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Revista Brasileira de Orientação Profissional

versão On-line ISSN 1984-7270

Rev. bras. orientac. prof v.9 n.2 São Paulo dez. 2008

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Profissionalização do educador de creche: negociações identitárias no momento de formação em nível médio

 

Education of caregivers: identity negotiation when attending high school

 

Profesionalización del educador de guardería: negociaciones de identidad en el momento de formación en enseñanza media

 

 

Delma Rosa dos Santos Bezerra*; Ana Paula Soares-Silva1 **

I Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto - São Paulo, Brasil

 

 


RESUMO

Desde 1996, momento em que as creches e pré-escola foram inseridas na educação, vêm acontecendo mudanças significativas na área da Educação Infantil. Uma delas diz respeito à formação dos profissionais dessa área que, com a lei 9.394/96, passou a ser exigida pelo menos em nível médio. A partir disso, alguns sistemas municipais de ensino se mobilizaram criando e oferecendo cursos aos educadores. Reconhecendo a relevância histórica dessa medida para a educação brasileira, este estudo procurou compreender as negociações identitárias e os sentidos de ser educadora, construídos por quatro profissionais de uma creche pública, que estavam em processo de formação. Fundamentado nas perspectivas da Narrativa e da Rede de Significações (RedSig), a pesquisa revelou que o processo de construção da identidade profissional foi marcado por um aprender a ser educadora pela imitação das colegas, pela negociação entre identidades sociais, profissionais e pessoais e pelo confronto entre saberes práticos/conhecimentos. As educadoras re-significaram seus papéis negando/afirmando possibilidades que o curso trouxe de mudanças às suas vidas profissionais e pessoais.

Palavras-chave: Identidade, Creche, Formação profissional.


ABSTRACT

The inclusion of daycare centers in the Brazilian educational system has caused many significant changes in the area of Children’s Education. One of these changes refers to Law 9394/96 that requires that caregivers’ education should include at least high school. Since 1996, some municipal educational systems have created courses for caregivers. Considering that caregivers’ education is crucial for the caregiver’s professional identity, this study tried to understand the identity negotiations and the meanings of being an educator built by four professionals who were going across their formation process. Based on the Narrative and the Network of Meanings (SigNet) perspectives, the study showed that the construction of professional identity was achieved by a process of: observing/imitating colleagues; negotiation among social/professional/personal identities and by the integration of practical knowledge and course information. Caregivers have attributed another meaning to their roles by denying/stating new possibilities for their professional and personal lives.

Keywords: Identity, Daycare center, Caregivers education.


RESUMEN

Desde 1996, momento en que las guarderías y jardines de infantes se incluyeron en la educación, han ocurrido cambios significativos en el área de la Educación Infantil. Uno de ellos está relacionado con la formación de los profesionales de dicha área que, con la ley 9.394/96, pasó a ser exigida por lo menos en enseñanza media. A partir de entonces, algunos sistemas municipales de enseñanza se movilizaron creando y ofreciendo cursos a los educadores. Reconociendo la relevancia histórica de esa medida para la educación brasileña, este estudio intentó comprender las negociaciones de identidad y los sentidos de ser educadora, construidos por cuatro profesionales de una guardería pública, que estaban en proceso de formación. Fundamentada en las perspectivas de la Narrativa y de la Red de Significaciones (RedSig), la investigación reveló que el proceso de construcción de la identidad profesional fue marcado por un aprender a ser educadora por la imitación de las colegas, por la negociación entre identidades sociales, profesionales y personales, y por la confrontación entre saberes prácticos y conocimientos. Las educadoras dieron un nuevo significado a sus papeles negando/afirmando posibilidades de cambios que el curso trajo a sus vidas profesionales y personales.

Palabras clave: Identidad, Guardería, Formación profesional.


 

 

A história da construção das identidades profissionais das educadoras de creche e de pré-escolas, assim como das próprias instituições de educação infantil, é fruto dos modos como nossa sociedade vem concebendo e praticando a educação de crianças pequenas em espaços coletivos. É ainda resultado das transformações do papel da mulher na sociedade, das relações entre Estado e família, das idéias pedagógicas e psicológicas da educação infantil e das políticas educacionais para crianças de diferentes camadas sociais.

Desde o surgimento das instituições de educação infantil no Brasil, configuraram-se duas vertentes paralelas. Para as classes populares, preponderantemente, foi adotado um modelo de atendimento a baixo custo, oferecido pelas creches que estavam institucionalmente vinculadas aos órgãos de caráter médico-assistencial e fundamentadas por uma concepção de educação assistencialista e compensatória (Kuhlmann Jr., 1998). Para as classes mais abastadas, adotou-se o modelo de jardim-de-infância, oferecido pelas instituições pré-escolares que estavam vinculadas ao sistema educacional (Kramer, 1989). Conseqüentemente, legitimaram-se, em nosso país, dois tipos de instituições de educação infantil que se distinguiram não apenas em relação à população atendida, mas também aos objetivos, critérios de seleção da clientela, tamanho do grupo, número de adultos por criança, horário de funcionamento, jornada de trabalho e perfil e formação do profissional (Campos, 1999; Haddad, 2002; Silva, 2001).

Enquanto o perfil do profissional de creche foi construído a partir da crença nas habilidades naturais da mulher para o exercício da função de educadora infantil, ou seja, não se exigia formação escolar, os profissionais do jardim-de-infância configuraram suas identidades fundamentados em uma concepção que privilegiava a formação no nível médio, na modalidade normal (Cerisara, 1996; Rosemberg, 1999).

De acordo com Rosemberg (2002), essa ausência de profissionalização das educadoras de creche decorre, em grande parte, das políticas de expansão de vagas inspiradas nas determinações de agências multilaterais. Para a autora, principalmente nas décadas de 1970 e 1990, essas políticas acentuaram as diferenças sociais, uma vez que promoveram a expansão do atendimento às crianças de camadas pobres por meio da contratação de mulheres leigas para o exercício da função de educadora. Essas práticas, além de incidirem na qualidade e na construção da identidade da creche junto à área da educação, reforçaram a desvalorização profissional (Rosemberg, 1994).

Essa realidade, construída historicamente, vem sendo questionada ao longo das últimas décadas. A produção do conhecimento sobre a educação da criança em contextos coletivos e o processo de luta dos movimentos sociais em defesa da educação infantil orientaram modificações importantes na área que vêm sendo consolidadas na legislação e em documentos oficiais, visando a transformação dessa conjuntura.

No ano de 1996, as creches, anteriormente vinculadas aos órgãos de Assistência Social, foram inseridas na Educação com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional 9394/96 (LDB). Em seu artigo 62, essa lei estabelece a formação em nível superior como necessário para os educadores de crianças de zero a seis anos de idade, admitindo para atuação a formação em cursos do nível médio, modalidade Normal. Essa exigência vem sendo interpretada pelos pesquisadores e militantes como avanço significativo na história e na política da educação infantil no Brasil, uma vez que procura superar a violação do direito à educação básica sofrida pelas educadoras. Na maioria das vezes, provenientes de camadas pobres, essas profissionais tiveram que deixar os estudos para ajudar no orçamento doméstico ou acabaram excluídas e reprovadas pela própria escola, ainda muito jovens. Ademais, a exigência da escolaridade mínima apresenta-se como possibilidade de promover, paulatinamente, a qualidade do atendimento, uma vez que a formação, embora não seja garantia, tem sido apontada como um dos mais consensuais indicadores de qualidade na educação infantil (Barreto, 1998; Campos, 1999).

Os desafios enfrentados para o cumprimento do que estipula a LDB são grandes e, desde a sua publicação, os municípios se defrontam com a necessidade de oferecer a referida formação a seus profissionais. Dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) (www.inep.gov.br) mostram que, mesmo após as conquistas recentes na área, ainda há muito que avançar na direção da formação e da profissionalização das educadoras da educação infantil, em especial, do segmento creche. No ano de 2006, no Brasil, o percentual de profissionais que atuavam nas creches com formação em nível superior era de apenas 34% e, na pré-escola, de 45% (www.inep.gov.br).

Alguns municípios vêm organizando cursos especificamente para oferecer formação que atenda à exigência mínima estipulada na LDB, enquanto outros vêm incentivando seus funcionários a se matricularem em cursos oferecidos por instituições particulares de ensino. Além do oferecimento da formação mínima, os municípios também são desafiados a inserir os profissionais das creches nos quadros do magistério, uma vez que, freqüentemente, o educador de creche fora contratado sem nenhuma exigência de escolaridade.

Se para os municípios os desafios são imensos, não menos o são para os educadores, uma vez que a legislação tem forte impacto no exercício da profissão e repercute em suas vidas como um todo. Para continuarem atuando junto às crianças, exercendo a função docente, necessitam retornar à escola e organizar o cotidiano entre o trabalho, o estudo, a casa e a família, num momento de vida em que outras demandas se impõem. Vários estudos têm defendido a necessidade de conhecer como esse profissional, que transita entre o passado e as determinações da lei no presente, após décadas longe da escola, encara o retorno às atividades de ensino na condição de aluno e como essa obrigação repercute na construção da identidade profissional (Oliveira, Silva, Cardoso & Augusto, 2006; Silva, 1999, 2001). As educadoras (que já foram denominadas de pajens, babás, dentre outras) são agora chamadas a se formarem como professoras. Entende-se que se trata de um momento de transição na construção da profissão de educador de creche e, por esse motivo, privilegiado do ponto de vista da investigação.

O presente estudo alinha-se, portanto, às pesquisas que procuram compreender esse momento a partir do ponto de vista de quem o vivencia, ou seja, do próprio educador. Para a realização da pesquisa, foram adotados os pressupostos teóricos e metodológicos da Rede de Significações (RedSig) elaborada por Rossetti-Ferreira, Amorim, Silva e Carvalho (2004). Essa perspectiva fundamenta- se em autores histórico-culturais como Vygotsky, Wallon, Valsiner e Bakhtin. Segundo as autoras da RedSig, o desenvolvimento humano se dá imerso nas significações construídas em interações sociais estabelecidas e mediadas por parceiros de grupos culturais específicos. Nos processos interativos, na ação de significar a experiência, as pessoas negociam significados e sentidos sobre o mundo e sobre si. As categorias de sentido e significado são tomadas de Vygotsky, para quem: o sentido refere-se aos “eventos psicológicos que a palavra desperta em nossa consciência” (Vygotsky, 1987, p. 125); o significado, menos psicológico e mais lingüístico, é uma das zonas do sentido, a mais estável e precisa. De acordo com a RedSig, a depender das condições e contextos, determinadas redes de significações circunscrevem as possibilidades de produção de sentidos e significados pelas pessoas.

Nossa perspectiva compartilha com Vygotsky a concepção dramática do sujeito, que admite que a origem e as bases dos processos psicológicos são as relações sociais. Tal como nas relações e interações reais entre as pessoas, as funções psicológicas se caracterizam por interações do tipo drama, repletas de luta interna (Vygotsky, 2000). Como nos ensina Smolka “o drama emerge justamente do fato de que essa relação social consigo mesmo implica a trama de muitas experiências, muitas imagens, muitas histórias, muitos outros em muitas e diversas posições sociais” (Smolka, 2004, p. 45, grifos da autora). Essa concepção tem implicações para a compreensão da identidade. A identidade é compreendida num movimento constante de (re)construção, na relação com outra(s) pessoa(s) e com o mundo, uma vez que é na interação que a pessoa, ao confrontar-se com os outros, nega, afirma, negocia e produz significados de si.

Silva (2003), ancorada na concepção defendida por Harré (1998), para quem a identidade expressa o tipo de pertencimento e qualifica a vinculação da pessoa a grupos sociais, defende que a identidade se constitui por meio da “existência de inúmeros contextos e práticas discursivas que delineiam diferentes posições atribuídas aos e assumidas pelos sujeitos (p. 69)”. Para a autora, as identidades sociais se articulam em jogos de posicionamentos repletos de negociação, contribuindo para a construção de uma identidade pessoal que se configura em um movimento complexo de constante (des)continuidades de si mesmo. A autora argumenta ainda que as múltiplas posições identitárias ocupadas pelas pessoas encontram-se em relações dialógicas. Assim, identidades profissionais articulam-se com outras tantas identidades, como de gênero, de raça, de classe, religiosa e de idade, estabelecendo-se, entre elas, relações de subordinação, complementariedade e contradição. Visão semelhante é defendida por Moita-Lopes (2003), que concebe as identidades não como propriedades privadas dos indivíduos, mas construções sociais, suprimidas e promovidas de acordo com processos discursivos negociados.

Também de uma perspectiva que preconiza a construção da identidade como uma atividade social, dialógica e discursiva, Rollemberg (2003), que realizou trabalho de investigação com professores, defende que a identidade profissional é multifacetada. São as diferentes faces do mesmo sujeito em constante processo de transformação que compõem a identidade profissional.

Em estudo sobre a construção das identidades profissionais de educadores de crianças de zero a seis anos de idade, Sarmento (1999) defende que a identidade realiza-se com trocas, aprendizagens e relações diversas das educadoras com os seus vários espaços e contextos de vida. Para a autora, refletir sobre identidades profissionais e pessoais de educadoras de creche significa analisar um processo de construção social, no qual cada educadora, como atora social, individualmente joga sua história de vida com a história de vida do grupo coletivo a que pertence, com as crianças, com as comunidades e com os contextos onde se desenvolve a sua ação e sua formação educativa, transformando essa teia de interações numa forma própria de ser e agir.

A partir do diálogo com esses autores, nosso trabalho procura compreender as negociações identitárias e os sentidos de ser educadora construídos por quatro profissionais de uma creche pública, localizada em um município de médio porte no Estado de São Paulo, que estavam em processo de formação a fim de se adequarem à exigência de formação da Lei de Diretrizes e Bases da educação 9.394/96.

 

MÉTODO

Procedimentos de coleta de dados

Foram realizadas entrevistas individuais, com duração média de duas horas. As entrevistas foram áudio-gravadas e transcritas na íntegra. Por indicação das participantes, as entrevistas foram realizadas na própria instituição onde trabalhavam, em horário de almoço.

Optou-se pela modalidade de entrevista autobiográfica (Silva, 2003), sendo ela iniciada com o seguinte enunciado: “Eu queria conversar um pouco com você. Conte-me um pouco da sua história”. Ao longo da entrevista, a pesquisadora introduzia questões com base em um roteiro que continha pontos sobre: trajetória escolar; trajetória profissional; inserção na creche; inserção no curso; rede de apoio para a realização do curso; expectativas, dificuldades e satisfações em relação ao curso; mudanças em sua prática a partir do curso.

Tratamento do material e procedimentos de análise

O tratamento das entrevistas foi orientado por uma abordagem qualitativa. Iniciou-se pela revisão das transcrições e pela realização de várias leituras, momentos em que se buscava a aproximação e familiarização com o repertório das educadoras e apropriação dos conteúdos de suas narrativas. Este movimento possibilitou a construção dos eixos de análise: vida profissional, vida pessoal, curso de formação. Esse procedimento seguiu as orientações do referencial teórico-metodológico da Rede de Significações (Rossetti-Ferreira e cols., 2004). Por essa perspectiva, não são estabelecidas a priori categorias de análise; elas são construídas no processo de diálogo com a situação investigada, após muitas leituras, idas e vindas ao material empírico.

Posteriormente, foram feitas marcações nas entrevistas e elas foram mapeadas com base em metodologia proposta por Spink e Lima (1999) e adaptada por Silva (2003). Ao dispor toda a entrevista em mapa, tem-se o objetivo de acompanhar o fluxo da narrativa das participantes e compreender que conteúdos emergem e como eles se distribuem em relação ao momento narrado. Procurou-se assim dar visibilidade às negociações identitárias relativas à vida profissional (trabalho em creche), à vida pessoal e ao curso de formação. São essas negociações, assim como os sentidos sobre o constituir-se educadora (no início da profissão e no momento de realização da entrevista), que serão aqui apresentados.

Cabe mencionar que, pela perspectiva que orientou o estudo, compreende-se que a entrevista autobiográfica convida o participante a colocar-se numa posição de reflexão sobre sua vida, assim como o convida a posicionar-se em relação aos seus interlocutores. Como nos afirma Silva (2003, p. 82), “ao demandar ao participante que ele lance um olhar sobre sua vida, essa situação o implica em um relato representativo de sua identidade narrativa, um posicionamento em relação aos grupos sociais vividos, às instituições e aos parceiros de interação”.

Sobre o curso

O curso que as participantes freqüentavam foi criado a partir da mobilização das próprias educadoras de creche do município que, preocupadas com a carreira, conseguiram fazer aprovar um documento no Conselho Municipal de Educação que obrigava a Prefeitura da Cidade a fornecê-lo.

Correspondendo a esta demanda, a Prefeitura, por meio da Secretaria de Educação do Município, organizou a formação em nível médio de dois anos, com uma carga horária de 2.400 horas, distribuídas da seguinte forma: 800 horas de estágio; 1.600 horas de aulas teóricas. O curso, aprovado pelo Conselho Estadual de Educação, funcionava no prédio de uma escola de ensino fundamental da rede pública, das 18 às 22 horas. No período de 2000 a 2004, quatro turmas foram formadas com habilitação para atuação em creche, totalizando 160 educadoras. Hoje o curso já está desativado.

O currículo do curso era composto pelas seguintes disciplinas: Psicologia da Educação (160h); História da Educação (160h); Filosofia da Educação (160h); Didática (240h); Estrutura e Organização do Ensino (160h); Higiene, Nutrição e Segurança de adultos e crianças (160h); Elementos de informática (120h); Projeto Melhoria de Ensino (320h). O referido curso foi construído tendo como objetivo formar e habilitar profissionais específicos de creche e procurou enfocar principalmente as implicações das práticas pedagógicas da educação infantil. Beneficiaram-se deste curso profissionais que atuavam na rede municipal e nas creches conveniadas. As educadoras tinham o ensino médio completo ou estavam cursando em outro horário ou à distância.

Caracterização das participantes

As quatro participantes da pesquisa eram mulheres que se inseriram no trabalho em creche há mais de dez anos como auxiliares de serviço.

Nunca chegaram a assumir essas funções, sendo convocadas para o trabalho com as crianças em sala. Na época, não dispunham de formação para o trabalho com crianças pequenas. No período em que foram realizadas as entrevistas, as educadoras tinham entre 35 e 57 anos. Todas tinham filhos, duas eram casadas, uma se separou do companheiro durante sua inserção no curso e a outra era divorciada. As participantes, cujos nomes são fictícios, estão descritas no Anexo do presente artigo.

 

RESULTADOS

O início na profissão: aprender no trabalho e com sofrimento

Os sentidos construídos pelas participantes sobre o ser educadora, no início da vida profissional, são circunscritos pela forma como se deu a entrada na profissão. Também a avaliação dessa entrada, feita no momento da entrevista, iluminada por anos de experiência no trabalho e no transcorrer de um curso de formação, dá indício do que as educadoras, hoje, imaginam ser necessário para o início do exercício profissional.

Compreender o momento de entrada na profissão de educadora de creche significa, no caso das participantes, deparar-se com uma inserção desprovida de conhecimentos a priori sobre a atividade a ser desempenhada. As quatro participantes foram designadas ao trabalho com crianças após a aprovação em concurso público para a função original de serviços gerais. As educadoras nos relatam que o início da profissão na creche é marcado fundamentalmente pela surpresa, decorrente do desconhecimento da natureza da atividade a ser realizada e do destino profissional e, no limite, decorrente da impossibilidade de exercer o desejo e a escolha para a função.

Esse processo, na fala de três das participantes, promove dificuldades e sofrimento uma vez que vem ainda associado à ausência de treinamento para atividades com criança.

Bárbara: Porque já me colocou na sala de criança grande, eu não tinha a menor prática, pra mim foi assim, nossa, nossa, foi forte demais pra mim! Eu não sabia como lidar. Nunca trabalhei com criança, principalmente, criança grande de quatro, cinco anos... Eu não sabia como trabalhar com criança, tinha muita criança, sabe... Não tinha a menor noção. Mas eu assustei quando eu cheguei e a chefe me colocou na sala, nossa mãe!

Maria: Algumas já entrava na creche e já ia direto para sala sem nenhum assim treinamento para trabalhar com criança! E é isso que a gente sofria muito, que a pessoa sofria muito por causa disso. Porque tinha que ter um treinamento: “Olha tem que ser assim assado!”. A gente foi aprendendo depois conforme ia trabalhando com a criança.

Letícia: Que a gente entra, a gente aprende com a pessoa que tá, então, as... as educadoras que estavam trabalhando mais tempo, então a gente fazia via elas fazendo, a gente foi aprendendo trabalhar com elas.

Nos três relatos, à ausência de treinamento e de informação sobre a atividade, associam-se o “aprender no próprio trabalho” e o “aprender com as colegas mais experientes” por meio da observação. Essa forma de aprendizado foi inclusive planejada pelas instâncias responsáveis pela contratação das educadoras, uma vez que, no caso de Kátia, ela nos informa que, antes de ingressar na creche e de se responsabilizar por um grupo de crianças, passou dois dias em instituições que já se encontravam em funcionamento.

Por um lado, esses relatos revelam práticas e concepções cristalizadas à época. A realização de concursos não específicos para o trabalho com crianças e sem exigência mínima, prática freqüente nas administrações públicas até a promulgação da LDB, materializava a concepção de que não era necessário formação para o trabalho em creches. Também o ter que aprender “conforme ia trabalhando com a criança” reflete uma forma de pensar a atividade sem a necessidade de lentes teóricas que orientem a ação, ou seja, que as atividades das educadoras de crianças pequenas são orientadas por habilidades que se adquirem com a prática, que podem ser desarticuladas de reflexões, fundamentações ou planejamento. Os relatos nos revelam, assim, modos sociais e institucionais de pensar e organizar a profissão.

Por outro lado, os relatos dessas educadoras também nos falam sobre seus modos de pensar essa organização, em contraposição aos modos por elas vivenciados, uma vez que, ao avaliarem suas experiências, claramente apontam para possibilidades que amenizariam a surpresa e o sofrimento. A fala de Maria, de que “tinha que ter um treinamento”, indica que a atividade exige saberes teóricos e práticos específicos. Assim, esses relatos, além de expressarem a vivência sofrida das participantes no processo de constituir-se educadora de creche, apontam para uma postura crítica das educadoras em relação a esses modos de organização da atividade, filiando-as aos discursos atuais sobre a especificidade da atividade e a necessidade de formação. Essa postura crítica, no caso de duas das educadoras, se repete quando relatam sobre os recursos utilizados no início da profissão.

Letícia: Bom... experiência com criança eu tinha, porque eu tenho, porque eu já tinha dois filhos, né.

Kátia: Ah! No começo, no começo assim, eu comecei com pouca experiência, eu só tinha a experiência dos meus filhos...então eu só tinha experiência mesmo de cuidar dos meus filhos. Então foi difícil, né.

Maria: Eu não tinha noção de trabalhar na creche. Apesar de eu já ter as duas filhas, eu já tinha criado elas, já tavam já grandinhas, mas eu não tinha essa noção de trabalhar com tanta criança.

Enquanto Letícia recorre à experiência materna, as outras educadoras falam dos limites e insuficiência dessa experiência para o trabalho na creche. Para Kátia, o uso dos advérbios de intensidade “pouca” e “só” para descrever a experiência com os filhos marca essa limitação. No caso de Maria, aparece uma diferença da atividade de educadora em relação à de mãe caracterizada pelo número de crianças.

As falas das participantes, de alguma forma, negociam e questionam práticas e discursos históricos do campo da educação infantil caracterizados pela crença de que, para educar crianças, em especial bebês, não se requer habilidades além daquelas relativas aos cuidados maternos. No caso das nossas participantes, a experiência de cuidados com crianças, em particular, com os próprios filhos, emerge como um dos recursos que orientaram a ação no início da profissão, mas elas reconhecem que ele não foi suficiente para atender às necessidades e especificidades de crianças em ambiente de educação coletiva. É nesse movimento que a identidade de educadora de creche, vivenciada pelas participantes no início da profissão, confunde-se com a identidade da própria instituição. A entrada na creche, ao ser organizada e orientada por concepções centradas no modelo substitutivo materno, circunscreve as possibilidades da atividade com as crianças, conforme nos relata uma das participantes:

Bárbara: Uai! Eu cuidava, dava banho, nessa época tinha a gente dava remédio, dava comida e fazia dormir, trocava cada vez que precisava, sujava, trocava a fralda, assim ficava o dia inteiro.

Maria: O banho, o cuidado mesmo, sabe, o que eu gostava mesmo era o cuidado com eles. É o bainho, deixar sempre limpinho, com cabelinho penteadinho, sabe?

A avaliação das participantes sobre o início da profissão vai descrevendo um ser educadora caracterizado pela falta de conhecimento, pela ausência de formação, pela recorrência a modelos maternos de atenção à criança, pelo aprendizado no trabalho e pela centralidade nas ações de cuidado. Contudo, os sentidos construídos na situação de entrevista sobre esse modo de ser educadora são descritos como permeados por sofrimento, insuficientes para a ação com as crianças e passíveis de críticas pelas educadoras que parecem apontar para especificidades da educação coletiva de crianças e para a necessidade de profissionalização da função.

Negociações identitárias no contexto do curso

Quando as educadoras relatam sobre o curso, desde o momento da decisão de freqüentá-lo até a realização da entrevista, em três dos casos analisados, verifica-se um processo caracterizado por grandes negociações, com elas mesmas e com seus companheiros e familiares. As histórias de vida e as posições dentro da família foram fatores que pesaram nessa negociação. Nesse processo, muitos sentidos foram construídos, destacando-se aquele que significa a freqüência ao curso como um abandono dos filhos e dependentes, além do receio de nele não serem bem sucedidas.

Kátia: Naquele ano seguinte ia começar a terceira equipe, né, que ia fazer o curso, porque teve o primeiro, depois o segundo, e começa a terceira equipe, e eu fiquei muito em dúvida. Eu até cheguei pedi para minha coordenadora me transferir de creche e me colocar na faxina direto, porque eu não queria voltar estudar, eu achava que eu ia voltar estudar, eu ia atrapalhar, ia abandonar meus filhos, né, ia ficar muito tempo fora de casa. E foi nisso minha coordenadora e minha colega, mais umas três colegas de serviço que me incentivaram, e eu voltei mesmo, mas assim, naquela incerteza que eu não ia dá conta de estudar. Aí foi indo, indo, eu fui gostando da idéia, foi onde que eu continuei.

Este fragmento revela que, quando Kátia se viu diante da oportunidade de fazer o curso, que demandava ficar mais tempo longe da casa e dos filhos, num primeiro momento, recusou e passou a cogitar a possibilidade de assumir outra função. A dúvida é causada por uma situação em que concorrem as identidades de mãe e de educadora. Chama atenção como o sentido do abandono dos filhos dá origem ao um forte conflito identitário, circunscrevendo as possibilidades de desenvolvimento profissional de tal maneira que só consegue tomar a decisão de freqüentar o curso quando obtém o apoio e o incentivo de outras colegas de trabalho.

Esse sentido construído por Kátia tem sua base nas responsabilidades atribuídas a homens e mulheres em nossa sociedade que destina à mulher o espaço e o trabalho domésticos. No momento da decisão de freqüentar o curso, sua identidade materna é vista sob ameaça e chama atenção o fato de que, enquanto as demais educadoras justificam a escolha pelo curso como possibilidade de manter-se na profissão, sua motivação é justificada pela possibilidade de “ajudar os filhos”.

Um outro sentido que é construído, no fragmento de Kátia, é o receio de não ter sucesso no curso. Pode-se dizer que a educadora teve de negociar consigo mesma, já que a imagem que tinha de si própria “não era muito positiva”, não acreditava que conseguiria completá-lo porque se via como “uma pessoa com pouca capacidade para se comunicar e até para aprender”, conforme trechos da entrevista. Na sua avaliação, o curso ofereceu a oportunidade de se relacionar com outras pessoas e com novos conhecimentos. Ao relatar sobre si depois dele, coloca-se na posição de alguém que tem certos conhecimentos que outras pessoas não têm, o que lhe possibilita significar a si mesma em condição de igualdade em relação às colegas e muito mais capaz de ajudar seus filhos. Ao final, o curso possibilita à Kátia articular as identidades profissional e de mãe, tornando-a, sob sua perspectiva, uma educadora e uma mãe melhor.

Kátia: E foi muito bom pra mim, eu acho cresci bastante, a sabedoria que eu não tinha antes, eu acho que eu estou tendo hoje, hoje, eu tô podendo conversar com as pessoas de igual, porque antes, parece que eu tinha até vergonha de conversar, né, então eu acho que é isso. Pra mim foi tudo de bom voltar a estudar.

No caso de Maria, a maior negociação ocorre com a família, principalmente com o pai que se opunha ao curso porque achava que sua filha tinha que sair do trabalho e ir direto para casa. Maria era responsável também pelos pais, com os quais morava. Teve que mostrar ao pai e para os demais membros de sua família que fazer o curso era importante não só para ela, mas também para eles, visto que, como resultado, teria a possibilidade de aumentar sua remuneração. Maria também teve que negociar consigo mesma, pois achava que com o curso prejudicaria seu desempenho em relação a suas identidades de filha, mãe e avó.

Maria: É muito sacrifício, porque a gente tem família, eu tenho meus pais ainda vivos, graças a Deus, mas já tá com mais de setenta anos os dois, então, eu sinto, eu acho que eles sentem a falta da gente...eu não tenho tempo pra... mais conversar com eles. Então eu acho muito difícil por isso. E também minhas filhas, agora tem um netinho de um ano e dois meses. Eu sinto assim que tinha que ter tempo pra eles, e não tenho por causa do... eu já venho pra, fico o dia todo, e daqui mesmo eu já vou para escola. ... Até que no início meu pai falou: “pra que estudar mais, não precisa”. Ele achou que eu tinha que sair do serviço já ir pra casa, dá uma atenção pra eles ou pros outros. Depois eu acho que ele pôs na cabeça, que ele viu eu falando: eu preciso fazer esse curso.... Mas eu que sinto assim, né, que eu tinha que estar dando um pouco mais de atenção para eles.

Entendemos que a relação entre as identidades se dá em jogos dinâmicos de competição, cooperação, numa relação de ganhos e perdas. No caso de Maria, o que ocorre é uma competição entre a identidade profissional e a de cuidadora de tantas pessoas. A fala da participante é permeada por sentimentos de falta em relação aos pais, filhas e neto, demonstrando dificuldades em conciliar o curso com as suas responsabilidades de filha, mãe e avó. A voz do pai, trazida no relato de Maria, estabelece uma luta interna, uma vez que sinaliza um pesar por não estar dando a atenção que seus pais requerem. No caso de Bárbara, a negociação maior foi com o marido, que não queria que ela freqüentasse o curso de formação. Neste processo, a educadora vivenciou a separação do companheiro que não entendeu os motivos que a levaram a freqüentar o curso.

Bárbara: Na época morava com meu companheiro, eu tinha meu marido. Aí ele não aceitava, brigava muito comigo, depois ele foi embora, agora fiquei mais em paz, agora tô podendo levar minha vida mais tranqüila.

Bárbara relata que ganhou tranqüilidade e, em outros momentos da entrevista, diz que o curso lhe trouxe “oportunidade de desenvolver uma vida social” que não tinha e de manter “uma relação mais intensa com suas crianças, pais e colegas”. Para Bárbara, a perspectiva de retornar à função para a qual foi contratada (serviços gerais) foi o que a estimulou para freqüentar o curso e a enfrentar as dificuldades, pois desejava continuar ocupando o cargo de educadora. O curso se constituiu para Bárbara como uma possibilidade de se desenvolver profissionalmente e de reconstruir sua identidade de educadora.

Bárbara: Foi por mim mesma, porque eu tava em sala e eu queria continuar trabalhando com as crianças pequenas. Então, em vez de levantar de cargo eu ia descer, ia passar pra limpeza, então eu preferi me esforçar um pouco e ir à luta, subir e não abaixar de cargo.

Esse fragmento de Bárbara dá um novo sentido ao episódio da separação. Quando relata a decisão de se manter no curso, em detrimento do casamento, anuncia um movimento em que a identidade profissional, antes de competir com sua identidade de mulher/esposa, é fortalecida por ela, uma vez que a educadora rejeita a possibilidade de uma mulher/esposa submissa aos desejos do marido e se impõe como alguém que quer ter sucesso na carreira, uma mulher que trabalha, estuda, faz escolhas, enfim que vive múltiplas identidades sociais.

O sentido que Bárbara constrói de si mesma, de que podia ascender profissionalmente, ao fazer o curso, é uma demonstração de como a educadora se reconhece como alguém que tem e que pode desenvolver qualidades que as preparem para ser professora de creche.

Nos casos relatados, pode-se dizer que as educadoras experimentam sentimentos de negligência em relação à família, de abandono dos filhos, do marido e do lar, ao optarem por freqüentar o curso, devido em parte à posição reservada à mulher na sociedade, como a principal responsável pelo cuidado da casa e da família. Além disso, outros fatores estão presentes neste processo que circunscreve as negociações identitárias das educadoras e a escolha feita pelo curso, como a demanda por um melhor salário para ajudar em casa e o medo de perder a função de educadora e ter de experienciar uma nova situação repleta de incertezas e significada como um retrocesso profissional.

No caso de Letícia, a negociação existiu, mas parece ter sido menos conflituosa porque os filhos e o marido, diferentemente das outras participantes, entenderam e apoiaram de imediato, tanto assumindo as responsabilidades de cuidar da casa quanto a incentivando verbalmente. Essa negociação abriu a possibilidade não só à Letícia de experimentar e assumir novas posições na família, mas também a seus filhos e marido, que se tornaram cuidadores do lar enquanto a educadora trabalhava e fazia o curso.

Léticia: Foi muito bom, tanto que meu filho tinha afastado da escola não queria sabe, agora ele já voltou, porque ele tinha feito um ano de faculdade aí não quis mais, “agora mãe eu vou”... acho que me vê como incentivo né... deu ter voltado, então ele voltou. Meu marido me ajuda demais, porque ele sai do serviço às 6 horas, ele vai para casa e faz janta, ele me ajuda demais, todos eles! Ele os dois meninos, os meninos cuida da casa, faz o trabalho deles, todos os dois trabalham, mas todos eles me ajuda, me incentiva... o serviço de casa bem dizer são eles que fazem, para mim pode fazer o curso direitinho, eu tenho muito apoio deles.

Percebe-se que nesse relato, diferentemente, dos outros três, a negociação das identidades não é de competição ou de conflito, mas sim de cumplicidade e de complementação entre os membros da família.

De educadora à professora: continuidades e mudanças

Ao finalizarem a formação, as educadoras terão obtido o diploma de professoras de educação infantil e, dessa forma, a avaliação do curso serve como indicador dos sentidos sobre ser educador nesse momento. As avaliações feitas pelas educadoras referem a contribuição do curso na construção de um sentido que incorpora, à atividade de educadora, o trabalho de sistematização e planejamento, por meio da escrita. Ainda, essas descrições são acompanhadas de um movimento que faz agregar os novos saberes às práticas já constituídas. Ou seja, os novos saberes (sistematizar e planejar) aparecem não como reconstruções das práticas, mas como processos que ajudam a organizá-las.

Maria: O projeto para trabalhar com a criança mesmo foi a mesma coisa, era o mesmo que a gente já fazia. Mas é o que já te falei, a gente é .. é... a gente sabia como trabalhar, trabalhando ali, como com a criança na adaptação, como fazer, na verdade a gente já fazia. Mas eu não sabia como colocar no papel, sabe? Escrever no papel os objetivos, a observação, o trabalho mesmo da adaptação, isso que eu não sabia colocar no papel. (...) Mas como a gente já sabe fazer, o que a gente faz, terminando o curso, vai ter um tempo mais, então a gente vai fazer bastante mesmo pra gente praticar cada vez mais.

Léticia: As atividades pedagógicas a gente sempre fez para as crianças, a gente sempre dava a... trabalhinho pra eles, a coordenação motora, trabalho com giz, trabalho com papel, trabalho com tinta, a gente sempre fez isso, mesmo antes, mesmo quando era Secretaria do Bem Estar, a gente sempre fez. Quer dizer que foi uma continuação do trabalho né. E depois que veio para Secretaria... mudou só para nós, né. Porque nós tivemos que mudar nossa formação, o educador teve que procurar sua formação... Então o que mudou foi isso, a gente teve que procurar nossa formação.

Também Bárbara e Kátia se expressam quanto às possibilidades de impacto sobre a prática, e conseqüentemente sobre o ser educadora, promovidas pelo curso. Enquanto para Bárbara o saber fazer é algo que não se modifica necessariamente com o curso, Kátia constrói um sentido de que ser educadora hoje é ser alguém que consegue planejar, que interage melhor com as crianças, que favorece o desenvolvimento delas, que se relaciona melhor com seus pares e conversa com mais desenvoltura.

Bárbara: Eu acho assim, o jeito de ser da gente é aquele mesmo, não por falta do estudo, do curso que a gente vai mudar, cê entendeu? Eu vou continuar assim... vou dizer que eu melhorei assim, não!

Kátia: Então, voltar a estudar pra mim foi bom, né, igual eu já citei que na profissão que eu tô hoje, precisa fazer um planejamento, pra gente estar atendendo melhor o desenvolvimento infantil. Então foi bom porque me facilitou bastante, hoje eu consigo fazer um planejamento bem, consigo manter meu dia-a-dia com as crianças... eu acho que mudou bastante a relação com a criança. Hoje, eu consigo... desenvolver meu trabalho melhor, e também com o adulto do local de trabalho, eu acho que eu tô podendo...

Como se verifica, nas avaliações das quatro educadoras, há um misto entre sentidos de um curso que muda, mas também não muda, a prática já estabelecida; misto esse que ora é aparente no próprio conteúdo das falas, ora no uso de expressões que nos ajudam a compreender a posição das participantes em relação à profissão. Enquanto Bárbara fala pela ausência de mudança, e talvez a fala de Letícia também pudesse ser assim interpretada, Maria e Kátia relatam modificações no sentido de uma maior capacidade de planejamento e sistematização da atividade, melhor acompanhamento do desenvolvimento das crianças e melhor relacionamento com as colegas de trabalho. No caso de Maria, ser professor caminha no sentido da sistematização da prática, daquela prática já sabida, aprendida com o trabalho com a criança. Kátia, por sua vez, posiciona-se em relação às exigências da profissão de professora de educação infantil; exigências essas que ela avalia estar atendendo a contento.

Na fala de Letícia, embora haja elementos para uma compreensão que fale a favor da ausência de mudança, no fragmento apresentado há indicações de uma aproximação de Letícia aos repertórios da área. Quando atentamos para o vocabulário a que recorre a educadora, deparamo-nos com a expressão “atividade pedagógica”, acompanhada de exemplos que mostram tipos de atividades com diferentes materiais (giz, tinta, papel). Esse modo de falar é característico de uma área profissional, próprio de alguém que se encontra minimamente em contato com a literatura, o linguajar e as discussões constituintes do ser professora.

Pode-se falar, assim, de uma co-existência de mudanças e continuidades na identidade profissional das educadoras, agora quase professoras. Essa coexistência parece nos indicar a intrínseca aproximação do novo com o já vivido, num movimento dialético de (re)construção de saberes. De acordo com pelo menos duas das educadoras, o curso fornece instrumental para nomear e sistematizar práticas antes executadas sem uma chave de leitura que pudesse ser aplicada além daquela já conhecida e construída no trabalho.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os relatos das participantes vão configurando um ser educadora marcado pelo sofrimento e conflito desde a entrada na profissão, sendo intensificados quando decidem investir na formação. Se o conflito, no início da carreira, se deu em função da ausência de conhecimento e de práticas sociais de organização da profissão dissonantes das necessidades das educadoras, no momento do curso, eles se dão principalmente com familiares e são resultantes das imposições legais que atravessam suas vidas profissionais. Nos dois casos, conflitos vivenciados consigo mesmas e, ao mesmo tempo, com as posições sociais esperadas, atribuídas e assumidas por essas educadoras nas identidades de gênero, de mãe, de filha, de esposa, de professoras. Nas negociações que se estabeleceram, cruzaram-se linhas de identidade, ora complementando a identidade de educadora/professora, ora com ela competindo num movimento de desenvolvimento (ou não) simultâneo.

Dar visibilidade a essas diferentes linhas de identidade significa compreender, ao mesmo tempo, a singularidade de cada história e o grupo social em que essas singularidades são vivenciadas. A história de vida e o desenvolvimento das identidades das educadoras de creche refletem e constroem dialeticamente a história e a identidade dessa instituição. As educadoras de creche constituem um grupo marcado historicamente pelas relações de gênero, pelo fracasso ou abandono da escola e pelo momento de vida que apresenta exigências desenvolvimentais bastante amplas e peculiares. Apesar do número de participantes ser reduzido, suas falas, pela perspectiva assumida no trabalho, não são compreendidas como fala individualizada, mas como fala social. São tanto falas a partir do grupo de educadoras com trajetória semelhante, como falas desses grupos, portando algumas das negociações e conflitos vividos por essa população. Como nos afirma Wallon (citado por Werebe & Nadel-Brulfert, 1986, p. 176), “cada um se mede por comparação não a outros indivíduos como tais, mas a indivíduos pertencentes a uma categoria determinada”. O encontro gerado pela entrevista autobiográfica não produz avaliações individuais, mas sim representativas de grupos sociais.

Uma decorrência dessa consideração é a de que os relatos das educadoras permitem o fornecimento de elementos para que os formadores dos educadores, aqueles que organizam, propõem e avaliam os cursos de formação inicial e ou continuada, estejam sensibilizados para as demandas concretas dessa população em específico.

Essa sensibilidade, além de reconhecer o momento de vida e a história profissional das educadoras, necessariamente requer o seu reconhecimento como agentes de seu desenvolvimento pessoal e profissional e, portanto, faz-se necessário a escuta dessas atoras que, como vimos, construíram saberes na base da experiência, da tentativa e erro, da imitação de modelos e da ação direta com as crianças. Não se pode negar a experiência destas mulheres, construída no dia-a-dia das ações junto às crianças, nas discussões com as companheiras de trabalho, nos projetos de formação que, independente de sua qualidade, foram, de alguma forma, configurando e possibilitando saberes específicos da ação (bem ou mal sucedidos) com crianças pequenas. Como nos alerta Kramer (2001), do ponto de vista dos programas de formação, é necessário que se abstraia a idéia de substituição dos saberes. Há que se partir das experiências já consolidadas para (re)significá-las ou, como nos ensinam nossas educadoras, para, ao menos, a elas agregar-se.

Não tomar essa concepção como ponto de partida, além de desrespeitar as educadoras como agentes da própria ação, desconsidera que os professores possuem saberes da experiência, construídos na ação e no trabalho. Os saberes docentes, de acordo com Tardif (1999) são plurais e heterogêneos. Para o autor, os saberes dos profissionais só têm sentido para os mesmos quando são construídos e modificados em situação de trabalho e quando os educadores são reconhecidos como sujeitos de conhecimento, como pessoas que têm direito de dizer algo sobre sua própria formação. No caso de nossas participantes, a avaliação das possibilidades de contribuição do curso para a modificação nos saberes práticos e no processo de profissionalização das educadoras, deve ser compreendida dentro de uma racionalidade própria da profissão. Segundo Tradif (2002), o saber docente “depende das condições sociais e históricas nas quais ele exerce o ofício e mais concretamente das condições que estruturam seu próprio trabalho num lugar social determinado” (p. 218). Nesse sentido, o processo de profissionalização, relatado pelas educadoras, representa a incorporação de práticas de sistematização e planejamento aos saberes práticos, adquiridos pelas experiências de vida e profissional das educadoras.

Por outro lado, acreditamos que compreender e considerar a experiência das educadoras e a racionalidade de seus saberes, não significa realizar uma apologia aos saberes construídos na prática docente desvinculados de outros saberes oriundos de diferentes espaços e práticas sociais. A própria fala das educadoras, adotando uma postura crítica em relação à falta de conhecimento da atividade e ao aprender com as colegas, aponta para a necessidade de articular esses diferentes saberes. Como Leite (1998) alerta, há a necessidade de uma concreta reflexão teórica que permita “um recuo crítico sobre as concepções vigentes para que elas possam ser reelaboradas” (p. 153). Nessa perspectiva, mais do que somar elementos aos saberes práticos, trata-se de superar uma relação sinérgica entre os saberes e construir a síntese dessa relação.

No caso da educação infantil, o momento exige a superação de práticas assentadas no senso comum e na pedagogia da submissão (Kuhlmann Jr, 1998), o que requer construir uma identidade que supere a exclusão e a dicotomia histórica na área. O curso, nesse sentido, concretizou um marco para algumas das participantes. Embora não se tenha elementos para uma avaliação de seu impacto na prática das educadoras, e nem seja esse o objeto do trabalho, é evidente que sua existência mobilizou negociações identitárias e, do ponto de vista da identidade profissional, os relatos sinalizam para movimentos que articulam continuidades, mas também mudanças no exercício da profissão. Como todo processo de construção de identidade, também a passagem da identidade de educadora para professora de creche, no processo de profissionalização da atividade, parece estar ocorrendo numa negociação que envolve criar e resistir a novas versões de si mesma e de si como profissional. Como afirma Silva (2003, p. 44), a lógica da identidade “compreende tanto a necessidade da persistência como da transformação”. De um ponto de vista bastante concreto, o curso no mínimo reafirmou a identidade docente uma vez que possibilitou que houvesse a manutenção na função e, principalmente, abriu expectativas em relação à construção de uma carreira, impossível de ser pensada antes da promulgação da LDB.

Cabe por fim mencionar que a profissionalização das professoras de creche já contratadas quando da promulgação da LDB, caso por nós aqui discutido, cumpre apenas parte de uma etapa no processo de formação de professores para a educação infantil. A profissionalização da atividade, em função do seu caráter de transição, é complexa e necessariamente requer aprofundamentos que não se limitam apenas a esse profissional, uma vez que, na área, com esses profissionais, convivem professores que possuem magistério ou nível superior.

Concomitante ao cumprimento dessa etapa, outras discussões se fazem imprescindíveis para a consolidação da profissão de docente da educação infantil, seja da perspectiva da construção da carreira, seja da sua contextualização no âmbito das políticas de formação de professores, de uma forma geral, travadas nas diretrizes curriculares e nos cursos de Pedagogia. O estudo lança assim apenas algumas contribuições nesse diálogo necessário e urgente com outros estudos na área.

 

REFERÊNCIAS

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Recebido: 21/02/2008
1ª Revisão: 28/05/2008
Aceite final: 26/06/2008

 

 

1 Endereço para correspondência: Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto. Departamento de Psicologia e Educação. Av. Bandeirantes, 3900, 14040-901, Ribeirão Preto, SP. Fone: (16) 36023659. Fax: (16) 36024835. E-mail: apssilva@ffclrp.usp.br.

 

Sobre os autores
* Delma Rosa dos Santos Bezerra é graduada em Pedagogia pela Universidade de São Paulo, mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, professora da Rede Estadual de Ensino do Estado de São Paulo.
** Ana Paula Soares-Silva é graduada em Psicologia pela Universidade de São Paulo, Mestre e Doutora em Psicologia pela mesma universidade, Professora Doutora do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.

 

ANEXO

Descrição das participantes

 

 

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