do adoecimento, como preocupações, angústias e medos, e dos sentimentos que podem ser acrescentados no domicílio, como impotência, revolta e autodesvalorização, a avaliação psicológica e o atendimento e acompanhamento psicológico podem ser fundamentais. Laham (2004) considera que a atuação do psicólogo pode contribuir para que a subjetividade do paciente, cuidador e família seja percebida pelo restante da equipe de saúde, podendo também facilitar a comunicação entre eles.

Dessa forma, se compreende o papel do psicólogo como importante no trabalho de uma equipe de saúde em assistência domiciliar, pois pode proporcionar a identificação de uma demanda psicológica e a reflexão sobre suas implicações para o sujeito, abrindo a possibilidade de uma intervenção. Não se pode perder de vista que, conforme abordado na literatura (Guimarães & Lipp, 2012; Gavião, 2000), a figura do cuidador é determinante no processo de doença e seu equilíbrio emocional é fundamental. A função de cuidar tem implicações positivas e negativas (Guimarães & Lipp, 2012; Laham, 2010; Resende & Dias, 2008), sendo necessário que o profissional da saúde, sobretudo o psicólogo, dirija uma maior atenção para o sujeito que a realiza. No caso de Ana, foi possível uma escuta para um sofrimento que, embora não estivesse diretamente relacionado à situação de doença do marido, tinha impacto na vida dela e, por conseguinte, influenciava o modo como se colocava.

Na maioria das sessões ela relatava a angústia em relação à morte do filho, expressa em seu cotidiano, principalmente, por episódios de choro constantes e “momentos de desespero” (sic).

Os choros aconteciam diariamente, todas as manhãs e também em qualquer momento ou lugar, como numa ida ao supermercado ou num evento de família e, embora algumas vezes não soubesse dizer por que ocorriam, logo os associava a uma lembrança do filho, mesmo que positiva. As datas comemorativas eram sentidas com pesar devido à ausência dele e todos os meses a data de sua morte era lembrada com fervor.

Descrevia os momentos de desespero como uma intensa saudade do filho e mencionava também uma sensação de “aflição” (sic), que trazia dificuldades para dormir. Ana dizia fatidicamente que tudo fazia lembrá-lo. Em sua fala: “Meu pensamento está sempre nele, não consigo evitar” (sic). Sua percepção era a de que com o passar do tempo a saudade só aumentava e, frequentemente, sua falta era mencionada como algo avassalador: “ele era meu porto seguro, não tenho ninguém hoje que eu possa contar como podia com ele” (sic).

Pode-se pensar que as vivências de Ana refletem o apego ao objeto perdido e a inegável dor presentes no processo de luto, como destacado por Freud (1917/1974). A realidade da perda do objeto impõe que a libido seja retirada de suas ligações com ele e, como explicitado pelo autor, esse processo se torna bastante penoso, pois a libido se apega a seus objetos, e não renuncia àqueles que se perderam, mesmo quando existe um substituto disponível (Freud, 1916/1974).

Segundo Nasio (1996), o luto é um movimento de destacamento interno, forçado e doloroso, do que se amou e perdeu externamente. Configura-se numa luta, entre um amor que não cede o amado perdido, e uma força que o separa dele e, portanto, sua dor é incompreensível. Levando-se em consideração tal afirmação, só se pode supor a crueldade da realidade da perda para o sujeito enlutado, no entanto, uma parte do sofrimento de Ana se traduziu em seus relatos, como num momento em que contou ter sonhado com o filho: “queria muito ver meu filho, mas fiquei muito triste quando acordei e vi que não era verdade, que ele não estava aqui (...), até hoje não acredito que ele morreu” (sic).

É interessante perceber que, apesar de contraditório – mas como Freud (1933/1974) nos ensina, no inconsciente não há o reconhecimento da passagem de tempo, tampouco de leis lógicas do pensamento, acima de tudo, a lei da contradição – para Ana, a ausência do filho tornava-o cada dia mais presente. Conforme enfatizado por Nasio (1996), no trabalho de elaboração do luto ocorre o superinvestimento afetivo de cada uma das lembranças e esperanças que ligam a libido ao objeto, o que torna esse processo tão doloroso. Assim, a dor de Ana não era a de estar separada de seu filho, como pode parecer à primeira vista, mas sim de estar, mais do que nunca, apegada a ele.

Como assinalado por Freud (1917/1974), se o objeto não possui uma importância tão grande para o ego, sua perda também não será suficiente para provocar o luto, dessa forma, aqui se considera importante falar da percepção que Ana tinha desse filho e do lugar que ele ocupava em sua vida.

Ela relatava que ele sempre havia precisado mais dela, pois a filha era muito independente desde criança. Descrevia-o como uma pessoa muita boa, educada, bem humorada, que fazia questão de envolver os pais em tudo e sempre tinha paciência para explicar as coisas e fazer o que pediam. Ressaltava os cuidados que realizava, afirmando que ele demandava sua atenção, pois dependia dela por conta da doença. O adoecimento dele teve início após a perda de um bom emprego, quando engordou e ficou obeso. A partir disso teve erisipelas de repetição e há quatro anos ficou internado na Unidade de Terapia Intensiva durante 12 dias, período no qual Ana iniciou o uso de Fluoxetina (antidepressivo) e Bromazepam (ansiolítico), os quais mantém até hoje.

Percebe-se que esse filho ocupava a posição de detentor de seus cuidados, pessoa que precisava dela e que lhe retribuía com amor, carinho e paciência. Ele era ressaltado como aquele que, apesar das próprias dificuldades, era agradecido, solícito e cujo lugar agora se encontrava vazio e sem possibilidade de preenchimento. Não se desconsidera as características dele, porém é possível refletir sobre a idealização desse objeto perdido, proporcionada pela identificação de Ana com ele (Casellato, 2002).

A questão de poder exercer o cuidado se mostrou central no modo como ela se posicionava em relação ao mundo e como via a si mesma. Ela relatava o quanto fazia questão de cuidar de amigos, parentes, principalmente do marido e da filha, pelos quais, muitas vezes, afirmava não se sentir reconhecida e valorizada. Via suas atitudes de cuidado como “obrigações” (sic) que devia cumprir, mas também contava da admiração que as pessoas expressavam por suas ações em favor do outro, o que faz refletir que tinha ganhos com esse posicionamento, atribuindo seu próprio valor através do quanto considerava poder ser útil.

Seus relatos acerca da percepção que tinha de si mesma eram o de ser uma pessoa “mole e medrosa” (sic), relacionada principalmente ao medo de ir ao médico e fazer exames. Não deixava de realizá-los, porém relatava ser “tomada por pensamentos ruins” (sic) ligados à descoberta de algo grave. Quando explorado o assunto, abordava que seu medo era “não de morrer, mas de sofrer e deixar o marido e a filha” (sic). Temia ficar acamada, “não ser mais útil” (sic), pois sempre cuidava dos outros e preferia ajudar a pedir ajuda.

Nasio (1996) aborda a noção de que o enlutado se identifica com as representações mentais que tinha do objeto amado, perdendo, com a sua morte, o outro que era seu eleito e de quem era o eleito. Perde também a imagem de si mesmo que o objeto o permitia amar, imagem essa relacionada ao ego ideal que nele encontrava suporte real. O filho parecia permitir a Ana exercer plenamente seu desejo de cuidar e ser completamente necessária ao outro.

Tal desejo parece ter encontrado expressão, ainda que parcialmente, nos cuidados com o marido. Destaca-se que, embora se queixasse de seus comportamentos, da falta de liberdade e sobrecarga, poder cuidar dele era inúmeras vezes apontado como algo extremamente positivo, principalmente mediante a morte do filho, pois “por sua causa tinha que fazer as coisas” (sic). Ana se sentia agradecida por tê-lo em sua vida, no entanto, também se mostrava insatisfeita, pois esse marido não parecia atender sua demanda de amor, como fazia o filho. É importante mencionar que no relacionamento deles outras questões e dificuldades anteriores se faziam presentes.

Contudo, refletindo sobre o processo de luto de Ana, é necessário ainda considerar mais a fundo que esse caso não diz respeito a um tipo de perda qualquer, mas sim à morte de um filho. Não se pode desconsiderar o sofrimento que tal situação causa e tampouco esquecer que se fala também de uma paciente idosa, que vivenciou e ainda vivencia diversas perdas reais e simbólicas que fazem parte do processo de envelhecimento e requerem também um trabalho de luto, conforme corrobora a literatura (Gavião, 2000; Siqueira, 2007; Cocentino & Viana, 2011; Aranha, 2012).

Ana, recorrentemente, dizia sobre o quanto era difícil se conformar com a morte do filho: “vejo tantas pessoas na rua e acho injusto o meu filho não estar vivo, podia ser ele no lugar de qualquer um” (sic); “não é que eu seja contra Deus, mas não me conformo com a morte dele (sic)”. No inconsciente não há representação para essa perda, ela diz respeito a algo da ordem do inominável, pois constitui uma ruptura no ciclo esperado da vida (Agnese et al., 2012).

Freud (1920, citado por Goldfarb, 1998), em carta a um amigo, se referindo à morte da própria filha, diz que “a perda de um filho parece produzir uma grave ferida narcísica” (p.79). Considera-se que a morte de um filho representa uma ferida narcísica, na medida em que destaca a impotência do sujeito frente à perda do objeto amado e investido de libido e que, ao se deparar com a morte do outro, encontra também a própria.

De acordo com Kovács (1992), a morte do outro se configura como a vivência da morte em vida, sendo a perda e a sua elaboração elementos contínuos no processo de desenvolvimento humano. Estes podem despertar angústia, medo, solidão, carregando em si elementos de sofrimento, dor, tristeza e certa desestruturação egóica, se fazendo necessário um tempo de elaboração. Além do que já foi destacado sobre o relacionamento de Ana com seu filho, a relação entre pais e filhos, comumente, é caracterizada pelo seu profundo vínculo, o que pode tornar essa elaboração mais difícil.

Além disso, segundo Oliveira e Lopes (2008), a ferida narcísica para os pais denota o reconhecimento de que uma parte de si, satisfeita pelo investimento libidinal no filho, foi perdida, o que foi evidenciado diversas vezes nos atendimentos de Ana, quando ela relatava que uma parte sua havia morrido junto com o filho.

A morte do filho ocorreu em casa e foi um momento marcante para ela, que diversas vezes descrevia o acontecido dizendo que, ao ver o filho respirar com dificuldade, gritou que ele estava morrendo, tendo logo sido retirada do quarto pela filha. Questionava se o filho a havia ouvido gritar e se tinha sofrido na hora da morte. Dizia que essas dúvidas estavam sempre em sua cabeça e que ninguém, nenhum médico ou amigo, conseguia responder.

Pode-se inferir que esse pensamento obsessivo sobre o momento dessa morte denunciava seus sentimentos de impotência por não ter podido salvá-lo ou ao menos confortá-lo, como sua função de cuidadora e protetora ensinava que devia fazer. Também se pode considerar um sentimento de culpa por ter sobrevivido à morte do filho, principalmente ante ao fato de ser idosa e isso não fazer parte da dinâmica esperada para a vida.

A perda de um filho, em geral, é tida na literatura como uma situação traumática (Parkes, 1998) e há de se pensar, como possível fator agravante, que o filho de Ana se mantinha ativo e sua doença não era terminal, o que fez com que ela sentisse sua morte como abrupta e devastadora, como ressaltava em diversas sessões. A previsibilidade da perda, que pode auxiliar no processo de elaboração do luto, não foi possível. Kovács (1992) pontua que a morte, se ocorrida de forma brusca, tem o potencial de desorganização, sendo bastante complicada pela impossibilidade de haver algum preparo.

Pensando na elaboração do processo de luto, como já sabido, o caminho natural para esse seria o desinvestimento libidinal. Freud (1916/1974) afirma que o luto, por mais doloroso que seja, chega a um fim espontâneo, onde a libido fica mais uma vez livre para substituir os objetos perdidos por novos igualmente ou ainda mais preciosos. Ele também traz como contraponto dessa falta de elaboração a melancolia (Freud, 1917/1974).

No entanto, diante das reflexões realizadas até esse momento, surge a seguinte questão: se pode esperar a completa elaboração do processo de luto no caso da morte de um filho?

Refletindo sobre o caso de Ana, é possível pensar que talvez não e que isso não necessariamente acarrete uma melancolia, como descrita por Freud (1917/1974).

Os relatos dela eram de que, após o falecimento do filho, não via coisas boas em sua vida e não tinha interesse em outras atividades além de cuidar da casa e do marido, sem possibilidade de fazer algo que a animasse ou desse prazer. Também afirmava sentir desânimo, muita tristeza e nervoso. Por vezes apresentava dores no corpo, cujas causas não eram identificadas quando ia ao hospital. Dizia que estar no meio de muita gente era pior e se referia à vida sempre como algo que precisava “enfrentar” (sic) e “ir levando” (sic).

Apesar disso, enfatizava que não se permitia ficar prostrada e quando sentia essa vontade, logo arranjava algo para fazer. Tinha um relacionamento próximo com a família, visitando-a com frequência e também relatava diversos afazeres externos e saídas com a filha. Não se referia a esses momentos como um divertimento, mas considerava bom poder conversar e se distrair.

Segundo as observações de Mendolowicz (2000), o processo de luto é um dos maiores desafios ao equilíbrio do psiquismo e, dependendo do tipo de perda, como mortes súbitas, precoces, violentas, perda de um filho, a elaboração pode se tornar complexa, com possibilidade de ser realizada parcialmente. Para a autora, a experiência clínica demonstra que a perda de uma pessoa amada pode fazer surgir outros tipos de perturbações psíquicas, além da melancolia: “são vários os destinos possíveis de um luto, desde o pleno resgate da libido a soluções sintomáticas de compromisso (...) até os quadros mais graves como a melancolia ou a psicose alucinatória” (p.88).

Era inegável a presença de traços depressivos em Ana, no entanto, além da situação de luto, esses podem também ser atribuídos ao seu próprio funcionamento e histórico de perdas. Sua noção de uma vida que precisava ser enfrentada, quase como um campo de batalha, vinha de antes do falecimento de seu filho, sendo construída ao longo de uma série de vivências, principalmente de doenças. Ela relatava ter passado por um câncer do pai, de quem cuidou; por um câncer no útero e cirurgia para sua retirada, há vinte anos, quando lhe deram seis meses de vida; por uma trombose na perna; e pelo adoecimento do marido. Superou tais situações, afirmando ser a morte do filho o único acontecimento que sentia que não conseguia superar.

Ressalta-se que durante o processo psicoterápico, a partir das intervenções realizadas no sentido de que pudesse nomear e dar um lugar para o seu sofrimento, Ana fez a construção de sempre ter sido uma “pessoa desesperada” (sic) e “muito preocupada com as coisas” (sic). Também ressignificou seu choro, trazido inicialmente como algo que prejudicava seu relacionamento com a filha, como algo natural, que fazia com que se sentisse melhor depois, o que denota a importância de ele não ter sido tomado como a queixa a ser trabalhada.

Outro ponto sempre presente nas sessões com Ana era o modo como as pessoas reagiam ao seu choro e tristeza, em especial a filha. Suas expressões de pesar pela morte do filho se tornaram fonte de conflito entre as duas e por isso Ana escondia o choro, afirmando se sentir “vigiada” (sic). Também dizia que várias pessoas criticavam seu choro, sendo poucos os que a acudiam e se compadeciam de seu sofrimento.

Uma data marcante foi o aniversário de 50 anos de casamento, que ela não queria comemorar. Dizia que sabia que as pessoas queriam agradá-la e iria frustrá-las ficando triste. Ressaltam-se duas falas suas sobre o assunto: “sei que não vou ficar feliz, queria que as pessoas respeitassem isso”; “estou cansada disso, não fico triste, choro, de propósito! Sei que muitas mães perdem os filhos, quero me conformar” (sic).

Apesar de envolver características de Ana e de seu relacionamento com as pessoas, sua dificuldade com as reações ao seu pesar pelo filho suscitam a reflexão acerca do lugar da tristeza e do luto na contemporaneidade, principalmente diante das mudanças na nova edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, o DSM 5 (APA, 2013).

Compreende-se que é necessário o cuidado com o sujeito que apresenta traços depressivos e não se desconsidera a prevalência da depressão como doença que necessita de atenção não só psicológica, mas também psiquiátrica, porém se sugere cautela com o uso de “rótulos” que acabam por descaracterizar o sujeito.  Em muitos casos, o que se limita a uma queixa ou um quadro clínico que se enraíza no orgânico é interpretado como depressão e vinculado à melancolia, não só pelos profissionais da medicina, como se costuma criticar, mas também pelos psicólogos (Coser, 2003).

O que se percebe, e é também apontado na literatura (Di Loreto, 1997; Coser, 2003; Tavares, 2010), é a desconsideração da função e importância da tristeza em determinados contextos, que tem gerado a patologização da vida e disseminação indiscriminada do diagnóstico de depressão. Numa sociedade em que se prioriza o narcisismo, a busca pelo prazer e a produtividade, parece não haver lugar para questões relacionadas à tristeza, perdas e morte, no entanto, essas fazem parte da condição humana e sua repressão pode gerar ainda mais sofrimento.

Para Parkes (1998), diversas evidências empíricas sustentam a afirmação da teoria psicanalítica de que a repressão excessiva da dor é danosa e pode gerar um pesar distorcido, no entanto, também há evidências de que o luto obsessivo pode levar a um luto crônico e à depressão. O ideal, portanto, é um equilíbrio entre a expressão e a repressão, que permita que a pessoa possa, aos poucos, aceitar a perda.

Até o momento, o processo de luto de Ana continua em elaboração, porém Agnese et al. (2012) destacam que não há um final previsível para o luto dos pais pelos seus filhos, mas sim um investimento e reposicionamento do amor, de forma que possam falar da pessoa falecida e realizar o luto dentro do tempo adequado para si mesmos. A partir da experiência prática, as autoras constatam que o tempo é diferente no luto dos pais, pois ele não se torna um fator atenuante para a dor, como geralmente ocorre, mas sim, em alguns momentos, a torna mais aguda, o que pôde ser observado no caso de Ana.

Uma noção importante destacada por Parkes (1998) é a de que o processo de luto envolve diversas etapas, que não constituem uma sequência rígida. A pessoa enlutada passa diversas vezes pela saudade e o desespero, sendo que muitas reconhecem que estão se recuperando no decorrer do segundo ano. Oliveira e Lopes (2008) vão ao encontro dessa ideia ao afirmarem que o luto não tem término pré-determinado e depende das características de personalidade de quem passa por ele e da intensidade da relação que se mantinha com a pessoa falecida.

Dessa forma, se enfatiza a questão do tempo no luto, como algo que não pode ser definido ou medido como igual para todos, pois sua elaboração depende de uma série de fatores, que podem ser complicadores ou não.

É premente considerar que o caso de Ana apresentou a situação de morte de um filho, vivenciada como prematura e repentina, para uma pessoa cujo cuidado com o outro parece dar sentido ao seu existir e que passa por diversas perdas relacionadas ao avançar da idade e dificuldades e preocupações que envolvem a sua função de cuidadora.

Diante disso, ao longo do processo psicoterápico, se buscou o cuidado da “ferida” provocada pela morte de seu filho, pelo oferecimento de um suporte egóico, acolhimento e escuta singular. Foi trabalhada a possibilidade de lidar com o seu sofrimento, a valorização de seus recursos de enfrentamento, o resgate do autocuidado e desconstrução da noção de que seu filho deveria ser esquecido.

Com a adoção de uma postura continente, foi observado que Ana pôde expressar seu pesar e, progressivamente, passar a trazer outros conteúdos que a angustiavam, relacionados aos cuidados do marido e questões do envelhecimento, como a proximidade da morte. Esta causava grande temor, principalmente, pelo desconhecimento do que aconteceria com as pessoas que amava, quem cuidaria delas.

Sobre o envelhecimento, se destaca uma fala sua relacionada ao desejo de se mudar para um apartamento com elevador devido à dificuldade de subir as escadas: “não tinha pensando nisso quando nos mudamos pra cá, está cada vez mais difícil, sinto cansaço no corpo (...) é, a gente vive como se não fosse envelhecer” (sic). Ana agora se deparava com as suas limitações, o que nunca havia pensado antes. Conforme sugerido por Goldfarb (1998), a passagem do tempo é experimentada como um "mal", algo que ataca o narcisismo. O envelhecimento, por ser provocador de mudanças ameaçadoras que afastam o sujeito de seu ponto central, é vivenciado sempre como exterior ao seu processo de subjetivação.

Em meio ao trabalho psicoterápico, por vezes, Ana apresentava os seguintes questionamentos, que talvez ilustrem o que ocorre no processo de luto: “será que pro resto da minha vida vou chorar a morte do meu filho?”; “(...) mas dois anos é recente, né?” (sic). O luto é um processo doloroso e dinâmico que consiste em idas e vindas:

O que é o luto? O luto é uma retirada do investimento afetivo da representação psíquica do objeto amado e perdido. O luto é um processo de desamor. É um trabalho lento, detalhado e doloroso. Pode durar dias, semanas e até meses. Ou ainda toda uma vida... (Nasio, 1996, p. 184)

 

CONCLUSÃO

O processo de luto de Ana pela perda de seu filho pôde ser compreendido como permeado de forte dor e apego, principalmente devido ao forte vínculo que ela tinha com ele e ao importante significado que poder cuidar do outro tinha em sua vida. Não houve representação para essa morte, que foi vivenciada de forma repentina e assoladora por uma pessoa idosa que, além dessa situação, passa pelas demais perdas decorrentes do envelhecimento que, constantemente, presentificam a questão da finitude, o que causa grande sofrimento. Há de se considerar também sua característica de personalidade de se preocupar intensamente com as situações.

Diante disso, e pensando que não há um tempo pré-determinado para o processo de luto, é possível que não haja um término para o de Ana, sua elaboração pode ser lenta ou mesmo parcial, não culminando, necessariamente, na melancolia. Sua função de cuidadora do marido, apesar de conter aspectos estressores, foi identificada como algo benéfico que a tem ajudado a lidar com essa perda.

Destaca-se a psicoterapia como possível fator de auxílio no caso da morte de um filho por fornecer um ambiente de acolhimento, onde há a possibilidade de nomeação dessa perda, inicialmente inominável, principalmente em meio às exigências sociais de combate à tristeza na atualidade. Durante o processo psicoterápico, Ana pôde dar um lugar para o seu pesar e atribuir novo significado ao seu choro, como parte de sua forma de se expressar.

 

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Endereço para correspondência
E-mail: simonesg89@gmail.com

 

 

1Psicóloga Especialista em Psicologia Hospitalar em Hospital Geral pelo Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo - ICHC-FMUSP, Brasil.
2Psicóloga da Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, orientadora do trabalho.
3Diretora de Assistência da Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Brasil.
4Diretora do Serviço de Pesquisas Clínicas e Epidemiológicas da Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Brasil.
5Diretora da Divisão de Psicologia do Instituto Central do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, Brasil.

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