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Psicologia USP
versão On-line ISSN 1678-5177
Psicol. USP v.6 n.2 São Paulo 1995
ARTIGOS ORIGINAIS
Os três ensaios sobre a teoria da sexualidade: um texto perdido em suas sucessivas edições?1
Three essays about the theory of sexuality: a text lost in it's successive editions?
Mônica Guimarães Teixeira do Amaral
Departamento de Psicologia da Educação - UNESP - Araraquara - SP
RESUMO
O artigo faz uma análise dos Três ensaios (Freud, 1905) em sua versão original, para depois proceder a um estudo detido de suas sucessivas edições, procurando, desse modo, apresentar, de um lado, as indagações de Freud na época (1905) a propósito da origem e dos destinos da pulsão sexual e, de outro, as incidências das descobertas posteriores da teoria freudiana sobre as pulsões e o aparelho psíquico em relação às formulações inicialmente apresentadas, particularmente sobre a gênese do ego e da sexualidade. Inspirados pelas idéias de J. Laplanche sobre a Teoria da Sedução Generalizada, procurou-se identificar os momentos de ruptura com os desvios biologizantes da teoria freudiana das pulsões, presentes nas diversas edições dos Três ensaios, considerados essenciais para se repensar os fundamentos do sujeito psíquico e da própria sexualidade.
Descritores: Sexualidade polimórfica. Complexo de Édipo. Freud, Sigmund, 1856-1939. Narcisismo.
ABSTRACT
This article presents an analysis of the first version of The Three Essays (Freud, 1905) and a careful study of its successive editions. On one hand, it intends to show Freud's inquires by 1905, on the sexual instinct source and directions. On the other hand, it mentions the subsequent discoveries incidences of the Freudian theory on the instincts as well as the psychical system, in relation to the formulations initially shown, specially on the ego and the sexuality genesis. Based on J. Laplanche's ideas about the Theory of Generalized Seduction, the author has tried to identify the rupture with the biological deviations of the Freudian theory on the instincts, mentioned in the various editions of The Tree Essays and considered essential to review the basis of the psychic being and even the whole sexuality.
Index terms: Polymorphic sexuality. Oedipus Complex. Freud, Sigmund, 1856-1939. Narcissism.
1. INTRODUÇÃO
Entendemos que os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (Freud, 1987)2, particularmente em sua primeira versão (1905), constituem o que poderíamos designar como uma "obra aberta", em que diferentes teses sobre a pulsão sexual - muitas vezes, contraditórias entre si - são apresentadas, lado a lado, sem uma preocupação com qualquer tipo de síntese conclusiva.
A importância do texto original consiste exatamente em manter essa tensão entre abordagens divergentes, dando margem a mais de uma interpretação. A despeito das diferentes orientações presentes na primeira versão, prevalece uma concepção essencialmente perversa e polimórfica da sexualidade, o que aponta para o caráter revolucionário do sexual sustentado por Freud na época.
No entanto, se acompanharmos atentamente as reformulações acrescentadas por Freud a cada uma das edições posteriores (1910, 1915, 1920, 1924), deparamo-nos com o gradual desaparecimento da riqueza interpretativa observada na primeira versão, bem como do "aspecto aberrante da sexualidade"3, passando a apresentá-la de acordo com uma única e mesma orientação de natureza endógena e biologizante.
Trata-se, portanto, de um texto capcioso, que mantém no original diferentes posições sobre a sexualidade, cuja tensão, entretanto, acaba sendo diluída ou mesmo "banida" ao longo das demais edições.
Essas filigranas do texto, no entanto, dificilmente são percebidas a partir de uma leitura "em bloco" dos Três ensaios, sem que se faça a devida discriminação entre a obra tal como fôra concebida em 1905 e os adendos acrescentados em cada uma de suas sucessivas edições.
Sustentamos que, muito embora seja amplamente reconhecida a importância dos Três ensaios, considerados como um dos textos fundamentais em que se baseia a teoria freudiana, não se pode afirmar que tal reconhecimento tenha resultado em análises suficientemente rigorosas dos mesmos. Não nos parece satisfatório, por exemplo, assinalar as modificações introduzidas em notas de rodapé sobre cada um dos aspectos da pulsão sexual em tal ou qual época, é preciso antes atentar para o fato de que esses acréscimos podem ter alterado substancialmente o sentido do conjunto da obra.
É certo que alguns autores têm insistido sobre a "quebra" na tônica entre os dois primeiros ensaios e o terceiro: observando nos primeiros, uma concepção mais perversa e polimórfica da sexualidade, cujo alvo seria a consecução do prazer, apontam que no terceiro tal concepção daria lugar a uma espécie de teleologia extrínseca a ela mesma, em que o prazer se vê substituído pelo fim reprodutivo.
Mas, até o momento, não foi investigado se essa "ruptura" observada na orientação dos dois primeiros ensaios em relação ao terceiro (análise, ao nosso ver, pertinente apenas para o texto original de 1905), teria sido mantida ao longo das demais edições dessa obra.
Ora, face a essas observações, uma série de questionamentos nos foram suscitados, sugerindo-nos a presença de inúmeras "obras", com diferentes orientações, contidas num único texto, conhecido como os Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. Particularmente em relação aos fundamentos do sujeito psíquico e da sexualidade, partimos de algumas preocupações básicas a respeito de conceitos-chave como o auto-erotismo, o narcisismo e o masoquismo primário.
Perguntamo-nos, por exemplo, quais seriam as implicações de uma concepção endógena e biologizante da sexualidade para se pensar a simbolização própria às formações do inconsciente. E ainda, se tal concepção não comporta uma relação fantasmática e originária de alteridade, como se daria a simbolização constitutiva das manifestações primordiais do sujeito psíquico, ou seja, o auto-erotismo e o narcisismo?
Acrescentaríamos, ainda, uma outra questão:
Quais seriam as implicações de se conceber a sexualidade infantil, auto-erótica, como sendo sem objeto? E mesmo quando concebida como portadora de objeto fantasmático, o fato de remetê-la a uma espécie de herança filogenética, não acabaria destituindo a auto-conservação da função de suporte de intervenção do objeto primordial de investimento, ou seja, a mãe?
Em relação ao masoquismo originário, quais seriam as implicações de concebê-lo como um estado "ontológico, absoluto e primeiro"? Não se recairia nos mesmos problemas sugeridos acima com relação à concepção solipsista da pulsão?
Estas são apenas algumas das questões que pretendemos percorrer, contextualizando as contribuições de cada uma das edições dos Três ensaios a partir do debate travado por Freud em obras contemporâneas aos períodos em que aqueles foram reeditados. Leitura que faremos inspirados pelos questionamentos de Laplanche, em particular sobre esta obra4 e apoiando-nos, de um modo mais amplo, em sua Teoria da Sedução Generalizada5.
Nossa intenção é, pois, examinar, em um primeiro momento, as indagações de Freud a respeito da pulsão na época em que os Três ensaios foram editados pela primeira vez, em 1905. Em um segundo momento, analisaremos as incidências das reformulações posteriores da teoria freudiana a respeito das pulsões e do aparelho psíquico em relação às teses apresentadas na primeira edição sobre a gênese do ego e da sexualidade6.
Preocupa-nos, por exemplo, na análise do narcisismo e dos diversos impasses que tal descoberta impôs ao pensamento freudiano, identificar em que medida os desvios biologizantes da concepção freudiana sobre a sexualidade (concebendo-a como um esquema fixo, hereditário e adaptativo), assim como os momentos de ruptura com tais desvios, podem abrir brechas na leitura do conceito de narcisismo, permitindo, desse modo, refletir sobre o próprio processo real de constituição do psiquismo humano.
De outro lado, percorrer as formulações freudianas sobre o masoquismo primário, parece-nos essencial para se repensar os fundamentos do sujeito psíquico e da própria sexualidade, se admitirmos o caráter masoquista da situação originária e fundante da sedução7.
Vejamos, então, no que consistiriam basicamente as contribuições dos Três ensaios (Freud, 1987), em sua versão original de 1905.
2. PRIMEIRA EDIÇÃO DOS TRÊS ENSAIOS - 1905
PRIMEIRO ENSAIO
É preciso observar que, sobretudo na versão original de 1905, as idéias apresentadas sobre as perversões - na medida em que são associadas à excitação e à obtenção do prazer de modo generalizado, ao mesmo tempo que são concebidas independentemente de um objeto sexual pré-determinado - refiram-se não apenas à síntese perversa, mas a toda a sexualidade humana. Nesse sentido, e isso Freud salienta desde o início, as perversões, ou melhor, as tendências perversas fariam parte constitutiva da sexualidade infantil. É de acordo com esta perspectiva que o autor, embora defenda a participação dos fatores disposicionais, finda por relativizá-los, colocando-os na dependência da experiência vivida.
Mais especificamente no que diz respeito à perversão sadomasoquista, o autor a associa, em um primeiro momento, a uma espécie de "autonomização hipertrofiada" de determinadas características da pulsão, estabelecendo uma equivalência entre o par de elementos opostos nela presente e as formas ativas e passivas da sexualidade. Ainda no que diz respeito à gênese de tal perversão, levanta a hipótese de que o seu componente agressivo adviria de antigos "apetites canibais" e que a contribuição do "aparelho de dominação", na verdade, estaria a serviço de "outra grande necessidade", que se pode interpretar como sendo relativa à autoconservação.
Não satisfeito com estas duas hipóteses, Freud passa a explicar a presença do par de elementos opostos sadomasoquistas, a partir de uma espécie de disposição à bissexualidade que reuniria os caracteres masculinos e femininos da pulsão no mesmo indivíduo.
Mas, se no início dos Três ensaios, no momento em que Freud desmonta as noções "populares" de alvo e objeto específicos, opondo-se a toda e qualquer concepção pré-determinada da sexualidade, como pode admitir uma disposição originária de natureza bissexual?
Consideramos que essas oscilações, presentes em 1905, poderiam ser melhor compreendidas, caso não nos esqueçamos de que esta obra foi escrita logo após o abandono da teoria da sedução, em função do qual começaram a surgir vários impasses teóricos, sobretudo no que diz respeito à gênese das pulsões.
Passemos, então, à análise do segundo ensaio, intitulado "A sexualidade infantil".
SEGUNDO ENSAIO
Embora, em 1905, nenhuma menção seja feita ao conceito de narcisismo (apresentado somente na edição de 1910), é possível depreender desse segundo ensaio uma discussão sobre a gênese do sujeito psíquico a partir de uma das características essenciais da sexualidade infantil, qual seja a do auto-erotismo (aliás, amplamente discutido nas edições posteriores).
Tomando como modelo prototípico da sexualidade infantil o ato de sucção do bebê, Freud deriva as três características daquela, sem, no entanto mencionar explicitamente a questão do apoio (da sexualidade sobre a autoconservação), que aparecerá de modo mais evidenciado apenas na edição de 1915.
Examinemos, então, a definição de tais características do modo como são anunciadas em 1905:
A sucção voluptuosa nos permitiu distinguir as três características essenciais de uma manifestação sexual infantil. Ela ainda não conhece objeto sexual algum, é auto-erótica e seu alvo sexual está sob a dominação de uma zona erógena. (Freud, 1987, p.106-7).
Uma definição na qual quase tudo o que caracterizaria a pulsão está presente (alvo, objeto e fonte - zona erógena), menos o impulso.
Uma outra questão a ser observada é que, embora na versão de 1905 a questão do apoio não seja mencionada na definição da sexualidade infantil, ela já aparece, de modo diluído, referindo-se à sexualidade oral, ou mesmo a propósito da sexualidade anal (apoiada sobre a função de excreção).
Freud deixa claro, por exemplo, que, associado à função alimentar, desenvolve-se o processo sexual no qual o objeto passa a ser fonte de satisfação e gozo infantis. Ao ato alimentar é associado o prazer advindo do atrito entre a boca da criança e o bico do seio, ou mesmo em função do fluxo do leite. Tudo isso passa a ser fonte de excitação. Mais tarde quando o bico do seio é substituído pelo dedo, evidencia-se o caráter propriamente sexual do ato de sucção, independentemente de uma função biológica conhecida. A condição para que isso ocorra é a separação da "necessidade de repetir a satisfação sexual" da "necessidade de nutrição".
Uma afirmação como essa nos faz pensar que, a despeito da ênfase dada por Freud à ausência de objeto sexual como uma das características da sexualidade infantil, quando da referência ao ato de sucção do bebê, é possível depreender a idéia de que o auto-erotismo não seja originário, já que a condição de seu surgimento é a separação das funções autoconservativas da necessidade de reproduzir o prazer obtido originariamente na relação com o seio da mãe. Este, como veremos, deverá ser abandonado a partir da representação da mãe como objeto total, tornando-se a sexualidade infantil, em seguida, auto-erótica.
No entanto, no que diz respeito ao auto-erotismo, seria necessário prosseguir na leitura não só da versão de 1905 como das edições posteriores, de maneira a explicitar se se trata de uma sexualidade sem objeto exterior, mas com objeto fantasmático, ou sem qualquer objeto (anobjetal)8. Mesmo supondo um objeto fantasmático, devemos nos perguntar sobre sua gênese: se deve ser situada na relação de alteridade ou se a partir de uma espécie de herança fantasmática originária. Mas qual seria o problema de conceber o auto-erotismo sem objeto?
Se o auto-erotismo não comporta fantasia alguma, não pode haver uma relação de simbolização entre os processos autoconservativo e sexual. Verifica-se apenas uma substituição de objetos de um dos processos pelo outsro9.
Ainda no segundo ensaio, item VII, intitulado As fontes da sexualidade infantil, Freud faz uma referência indireta à tese de apoio por meio da idéia de co-excitação, associada pelo autor a determinadas emoções penosas (angústia, medo, pavor) ou até mesmo a sensações dolorosas. Referência essa que, ao nosso ver, confere novos contornos à relação de simbolização entre a autoconservação e o sexual.
O que é interessante nessa menção à co-excitação provocada por sensações dolorosas é, de um lado, pressupor o par dor-prazer, e de outro, que tal excitação seria proveniente da efração de limites, corpóreos inclusive, infligida pelo outro. As teses do apoio que daqui podem ser depreendidas escapam do registro meramente endógeno, sugerindo desse modo uma outra via de interpretação dos fatos da sedução. Uma via que é explorada por Laplanche (1993c), em que o funcionamento autoconservativo passa a ser visto como algo que serve de suporte à intervenção do outro, capaz de "abalar" o organismo em qualquer nível, sobretudo no plano do revestimento corporal. Segundo esse autor, a seqüência apresentada nos Três ensaios (dor-excitação-prazer preliminar) fornecerá uma chave central à compreensão das diferentes formas de perversão masoquista, que, a seu ver, "é apenas uma exacerbação e uma fixação de uma dimensão muito importante da sexualidade humana, ab origine." (Laplanche, 1993c, p.171).
É preciso salientar que, na edição de 1905, a sexualidade infantil apresenta um caráter bastante polimorfo, sem se encontrar organizada em estágios sucessivos de desenvolvimento, tal como se pode verificar em edições posteriores (o item, por exemplo, Fases do desenvolvimento da organização sexual é introduzido somente em 1915).
Passemos, então, à análise do terceiro ensaio intitulado As transformações da puberdade, restringindo-nos ainda à análise da versão de 1905.
TERCEIRO ENSAIO
Logo no início do terceiro ensaio, no momento em que Freud sintetiza suas idéias a respeito da evolução da libido, que conduziria "a vida sexual infantil a sua forma definitiva e normal", evidencia-se um hiato entre o segundo e o terceiro ensaio. Enquanto no segundo, a sexualidade infantil, portadora aliás, dos caracteres da sexualidade humana em geral, é apresentada como essencialmente perversa e polimorfa, no terceiro, tais caracteres tendem a desaparecer, o que é atribuído por Freud às modificações nela introduzidas com o surgimento da puberdade.
A sexualidade adulta resultaria de uma espécie de desenvolvimento da pulsão: dispersa em várias zonas erógenas, isolada em suas pulsões parciais e predominantemente auto-erótica (sem objeto) na infância, a sexualidade ganha um outro tipo de organização na puberdade. Essa nova organização se caracterizaria pela hierarquização e subordinação das diversas zonas erógenas à genital, visando a obtenção do máximo de prazer, mas sobretudo colocando-se a serviço da função de reprodução, o que se torna possível a partir da combinação das diversas pulsões parciais em uma só.
O fim reprodutivo é apresentado, desse modo, como essencial, para que a vida sexual infantil possa atingir sua definitiva constituição normal. Nesse sentido, a sexualidade plenamente desenvolvida aparece associada a uma meta exterior a ela mesma - a procriação.
É como se houvesse, em particular nessa primeira edição de 1905, uma ruptura entre a orientação dada ao primeiro e ao segundo ensaio, de um lado, e ao terceiro, de outro, na medida em que no último, diferentemente dos primeiros, a sexualidade aparece associada a um certo finalismo organicista, ao mesmo tempo em que se pode identificar um retorno às concepções clássicas de normatividade.
Tendência esta do terceiro ensaio que se vê momentaneamente rompida quando Freud anuncia suas teses acerca 0do reencontro objetal.
No item V, A descoberta do objeto, Freud sugere que o desenvolvimento psíquico observado na puberdade "permite à sexualidade encontrar o objeto, para o que havia sido preparado desde a infância." (Freud, 1987, p.164).
Na verdade, Freud está preparando o caminho para a hipótese de que a escolha objetal na vida adulta (desde a adolescência) faz-se seguindo, de algum modo, os rastros deixados pela relação primordial mãe-filho. Hipótese que sugere que o primeiro objeto sexual da criança é o próprio seio da mãe: "Numa época em que a satisfação sexual estava ligada à absorção de alimentos, a pulsão encontrara seu objeto fora do corpo da criança, na sucção do seio da mãe." (Freud, 1987, p.164). Este seria abandonado quando da representação da mãe como objeto total, tornando-se a sexualidade infantil, somente depois disso, propriamente auto-erótica: "Este objeto foi perdido posteriormente, bem na época, talvez, em que a criança se tornou capaz de formar a representação global da pessoa a quem pertence o órgão que lhe traz satisfação." (Freud, 1987, p.164-5).
A relação de objeto seria, enfim, restabelecida após o período de latência, seguindo o protótipo da relação primordial com o seio da mãe.
Portanto, o auto-erotismo aqui, associado à sexualidade infantil, deixa novamente de ser concebido como estado originário, sugerindo que a pulsão não está dada desde o início, constituindo-se apenas a partir da "vida de relação".
Nessa mesma linha de argumentação, seria interessante observar as questões colocadas por Freud, no final do mesmo parágrafo, a propósito da redescoberta do objeto sexual: "Há, portanto, bons motivos para que uma criança que suga o seio da mãe tenha se tornado o protótipo de toda relação amorosa. Encontrar o objeto sexual significa, em suma, reencontrá-lo." (Freud, 1987, p.165).
E o reencontro se daria na transformação do seio, enquanto objeto parcial perdido, em seio fantasmático.
Se bem que a esse respeito devamos nos interrogar sobre a natureza do objeto reencontrado. Seria ele da mesma natureza do objeto perdido? Ou será que a relação entre eles é do tipo analógica ou mesmo metafórica?10
Essas são questões que pretendemos avançar a partir da análise das edições posteriores dos Três ensaios, cabendo, por fim, apenas assinalar que o grande problema em relação às demais edições é que, enquanto no original, posições - muitas vezes contraditórias entre si - são apresentadas de forma tensa, não conclusiva, portanto dando margem a mais de uma interpretação, nas versões subsequentes essa riqueza interpretativa acaba sendo diluída ante as posições predominantemente endógenas e biologizantes a que dão lugar cada um dos adendos acrescentados ulteriormente.
3. DEMAIS EDIÇÕES DOS TRÊS ENSAIOS
Façamos, então, uma síntese das idéias apresentadas sobre o auto-erotismo, o narcisismo e o masoquismo, procurando identificar em que medida os momentos de ruptura em relação aos desvios biologizantes da teoria freudiana das pulsões, presentes nas diversas edições dos Três ensaios (1987), fornecem elementos para se repensar os fundamentos do sujeito psíquico e da própria sexualidade.
O conceito de narcisismo é apresentado pela primeira vez na edição de 1910 como sendo um "mecanismo psíquico" essencial à compreensão da gênese da inversão masculina11. Menção esta que permanece obscurecida, já que nenhuma distinção é feita entre o conceito de libido narcísica e o narcisismo enquanto momento primordial de constituição do sujeito psíquico. Embora é preciso ponderar que tal distinção ainda não pudesse ser esclarecida, dada a concepção presente nesta época (1910/12) acerca da dualidade pulsional - pulsões de autoconservação e pulsões sexuais -, 0em que ainda não havia lugar para o conceito de libido narcísica.
Será na edição de 1915 que, face às descobertas da importante obra Introdução ao narcisismo (Freud, 1992b), o conceito de narcisismo passará a ser apresentado em suas múltiplas configurações.
Particularmente no item V do terceiro ensaio, Freud acrescenta uma nota12 no sentido de demonstrar como as descobertas do narcisismo acabaram introduzindo novos elementos para repensar a escolha do objeto sexual, bem como a etiologia dos distúrbios de natureza psicótica. Ao mesmo tempo, aparecem outros elementos que acabam alterando as teses básicas do apoio. Este deixa de se referir exclusivamente ao apoio da sexualidade infantil no instinto, tal como parece ter sido a tônica dos Três ensaios até então, passando a ser entrevisto como base da escolha de objeto.
Ainda sobre o narcisismo teríamos alguns comentários a fazer sobre o item III do terceiro ensaio, intitulado "Teoria da Libido", introduzido parcialmente em 1915 e completado em 1920.
Atendo-nos à terceira edição (1915), observa-se que Freud, seguindo as hipóteses de Introdução ao narcisismo (1992b), menciona a primeira bipartição da libido em dois modos de funcionamento distintos, dirigidos a objetos diferentes: a libido do ego ou libido narcísica, em contraposição à libido de objeto.
Em seguida, apresenta a libido narcísica como responsável pela constituição de um grande reservatório pulsional, a partir do qual se formaria o "estado original do ego" (ego narcísico).
Como já foi mencionado, é nesta terceira edição (1915), particularmente no segundo ensaio, que a questão do apoio passa a ser finalmente trabalhada conceitualmente por Freud.
A noção de apoio passa a ser incorporada, nesse momento, às três características da sexualidade infantil:
A sucção voluptuosa nos permitiu distinguir as três características essenciais de uma manifestação sexual infantil [Ela se desenvolve apoiando-se sobre uma função fisiológica essencial à vida] (acrescentado em 1915): ela ainda não conhece objeto sexual algum, é auto-erótica e seu alvo sexual está sob a dominação de uma zona erógena. (Freud, 1987, ed. 1915, p.106-7).
Observe-se que a noção de apoio apresentada na edição de 1915 dos Três ensaios, ao vislumbrar uma espécie de emergência da sexualidade a partir da autoconservação, acaba sendo muito mais rica e dinâmica que aquela apresentada em outra obra contemporânea a esta terceira edição, Pulsões e os destinos das pulsões (Freud, 1988), na qual Laplanche (1992a) identifica uma concepção "paralelista" do apoio em contraposição a uma concepção mais dinâmica do mesmo, que, a seu ver, estaria presente em Introdução ao narcisismo (Freud, 1992b).
A concepção "paralelista" do apoio pode ser identificada na descrição bem definida e até mesmo estática apresentada por Freud no artigo de 1915 a propósito dos elementos constituidores da pulsão sexual - a fonte, o alvo e o objeto. Estes, segundo Freud, "seguiriam as mesmas vias dadas pelas pulsões de autoconservação" (ou pulsões do eu). Ou seja, não há uma intervenção de um processo sobre o outro, e muito menos uma simbolização, a não ser no momento de desencadeamento, ao nível da fonte.
Já de acordo com o artigo de 1914, o apoio comportaria dois tempos: "um funcionamento conjunto, depois um momento de tomada de distância ou de retorno em sentido oposto [rebroussement]" (Laplanche, 1992a, p.31).
Conforme essa interpretação mais dinâmica do apoio, as noções de alvo, objeto e fonte se moveriam mais agilmente, articulando-se umas com as outras nos dois processos envolvidos - o sexual e a autoconservação. O que está em jogo nessa segunda interpretação é a produção da fantasia, o que acaba sendo negado na primeira, desde que nessa concepção dinâmica do apoio, o paralelismo entre os dois processos - autoconservativo e sexual - cede lugar à clivagem entre eles, abrindo espaço para o retorno do sexual sobre si (constituindo-se aquilo que é introjetado na fantasia).
Embora consideremos a segunda mais rica que a primeira, ao apontar a emergência da sexualidade a partir das funções relativas à autoconservação, resta ainda uma questão a ser feita: essa hipótese sobre o apoio poderá ser mantida sem supor a teoria da sedução?
A própria noção de fonte defendida por Freud nesse momento dá margem a que ela seja repensada, na medida em que o autor a estende a todo o revestimento cutâneo, ou mesmo a todo o funcionamento orgânico. Nestes casos ou naqueles relativos à coexcitação que adviria das sensações dolorosas, qual seria a função autoconservativa implicada?
Embora Freud tenha introduzido nessa edição de 1915 as teses do apoio, ainda defende a noção de auto-erotismo originário, sem fantasia. Ao nosso ver, se as teses do apoio fossem aplicadas num sentido amplo, serviriam até mesmo para repensar o auto-erotismo. A idéia de que este se inscreveria num tempo secundário à relação primordial da criança com o seio da mãe aparece esparsamente nos Três ensaios, mas sem se encontrar articulada com a definição de sexualidade infantil.
Sustentamos que contrariamente a uma concepção de auto-erotismo, primeiro e anobjetal, é possível pensá-lo a partir das teses do apoio tal como passa a ser formulado em 1915, na sua definição mais dinâmica -, segundo a qual haveria dois tempos, de conjunção e de separação/emergência, da sexualidade a partir das funções de autoconservação - como um processo de simbolização pelas vias de contigüidade (metonímica) e de semelhança (metafórica). Uma simbolização apoiada evidentemente em uma relação de alteridade, que antecederia toda e qualquer manifestação do sujeito psíquico (seja auto-erótica, seja de ordem narcísica).
Somente de acordo com essa perspectiva, segundo a qual haveria uma relação de alteridade fantasmática e fundante do sujeito psíquico, é que teria lugar a questão do objeto reencontrado (mencionado, aliás, por Freud desde a primeira edição), que supõe, como afirmamos anteriormente, um primeiro tempo, em que a sexualidade encontra satisfação na alimentação e um segundo tempo, no qual dela se separa para se tornar auto-erótica; transformação que se verificaria, porém, não sem que antes se estabelecessem relações do tipo metonímico/metafóricas entre o objeto parcial perdido (o leite, o seio) e o objeto reencontrado (o seio fantasmático).
No entanto, ao lado dessa concepção mais dinâmica do apoio, a introdução de um item inteiro em 1915, intitulado Fases do desenvolvimento da organização sexual, ao introduzir a idéia de uma estruturação da sexualidade infantil em fases bem definidas (oral e anal, sendo que a genital-fálica só aparecerá na edição de 1924) que em nada se assemelha aos aspectos polimórficos e dispersos de 1905, impõe uma "quebra" nos aspectos inovadores do segundo ensaio.
Essa concepção de estágios bem definidos da sexualidade infantil tem sido bastante criticada por Laplanche, na medida em que pressupõe uma "evolução pré-formada e integrativa" da sexualidade, portadora de uma espécie de finalismo intrínseco, de acordo com o qual seriam negados tanto os aspectos autoconservativos como a própria especificidade do sexual13.
Quanto à quarta edição dos Três ensaios, de 1920, não se pode deixar de observar que ela coincide com a publicação de Para além do princípio do prazer (Freud, 1965), em que são formuladas as teses especulativas de Freud sobre as Pulsões de Vida e de Morte. A sexualidade, que até 1918 traduzia-se pelas libidos objetal e narcísica, nesse momento aparece diluída no conceito de Eros que, contraditoriamente, faz desaparecer o erótico em nome da idéia de ligação. O conceito de Eros, portanto, ao assumir um caráter totalizante, perde sua especificidade propriamente sexual. De outro lado, como afirma Laplanche em artigo que trata da Pulsão de Morte (1992c), esse conceito viria a título de "reafirmar algo que se perdeu" com a nova conceituação de Eros, ou seja, a sexualidade não-ligada no sentido da pulsão.
De outro lado, a passagem da primeira à segunda tópica acabou dando lugar a uma nova conceituação de ego, que passou a ser resgatado enquanto instância mediadora, cuja função seria fazer face às exigências do polo pulsional (ID), do superego e da realidade exterior.
A constituição do ego narcísico é apresentada, segundo a hipótese sustentada em O Ego e o Id (1991), como resultado de uma espécie de dessexualização da libido. Hipótese que é levantada por Freud, partindo do pressuposto de que a energia de que dispõe o ego "seja secundária, derivada do Id", e não mais como algo que emanaria do mesmo.
No que diz respeito ao auto-erotismo, Freud, nesse momento14 salienta não ser importante saber se a gênese do auto-erotismo é determinada interna ou externamente, sendo essencial muito mais a relação com o objeto. Embora seja fundamental a introdução do objeto para pensar o auto-erotismo (investimento libidinal no próprio objeto-ego), o que abre brechas para pensá-lo no registro da fantasia, o autor se exime de enfrentar a problemática de sua gênese. Questão importante que pode tanto ser remetida à relação de alteridade como a uma sorte de herança fantasmática originária.
Problemática semelhante pode ser observada quando Freud menciona, a propósito dos devaneios diurnos da adolescência, o aparecimento de fantasias originárias, referindo-se, em seguida, ao complexo de Édipo como essencial à compreensão da sexualidade infantil15.
É preciso notar, em primeiro lugar que, sob o termo fantasia (Phantasie, em alemão), Freud se refere tanto às fantasias conscientes sob a forma de devaneios diurnos, como às fantasias propriamente inconscientes, ou seja, as fantasias originárias, apresentando-as, ambas, numa mesma linha de continuidade. O que talvez justifique essa não-distinção seja que o que está na base disso tudo é o tempo "auto" (ou endógeno) do surgimento da fantasia, presente seja na infância, seja na adolescência (por meio da idéia de auto-erotismo associado à masturbação púbere e pré-púbere).
Em segundo lugar, é preciso observar que as noções de fantasias originárias e complexo de Édipo são apresentadas, lado a lado, sem qualquer articulação conceitual. Só se pode compreender esta verdadeira justaposição entre dois conceitos, cuja articulação nos parece tão importante, se se concebe os primeiros como oriundos de uma espécie de herança fantasmática originária (de ordem filogenética) e o segundo na sua acepção das mais realistas.
Seguindo as hipóteses sobre a Teoria da Sedução Generalizada, diríamos que a articulação que falta fazer é no sentido de apontar a origem exógena da fantasia infantil a partir do encontro com a fantasia de sedução da mãe e, de outro lado, considerar que faria parte desse encontro, ou como sugere Laplanche, da "implantação"16 do imaginário materno (ou das "mensagens enigmáticas")17 na criança, a introdução da figura do pai ou de um terceiro18, o que nos leva a supor a existência de um complexo de Édipo precoce ou, ao menos, de fantasias incestuosas precoces (não nos moldes kleinianos, desde que não se restringiriam à dimensão pulsional). Em todo o caso, supor a existência do complexo de Édipo, quer do ponto de vista realista, tal como parece ser a tônica dada por Freud nesse momento, quer do ponto de vista fantasmático, significa remeter a gênese da sexualidade e do inconsciente ao outro, o que acaba impondo uma nova quebra nos Três ensaios, uma vez que a tendência endógena - identificada ao longo das edições posteriores a 1905 é desfeita.
Por fim, gostaríamos de ressaltar, no que diz respeito à gênese do masoquismo, uma diferença básica entre as edições de 1915 e 1924.
Embora se possa identificar, nessas duas edições, certa convergência nas observações feitas a propósito do masoquismo originário, enfatizando, ambas, o tempo "auto" de sua constituição, a abordagem deste aspecto não é a mesma em cada uma das edições.
Na edição de 1915, as reflexões sobre o masoquismo encontram-se, ao nosso ver, apoiadas nas idéias sustentadas basicamente em Pulsões e os destinos das pulsões (1988)19. Obra em que embora o autor apresente a determinação endopsíquica da produção da fantasia masoquista, ainda aponta para um mecanismo específico - a "via reflexa intermediária" - por meio do qual procura explicitar o retorno da pulsão sobre si, introduzindo desse modo, uma mediação importante para se compreender a transformação da hetero-agressividade (apresentada por Freud como "posição originalmente sádica") em "auto-agressão" (momentos restritos à autoconservação) e dela fazendo derivar, por meio da noção enriquecedora de apoio, o masoquismo reflexo (este, sim, propriamente fantasmático e sexual).
Já na edição de 1924, recorrendo basicamente às formulações do artigo O problema econômico do masoquismo (1992c)20, a noção de apoio é substituída pelas idéias de ligação e não-ligação associadas respectivamente às noções de Pulsão de Vida e de Morte. Além disso, enquanto em 1915 dava-se prioridade à hetero-agressividade em relação à auto-agressão, dessa vez tal prioridade deixa de ser observada, dando lugar à idéia de autodestruição originária proveniente da Pulsão de Morte, cuja tendência seria a de ser expulsa para o exterior. O masoquismo originário, erógeno, cujo desenvolvimento se faz em direção aos masoquismos feminino e moral, seria o resultado da ligação empreendida por Eros em relação aos restos internos do componente autodestrutivo da pulsão.
Ora, nessa segunda versão do masoquismo originário como elemento essencial de constituição da sexualidade, ao ser remetido a um estado "ontológico, absoluto e primeiro", acaba encerrando definitivamente, com o auxílio das idéias de Pulsão de Vida e de Morte, a sexualidade e a própria constituição do psiquismo humano numa verdadeira "mônada solipsista", na medida em que todo e qualquer vestígio da relação fundante de alteridade tende a desaparecer.
Posição, aliás, bastante distinta da que é defendida no artigo Uma criança é espancada (1992a), cujas reflexões se encontram praticamente ausentes dos Três ensaios, mas que, ao nosso ver, seriam essenciais para impulsionar um avanço nas formulações sobre o masoquismo originário. Vale lembrar que o masoquismo, nesse artigo de 1919, passa a ser visto como o resultado de um movimento de fora para dentro (centrípeto), fruto do retorno do sadismo contra a própria pessoa, mas que originalmente teria sido dirigido contra um objeto sexual externo. Uma concepção sobre o masoquismo originário que, no entendimento de Laplanche (1993c), daria margem para pensar que se trata de uma forma de dominar as "angústias persecutórias" da situação fundante de sedução.
4. EM SÍNTESE
Com relação à análise detida que fizemos das diversas edições dos Três ensaios (1987), quais as questões mais importantes que deveriam ser objeto de assinalamento?
Tratando-se fundamentalmente de uma obra ensaística sobre as pulsões sexuais, ao analisarmos os adendos a ela acrescentados em cada uma das edições (1910, 1915, 1920, 1924) pudemos acompanhar, de um lado, as inúmeras indicações e até mesmo as indagações da época (1905) a propósito da origem e dos destinos pulsionais e, de outro, as incidências das descobertas posteriores da teoria freudiana sobre as pulsões e o aparelho psíquico em relação às formulações inicialmente apresentadas.
A partir da análise exclusiva da primeira edição (1905), observamos uma verdadeira ruptura entre as orientações do primeiro e segundo ensaios em relação à do terceiro. Enquanto nos primeiros a sexualidade é apresentada essencialmente em seus aspectos perversos e polimórficos, no terceiro tais aspectos tendem a desaparecer, dando lugar a uma espécie de teleologia extrínseca a ela mesma, em que o prazer se vê substituído pelo fim reprodutivo.
No entanto, conforme avançamos na leitura das demais edições, notamos que a ruptura entre os dois primeiros ensaios e o terceiro praticamente desaparece, na medida em que, em nome de uma espécie de finalismo evolutivo, esboça-se cada vez com maior intensidade uma tendência a amenizar o "caráter aberrante" da sexualidade. Tendência que pode ser identificada, por exemplo, no momento em que começa a surgir a idéia de uma organização bem definida da sexualidade infantil (oral, anal e genital-fálica), cujo "estadismo" (a delimitação de estágios sucessivos) em nada se assemelha aos aspectos polimórficos e dispersos, tais como foram apresentados originalmente em 1905.
Cabe, entretanto, fazer algumas observações a respeito da edição de 1920. Considerando-se que esta coincide com as teses especulativas e até mesmo biologizantes das Pulsões de Vida e de Morte, era de se esperar que o movimento em direção à "instintualização do sexual" tendesse a se aprofundar. Contudo, a despeito dessa tendência, aliás prevalecente na época, uma pequena nota21 introduzida no terceiro ensaio sobre as fantasias originárias e o complexo de Édipo (cuja importância fora praticamente omitida até então) acabou impondo uma nova quebra nos Três ensaios (1987) em relação ao caráter endógeno que a sexualidade vinha assumindo em suas edições posteriores a 1905. Embora, como já foi dito, se identifique nesta nota uma concepção bastante realista (factual) do complexo de Édipo, sem que se estabeleça qualquer relação com as fantasias originárias, a menção, ao menos, feita a ele não deixa de implicar um movimento no sentido de remeter a gênese da sexualidade e do inconsciente ao outro, rompendo, desse modo, ainda que parcialmente, com uma concepção solipsista da pulsão.
No entanto, se a tendência biologizante e endógena da teorização freudiana sobre a sexualidade fora momentaneamente rompida face, sobretudo, ao redimensionamento da importância dada ao complexo de Édipo, na edição de 1924 ela é novamente retomada. Um movimento de retorno ao tempo "auto" da pulsão, segundo a expressão de Laplanche, que se encontra presente tanto na idéia de masoquismo, apresentada com a mesma orientação do artigo O problema econômico do masoquismo (1992c), como na retomada da discussão sobre os estágios evolutivos da sexualidade infantil (introduzindo, nesse momento, a fase fálica).
Em linhas gerais, seria este o movimento identificado na análise das sucessivas edições dos Três ensaios.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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1 Este artigo corresponde, com algumas alterações, a uma parte do capítulo terceiro de minha tese de doutorado, intitulada O espectro de Narciso na modernidade: Freud a Adorno, apresentada no Instituto de Psicologia-USP, 1995.
2 Utilizaremos a versão francesa dos Três Ensaios, editados pela Gallimard, em 1987, pelo fato de nela se encontrarem bem discriminadas cada uma das edições da referida obra.
3 Cf. sugere Laplanche no artigo: Le fourvoiement biologisant de la sexualité (I) , (1992a).
4 Particularmente no artigo: Laplanche, J. Le fourvoiement biologisant de la sexualité (I). Psychanalyse à l'Université, 1992a, p.3-41.
5 A Teoria da Sedução Generalizada de J. Laplanche aponta, fundamentalmente, para o caráter inelutável e universal da sedução precoce, remetendo os fundamentos do sujeito psíquico à "implantação" das mensagens enigmáticas do adulto no imaginário infantil, a partir da qual se desencadeariam processos sucessivos de "tradução a posteriori". Na verdade, sem deixar de considerar as dimensões tópica e temporal da teoria freudiana da sedução, Laplanche salienta o aspecto autotradutivo que, a seu ver, seria posto em marcha por meio da repressão originária e que seria perpetuado por toda a vida do Ser Humano. Embora se possa encontrar vestígios das teses sobre a Teoria da Sedução Generalizada desde os primeiros escritos de Laplanche, será no artigo "Da Sedução Restrita à Teoria da Sedução Generalizada" (1986) e mais cabalmente em seu livro Novos Fundamentos para a Psicanálise (1990), onde encontraremos maiores esclarecimentos a respeito.
6 Sugestão feita a mim pelo prof. Jean Laplanche no final do curso DEA de Psychanalyse, quando tive a oportunidade de discutir com ele meu projeto de doutoramente (durante estágio de um ano na Université Paris VII, 92/93, com o apoio do CNPq).
7 Cf. sugere Laplanche no artigo: "Masoquismo e teoria da sedução generalizada" (1993c, p.159-73).
8 Como salienta Laplanche, no artigo "Le fourvoiement biologisant (I)" (1992a), dizer que a sexualidade é auto-erótica não significa que seja sem objeto (como parece ser a tese dos Três ensaios).
9 A esse respeito, explicita Laplanche em "Le fourvoiement biologisant (I)": "O ato de chupar o dedo substitui o alimento, mas de maneira puramente mecânica e não significante." (1992a, p.30).
10 Fizemos questão de recorrer a mais de uma citação textual a propósito do reencontro objetal, por se tratar de um trecho importante, o qual tem conduzido a interpretações muitas vezes enganosas.
11 Freud, S. (1905). Trois essais sur la théorie de la sexualité. Paris, Gallimard, 1987. Nota 1 acrescentada ao primeiro ensaio em 1910, p.50.
12 Id., ibid., nota 1 acrescentada ao terceiro ensaio em 1915, p.165.
13 A esse respeito, explicita Laplanche em "Le fourvoiement biologisant de la sexualité (I)": "a especificidade do sexual só se afirma quando a existência de um campo não-sexual é reafirmada, ao menos potencialmente." (1992a, p.17).
14 Freud, S. (1905). Trois essais sur la théorie de la sexualité. Paris, Gallimard, 1987. Nota 2 acrescentada ao segundo ensaio em 1920, p.104.
15 Id., ibid., nota 3 acrescentada ao terceiro ensaio em 1920, p.169-70.
16 Recorremos aqui ao termo empregado por Laplanche no artigo "implantation, intromission" (1992b).
17 Embora Laplanche mencione, mais de uma vez em sua obra, o termo "mensagens enigmáticas", acreditamos que este conceito tenha sido melhor explicitado no artigo "Court Traité de l'Inconscient" (1993a).
Neste artigo, o autor esclarece que tais mensagens (sexuais, perversas), no contexto da sedução precoce e originária, são implantadas pela mãe (e por ela ignoradas) na criança, constituindo-se enquanto primeira inscrição. Afirma, ainda, que no plano da repressão originária desencadeada a partir de então, verifica-se invariavelmente um fracasso parcial da tradução deixando sempre um resíduo não-traduzido (a representação-coisa, um significante-designificado, signifiant-désignifié), responsável pela constituição do que passará a denominar objeto-fonte, objet-source, da pulsão.
É preciso ressaltar que se trata sempre de uma mensagem dirigida por um "outro" externo (o outro de si inconsciente do adulto) à criança (adressé à ego) que irá constituir o outro-interno (o outro de si, o inconsciente da criança).
18 Conforme salientado por mais de um autor, como por exemplo, em: Histoire Secrète de la Séduction (Lanouzière, 1991), "Canibalisme: Réalité ou Fantasme Agi" (Green, 1972), "La Sexualité Féminine: Retour aux Sources" (André, 1991).
19 Os dois parágrafos acrescentados em 1915, a propósito do masoquismo e do sadismo (Freud, 1987, ed. 1915, p.69-70) apresentam posições, em princípio, contraditórias, pois ora o sadismo aparece como precursor do masoquismo primário, ora este último é apresentado como sendo o elemento originário. Questão que, ao nosso ver, só fica esclarecida se inserida nas discussões apresentadas em "Pulsões e os Destinos das Pulsões" (1988).
20 A menção do artigo "O Problema econômico do masoquismo" (1992c) é feita especialmente por Freud em nota acrescentada em 1924 (Freud, 1987, nota 01, ed. 1924, p.70), onde esclarece suas posições sobre os masoquismos primário secundário, em contraposição à idéia defendida em 1915 a propósito do sadismo originário (associado, ao nosso ver, muito mais à hetero-agressividade).
21 Freud, S. (1905). Trois essais sur la théorie de la sexualité. Paris, Gallimard, 1987. Nota 3 acrescentada ao terceiro ensaio em 1920, p. 169-70.