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Psicologia USP
versão On-line ISSN 1678-5177
Psicol. USP v.4 n.1-2 São Paulo 1993
ARTIGOS ORIGINAIS
Halbwachs: memória coletiva e experiência
Halbwachs: colective memory and experience
Maria Luisa Sandoval Schmidt; Miguel Mahfoud
Instituto de Psicologia - USP
RESUMO
Este artigo tem como objetivo apresentar algumas das idéias fundamentais de Maurice Halbwachs sobre o trabalho da memória. Entre as concepções relevantes para a Psicologia Social destacamos a distinção e as relações entre imagem, lembrança e memória, e entre memória individual e memória coletiva; o conceito de confronto de testemunhos; as tensões e a complementaridade entre a história e a memória coletiva. A título de ilustração de ressonâncias destes conceitos no campo da pesquisa em Psicologia Social, comentamos alguns aspectos de pesquisa realizada junto a comunidades tradicionais da Estação Ecológica Juréia-Itatins no Litoral Sul de São Paulo.
Descritores: Memória. Halbwachs. Experiências de vida. Psicologia Social. Relatos verbais.
ABSTRACT
The parpose of the paper is to present some of the fundamental ideas of Maurice Halbwachs on the working of memory. Among the relevant conceptions for Social Psychology we stress: the distirection and the relations between individual memory and collective memory; the concept of the confrontation of witnesses; the tensious and complementariedade between history and collective memory. As an example of the ressonância of these concepts in the field of research in Social Psychology we comment ou some aspect of research carried out in tradutional communities of the Juréia-Itatins Echological Station on the southen coast of São Paulo.
Index Terms: Memory. Halbwachs Life experiences. Social psychology. Verbal reports.
Observamos, nos últimos anos, um crescente interesse pela obra de Maurice Halbwachs. Sociólogo francês, discípulo de Durkheim, escreveu seus principais trabalhos entre as décadas de 20 e 40.
Em seus textos, fulgura a originalidade de um pensamento construído na contracorrente de idéias hegemônicas no universo intelectual de sua época.
Insistindo na efervescência dos meios sociais, os estudos de Halbwachs se caracterizam pelo apego aos aspectos dinâmicos dos fenômenos sobre os quais se debruçam.
Valorizando a concepção durkheimiana sobre a existência de relações dinâmicas entre as classificações sociais e as mentais, Halbwachs faz o caminho inverso ao de muitos discípulos de Durkheim que interpretaram essas relações de maneira mecânica.
A contrapelo, recupera a visão durkheimiana de um social móvel, inventivo e enfatiza a complementaridade, a tensão, a correlação dialética entre classificações sociais e classificações mentais. Esta concepção e esta ênfase são uma espécie de viga mestra da arquitetura teórica halbwachiana. Esta arquitetura, por sua vez, é marcada por uma desconfiança com relação às idéias que leva o autor a posicionar-se de modo crítico frente ao idealismo filosófico fortemente dominante então. Embora não tivesse contato com a corrente fenomenológica emergente no campo da filosofia, é possível notar uma inspiração fenomenológica na sua atenção pelas situações concretas e no seu interesse em descrevê-las, bem como, no lugar privilegiado que o caso singular ocupa em sua construção teórica.
Como sociólogo, Halbwachs traduziu o trabalho de Durkheim em termos propriamente históricos, tomando a direção de uma historização da sociologia, num mundo onde as ciências humanas e a história eram campos separados e quase incomunicáveis.
Se, por um lado, o pensamento de Halbwachs se apresenta em contraposição a tendências filosóficas e sociológicas de cunho idealista e mecanicista que dominam a cena intelectual do início do século, por outro, sua originalidade floresce no contato com a Escola de Strasbourg.
A Escola de Strasbourg reuniu, entre as décadas de 20 e 30, um grupo de estudiosos de diferentes origens, posturas intelectuais e idades, com o objetivo de estudarem, pesquisarem e trabalharem juntos, visando uma aproximação entre franceses e alemães.
Neste grupo destaca-se a presença de estudiosos de origem judaico alemã, entre eles Halbwachs, que portam a experiência de serem vistos sempre como "os outros": para os alemães, são franceses; para os franceses, são alemães; para os judeus, não são judeus; para os cristãos, são judeus. Esta experiência coloca-os na condição de desenvolverem uma postura ideal para um certo tipo de trabalho sociológico, histórico e psicológico: sabem o que significa ser "o outro".
Do ponto de vista intelectual e metodológico, esta postura contribui para a compreensão da especificidade e singularidade dos grupos sociais em diferentes épocas e, ao mesmo tempo, facilita trocas interdisciplinares, na medida em que cada especialista está aberto para apreender a contribuição da disciplina-outra para o seu próprio campo de estudo. E, de fato, da Escola de Strasbourg emergem tanto a sociologia historicizada de Halbwachs, quanto a história sociologizada de Lucien Febvre, Marc Bloch e da Nova História.
A perspectiva psicológica não ficou fora deste contexto de trocas interdisciplinares. A revolução psicológica e psicanalítica que aponta para o estudo dos processos psíquicos tal como são encarnados e vividos pelos indivíduos, e não como entidades abstratas ou mecanismos puramente fisiológicos, teve sua quota de influência no pensamento desse grupo. Não é por acaso, portanto, que o movimento da Nova História desemboca no estudo das mentalidades ou que Halbwachs leciona a disciplina de psicologia social no Collège de France.
Halbwachs dedicou-se a temas diversos como o suicídio ou a vida de trabalhadores numa vila operária alemã, buscando entender a formação da consciência social. Fiel a esta temática, aprofundou o estudo da memória, principalmente em três grandes obras: Os quadros sociais da memória de 1925, Topografia legendária dos Evangelhos na Terra Santa de 1941 e A memória coletiva (publicação póstuma) de 1950 que, são, sem dúvida, referências fundamentais para quem se interessa pelo assunto.
Sociólogos, psicólogos, historiadores, antropólogos, arquitetos, entre outros, têm, mais e mais, recorrido a estas obras que permanecem ricas e fecundas para as diferentes áreas das ciências humanas.
Na perspectiva da psicologia social, um exemplo próximo desta riqueza e fecundidade é a contribuição das idéias de Halbwachs para o importante trabalho de Ecléa Bosi (1979) sobre lembranças de velhos.
O livro A memória coletiva, onde a intersecção entre psicologia social e sociologia se configura de forma mais explícita, será tomado como principal referência.
Buscando indicar possíveis ressonâncias destes conceitos na esfera da pesquisa em psicologia social, traremos, após a apresentação teórica, alguns exemplos referentes a pesquisa de campo realizada junto a comunidades tradicionais do litoral sul de São Paulo1.
Imagem, lembrança, memória
Para Halbwachs o indivíduo que lembra é sempre um indivíduo inserido e habitado por grupos de referência; a memória é sempre construída em grupo, mas é também, sempre, um trabalho do sujeito.
Procuraremos explicitar o sentido desta afirmação na composição dos conceitos halbwachianos.
Inicialmente, é preciso explorar o significado dos grupos como condição para a construção da memória.
Segundo Halbwachs, uma semente de rememoração pode permanecer um dado abstrato, pode, ainda, formar-se em imagem e como tal permanecer ou, finalmente, pode tornar-se lembrança viva. Estes destinos dependem da ausência ou presença de outros que se constituem como grupos de referência.
O grupo de referência é um grupo do qual o indivíduo já fez parte e com o qual estabeleceu uma comunidade de pensamentos, identificou-se e confundiu seu passado. O grupo está presente para o indivíduo não necessariamente, ou mesmo fundamentalmente, pela sua presença física, mas pela possibilidade que o indivíduo tem de retomar os modos de pensamento e a experiência comum próprios do grupo. A vitalidade das relações sociais do grupo dá vitalidade às imagens, que constituem a lembrança. Portanto, a lembrança é sempre fruto de um processo coletivo e está sempre inserida num contexto social preciso.
Em termos dinâmicos, a lembrança é sempre fruto de um processo coletivo, na medida em que necessita de uma comunidade afetiva, forjada no "entreter-se internamente com pessoas" característico das relações nos grupos de referência. Esta comunidade afetiva é o que permite atualizar uma identificação com a mentalidade do grupo no passado e retomar o hábito e o poder de pensar e lembrar como membro do grupo.
A permanência do apego afetivo a uma comunidade dá consistência às lembranças. Em contrapartida, o desapego está ligado ao esquecimento. "Esquecer um período de sua vida" - diz Halbwachs (1990) - "é perder contato com aqueles que então nos rodearam" (p.32). Esta perda de contato não pode ser restituída pela descrição, mesmo que exata, dos acontecimentos deste período, pois, na descrição, as imagens se apresentam como dados abstratos. No desapego não há reconhecimento, não há lembrança.
A lembrança, para Halbwachs, é reconhecimento e reconstrução. É reconhecimento, na medida em que porta o "sentimento do já visto". É reconstrução, principalmente em dois sentidos: por um lado, porque não é uma repetição linear de acontecimentos e vivências do passado, mas sim um resgate destes acontecimentos e vivências no contexto de um quadro de preocupações e interesses atuais; por outro, porque é diferenciada, destacada da massa de acontecimentos e vivências evocáveis e localizada num tempo, num espaço e num conjunto de relações sociais.
Tanto o reconhecimento quanto a reconstrução dependem da existência de um grupo de referência, tendo em vista que as lembranças retomam relações sociais, e não simplesmente idéias ou sentimentos isolados, e que são construídas a partir de um fundamento comum de dados e noções compartilhadas.
Os grupos, no presente e no passado, permitem a localização da lembrança num quadro de referência espaço-temporal que, justamente, possibilita sua constituição como algo distinto do fluxo contínuo e evanescente das vivências.
A memória é este trabalho de reconhecimento e reconstrução que atualiza os "quadros sociais" nos quais as lembranças podem permanecer e, então, articular-se entre si.
Assim, compreende-se, em parte, a concepção halbwachiana sobre a natureza coletiva da memória.
Confronto de testemunhos
O outro, através de seu depoimento, apóia, complementa, torna mais exato o trabalho da memória.
Nas palavras de Halbwachs (1990):
se nossa impressão pode apoiar-se não somente sobre nossa lembrança, mas também sobre a de outros, nossa confiança na exatidão de nossa evocação será maior, como se uma mesma experiência fosse começada, não somente pela mesma pessoa, mas por várias (p.25).
O primeiro nível de testemunho ao qual o indivíduo tem acesso se dá na relação consigo mesmo, confrontando uma visão atual com as experiências vividas no passado ou com opiniões formadas anteriormente, com o apoio de depoimentos de outros.
Um segundo nível, abrange a esfera do diálogo entre o indivíduo e um outro presente fisicamente ou internalizado. Neste sentido, o trabalho da memória pode ser compreendido como confronto dos diferentes pontos de vista que cohabitam no indivíduo.
Estes pontos de vista ajudam a ver, observar e lembrar. Para ver e observar uma realidade presente, o indivíduo recorre ao testemunho de sua experiência anterior e ao testemunho de outros que indicam ou destacam aspectos a serem observados, bem como, universos onde localizar o observado.
Na medida em que o presente é vivido nesta interlocução de testemunhos, a sua evocação, no futuro, tenderá a retomar estes diálogos. O trabalho da memória é, portanto, também, a presentificação daquele conjunto de testemunhos no contexto de um diálogo mais amplo e atual.
O confronto de testemunhos tem por fundamento as dimensões do tempo e do espaço.
De acordo com Halbwachs (1990),
a memória não tem alcance sobre os estados passados e não no-los restitui em sua realidade de outrora, senão em razão de que ela não os confunde entre si, nem com outros mais antigos ou mais recentes, isto é, ela toma seu ponto de apoio nas diferenças (p.96).
A diferenciação das lembranças deriva, também, das divisões do tempo - que são singulares para cada grupo e para cada homem. A divisão do tempo permite a constituição de uma lembrança enquanto tal, e sua distinção dentre outras lembranças numa cadeia de recordações. E porque as lembranças não se confundem entre si que podem ser confrontadas, dando corpo ao trabalho da memória.
Em contraposição ao tempo que oferece continuamente a imagem da mudança, o espaço oferece a imagem da permanência e da estabilidade. Os lugares recebem a marca de um grupo e a presença de um grupo deixa marcas num lugar. Todas as ações do grupo podem ser traduzidas em termos espaciais e o lugar ocupado pelo grupo é uma reunião de todos os elementos da vida social. Cada detalhe tem um sentido inteligível aos membros do grupo. Ao mesmo tempo que o espaço faz lembrar uma maneira de ser comum a muitos homens, faz lembrar, também, costumes distintos, de outros tempos. Sobretudo, faz lembrar de pessoas e relações sociais ligadas a ele. Neste sentido é, sempre, fonte de testemunhos.
Memória individual e memória coletiva
Depreende-se do que foi exposto até aqui a impossibilidade de uma memória exclusivamente ou estritamente individual, uma vez que as lembranças dos indivíduos são, sempre, construídas a partir de sua relação de pertença a um grupo. A memória individual pode ser entendida, então, como um ponto de convergência de diferentes influências sociais e como uma forma particular de articulação das mesmas.
Analogamente, a memória coletiva, propriamente dita, é o trabalho que um determinado grupo social realiza, articulando e localizando as lembranças em quadros sociais comuns. O resultado deste trabalho é uma espécie de acervo de lembranças compartilhadas que são o conteúdo da memória coletiva.
Halbwachs ao distinguir e relacionar memória individual e memória coletiva põe ênfase num dinamismo que Duvignaud (1990) traduz nos seguintes termos:
é impossível conceber o problema da evocação e da localização das lembranças se não tomamos para ponto de aplicação os quadros sociais reais que servem de pontos de referência nesta reconstrução que chamamos memória (p.9-10).
Um aspecto a acrescentar neste dinamismo da memória é a importância da lembrança pessoal como testemunho frente e contra as interferências coletivas. Na feliz expressão de Franco Cardini (1993),
a lembrança não se constrói sem a memória coletiva, mas, ao mesmo tempo, a recordação pessoal é uma forma de testemunho que impõe limites à tirania ou à ditadura das imagens coletivas.
Este limite deve ser entendido no interior mesmo do trabalho da memória, significando que a experiência dos indivíduos é a ancoragem para a construção contínua e comum que chamamos memória coletiva, cujos conteúdos, por esta razão, não são arbitrários.
Por outro lado, a recordação pessoal enfrenta a ditadura das imagens coletivas enquanto torna possível que um elemento de caráter pessoal possa ser ouvido por cima da memória coletiva.
Para Halbwachs a consciência individual é um registrador de influências sociais, mas, ao mesmo tempo, a consciência individual é um limite, algo que pode nos salvar da ditadura (Cardini, 1993).
Tradição e história
A memória coletiva adapta as imagens de fatos antigos a crenças e a necessidades espirituais do presente. Indicando esta característica, Halbwachs supera a concepção do passado como um modelo imutável ao qual conformar-se (Dumond,1988).
Na memória coletiva o passado é permanentemente reconstruído e vivificado enquanto é resignificado. Neste sentido, a memória coletiva pode ser entendida como uma forma de história vivente. A memória coletiva vive, sobretudo, na tradição, que é o quadro mais amplo onde seus conteúdos se atualizam e se articulam entre si.
A memória coletiva encontra seu lugar na tradição e, ao mesmo tempo, dinamiza as tradições, num processo semelhante ao que foi descrito com relação às lembranças no contexto dos quadros sociais.
A memória coletiva tem uma forte tendência a transformar os fatos do passado em imagens e idéias sem rupturas. Ou seja, tende a estabelecer uma continuidade entre o que é passado e o que é presente, restabelecendo, portanto, a unidade primitiva de tudo aquilo que, no processo histórico do grupo, representou quebra ou ruptura. Desta forma, a memória coletiva apresenta-se como a solução do passado, no atual; apresenta-se como recomposição quase mágica ou terapêutica, como algo que cura as feridas do passado.
Também a memória histórica busca solucionar rupturas, busca produzir imagens unitárias do percurso da humanidade. Porém, seu processo possui uma direção diferente: soluciona a atual no passado. Isto quer dizer que a memória histórica oferece uma construção lógica e inventada do passado. Esta construção lógica e inventada pode ser entendida como o trabalho, que cada época realiza, de encontrar o que já existia anteriormente, mas que não se podia incluir num sistema de imagens.
Vê-se, portanto, que a memória coletiva e a memória histórica, apoiando-se em regras de reconstrução distintas, chegam, inevitavelmente, a conhecimentos distintos do passado.
A memória coletiva pode, por vezes, se enfrentar de modo contundente com a racionalidade da história feita pelos historiadores. Em outros momentos, pode ser complementar à memória histórica. E, em outros, ainda, servir como limite ao caráter lógico e ideológico da história. Nem a memória coletiva nem a memória histórica podem, contudo, legitimamente, reivindicar para si, a verdade sobre o passado.
A memória coletiva, para Halbwachs, desempenha um papel fundamental nos processos históricos. Por um lado, dando vitalidade aos objetos culturais, sublinhando momentos históricos significativos e, portanto, preservando o valor do passado para os grupos sociais. Por outro, sendo a guardiã dos objetos culturais que atravessam os tempos e que, então, podem vir a se constituir em fontes para a pesquisa histórica.
A concepção de Halbwachs sobre o lugar da memória coletiva nos processos históricos foi assim sintetizada por Cardini (1988):
(...) a grande protagonista da história é a memória coletiva, que tece e retece, continuamente, aquilo que o tempo cancela e que, com a sua incansável obra de mistificação, redefinição e reinvenção, refunda e requalifica continuamente um passado que, de outra forma, correria o risco de morrer definitivamente ou de permanecer irremediavelmente desconhecido (p.xii).
Halbwachs e a psicologia social
A psicologia social, entre outros objetivos, busca compreender os fenômenos sociais desde o ponto de vista da experiência do indivíduo em seu contexto sócio-cultural. Uma via de acesso, privilegiada, à experiência do indivíduo é o relato oral. Isto porque no relato oral os elementos diversos e heterogêneos que dão corpo à experiência encontram uma forma única, singular e integrada de expressão e comunicação.
Halbwachs delimita um campo metodológico e conceituai de extrema pertinência para a pesquisa que se baseia na coleta e análise de relatos orais.
A seguir, passamos ao comentário de algumas dimensões metodológicas da pesquisa com relatos orais que se destacaram no trabalho de campo com comunidades tradicionais da Estação Ecológica Juréia-Itatins, claramente em conseqüência de nosso diálogo com a obra de Halbwachs.
Confronto e relato oral
O trabalho de campo referido acima tem como objetivo principal o estudo dos fenômenos propícios à transmissão e à elaboração da experiência pessoal e coletiva em comunidades tradicionais. Naquele trabalho partimos de uma conceituação de experiência onde o conceito de memória ocupa um lugar central. De fato, experiência é memória, enquanto capacidade de recordar e de evocar, que constitui um enriquecimento de saberes; é ainda, presença ativa do passado em nós, como dinamismo e princípio de ação. A elaboração e a transmissão da experiência, então, remetem ao trabalho da memória (Ries, 1988).
Na coleta de histórias de vida de moradores das comunidades que estamos interessados em conhecer, observamos a presença da confrontação como característica intrínseca da narrativa. Freqüentemente, entramos em contato com o fato de que um indivíduo, ao testemunhar oralmente o seu passado, formula a própria narrativa como um processo de confrontação, adaptação e acomodação de vários elementos, tais como: " casos" pessoais ou antigos, opiniões próprias e alheias, distinções entre pontos de vista, descrições dos diferentes modos de vida em diferentes épocas, histórias tradicionais, referências a diferentes grupos; ou seja, elementos que se movem entre os eixos presente/passado e indivíduo/outros.
A observação do caráter plural da narrativa abre a possibilidade de escutar um depoimento pessoal como a orquestração de vozes coletivas, posta em cena pelo narrador. Isto é importante não tanto porque se apreendem as relações sociais através da fala do indivíduo, mas, principalmente, porque se apreende o modo como a experiência do indivíduo é modulada, matizada, dentro daquele quadro social.
Do ponto de vista do comentário e da análise do material colhido a partir desta apreensão, as contradições, as ambigüidades, as omissões não são tomadas, exclusivamente, como dissintonias do desejo do indivíduo, mas como expressões que atualizam os conflitos, as tensões, a pluralidade de perspectivas, do grupo social, dos quais o indivíduo se apropria para elaboração de sua experiência.
A elaboração da experiência pode ser entendida como um processo de diálogo entre diferentes pontos de vista atuais e passados que, de alguma forma, estão presentes para o indivíduo.
Neste campo de diálogo entre diferenças, inclui-se, também, a presença dos pesquisadores. Isto quer dizer que o narrador não é indiferente ao pesquisador como representante de um outro grupo e, portanto, sua narrativa é, inclusive, um diálogo com este grupo que o pesquisador representa2.
Ruptura e quotidiano
Halbwachs salienta que a percepção do tempo é uma percepção de diferenças.
Na vida das comunidades estudadas, uma dessas diferenças significativas é definida pela alternância dos tempos do quotidiano e da festa.
Como ruptura do fluxo do tempo quotidiano, a festa se constitui não só como momento de utopia social, mas como um momento privilegiado de percepção do quotidiano. É um momento de suspensão do quotidiano que coloca aquela diferenciação necessária para a delimitação da experiência no tempo. Portanto, é um momento em que o vivido quotidiano pode ser retomado como objeto de reflexão.
Analogamente, podemos entender a situação de entrevista como um outro momento de ruptura que propicia a percepção da realidade quotidiana e sua elaboração por parte do indivíduo.
Esta elaboração tem uma qualidade, uma especificidade e uma riqueza próprias da situação de entrevista. Isto permite rebater a crítica de que a entrevista é um instrumento limitado por promover uma situação artificial, uma vez que justamente a ruptura de uma situação corriqueira promove uma certa percepção e uma certa elaboração da experiência quotidiana, dificilmente captáveis apenas através de observações etnográficas.
Acresce-se a isso, o fato de que momentos de ruptura desta natureza não são alheios a experiência daquelas comunidades, como a existência de frequentes festas comprova.
Uma outra crítica à entrevista é a de que seria condicionada pelas necessidades e interesses do pesquisador e, portanto, poderia ser invasiva para o sujeito da pesquisa. A valorização da entrevista como momento de ruptura tem se demonstrado útil tanto para os objetivos de pesquisa em psicologia social, quanto para os sujeitos da pesquisa que têm acolhido a entrevista como uma oportunidade de refletir e de transmitir a sua experiência pessoal e comunitária.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BOSI, E. Memória e sociedade: lembranças de velhos. São Paulo, T.A. Queiroz, 1979. [ Links ]
CARDINI, F. A memória coletiva no pensamento de M. Halbwachs. /Conferência proferida no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo em 10 de novembro de 1993. [ Links ]
CARDINI, F. Un sociologo al Santo Sepolcro. In: HALBWACHS, M. Memorie di Terrasanta. Veneza, Ed. Arsenale, 1988. p. vii-xxiv. [ Links ]
DUMOND, F. Prefazione all' edizione francese (1971). In: HALBWACHS, M. Memorie di Terrasanta. Veneza, Ed. Arsenale, 1988. p.xxv-xxx. [ Links ]
DUVIGNAUD, J. Prefácio. In: HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo, Vértice/Revista dos Tribunais, 1990. p.9-17. [ Links ]
HALBWACHS, M. A Memória coletiva. Trad. de Laurent Léon Schaffter. São Paulo, Vértice/Revista dos Tribunais, 1990. Tradução de: La mémoire collective. [ Links ]
HALBWACHS, M. Memorie di Terrasanta. Trad. de Marta Cardini. Veneza, Ed. Arsenale, 1988. Tradução de: La topographie légendaire des Evangiles en Terre Sainte. [ Links ]
RIES, J. La esperienza religiosa. In: MONTI, C., org. Il libro del Meeting 88: cercatori di infinito, costruttori di storia. Roma, Meeting Per L'Amicizia Fra I Popoli, 1988. p. 156-9. [ Links ]
1 "Experiência, tradição oral e religiosidade em comunidades da Estação Ecológica Juréia-ltatins", projeto que vem sendo desenvolvido, desde 1993, pelos autores deste artigo, com apoio da FAPESP.
2 Vale como ilustração a seguinte passagem: o narrador estava falando sobre a diferença entre as coisas que Deus cria e aquelas que o homem faz, e traz como exemplo a possibilidade de se repor uma lâmpada que teria se queimado em contraposição à impossibilidade de reconstituição da natureza devastada. Ora, a lâmpada é um elemento que não faz parte do quotidiano das comunidades, como a do narrador, que não contam com energia elétrica, mas sim do mundo do pesquisador.