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Revista Brasileira de Orientação Profissional

versão On-line ISSN 1984-7270

Rev. bras. orientac. prof v.6 n.1 São Paulo jun. 2005

 

ARTIGOS

 

 

Adultos com dificuldades de ajustamento ao trabalho: ampliando o enquadre da orientação vocacional de abordagem evolutiva1

 

Adults with difficulties in work adjustment: broadening the scope of the developmental approach in career counseling

 

Adultos con dificultades de adecuación al trabajo: ampliando el encuadre del aporte evolutivo en orientación vocacional

 

 

Maria Célia Pacheco Lassance2 *

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre

 

 


RESUMO

O presente artigo propõe um modelo de intervenção para orientação profissional de adultos a partir de uma abordagem evolutivo-cognitiva, utilizando técnicas derivadas da terapia cognitivo-comportamental. Contextualiza a importância do trabalho e do desempenho satisfatório do papel de trabalhador e sua integração com outros papéis da vida adulta. Apresenta a abordagem evolutivo-cognitiva e discute as relações entre disposições afetivas disfuncionais, tais como a ansiedade e a depressão, e a indecisão vocacional, distinguindo situações de indecisão e indecisividade. Finalmente, propõe um modelo de intervenção que inclua os aspectos afetivos subjacentes à indecisividade de forma a ampliar o enquadre tradicional da orientação profissional.

Palavras-chave: Orientação profissional, Aconselhamento de adultos, Ajustamento profissional, Desenvolvimento vocacional.


ABSTRACT

This study proposes a model for adult career counseling based on a cognitive-evolutive approach, using cognitive-behavioral therapy techniques. It emphasizes the importance of the working role for the individual, and its relationships with other adult social roles. The model also integrates career development with the emotional aspects related to vocational indecision as depression and anxiety, distinguishing between indecision and indecisiveness. Finally, this study proposes an intervention process that helps to deal with those emotional aspects broadening the traditional frameworks underpinning developmental career counseling.

Keywords: Development career counseling, Adult career counseling, Work adaptability.


RESUMEN

El presente artículo propone un modelo de intervención en orientación profesional de adultos desde un aporte cognitivo-evolutivo, incluyendo técnicas de la terapia cognitivo-comportamental. Pone en contexto la importancia del trabajo y del resultado satisfactorio del papel del trabajador y de su integración con los otros papeles sociales del adulto. Presenta el aporte evolutivo-cognitivo en orientación profesional y discute las relaciones entre los aspectos afectivos como la ansiedad, la depresión y la indecisión vocacional, distinguiendo las situaciones de indecisión e indecisividad. Por fin, propone un modelo de intervención que permite el trabajo con aspectos afectivos subyacentes a la indecisividad para expandir el encuadre tradicional del proceso de orientación profesional de aporte evolutivo.

Palabras clave: Orientación profesional, Orientación de adultos, Adecuación profesional, Desarrollo vocacional.


 

 

A orientação profissional é uma prática de aconselhamento psicológico cujo paradigma norteador está claramente relacionado com as circunstâncias sócio-culturais em que se insere. Crenças sobre o trabalho não pertencem à categoria das predisposições inatas, mas derivam da experiência cotidiana, e, portanto, em grande medida, são determinadas por fatores sócio-culturais. O trabalho cumpre, modernamente, quatro funções: a primeira delas, econômica, como fonte de satisfação das necessidades de sobrevivência do indivíduo e de seus dependentes. Em segundo lugar, duas ordens de funções sociais, como fonte de satisfação das necessidades de interação, encontro, convivência (pertinência) e como fonte de status e prestígio, necessidade de localização na escala social. E, finalmente, uma função psicológica fundamental, que tomaremos como central neste estudo, que diz respeito à sua qualidade como fonte de significação pessoal, de identidade, auto-estima e auto-realização (Sverko & Vizek-Vidovic, 1995).

As diversas e complexas alterações, qualitativas e quantitativas, engendradas pela globalização, pelas tendências demográficas, pela revolução tecnológica (e necessidade de adaptação a mudanças) levaram o indivíduo a lidar cotidianamente com “um ambiente geral de turbulência e imprevisibilidade, que lhe exige uma adaptação permanente, bem como uma reflexão contínua sobre a definição e condução das suas metas pessoais e profissionais, de vida” (Coimbra, Parada & Imaginário, 2001, p. 11).

A preparação para o trabalho, tanto quanto o desempenho de papéis profissionais exige, neste contexto, uma grande disponibilidade para lidar com tarefas evolutivas muitas vezes imprevisíveis que são desencadeadas pelas mudanças nas condições e na estrutura do trabalho. Educação permanente, adaptabilidade profissional (Savickas, 1997) e gerenciamento de carreira (Campos & Coimbra, 1991) passam a fazer parte fundamental da vida do trabalhador, exigindo esforços constantes e crescentes na medida em que as barreiras tornam-se cada vez maiores e mais freqüentes.

No Centro de Avaliação Psicológica, Seleção e Orientação Profissional (CAP-SOP / UFRGS) triplicou o número de adultos em busca de orientação para uma nova escolha profissional nos dois últimos anos. As queixas mais freqüentes dizem respeito a dificuldades de adaptação profissional, falta de realização no trabalho, dificuldades de inserção no mercado de trabalho, por dificuldades em geral traduzidas como uma dificuldade de escolha. Estes clientes acreditam que a OP, principalmente a informação profissional, possa fornecer a eles o instrumental para escolha, decisão e, principalmente, realização profissional plena.

O modelo evolutivo de orientação utilizado com sucesso no CAP-SOP na orientação de adolescentes não parece adequar-se inteiramente ao contexto em que muitos destes adultos estão inseridos. A prática em orientação tem mostrado que esta inadequação muitas vezes pode estar relacionada com a presença de condições clínicas que determinam relações específicas com o trabalho como atividade humana, mais do que com questões de escolha. Este trabalho busca refletir sobre a ampliação do enquadre tradicional do aconselhamento evolutivo (developmental career counseling) para adultos, incluindo técnicas da terapia cognitivo-comportamental como uma forma de adequá-lo às demandas específicas e a circunstâncias afetivas especiais que geram situações de dificuldades de adaptabilidade profissional.

 

O Enfoque Evolutivo da Orientação Profissional

A Life-Span, Life-Space Theory, em suas formulações atuais, vem sendo elaborada, refinada e reformulada ao longo dos últimos 50 anos, a partir da formulação original de Donald Edwin Super (1910-1994). Em sua primeira obra de fôlego, articulou o conhecimento da Psicologia do Trabalho, Ocupações e Psicometria, a Teoria de Desenvolvimento de Charlotte Büehler e as idéias de mobilidade Ocupacional de Davidson & Anderson (Bingham, 2001). Como uma teoria funcional, recebeu inúmeras contribuições a partir do estudo das variáveis consideradas relevantes para o processo de desenvolvimento vocacional, gerando a criação de três segmentos teóricos principais: autoconceito, maturidade vocacional / adaptabilidade de carreira e ciclo vital / espaço vital atendendo às perspectivas das diferenças individuais (que inclui a avaliação objetiva de aptidões e interesses e estilos adaptativos do indivíduo), evolutiva (que inclui funções e processos adaptativos através do ciclo da vida) e contextual (que inclui a situação histórica e cultural, as barreiras e facilidades às quais o indivíduo deve adaptarse e progredir) (Savickas, 1997).

O processo de desenvolvimento vocacional é, essencialmente, o processo de desenvolver e implementar autoconceitos vocacionais. Este desenvolvimento ocorre ao longo de toda a vida, e dá-se por etapas normativas (Super, 1963), a saber: Crescimento (infância), Exploração (adolescência), Estabelecimento (adultez jovem), Manutenção (adultez média) e Aposentadoria (velhice), nas quais autoconceitos são implementados, transformados e reformulados de acordo com os resultados das experiências a que o indivíduo se expõe e através das quais realiza teste de hipóteses. Cada estágio constitui-se de determinadas tarefas evolutivas, comportamentos demandados socialmente que o indivíduo deve emitir para enfrentar situações-problema típicas para cada idade cronológica ou etapa de vida. O sucesso em uma tarefa ou conjunto de tarefas habilita o indivíduo a prosseguir satisfatoriamente no desenvolvimento normativo.

Durante o estágio de exploração, cabe ao adolescente traduzir os autoconceitos formulados até então em conceitos ocupacionais. Para tanto, deverá realizar uma combinação entre as interpretações que faz das crenças acerca de si próprio e das crenças acerca de características que supõe possuir um determinado profissional em determinada ocupação, utilizando-se de um dicionário pessoal (Starishevsky & Matlin, 1963). Este dicionário pessoal traz, em regra, as crenças formuladas ao longo da vida a partir de conceituações oriundas do sistema de crenças social, familiar e da sua biografia pessoal como resultado de experiência concreta. Entretanto, ciclos de exploração (busca de informação para solução de problemas), cristalização (escolha generalizada a partir de categorização da informação obtida), especificação (avaliação e hierarquização das categorias estabelecidas) e realização (decisão e identificação das possibilidades concretas) definem o processo de escolha ao longo de toda a vida determinando um processo contínuo de planejamento, exploração e tomada de decisão (Pelletier, Bujold & Noiseaux, 1985; Phillips & Blustein, 1994). A indecisão vocacional na adolescência é uma condição normativa (Super, 1963), entretanto, como enfatiza Savickas (1995), também na idade adulta, momentos de indecisão “expressam hesitação antes da transformação” (p. 364), uma vez que a tomada de decisão remete o indivíduo à busca de significados mediante uma mudança de posição e a uma nova identidade.

Autoconceito é um termo utilizado fenomenologicamente, a partir de uma perspectiva subjetiva, do “self-como-objeto” (Super, 1963), que significa a avaliação pessoal que o indivíduo faz de suas aptidões, interesses, valores e escolhas, bem como da forma em que estes aspectos organizam-se em seus temas de vida O autoconceito vocacional, ou a constelação de atributos do self que o indivíduo considera vocacionalmente relevantes, é uma dimensão que deve ser analisada a partir de suas metadimensões, definidas como as características dos traços que as pessoas atribuem a si mesmas (Super, 1963). Para fins deste estudo, salientamos a relevância especial de metadimensões como a clareza (precisão ou o grau de consciência de um atributo), a certeza (confiança com a qual o indivíduo atribui traços a si mesmo) e o realismo (grau de concordância entre o retrato que o indivíduo faz de si mesmo e as evidências externas, objetivas, de seu status nas características em questão), auto-estima e auto-eficácia. A estas duas últimas, Super considerou, em sua revisão teórica de 1990, como as que mais influenciam o processo de implementação do autoconceito, na medida em que indivíduos que se percebem como auto-eficazes em tomada de decisão e que possuem elevada auto-estima são mais capazes de implementar com sucesso outros aspectos de seus autoconceitos (Betz, 1994).

O conceito de maturidade vocacional é central na Teoria do Desenvolvimento Vocacional de Donald Super (Super, Savickas & Super, 1996). É um construto psicossocial que indica o grau de desenvolvimento vocacional ao longo do continuum de estágios e sub-estágios. De uma perspectiva social, a maturidade vocacional é operacionalizada como a comparação entre as tarefas evolutivas enfrentadas pelo indivíduo, em comparação com as tarefas evolutivas enfrentadas por seus pares. De um ponto de vista psicológico, a maturidade vocacional pode ser operacionalizada como a comparação entre os recursos cognitivos e afetivos do indivíduo para enfrentar determinada tarefa evolutiva com os recursos necessários para ser bem sucedido com esta tarefa. Assim, a maturidade vocacional pode ser avaliada em duas dimensões: uma de caráter atitudinal, centrado na tarefa evolutiva; e outra de caráter cognitivo, focado nas respostas de enfrentamento. Originalmente, em 1955, Super propôs que a maturação seria o processo central no desenvolvimento vocacional do adolescente mas, na medida em que a avaliação da maturidade vocacional não se mostrou útil para a compreensão do processo vocacional dos adultos, foi substituída pela noção de adaptabilidade que, atualmente, também é o termo utilizado para a compreensão do processo em adolescentes (Savickas, 1997).

Adaptabilidade é definida por Savickas (1997) como:

[...] a qualidade de estar apto à mudança, sem grandes dificuldades, de acomodar-se a circunstâncias novas ou mutáveis... a prontidão para confrontar-se com tarefas previsíveis de preparar-se para ou desempenhar o papel de trabalhador bem como com os ajustamentos imprevisíveis das mudanças no trabalho e nas condições de trabalho. (p. 254).

Como a maturidade vocacional, a adaptabilidade possui três dimensões básicas: planejamento (orientação para o futuro e atitudes de planejamento), exploração (de si e do contexto) e tomada de decisão consciente, fundamentais no sucesso e satisfação em qualquer um dos papéis vitais. Savickas (1997) ainda salienta que, em 1974, Donald Super já havia definido adaptabilidade como um construto de cinco dimensões: atitude de planejamento para confrontar-se com as tarefas evolutivas e estágios, obtenção de informação acerca das oportunidades educacionais e vocacionais, exploração do mundo do trabalho, conhecimento de métodos e técnicas da tomada de decisão e capacidade para julgamentos realistas acerca de si mesmo e de ocupações apropriadas.

O desenvolvimento normal de um indivíduo ocorreria, como propôs Donald Super na Life-Span, Life-Space Theory (Super, 1980), através da seqüência e integração entre nove papéis sociais principais (criança, estudante, leisurite*, cidadão, trabalhador, cônjuge, dono de casa, progenitor e aposentado) em quatro cenários (lar, comunidade, escola e local de trabalho). A constelação de interações, variação e papéis, constituem a carreira, que até então era descrita e definida pela seqüência de posições que o indivíduo ocupa ao longo do desempenho do papel de trabalhador, incluindo aposentado. Quanto mais os interesses e habilidades de um indivíduo encontram modos de vazão temporalmente compatíveis no âmbito das atividades nas quais está engajado, mais sucesso e satisfação ele terá (Super, 1980). Note-se que este segmento da teoria desloca o foco do papel de trabalhador e amplia-o, tomando a adaptação ao conjunto dos papéis que o indivíduo desempenha ao longo da vida. Passa-se a compreender o trabalho dentro de um contexto de vida, esclarece o fato de que o trabalho é uma contribuição social que conecta o indivíduo à sua comunidade e o coloca em relação com os outros. Assim, o foco da avaliação passa a ser o papel que o trabalho possui na vida de um indivíduo (work salience) (Savickas, 1997). Isto responderia às críticas de que a teoria concentrava-se no desenvolvimento normal dos homens, excluindo os padrões de carreira de mulheres e minorias étnicas e raciais, e atendendo às mudanças nas relações e estrutura de trabalho, que incluíam as questões de desemprego estrutural e reengenharia das organizações.

A orientação profissional evolutiva foi descrita por Super e cols. (1996) como:

[...] um processo para auxiliar as pessoas a (1) desenvolver e aceitar um retrato integrado e adequado de si mesmas e de seus papéis vitais; (2) testar estes conceitos na realidade e (3) convertê-los em realidade ao fazer escolhas que implementem o autoconceito e levem ao sucesso e satisfação no trabalho bem como ao benefício da sociedade. (p. 159).

O modelo original de aconselhamento (Super, 1983) foi reformulado para atender a este novo segmento. O Modelo de Orientação e Avaliação do Desenvolvimento Vocacional (Career Development Assessment and Counseling – C-DAC) (Super, Osborne, Walsh, Brown & Niles, 1992) focaliza o desenvolvimento da adaptabilidade de carreira como prevalente ao uso da avaliação de aptidões e interesses. Mais do que isto, o C-DAC analisa os recursos de um indivíduo para escolher e adaptar-se a uma ocupação. Desenvolve-se em quatro passos principais: (1) avaliação da estrutura de vida e a relevância do trabalho e dos outros papéis vitais; (2) avaliação do estágio vocacional e das preocupações de carreira e avaliação dos recursos para enfrentar as tarefas evolutivas e implementar escolhas vocacionais e educacionais, incluindo atitudes de planejamento e exploração; (3) um passo objetivo: avaliação de interesses, aptidões e valores e (4) avaliação subjetiva dos autoconceitos e temas de vida, através de métodos qualitativos a fim de obter informações sobre o esquema de papéis (perspectiva seccional) e a qualidade narrativa deste (perspectiva longitudinal). A partir da avaliação, os dados são interpretados pelo orientador de forma integrada, narrando a história de vida do cliente (sua carreira) (Super & cols, 1996).

 

Desenvolvimento de Carreira e Disposições Afetivas

A literatura cognitivo-evolutiva em Orientação Profissional tem feito esforços para verificar estilos de escolha e ajustamento profissional e identificar tipos de indecisão de carreira e dimensões psicológicas da indecisão de carreira, mas ainda carece de subsídios para um modelo de intervenção de carreira para adultos.

O papel de trabalhador compreende, basicamente, os estágios de vida correspondentes da adolescência até a velhice, tornando-se por sua extensão e importância, o papel que centraliza a auto-identificação e nutre primariamente o autoconceito da maior parte das pessoas, traduzida cognitiva e comportamentalmente por uma centralidade normativa, isto é, um foco para a organização da personalidade (Super & cols, 1996). As instâncias sociais educativas e definidoras da realidade, quando preparam o indivíduo para uma inserção adulta na estrutura social, concentram suas demandas e sua pedagogia na socialização para o papel de trabalhador. Assim, as dificuldades de adaptação ao trabalho provocam nos indivíduos profundos sentimentos de inadequação e conseqüentes dificuldades de autoidentificação e auto-estima, construindo um ciclo vicioso de inadequação / isolamento que se estende ao desempenho dos outros papéis nos diversos cenários. O Estudo sobre a Importância do Trabalho (Work Importance Study - WIS) avaliou, durante os anos 80, para dez países (Austrália, Bélgica, Canadá, Croácia, Itália, Japão, Polônia, Portugal, África do Sul e Estados Unidos da América) os principais valores e a relevância dos papéis que as pessoas desempenham nos cinco cenários principais (trabalho, estudo, lar, comunidade e lazer). Este estudo concluiu que, em todos os países pesquisados, os principais valores de vida indicados pelos sujeitos de todas as idades foram o desenvolvimento pessoal, a utilização de habilidades e o progresso. Entretanto, observaram-se diferenças entre adolescentes e adultos com relação à relevância do trabalho. Para adolescentes, a atividade de vida mais importante foi o lazer, enquanto que para os adultos, a atividade indicada como mais importante foi o trabalho, seguida pelas atividades no lar, incluindo cônjuge e pai/ mãe, indicando um efeito da maturidade sobre a relevância do trabalho (Super & Sverko, 1995).

A inserção, permanência e progresso no mercado de trabalho em sociedades complexas exigem do indivíduo o desenvolvimento de estratégias de enfrentamento – coping – (Folkman, 1984) de barreiras que se apresentam cada vez em maior quantidade e em maior magnitude, já desde a formação profissional. Assim, estratégias de enfrentamento das barreiras antes eficazes já não são suficientes para este momento, tornando trabalhadores antes bem adaptados às condições e demandas do mercado de trabalho, neste momento, ineficientes para obter sucesso e progresso ou mesmo para manter-se em atividade.

A literatura tem demonstrado que o ajustamento do indivíduo ao trabalho depende basicamente dos recursos afetivos e cognitivos desenvolvidos ao longo da vida para enfrentamento de situações estressoras no trabalho. O ambiente ocupacional e as relações que o indivíduo com ele estabelece exercem uma influência significativa na sua saúde mental e física, incluindo resultados a curto prazo e condições clínicas a longo prazo como, por exemplo, desordens cardiovasculares. Diferenças individuais em percepção têm um papel fundamental como determinantes da natureza e magnitude das respostas aos eventos estressores no trabalho (Parkes, 1990).

Super (1963) sugere que estudantes com elevada auto-estima possuem concepções mais claras de si mesmos acerca da tomada de decisão vocacional. Possuem escores mais altos em identidade vocacional (com conseqüências para a tomada de decisão) e sentimento de bem estar psicológico, além de apresentarem escores mais altos em muitas outras variáveis da centralidade do trabalho. Munson (1992) recomenda que um processo de aconselhamento vocacional atente para a importância do trabalho com o desenvolvimento da auto-estima em adolescentes em vários papéis que desempenham tanto quanto em papéis que continuarão a desempenhar ao longo da vida, sugerindo que o processo de desenvolvimento vocacional ocorre em vários contextos e em vários papéis simultânea e integradamente.

O estudo de Holland e Holland (1977), com 1697 adolescentes, concluiu que a diferença entre indivíduos decididos e indecisos é confusa e conflitante, sendo ambos os grupos muito parecidos em diversas características. Entretanto, algumas características foram associadas à indecisão vocacional como baixa competência social, baixa autoconfiança, ansiedade, baixo envolvimento em atividades escolares, poucas habilidades para avaliar e organizar a informação relevante, baixa auto-eficácia, maior estresse psicológico, crenças irracionais, baixa capacidade de tomar decisões em geral e baixo senso de identidade.

Peterson, Sampson e Reardon (1991) definem três tipos de situação vocacional: a) Situação de Decisão, na qual o indivíduo assume um compromisso público ou privado a partir de uma escolha específica; esta situação inclui indivíduos que assumem publicamente uma escolha para não entrar em conflito com pessoas significativas que exigem uma escolha, mas na verdade, estão indecisos ou indecididos; b) Situação de Indecisão, na qual o indivíduo não assume um compromisso com uma escolha por falta de experiência ou conhecimento necessários para tanto; inclui indivíduos que não sentem necessidade de fazer uma escolha e os que não fizeram uma escolha, mas têm uma superabundância de talentos, interesses e possibilidades ocupacionais e c) Situação de Indecisividade, na qual o indivíduo não assume uma escolha profissional por falta de habilidades de tomada de decisão, dificuldade geral de solução de problemas e altos níveis de ansiedade. Esta classificação aponta para uma diferença relevante em desenvolvimento vocacional, entre indecisão e indecisividade. A indecisão refere-se a uma situação normativa e da escolha de carreira, que envolve componentes de ordem cognitiva. Por sua vez, a indecisividade é descrita como uma característica mais estável, crônica, que envolve componentes emocionais, correlacionada com ansiedade, locus de controle externo, baixa auto-estima e baixa autonomia (Salomone, 1982). A indecisividade é uma dificuldade pessoal que se generaliza por várias situações de tomada de decisão e escolha presentes em outras áreas da vida (Gómez, 1995; Goodstein, 1972). A indecisividade pode ser identificada a partir de indicadores como ansiedade e depressão (Fuqua, Blum & Hartman, 1983). Quando a indecisão, tomada como a busca de significado durante um processo de mudança, transforma-se numa situação paralisante, indica um diagnóstico de depressão (Savickas, 1995). Muitos estudos têm confirmado relações estreitas entre depressão, ansiedade e indecisão vocacional (Hawkins, Bradley & White, 1977; Jones & Winer, 1991).

De acordo com o DSM-IV (American Psychiatric Association, 2003), a depressão está associada a cognições negativas acerca do indivíduo mesmo, do mundo e do futuro. Cognições negativas levam à passividade, fraco senso de auto-eficácia, baixa autoestima, sentimentos de desesperança, dificuldade de concentração e tomada de decisão. A fobia social – ou transtorno de ansiedade social – é definida como “um medo acentuado e persistente de situações sociais ou de desempenho nas quais o indivíduo poderia sentir vergonha” (American Psychiatric Association, 2003, p. 437). O indivíduo reage ao estímulo ansiogênico através de esquiva, medo ou antecipação ansiosa com interferência significativa na rotina diária, na vida social e ocupacional. Indivíduos portadores de transtorno de ansiedade social apresentam hipersensibilidade a críticas, avaliações negativas ou rejeição, fraca assertividade e baixa auto-estima, fracas habilidades sociais, evidenciando fraco desempenho ocupacional, muitas vezes abandonando o emprego.

Tanto em indivíduos portadores de transtornos depressivos quanto de ansiedade, o papel das cognições negativas na desadaptação profissional é central, na medida em que criam um escopo de autoconceito disfuncional e inadequado às regras sociais para o trabalho. O papel das cognições no planejamento vocacional e no processo de tomada de decisão tem sido enfatizado na pesquisa em desenvolvimento vocacional, uma vez que pensamentos disfuncionais contribuem para a indecisão e frustração (Saunders, Peterson, Sampson & Reardon, 2000). Pensamentos vocacionais disfuncionais geram ansiedade e um acentuado senso de locus de controle externo, que limita a confiança do indivíduo em suas habilidades de tomada de decisão (Peterson, Sampson, Reardon & Lenz, 1996; Peterson & cols, 1991). Uma vez que a escolha e decisão vocacionais estão na confluência de dois domínios de conhecimento (autoconceito/ psychtalk e conceitos ocupacionais / occtalk) uma identidade vocacional bem definida forneceria a estrutura necessária a esta integração (Anderson, 1983).

Saunders e colaboradores (2000) apresentaram um modelo que atribuiu o grau de depressão e ansiedade, associado a um locus de controle externo, a uma identidade vocacional frágil ou a pensamentos confusos. Seus achados indicam que afetividade negativa, quando acompanhada de indecisão, pode exacerbar o problema vocacional, impedindo a capacidade de processamento de informação adaptativa enquanto o indivíduo está indeciso. Os autores concluem afirmando que quando a indecisão vocacional está ligada à expressão de sentimentos fortes, cabe ao orientador vocacional organizar o afeto para depois organizar o processo de escolha.

 

O Modelo da Terapia Cognitivo-Comportamental como Ferramenta para a Orientação Profissional de Adultos

Beck (1997) enfatizou o papel das cognições nas respostas emocionais e comportamentais. Apresenta o modelo cognitivo, fundamentado na idéia de que “as emoções e comportamentos das pessoas são influenciados por sua percepção dos eventos. Não é uma situação por si só que determina o que as pessoas sentem, mas, antes, o modo como interpretam uma situação” (Ellis, 1962 citado por Beck 1997, p. 29).

“Cada um dos transtornos se caracteriza por crenças idiossincráticas sobre si mesmo e sobre os outros, que distinguem cada transtorno dos demais” (Beck & Rush, 1999, p. 1988), sendo os componentes cognitivos e afetivos das síndromes psiquiátricas formas exageradas e persistentes das reações emocionais comuns como alegria, tristeza, raiva e ansiedade, derivadas de conjuntos de crenças disfuncionais específicas. Transtornos psicológicos específicos traduzem relações particulares entre distorções cognitivas, emoção e reações comportamentais e a Terapia Cognitivo-comportamental , na medida em que visa à correção de distorções cognitivas, trabalha diretamente no foco destas relações, auxiliando os pacientes na identificação da qualidade e da magnitude das distorções, com vistas à sua correção a partir de teste de realidade.

Um maior ou menor grau de dificuldades afetivas pode ser verificado em adultos que buscam a orientação profissional. Muitas vezes a desadaptação pode ser mais claramente identificada nos resultados obtidos na vida ocupacional, uma vez que a rede social familiar tende a ser mais tolerante e de intersubjetividade mais entrelaçada e interdependente. Na medida em que o papel de trabalhador é uma exigência social primária ao adulto, as dificuldades em desempenhá-lo podem constituir a queixa principal da busca de auxílio psicológico (Brush, Fallon & Heimberg, 2003).

A proposta de utilização de técnicas da terapia cognitivo-comportamental em orientação profissional remete à questão do enquadre, já que a orientação profissional carateriza-se por ser um processo de aconselhamento psicológico. A discussão mais compreensiva e extensa deve-se ao trabalho de Rodolfo Bohoslavsky (1974). Apesar de Bohoslavsky ser um teórico da abordagem clínica de orientação analítica da escolha profissional, sua preocupação com a circunscrição das entrevistas em orientação profissional transcende a abordagem teórica utilizada pelo orientador.

A entrevista de orientação vocacional, como um campo psicológico, possui uma configuração pela qual os comportamentos se expressam, sendo esta configuração determinada tanto pelo entrevistador quanto pelo entrevistado. O modo pelo qual o entrevistador determina esta configuração é denominado enquadre, que consiste em um artifício técnico que atua como um quadro de referência, que orienta a leitura do comportamento do entrevistado. O enquadre estabelece tempo e lugar, e atribui papéis bem como os objetivos da entrevista.

Uma vez que esta configuração é arbitrária, cabe ao orientador definir as possibilidades de transitar entre os dados objetivos do indivíduo e contexto e os dados subjetivos, enfatizando as questões afetas às características de personalidade e suas relações com o contexto do entrevistado que determinaram conseqüências na sua adaptabilidade. O estabelecimento do enquadre delimitará a profundidade e a amplitude em que o orientador permitirá ao orientando a análise de suas cognições e crenças disfuncionais, a fim de permitir que suas questões vocacionais sejam trabalhadas como demandado. A qualidade da interação, então, ficará determinada pela possibilidade de o orientador tratar destas cognições enquanto estruturas ou esquemas que dificultam o esclarecimento relativo às questões vocacionais.

Assim, propõe-se um modelo de intervenção em OP que seja sensível a estas questões afetivas, trabalhando-as a partir de técnicas características da terapia cognitivo-comportamental e que amplie o enquadre da orientação profissional, permanecendo, os resultados, centrados no ajustamento profissional.

 

Modelo de Orientação para Adultos com Enquadre Ampliado às Questões Afetivas

O processo de orientação profissional, seguindo o modelo proposto, desenvolve-se em três momentos: Diagnóstico, Elaboração e Informação. Embora sejam indicados como momentos distintos, são sobrepostos com a ênfase em um deles seqüenciada temporalmente (Lassance, 1999).

O momento de diagnóstico circunscreve as dificuldades de escolha e ajustamento referidas pelo orientando no âmbito profissional. Para fins deste modelo, o momento de diagnóstico está aberto às questões afetivas subjacentes às dificuldades relatadas, em uma amplitude que abranja os cenários familiar, escolar, comunitário e laboral e a integração entre o desempenho dos papéis significativos ao indivíduo (filho, estudante, progenitor, trabalhador, cônjuge, cidadão, leisurite), examinando-se a seqüência temporal, simultaneidade, extensão (duração no tempo), intensidade (investimento) em cada papel e a percepção de sua integração, estabelecendo-se relevância relativa do trabalho neste quadro de papéis. Este é o momento de se levantar a história pessoal do cliente, sua história profissional, a queixa básica, seu funcionamento sócio-afetivo geral e as dificuldades percebidas. Fica assim delimitada a situação de carreira do cliente, a partir da qual orientador e orientando poderão determinar o escopo da decisão a ser tomada, estabelecendo-se o enquadre.

O momento de Elaboração dá ênfase ao tratamento das questões afetivas, com a utilização maciça de técnicas de identificação, compreensão e modificação de pensamentos disfuncionais que remetem diretamente à dificuldade de escolha e ajustamento em questão. Neste momento, utilizam-se os registros de pensamentos automáticos ou disfuncionais, diagrama de conceituação cognitiva, planilhas de resolução de problemas bem como procede-se ao planejamento e realização de experimentos e desenvolvimento de habilidades sociais (para especificação das técnicas, consultar, por exemplo, Beck, 1997; Barlow, 1999; Greenberger & Padesky, 1999). As técnicas devem ser selecionadas e/ou criadas a partir das necessidades específicas do cliente, resguardando-se a necessidade de trabalho com as condições clínicas diagnosticadas pelo orientador ou presentes no encaminhamento. A utilização de tarefas para casa é de fundamental importância, na medida em que favorece a aderência ao processo e permite ao orientando vivenciar situações reais, como, por exemplo, nos experimentos, além de permitir tempo para a execução de listas como as de interesse, avaliação de pontos positivos e negativos na atividade de trabalho e permitir que o orientando faça registros como o de pensamentos automáticos em variadas situações cotidianas.

O momento de elaboração visa a auxiliar o orientando a detectar os esquemas de funcionamento afetivo e as crenças centrais que estão subjacentes às suas dificuldades e simultaneamente desenvolver estratégias para lidar com situações cotidianas geradas por crenças disfuncionais ou limitantes. É a partir da compreensão de seu funcionamento e da identificação das conseqüências deste funcionamento sobre sua adaptabilidade profissional que o escopo da decisão a ser tomada na orientação profissional estará delimitada, uma vez que esta compreensão e as mudanças observadas deverão levar a uma adaptação geral nas circunstâncias de trabalho e de vida. O aconselhamento, aqui, deve lidar com crenças disfuncionais dos indivíduos acerca deles mesmos e do trabalho e da integração com outros papéis sociais que desempenha simultaneamente. Sendo assim, exploram-se individualmente esquemas cognitivos formulados ao longo da biografia pessoal com as especificidades de interpretação de cada indivíduo.

A informação profissional é parte do processo de decisão e escolha, a partir da possibilidade de identificação das limitações momentâneas e das possibilidades de enfrentamento que o indivíduo desenvolveu ao longo do processo. A informação profissional abrange tanto a informação sobre cursos e continuidade de formação quanto sobre as possibilidades de permanência e progresso no trabalho ou atividade atual. O adulto com dificuldades de ajustamento não está, necessariamente, à procura de uma mudança de atividade e sim de uma mudança interna que possibilite uma atividade profissional.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta de intervenção acima constitui uma tentativa de trabalho com as cognições que impedem uma escolha vocacional ou mesmo a identificação das dificuldades, sem, no entanto, extrapolar o enquadre da orientação profissional e invadir a extensão da demanda do orientando. Pretende uma ampliação do enquadre tradicional, de forma a trabalhar, em maior extensão e profundidade, com os afetos e crenças disfuncionais a eles subjacentes.

A estrutura do aconselhamento vocacional está mantida, com o limite da possibilidade concreta de resultados sobre as dificuldades centrais do cliente. Para tanto, o encaminhamento é fundamental, e deverá, ao final do trabalho, estar facilitado pela qualidade educativa que a abordagem cognitivo-comportamental possui, na pedagogia sobre as dificuldades concretas do cliente e na verificação dos resultados a partir das técnicas utilizadas. A manutenção rígida do enquadre, certamente, impediria a própria orientação profissional e a possibilidade de transcendê-lo traz uma possibilidade adicional ao cliente na medida em que, em uma situação mais restrita, fornece elementos que podem ser transformadores de situações de vida mais amplas.

O modelo de intervenção proposto vem sendo desenvolvido no CAP-SOP / UFRGS com adultos com transtornos de ansiedade e depressão, encontrando-se em processo de avaliação para futuro refinamento e determinação de sua efetiva qualidade na resolução de dificuldades de inserção e ajustamento ao trabalho.

 

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Recebido: 31/07/04
1ª Revisão: 16/02/05
Aceite final 18/04/05

 

 

* Mantém se a palavra leisurite como no original, pela dificuldade de tradução. Significa o indivíduo em atividade de lazer

 

1 A autora agradece a leitura atenta e a revisão crítica dos colegas Mônica Sparta de Souza e Mauro de Oliveira Magalhães.
2 Endereço para correspondência: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Instituto de Psicologia, Rua Ramiro Barcelos, 2600, sala 212, 90035-003, Porto Alegre, RS. Fone: (51) 3316 5454. E-mail: mcpl@terra.com.br

 

Sobre os autores
* Maria Célia Pacheco Lassance é psicóloga, Mestre em Aconselhamento Psicopedagógico, Professora do Departamento de Psicologia do Desenvolvimento e da Personalidade do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), membro do corpo técnico do CAP-SOP (Centro de Avaliação Psicológica, Seleção e Orientação Profissional) da UFRGS. Fundadora da ABOP, presidente – gestões: 1995-1997 e 2001-2003 e membro do Conselho de Ética.

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