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Revista Brasileira de Orientação Profissional

versão On-line ISSN 1984-7270

Rev. bras. orientac. prof v.10 n.2 São Paulo dez. 2009

 

ARTIGOS ORIGINAIS

 

Carreira e saliência dos papéis: integrando o desenvolvimento pessoal e profissional1

 

Career and role salience: integrating personal and career development

 

Carrera y prominencia de los papeles: integrando el desarrollo personal y profesional

 

 

Maria Célia Lassance* 2; Jorge Castellá Sarriera**

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre-RS, Brasil

 

 


RESUMO

O desenvolvimento humano dá-se em uma teia intrincada de relacionamentos, concretizados em papéis sociais. O conceito saliência de papel é definido como a importância relativa de um papel em relação a outros papéis que o indivíduo desempenha. Embora o conceito de saliência de papel esteja presente na literatura internacional em aconselhamento de carreira desde a década de 70, está ausente da literatura produzida no Brasil. Este estudo constitui-se em uma revisão da literatura internacional e objetiva compilar os principais achados da pesquisa na área, identificar instrumentos de medida da saliência e contextualizar a importância deste conceito para a pesquisa e intervenção em orientação de carreira na nova economia global.

Palavras-chave: Saliência, Papéis sociais, Identidade, Desenvolvimento de carreira, Orientação profissional.


ABSTRACT

Human development occurs within an intricate net of relationships which are materialized as social roles. Role salience is defined as the importance given to one social role in particular in comparison which other roles played by an individual. Even though role salience has been presented by international literature since the 70’s, Brazilian literature fails to mention it. This study presents an international literature review and aims to summarize the most relevant findings of researches about role salience, identify salience measurement instruments and emphasize the relevance of this construct for career guidance research and intervention in the new global economy.

Keywords: Role salience, Social roles, Identity, Career development, Career guidance.


RESUMEN

El desarrollo humano se produce en una red intrincada de relaciones, materializadas en papeles sociales. El concepto prominencia de papel es definido como la importancia relativa de un papel en relación con otros papeles que el individuo desempeña. Aunque el concepto de prominencia de papel esté presente en la literatura internacional en orientación de carrera desde la década de los 70, está ausente de la literatura producida en el Brasil. Este estudio constituye una revisión de la literatura internacional y trata de compilar los principales hallazgos de la investigación en el área, identificar instrumentos de medida de la prominencia y contextualizar la importancia de este concepto para la investigación e intervención en orientación de carrera en la nueva economía global.

Palabras clave: Prominencia, Papeles sociales, Identidad, Desarrollo de carrera, Orientación profesional.


 

 

O trabalho é uma das constantes em nossa vida, tendo sua experiência assumido significados diferentes ao longo das épocas históricas e dentre as culturas. Entretanto, é consenso entre teóricos e pesquisadores que o trabalho ocupa posição fundamental na vida das pessoas, como comprova a literatura sobre o tema (Harpaz & Fu, 2002).

Assume-se que o trabalho cumpre algumas funções básicas. O trabalho possui uma função econômica, enquanto fonte de provimento material para o indivíduo e seus dependentes (Blustein, 2006; Sverko & Vizek-Vidovic, 1995). Além desta, possui uma função social que diz respeito a três ordens de recursos: (a) como fonte de reconhecimento social, status e prestígio; (b) como fonte de satisfação das necessidades de convivência e interação (Sverko & Vizek-Vidovic, 1995); (c) como a colocação de esforço, atividade e energia humana em tarefas que contribuem para o bem-estar social e econômico geral em uma dada cultura (Blustein, 2006). Trabalhar também possui um significado muito pessoal que é diretamente influenciado pelas construções individuais e por interações mediadas socialmente com os outros, isto é, possui um significado singular que é derivado de e está inserido em um contexto social específico, que formata e é formatado pela experiência concreta do indivíduo no trabalho (Blustein, 2006). Finalmente, em terceiro lugar, uma função psicológica, enquanto fonte de identidade, auto-estima e realização. Trabalhar fornece às pessoas um modo de estabelecer uma identidade e um senso de coerência nas suas interações sociais. Em outras palavras, o trabalho fornece e molda ao menos uma parte da nossa identidade externa no mundo (Blustein, 2006; Sverko & Vizek-Vidovic, 1995), embora o papel de trabalhador figure diferentemente na vida das pessoas, que não são todas motivadas ao trabalho (Kanungo, 1982).

Mesmo com sua estrutura modificada ao longo do tempo, o trabalho permanece como fator de organização social e referência para a distribuição das diversas atividades relativas às várias dimensões da existência humana em sociedade (Antunes, 1995). A perda de força da ética protestante do trabalho a que se poderia aludir, face ao contexto dos anos 1970 e 1980, foi rejeitada a partir de muitos indicadores empíricos de que uma ética do trabalho - que não se circunscreve nem ao Protestantismo, nem mesmo às regiões geográficas onde se desenvolveu - permanece como ideologia prevalente no mundo do novo capitalismo ocidental e, em certas situações, os trabalhadores sustentam elevados níveis de comprometimento com seu papel de trabalhador, devotando alta energia e muito tempo a suas atividades de trabalho (Sennett, 1985/2008).

O estudo do significado do trabalho tem tomado muitas formas, tanto na estruturação das dimensões quanto nos conceitos em foco. Para Tamayo e cols. (2001), “o vínculo do indivíduo com o seu trabalho é multidimensional e complexo” (p. 27), constituindo-se de dimensões pessoais, como a relação com o trabalho em si ou com a ocupação, com o emprego, com a carreira; dimensões organizacionais como a relação com a cultura e valores organizacionais; e dimensões sociais, como a relação com a organização do trabalho. A literatura é rica em estudos sobre a relação do indivíduo com o trabalho a partir de conceitos como valores de trabalho (Borges, 1997, 1999; Porto & Tamayo, 2003, 2007; Rokeach, 1973; Super, 1995), envolvimento e comprometimento com o trabalho (Bandeira, Marques, & Veiga, 2000; Bastos & Borges-Andrade, 1995; Brandão & Bastos, 1993; Hackett, Lapierre, & Hausdorf, 2001; Kanungo, 1982; Tamayo e cols., 1993; Tamayo e cols., 2001), importância relativa do trabalho (MOW, 1987; Super & Sverko, 1995), centralidade do trabalho (Blanch, 1990; Toni, 2003; Warr, Jackson, & Banks, 1988), denotando um esforço teórico e metodológico para identificar as dimensões e operacionalizar a medida das relações do indivíduo com o trabalho. Uma destas dimensões é a saliência de papel (Amatea, Cross, Clark, & Bobby, 1986; Super, 1980; Super & Nevill, 1986b; Super & Sverko, 1995), objeto do presente estudo.

 

O conceito de saliência de papel

Papéis de vida têm sido tratados como conceito de grande relevância em várias teorias do aconselhamento e desenvolvimento de carreira, desde as concepções de Adler e Erikson até as teorias pós-modernas de carreira (Blustein, 1997; Brott, 2005; Peavy, 1997; Savickas, 1993). Entretanto, a maior parte dos teóricos de carreira credita a Donald Super a incorporação definitiva do estudo dos papéis na compreensão do desenvolvimento de carreira (Brott, 2005).

Com a afirmação de que enquanto o indivíduo trabalha, ele vive sua vida, o maior teórico de carreiras do século XX, Donald Super (1980), lançou a idéia da necessária integração entre os diversos papéis que o indivíduo vive ao longo do ciclo vital, desmistificando, permanentemente, a idéia de que se poderiam realizar clivagens entre o desenvolvimento vocacional/ de carreira e as demais dimensões do desenvolvimento humano. A Teoria Life-Span, Life-Space (Super, 1980; Super, Savickas, & Super, 1996) compreende o desenvolvimento da carreira a partir de duas dimensões conceitual e teoricamente distintas, mas estreitamente relacionadas: uma dimensão longitudinal, Life-span (ciclo de vida) e uma dimensão transversal, o Life-space (espaço de vida). Super (1980) propôs um modelo, o Arco-íris da Carreira (Life-career Rainbow) (Figura 1), no qual a dimensão longitudinal (Life-span, ciclo de vida) é apresentada na extensão do arco e a dimensão transversal (Life-space, espaço de vida) é apresentada nos diversos segmentos que compõem o conjunto dos arcos.

 

 

Figura 1. Arco-íris de carreira. Fonte: Super e cols. (1996, p. 127).

A dimensão longitudinal, a do desenvolvimento, pressupõe que o desenvolvimento vocacional dá-se por meio do enfrentamento das tarefas evolutivas vocacionais demandadas socialmente ao indivíduo e experimentadas como preocupações de carreira, correspondentes, no âmbito da teoria do desenvolvimento vocacional, aos estágios de Crescimento (infância), Exploração (adolescência), Estabelecimento (adultez jovem), Manutenção (maturidade) e Desengajamento (velhice), que constituem uma sequência mais ou menos estabelecida (maxi-ciclos) (Super, 1980; Super e cols., 1996). A outra dimensão diz respeito ao espaço de vida, consubstanciado no desempenho de papéis ao longo do ciclo de vida. O modelo original apresenta seis papéis: Filho (Child), Estudante (Student), Trabalhador (Worker), e papéis relativos ao Tempo Livre (Leisurite), a Serviço Comunitário (Citizen), e à Casa e Família (Homemaker).

Ao longo do ciclo da vida, uma pessoa ocupa várias posições ou papéis e o conjunto dos papéis desempenhados em um dado momento de vida define o estilo de vida (Super, 1957, 1980). Uma pessoa pode, ao longo da vida, desempenhar todos ou alguns destes papéis, alguns sequencialmente e outros simultaneamente, como ocorre na maturidade. Também pode desempenhar um mesmo papel, mas de forma adequada às demandas sociais para os diferentes estágios de vida, como no caso do papel de Filho, que é diferente na infância, na adolescência e na vida adulta, quando o filho pode desempenhar seu papel como uma pessoa que cuida dos pais idosos. Assim também o papel de Trabalhador possui demandas de inserção, comprometimento e progresso diferenciados ao longo da vida.

A sequência e a integração entre as diversas posições ou papéis que uma pessoa desempenha ao longo da vida definem a carreira (Super, 1957, 1980), sendo a carreira profissional “... a sequência ou combinação de posições profissionais ocupadas ao longo da vida” (Super, 1980, p. 286). Savickas (2001) reforça esta definição, propondo que se utilize o termo “carreira vocacional ou profissional” para designar a trajetória de uma pessoa em termos do papel de trabalho, para diferenciar das outras possíveis carreiras, vinculadas aos outros papéis de vida, como, por exemplo, carreira parental, de estudante ou filho.

“Papéis estruturam a vida e lhe conferem significado” (Super, 1980, p. 288). Assim, diferentes estilos de vida são constituídos pelas relações concretas do indivíduo com cada um dos papéis e com a totalidade de papéis que desempenha em determinado momento da vida. Papéis podem ser centrais em determinados momentos e, em outros, podem tornar-se periféricos ou mesmo inexistentes (Super, 1980; Super e cols., 1996). Esta organização particular dentre diversos papéis, determina um padrão que organiza, canaliza e tipifica o engajamento do indivíduo na sociedade, sendo que os papéis centrais constituem “o cerne de quem o indivíduo é; são fundamentais para a sua identidade e essenciais para a sua satisfação de vida” (Savickas, 2002, p. 159).

Para a Teoria da Identidade (Stryker, 1980; Stryker & Burke, 2000), a identidade de papel pode ser definida como a internalização das expectativas de papel que definem o autoconceito (Hogg, 2000; Ng & Feldman, 2007; Stryker & Burke, 2000). Os autoconceitos são constituídos pelos significados que o indivíduo atribui aos múltiplos papéis que desempenha na sociedade. Para Super (1963), autoconceitos são “o retrato do indivíduo sobre si mesmo, o self percebido com significados recorrentes. Uma vez que a pessoa não pode atribuir significado a si mesma no vácuo, o conceito do self é, geralmente, um retrato de si em algum papel, alguma situação, em alguma posição, exercendo uma série de funções ou em alguma teia de relações” (p. 18).

A identidade de papel constitui-se em um esquema cognitivo (informações estocadas internamente e significados) que serve como estrutura para interpretar a experiência. Assim, constitui-se em uma base cognitiva para definir situações e aumenta a sensibilidade e a receptividade a determinados comportamentos. A importância da identidade de papel torna maior a probabilidade de uma dada identidade de papel ser evocada por um indivíduo em várias situações bem como por várias pessoas frente a uma dada situação (Stryker & Burke, 2000).

Cada papel constitui-se num conjunto de expectativas sociais atribuídas às posições ocupadas na rede de relacionamentos (Stryker & Burke, 2000; Super, 1980), bem como às concepções do próprio ator social acerca do papel em questão (Super, 1980). Entretanto, o desempenho de papéis não se constitui apenas em um desempenho comportamental: papéis objetivam segmentos da personalidade em termos de tipificações socialmente legitimadas e definem que tipo de ator social o indivíduo é, bem como as expectativas sociais sobre desempenhos concretos (Berger & Luckmann, 1966/2002). Isto é, a sociedade é um mosaico organizado de inter-relações e relacionamentos relativamente padronizados e duradouros, imersos em uma variedade de grupos, organizações, comunidades e instituições que formam uma rede intrincada pela intersecção das fronteiras entre variáveis sociais como classe, etnia, idade, gênero, religião, dentre outras. A estrutura social externa dada atua como uma rede de fronteiras que afetam a probabilidade de as pessoas se inserirem em determinadas relações (Stryker & Burke, 2000). O indivíduo, por sua vez, lança mão de aspectos variados de sua identidade ao ocupar posições (ou desempenhar papéis) nesta rede de relações sociais (Stryker, 1980).

Burke (1991) propôs um modelo de quatro dimensões para explicar como significados do self relacionam-se com comportamentos. A primeira dimensão constitui-se na identidade padrão, isto é, o conjunto de significados culturalmente prescritos que define a identidade de papel de uma pessoa em determinada situação. A segunda dimensão refere-se à percepção da pessoa acerca dos significados inerentes à situação, em relação aos significados da identidade padrão. A terceira dimensão é o comparador, isto é, o mecanismo que compara os significados percebidos da situação com os significados pertencentes à identidade padrão. E, finalmente, a dimensão do comportamento ou ação da pessoa, que é uma função da diferença entre as percepções e o padrão. O comportamento caracteriza-se por uma ação organizada de forma a modificar a situação e, portanto, os significados relevantes sobre si mesmo, de forma a torná-los congruentes com a identidade padrão, processo denominado auto-verificação.

Dificuldades na auto-verificação geram sentimentos negativos de discrepância e levam à tentativa de modificação da situação ou à criação de novas situações (Stryker & Burke, 2000), bem como à redução do comprometimento com o papel em questão (Burke & Reitzes, 1981). Por outro lado, sucesso na auto-verificação leva a emoções positivas de congruência e bem-estar e ao reforço da importância do papel em questão (Stryker & Burke, 2000; Stryker & Serpe, 1994).

 

A pesquisa sobre saliência de papel

Dentre os projetos internacionais sobre a importância do trabalho, destaca-se o Work Importance Study (WIS) que, sob a direção geral de Donald Super, investigou a “importância relativa do trabalho em comparação com outras atividades e recompensas que jovens e adultos buscam em seus principais papéis, especialmente o papel de trabalhador” (Ferreira-Marques & Miranda, 1995, p. 62). O estudo objetivou, especificamente, clarificar o construto de saliência do trabalho e relacioná-lo a valores de trabalho e motivação para o trabalho, entretanto, diferencia-se de outros projetos na medida em que considerou o papel de Trabalho em relação a outros papéis e atividades de vida.

O WIS constituiu-se em um consórcio entre pesquisadores localizados em onze países: Austrália, Bélgica, Canadá, Croácia, Israel, Itália, Japão, Polônia, Portugal, África do Sul e EUA. Através de doze conferências internacionais, o modelo de Importância do Trabalho foi refinado e adaptado às diferenças culturais presentes nas amostras. Este esforço sistemático produziu dois instrumentos, a WIS Value Scale (VS) (Super & Nevill, 1986a) e o Salience Inventory (SI) (Super & Nevill, 1986b). Cada projeto nacional aplicou os instrumentos em três amostras: adolescentes de ensino médio, universitários e adultos.

O modelo de importância de papel assumido pelo WIS (Super & Sverko, 1995) (Figura 2) define os construtos e organiza os vetores de determinação para qualquer papel social. Comprometimento (ligação afetiva), Participação (utilização de tempo e esforço) e Conhecimento são variáveis distintas e básicas para a determinação de importância de um papel. A combinação de cada duas variáveis constitui um nível intermediário: Comprometimento com Participação produz Envolvimento; Participação com Conhecimento produz Engajamento e Comprometimento com Conhecimento produz Interesse. Desta forma, Importância constitui-se em Envolvimento, Interesse e Engajamento.

 

 

Figura 2. Modelo de importância do trabalho (WIS). Fonte: Ferreira Marques e Miranda (1995, p. 66).

Algumas características do WIS o distinguem e valorizam como modelo de trabalho. Em primeiro lugar, sua revisão da literatura catalisou os principais estudos relativos à importância, sentido e significado do trabalho, operacionalizando e refinando conceitos muitas vezes superpostos, de terminologia confusa e de escopo restrito (Super, 1982). Em segundo lugar, o estudo não se limita ao papel social de trabalhador; apesar de considerar sua relevância para a definição de uma identidade social na atualidade e ter como objetivo secundário a investigação desta identidade de trabalhador, estuda o papel de trabalho através de suas relações com outros papéis desempenhados pelos atores sociais. Assim, permite a compreensão do estilo de vida, mais do que a relação do indivíduo com o trabalho, apenas uma das esferas que constituem o estilo de vida. Esta extensão do construto de importância do trabalho permite uma visão mais ampla e complexa das circunstâncias de vida de um indivíduo, que incluem o desempenho simultâneo de papéis.

A multiplicidade de papéis desempenhados pelo indivíduo pode, em determinados momentos da vida, gerar conflitos de ordem quantitativa (por exemplo, quando os papéis simultâneos demandam grande quantidade de tempo) ou qualitativa (por exemplo, quando os papéis desempenhados simultaneamente demandam orientações valorativas conflitantes) (Gouws, 1995; Sverko, Babarovic, & Sverko, 2008). Muitos estudos sustentam a hipótese de que a simultaneidade no desempenho de papéis pode enriquecer a vida e ser uma fonte de satisfação, uma vez que a diversidade de papéis pode auxiliar o indivíduo a dar vazão a um maior número de habilidades, interesses e valores (Kanungo, 1982; Super, 1980; Super e cols., 1996). Entretanto, outros estudos demonstraram que indivíduos que desempenham múltiplos papéis que percebem como importantes e conflitantes, encontram dificuldades em comprometer-se igualmente com estes papéis (Perrone & Civiletto, 2004; Super, 1980; Thoits, 1983), como ocorre com o papel de trabalhador, quando há alto comprometimento com os papéis ligados à família (por exemplo, Biggs & Brough, 2005; Frone, Russel, & Barnes, 1996; Ng & Feldman, 2007) ou especificamente com o papel parental (por exemplo, Day & Chamberlain, 2006; Eagle, Icenogle, Maes, & Miles, 1998; Ford, Heinen, & Langkamer, 2007).

Muitos estudos têm investigado a qualidade do balanço entre papéis familiares e de trabalho, verificando a interface entre estes dois domínios através da interferência da família no trabalho (FWC) e da interferência do trabalho na família (WFC), uma vez que, para os adultos, estes domínios apresentam-se como os mais salientes. Embora alguns resultados indiquem não haver diferenças em comprometimento nos papéis familiares e de trabalho entre homens e mulheres (Nevill & Perrota, 1995; Reitzes & Murtan, 1994), a grande maioria aponta para maior participação e comprometimento das mulheres em relação à esfera doméstica, o que acarreta maior conflito na interface família e trabalho, índices mais elevados de distress e menor percepção de bem-estar (Chi-Ching, 1995; Duarte, 1993; Eagle e cols., 1998; Fuss, Nubling, Hasselhorn, Schwappach, & Rieger, 2008; Jansen, Kant, Kristensen, & Nijhuis, 2003; Madill, Brintnell, Macnab, Stewin, & Fitzsimmons, 1988; Patel, Beekhan, Paruk, & Ramgoon, 2008). Kulik (2000) verificou que as mulheres apresentam menor centralidade e menor importância do papel de trabalhador do que homens e tendem a rejeitar trabalhos que ocasionem conflitos com as responsabilidades familiares, enquanto que os homens, para quem o trabalho possui maior centralidade e importância, tendem a despender mais tempo na busca de trabalho e sentem o desemprego como mais estigmatizante do que as mulheres. Estudos a partir da tipificação de gênero demonstraram que as mulheres tipificadas masculinas apresentam maior saliência do trabalho do que as mulheres andróginas ou indiferenciadas (Yanico, 1981), homens e mulheres tipificados percebem maior culpa na interferência da família no trabalho, enquanto que homens e mulheres andróginos percebem maior interferência do trabalho na família (Livingston & Judge, 2008). Além disto, Yanico (1981) também relata ter observado que as mulheres liberais apresentaram maior saliência no papel de trabalhadora do que as conservadoras, salientando a condição cultural do desenvolvimento do papel de trabalhador. Com relação às interações entre características pessoais e o contexto, Witt e Carlson (2006) investigaram a interferência das questões familiares no desempenho no trabalho (FWC) em relação a diferenças individuais em conscienciosidade e apoio organizacional percebido, concluindo que o FWC tem maior impacto negativo nos trabalhadores mais conscienciosos e que percebem menor apoio organizacional.

Wadsworth (2003) estudou saliência de identidade dentre cinco papéis: de trabalho, conjugal, parental, de serviço comunitário e tempos livres, em relação a conflito ou reforço entre trabalho e família e suporte social percebido. Com relação à saliência de identidade, verificou que, na medida em que a saliência do papel de trabalho aumenta, a interferência das questões familiares no trabalho decresce, sugerindo que quanto mais forte for a saliência da identidade de trabalhador, menor a possibilidade de experimentar conflitos entre família e trabalho, uma vez que alta saliência da identidade de trabalhador leva a uma clareza de prioridades. A autora explica este achado, que contraria muitos dos estudos em multiplicidade de papéis, valendo-se da teoria da identidade, que afirma que as pessoas realizam escolhas que reafirmem suas identidades de papel salientes (Stryker, 1980). Por outro lado, o conflito entre os papéis familiares e de trabalho foram maiores dentre os participantes que possuíam maior saliência no papel familiar, uma vez que percebem maior interferência das questões familiares nas atividades de trabalho.

No âmbito brasileiro, Paschoal e Tamayo (2005) investigaram a influência da interferência família-trabalho e dos valores de trabalho sobre o estresse ocupacional com 237 bancários. Os resultados apontam que quanto maiores os escores de interferência, maior o estresse ocupacional.

A saliência é mediada pelo nível sócio-econômico (Krau, 1989). As diferenças entre homens e mulheres em participação no trabalho diminuem na medida em que o nível ocupacional se eleva, embora mulheres em todos os níveis ocupacionais reportem maior participação nos papéis ligados a Casa e Família (Madill e cols., 1988). Entretanto, as mulheres experimentam maior conflito entre papéis ligados a Casa e Família e o papel de trabalhadora quando possuem um trabalho de baixo status do que quando possuem um trabalho de alto status, a despeito da maior pressão e demanda de tempo das ocupações de mais alto status (Ammons & Kelly, 2008; Nevill & Damico, 1978). Krau (1989) em estudo com uma amostra israelense verificou que estudantes de baixo nível socioeconômico, ao contrário de estudantes de alto nível socioeconômico, demonstram alta saliência para Estudo e baixa saliência para Trabalho, por atribuírem ao estudo a possibilidade de uma inserção mais qualificada, no futuro, no mercado de trabalho.

Estudos com adolescentes de ensino médio indicam, em geral, que o papel mais saliente nesta etapa de vida é o de Tempo Livre, seguido de Trabalho, Casa e Família, Estudo e Serviço Comunitário (Super & Nevill, 1986b; Sverko, 2001; Sverko & Super, 1995). As jovens apresentaram escores mais altos que os rapazes em comprometimento com Casa e Família e Trabalho (Farmer, 1983) e em participação no Estudo e Casa e Família, bem como nas expectativas de valor para Casa e Família (Munson, 1992). Os meninos apresentaram escores mais altos em participação no Trabalho (Munson, 1992).

Estudantes universitários apresentaram escores mais moderados em Tempo Livre, mas o padrão geral segue o mesmo dos estudantes de ensino médio (Sverko, 2001; Sverko & Super, 1995), com maior comprometimento e participação destes nos papéis de Trabalho e maior comprometimento do que estudantes de ensino médio em Casa e Família. O estudo de Helms (1991, citado por Niles & Goodnough, 1996) verificou que estudantes mais velhos, inseridos no mercado de trabalho, casados e com filhos, apresentavam escores mais altos em comprometimento com Estudo e Casa e Família do que estudantes solteiros. Estudos demonstraram que as moças apresentavam escores de participação e comprometimento mais altos que os rapazes em Trabalho (Luzzo, 1994; Nevill & Super, 1984, Super & Nevill, 1986b; Watson & Stead, 1990), entretanto, esperavam realizar mais valores em Casa e Família (Eschbach, 1994, citado por Niles & Goodnough, 1996; Nevill & Super, 1988) e menos valores em Trabalho (Super & Nevill, 1986a). Um estudo conduzido por Lima (2001) com estudantes universitários portugueses revelou que as estudantes apresentavam escores mais elevados em Participação nos papéis relativos a Estudo e Casa e Família e em Comprometimento com o papel de trabalhador do que os rapazes e, tanto os rapazes quanto as moças, apresentaram escores mais elevados na saliência do papel de Tempo Livre, corroborando os estudos originais do grupo do WIS.

Ng e Feldman (2007), em estudo que objetivou incrementar a literatura conceitual sobre a transição escolatrabalho (definida como o período entre a saída da escola e a inserção no mercado de trabalho), utilizando a teoria da identidade, apresentaram um modelo de estudo em oito proposições teóricas, onde saliência de identidade de trabalhador foi definida como no WIS, por participação, comprometimento e expectativa de valor atribuídos ao papel de trabalhador. As proposições colocam que alta saliência da identidade de trabalhador é um preditor direto do sucesso na transição. Aqui sucesso na transição escolatrabalho foi definido como a “situação na qual o indivíduo está empregado após deixar a escola, apresenta desempenho considerado aceitável pelo empregador e possui atitudes positivas em relação ao seu ambiente de trabalho e aos requisitos do emprego” (p. 116). Sucesso na transição tem efeito no senso de auto-eficácia de jovens adultos acerca de suas habilidades de tomada de decisão, suas habilidades de enfrentamento das tarefas evolutivas, estabilidade das escolhas de carreira, velocidade de aprendizagem de novas tarefas e responsabilidades e o nível de adaptação com o ambiente e os colegas de trabalho. Saliência de identidade de trabalhador também atenua parcialmente os efeitos das políticas econômicas e educacionais que afetam o trabalho, das estratégias muitas vezes equivocadas de seleção das organizações, da socialização organizacional e o efeito do apoio de colegas, amigos e familiares no sucesso do processo de transição escola-trabalho. Assim, conclui-se que a principal tarefa enfrentada por jovens adultos durante a transição escola-trabalho é desenvolver um alto nível de identificação com o papel de trabalhador.

Estudos do WIS com adultos indicam que o papel mais saliente nesta etapa de vida em todas as amostras pesquisadas foi o de Trabalhador, seguido proximamente de Casa e Família. O papel relativo a Tempo Livre passa a ocupar a terceira posição, distante, seguido de Estudo e, por último, como nas amostras anteriores, os papéis ligados ao Serviço Comunitário (Sverko & Super, 1995). Além disto, comprometimento com o papel de Trabalho aumenta moderadamente nas amostras de jovens de ensino médio, de universitários a de adultos. As mesmas diferenças foram encontradas entre jovens e adultos trabalhadores e entre jovens e adultos desempregados. As diferenças na saliência entre adolescentes, universitários e adultos, antes de indicar uma mudança social em valores, indica, simplesmente que “a maturidade afeta a saliência” (Sverko & Super, 1995, p. 353).

Além dos estudos do WIS, vários outros estudos transculturais e multiculturais foram realizados, como os de Nevill e Nazario (1995) com imigrantes cubanos, Watson e Stead (1990) com adolescentes sul-africanos, Watson, Stead e De Jager (1995) com universitários sulafricanos brancos e negros, Nevill (1995) com estudantes de ensino médio nos EUA, Canadá e Portugal. Estes estudos demonstram que o conceito de saliência é uma medida sensível para diferenças culturais em avaliação de estilo de vida e hierarquia de atividades, bem como na avaliação da identidade de papel de grupos diferentes de atores sociais dentro de um mesmo grupo cultural. Por exemplo, Niles e Goodnough (1996), apontam que, ao comparar adolescentes ajustados com adolescentes de risco, verificaram que os adolescentes de risco têm menor comprometimento com papéis de Serviço Comunitário e de Tempo Livre. Grzywacz e cols. (2007), em estudo com imigrantes latinos em uma indústria, verificaram pouco conflito entre trabalho e família, sendo que o conflito existente estava mediado por injunções culturais de gênero (mulheres apresentaram maiores níveis de conflito entre trabalho e família do que homens), entretanto, não havia interação entre conflito e saúde. Estes autores recomendam que os modelos tradicionais de pesquisa sobre a interação entre estes dois domínios devem ser revistos, a fim de refletirem as necessidades e circunstâncias das populações diversas na nova economia global.

Muitos estudos têm avaliado a relação entre saliência do papel de trabalhador em face de diversas variáveis significativas do desenvolvimento de carreira. Greenhaus (1971) investigou o papel da saliência de carreira na escolha e satisfação ocupacional em homens e mulheres, verificando que saliência de carreira estava positivamente correlacionada com o grau de percepção de congruência com a ocupação entre os homens e com a escolha de uma ocupação considerada ideal entre as mulheres. Nurmi, Salmela-Aro e Koivisto (2002) apontaram que os jovens adultos que vêem seus papéis de trabalho e seus objetivos relativos ao trabalho como importantes têm menor probabilidade de ficarem desempregados e têm mais possibilidades de encontrar um trabalho congruente e satisfatório. Alta saliência do papel de trabalhador tende a estar ligada a menores escores em indecisão (Greenhaus & Simon, 1977), o que pode ser parcialmente mediado pelo efeito de maior exploração de si e do mundo do trabalho (Greenhaus & Sklarew, 1981; Stumpf & Lockhart, 1987; Sugalski & Greenhaus, 1986). No estudo de Stumpf e Lockhart (1987), saliência apresentou correlação positiva com crenças na instrumentalidade da exploração e na importância de obter a ocupação preferida. Super e Nevill (1984, citado em Super & Nevill, 1986b) verificaram que as estudantes americanas de ensino médio com altos escores em comprometimento com Trabalho tendiam a obter escores mais altos em maturidade vocacional (prontidão para realizar escolhas vocacionais). Duarte (1993, 1995), testando o modelo de adaptabilidade de carreira de Donald Super, por meio da avaliação de preocupações de carreira, valores e saliência numa amostra de trabalhadores empregados em uma fábrica portuguesa, obteve achados congruentes com as demais avaliações do WIS, além de verificar a independência das três dimensões pesquisadas, concluindo pela reafirmação da utilização destes instrumentos para pesquisa e aconselhamento.

Saliência do trabalho também apresenta associação com auto-estima, como demonstrado, por exemplo, nos estudos de Greenhaus (1971) e Greenhaus e Simon (1976), que verificaram uma correlação positiva entre saliência de carreira e a avaliação da ocupação escolhida como congruente ou ideal; estes jovens adultos viam a ocupação escolhida como ideal quando satisfaziam suas necessidades intrínsecas. Reitzes e Murtan (1994), avaliando saliência em adultos, afirmaram que a centralidade do papel de trabalhador estaria relacionada com menor auto-estima, enquanto que a importância do papel de trabalhador estaria relacionada à maior auto-estima, sugerindo que maior centralidade poderia exigir um tempo excessivo no papel, o que pode levar a dificuldades de participação em outros papéis importantes.

Algumas questões de carreira emergiram com as transformações nas relações de trabalho e vêm gerando uma quantidade considerável de pesquisas. Estudos com casais com dupla carreira salientam a importância do apoio mútuo na distribuição e realização das tarefas domésticas como moderador de stress relacionado ao conflito entre trabalho e família, principalmente nas mulheres e em casais com filhos (Bakker, Demerouti, & Dollard, 2008; Eagle e cols., 1998; Janzen, Muhajanine, & Kelly, 2007; Naidoo & Jano, 2003). Também uma questão contemporânea, muitos estudos dedicam-se às dificuldades encontradas por pais solteiros em lidar com as demandas de trabalho e cuidados dos filhos (por exemplo, Dockery, Jianghong, & Kendall, 2009; Eagle e cols., 1998; Janzen e cols., 2007). O trabalho com horário flexível, o trabalho autônomo, a transferência do local de trabalho para o espaço doméstico, possibilitado pelo desenvolvimento das comunicações têm sido apontados como moderadores do conflito entre papéis de trabalho e familiares, uma vez que favorecem o convívio familiar e a organização pessoal das tarefas dos trabalhadores com responsabilidades com o cuidado da casa e de filhos (por exemplo, Behson, 2002; Golden, Veiga, & Sinsek, 2006; Fursman & Zodgekar, 2009).

 

A avaliação da saliência de papel: instrumentos e técnicas de intervenção

O principal instrumento para avaliação da saliência é o Salience Inventory (SI) (Super & Nevill, 1986b) desenvolvido para a pesquisa e aconselhamento de carreira no âmbito do projecto WIS. O SI avalia saliência de papel definida como a importância relativa de um papel em relação a outros papéis desempenhados por um indivíduo, para cinco papéis, referentes a atividades em estudo (studying), trabalho (working), serviço comunitário (community service), casa e família (home and family), e tempo livre (leisure activities).

O SI constitui-se em um inventário de 170 itens, divididos em três sub-escalas. A primeira sub-escala, Participação, comportamental em conteúdo, avalia o tempo despendido nos cinco papéis, através da classificação de dez afirmações na grade de respostas fornecida, para cada um dos cinco papéis, perfazendo um total de 50 itens. A segunda sub-escala, Comprometimento, afetiva em conteúdo, avalia a ligação afetiva, isto é, as atitudes, em relação aos papéis, através da classificação de dez afirmações na grade de respostas fornecida, para cada um dos cinco papéis, perfazendo um total de 50 itens. A sub-escala de Expectativa de Valor, também afetiva em conteúdo, mede atitudes em relação aos papéis, avaliando o quanto uma pessoa espera realizar os 14 valores (da versão americana) indicados em cada um dos papéis. O respondente, então, deverá avaliar catorze afirmações, referentes a catorze valores, indicando o quanto espera realizá-los em cada um dos cinco papéis, perfazendo um total de 70 itens. A apuração é feita através da soma dos escores atribuídos aos papéis para cada uma das sub-escalas.

Uma medida semelhante de saliência também pode ser obtida através da Life Role Salience Scales (LRSS) (Amatea e cols., 1986) desenvolvida para avaliar o manejo de demandas entre os papéis Profissional e familiares, discriminando estes papéis familiares como Conjugal, Parental e Cuidados Domésticos.

Na LRSS cada um dos papéis (Profissional, Conjugal, Parental e Cuidado com a Casa) é avaliado através de uma dimensão valorativa (o quanto o papel é um importante meio de autodefinição ou satisfação) e uma dimensão atitudinal (o quanto o indivíduo está disposto a investir em termos de recursos de tempo e energia para ser bem sucedido no desempenho do papel ou para desenvolvê-lo).

A escala final constitui-se em oito sub-escalas de respostas tipo Lickert que variam em termos de concordância com afirmações. As duas primeiras sub-escalas referemse a afirmações sobre o papel Profissional, seguindo-se duas referentes ao papel Parental, duas referentes ao papel Conjugal e, finalmente, duas referentes ao papel de Cuidados da Casa, sendo que para cada papel, uma subescala avalia o valor atribuído ao papel e a outra o comprometimento com o papel.

Até onde se pesquisou, não há, no Brasil, instrumento que avalie saliência de papéis. A pesquisa brasileira em aconselhamento de carreira tem se dedicado a estudos qualitativos descritivos (Sarriera, 2007; Teixeira, Bardagi, Lassance, & Silva, 2007), em detrimento do desenvolvimento de instrumentos de pesquisa que possam mapear tendências de comportamento ou mesmo identificar padrões para a população brasileira, o que tem dificultado o desenvolvimento da teoria no contexto brasileiro e mesmo estudos comparativos transnacionais. Os autores deste estudo estão realizando a tradução e adaptação destas escalas (SI e LRSS) para a população brasileira, esperando, assim, contribuir para o desenvolvimento da pesquisa e intervenção em aconselhamento de carreira no país.

Entretanto, a avaliação da saliência também tem sido realizada a partir de técnicas qualitativas de aconselhamento descritas, principalmente, pelos teóricos da vertente do construtivismo (Brott, 2001, 2005; Savickas, 2005).

Em artigo sobre o trabalho com papéis de vida na intervenção constutivista na carreira, Brott (2001) descreve algumas técnicas de representação gráfica. Por exemplo, a técnica de Círculos da Vida solicita ao cliente que identifique os principais papéis que desempenha atualmente e, em uma folha de papel branca, represente estes papéis através de círculos cujo diâmetro deverá significar a importância ou a quantidade de tempo despendida em cada um, bem como suas relações, representadas por meio da colocação dos círculos no espaço da folha, indicando conflito, complementação ou compensação. Numa outra folha de papel, o cliente refaz a representação dos papéis, porém, desta vez, deverá identificar suas expectativas para o futuro em termos de seu desempenho. A técnica Análise dos Papéis de Vida solicita ao cliente que identifique e relate mensagens parentais acerca da família e do trabalho e, então, reflita sobre conseqüências positivas (benefícios) e negativas (custos) destas mensagens. O orientador poderá inserir estas mensagens no contexto mais abrangente das expectativas sociais para uma avaliação mais ampla por parte do cliente. Savickas (2002, 2005), a partir da teoria da Construção da Carreira, propõe a identificação de significados relacionados aos três componentes da teoria: personalidade vocacional, adaptabilidade e temas de vida. Personalidade vocacional é definida como o conjunto das características como as habilidades, necessidades, valores e interesses, que são inicialmente expressas nas profissões, mas podem também se expressar em atividades nos outros papéis que o indivíduo desempenha. Estas características podem estar organizadas em uma taxonomia como a proposta por Holland (1997), entretanto, esta serve como uma base de comparação de semelhanças com um esquema de tipificação aceito socialmente e que facilita ou simplifica a reflexão do cliente acerca de sua auto-organização dentro deste contexto. Adaptabilidade refere-se à maneira pela qual o indivíduo conecta-se com o seu contexto e constrói a sua carreira, isto é, um construto psicossocial que denota a prontidão e os recursos do indivíduo para lidar com tarefas de desenvolvimento vocacional previsíveis, transições ou situações imprevistas. Finalmente, os temas de vida, o componente narrativo denota o porquê das escolhas. “O significado essencial da carreira e a dinâmica da sua construção é revelada em histórias de auto-definição acerca das tarefas, transições e rupturas que um indivíduo enfrenta” (Savickas, 2005, p. 58). Narrativas dão significado aos acontecimentos passados e presentes e delineiam o futuro, os temas de vida são padrões contidos nas diversas narrativas do cliente. O orientador deve estar atento aos elementos que unem as diversas narrativas, aos padrões, e não aos fatos em si, em geral complexos e contraditórios. Assim, a teoria da Construção da Carreira propõe a entrevista como principal instrumento de avaliação e intervenção. Instrumentos padronizados podem ser utilizados eventualmente, mas como forma de oferecer repertório e bases para reflexão.

Técnicas qualitativas de base construtivista visam, basicamente, à construção conjunta entre orientador e cliente de uma nova perspectiva de futuro, por meio da ampliação da definição de carreira do cliente, em geral, limitada ao papel de trabalho, incluindo, nesta concepção mais ampla, outros papéis de vida desempenhados no passado e no presente e seus significados. Para tanto, Brott (2001) propõe que o processo de aconselhamento deve questionar o contexto presente do cliente por meio da inter-relação entre os diversos papéis de vida para além do papel de trabalho e explorar a origem dos seus valores e crenças, avaliando-se sua importância e determinando como estes valores e crenças podem ser vistos em capítulos futuros da sua história de vida. Além disto, a intervenção deve auxiliar o cliente a identificar o discurso dominante acerca dos diversos papéis e auxiliá-lo a compreender a importância e os significados que atribui a estas expectativas sociais e a influência que possuem em suas escolhas profissionais, promovendo, assim, condições de avaliação da auto-verificação realizada pelo cliente.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A complexificação da estrutura laboral ocorrida a partir da segunda metade do século XX acarretou aos trabalhadores de todos os níveis de qualificação consequências para a construção e reformulação de estratégias de enfrentamento de barreiras e estilos de tomada de decisão (Almeida, 2006). As barreiras ao acesso, permanência e progresso são cada vez mais frequentes e mais difíceis de ultrapassar (Coimbra, Parada, & Imaginário, 2001; Lassance, 2005), tanto pelas exigências profissionais de conhecimentos e qualificação técnica, quanto pelas exigências de competências pessoais - cognitivas, motivacionais e emocionais, necessárias ao desempenho profissional (Alberici & Serreri, 2005). A globalização da economia, as tendências demográficas e a revolução tecnológica alteraram quantitativa e qualitativamente a relação do indivíduo com o meio sócio-cultural a que pertence, levando-o a lidar com um ambiente de incerteza e imprevisibilidade constantes (Coimbra e cols., 2001; Lassance & Sparta, 2003).

A intervenção em desenvolvimento de carreira, ao longo do tempo, também se alinhou a estas mudanças contextuais, de forma a atender com mais eficiência aos temas de carreira com os quais os indivíduos se defrontam na atualidade. O aconselhamento de carreira que surgiu como resposta às mudanças demográficas e necessidades econômicas e sociais do século passado, como prática que essencialmente articula indivíduos e suas realidades concretas, deve acompanhar a configuração das estruturas socioeconômicas mutantes. A conveniência destas mudanças para a prática da intervenção de carreira fica clara quando se observa o crescimento de fenômenos como o afrouxamento do contrato social e, consequentemente psicológico, entre empregados e empregadores, calcados nos processos de desemprego global, redução estrutural das corporações e mudanças nas relações de trabalho, como a oferta de serviços de cuidados de crianças nas empresas ou a extensão de períodos de licença-maternidade aos pais, o número de famílias que necessitam ter dupla renda, o número de pessoas que trabalham em casa, a crescente globalização e mobilidade dos trabalhadores, entre outros. Fica evidente que as pessoas devem lidar com novas tarefas e adquirir novas estratégias de enfrentamento, e os modelos simplistas combinatórios e propostos como culturalmente universais já não dão conta destas necessidades (Brott, 2005; Duarte & Rossier, 2008; Niles & Harris-Bowlsbey, 2005; Savickas e cols., no prelo).

As teorias de carreira contemporâneas apontam para uma mudança nas dimensões a serem consideradas, todas na direção de se oportunizar ao cliente condições de auto-afirmação pelo encorajamento a um compromisso com a própria cultura e com a comunidade, tanto quanto oportunizar a compreensão de suas próprias questões de carreira e aprendizagem de como desenvolver e expressar seus valores e crenças num mundo concreto globalizado, mutante, marcado por incertezas e alta exigência de qualificações. Estas dimensões podem ser identificadas a partir das teorias que apresentam mudanças em relação a: (a) maior atenção à importância dos valores culturais e pessoais nas decisões de carreira (Brown, 2002; Gottfredson, 2002, 2005); (b) à substituição da objetividade das propostas combinatórias pelo aconselhamento que auxilia o cliente no esclarecimento e articulação dos significados que busca para expressar suas atividades de trabalho e, assim, construir sua carreira (Anderson & Niles, 2000; Savickas, 2002; Young, Valach, & Collin, 2002); (c) ênfase na questão multicultural (Duarte & Rossier, 2008; Niles & Harris-Bowlbey, 2005; Sue, Arredondo, & McDavis, 1992); (d) foco na multiplicidade de papéis que um indivíduo desempenha ao longo da vida (Brott, 2001, 2005; Niles & Harris-Bowlbey, 2005; Savickas, 2002, 2005, Savickas e cols., no prelo).

Assim, a “grande narrativa” (Super, 1957) que, no século XX, previa um desenvolvimento linear através de tarefas evolutivas ligadas a etapas de vida de sequência rígida (cujo momento de enfrentamento indicava o grau de maturidade, pressupondo certa estabilidade do contexto e do desenvolvimento do indivíduo), passa a ser vista como apenas uma dentre as narrativas possíveis (Savickas, 2005). As tarefas evolutivas e sua sequência, aqui funcionam como uma estrutura básica, socialmente compartilhada, sobre a qual o indivíduo sobrepõe a sua própria narrativa, dando a esta um sentido próprio, mas intersubjetivo, que se traduz em mini-ciclos de crescimento, exploração, estabilização, gerenciamento e desengajamento, que caracterizam as transições. Isto é, o desenvolvimento da carreira profissional, mais do que uma sucessão de tarefas é uma narrativa feita pelo próprio indivíduo acerca dos significados que atribui aos diversos acontecimentos da sua carreira profissional, dentro de um contexto mais alargado que inclui outros aspectos de vida que não apenas o trabalho.

A Teoria da Construção da Carreira (Savickas, 1993, 2005) propõe-se a lidar com “os processos interpretativos e interpessoais através dos quais os indivíduos atribuem significados e direção ao seu comportamento vocacional” (Savickas, 2005, p. 42). Para tanto, o indivíduo, no processo de aconselhamento, é levado a compreender sua carreira subjetiva (significados atribuídos às experiências profissionais e organização destes significados em uma narrativa) dentro da carreira objetiva (sequência de posições profissionais) e de uma grande narrativa genérica, constituída pelos significados e normas de desenvolvimento sociais demandados aos indivíduos (expectativa social com relação ao desempenho de determinadas tarefas evolutivas).

A partir da teoria da Construção da Carreira (Career Construction Theory) (Savickas, 2005) e da Teoria da Construção de Si (Self Construction Theory) de Guichard, (2005), citado por Savickas e cols. (no prelo) argumentam pela necessidade de um novo paradigma para a compreensão das relações do indivíduo com a carreira profissional. Este novo paradigma propõe que o aconselhamento de carreira deve levar os indivíduos a um processo constante de integração aos seus contextos de vida mais amplos, em geral, caracterizados por instabilidade e incerteza. O novo paradigma da psicologia da construção da vida (Duarte, 2006; Savickas e cols., no prelo) pressupõe uma psicologia concebida de forma a considerar o desenvolvimento ao longo de toda a vida, através de uma visão holística, contextual e preventiva. Os princípios da compreensão holística e conceitual evocam a necessidade de se compreender o desenvolvimento da carreira profissional como inserido no contexto mais amplo de todos os papéis que o indivíduo desempenhou no passado, desempenha no presente e suas expectativas para desempenhos futuros.

Para se compreender a carreira de um indivíduo, é importante identificar a rede de papéis sociais que o conectam a sociedade (Savickas, 2002), na medida em que desempenhados simultaneamente, os papéis interagem entre si e se influenciam. Portanto, a construção da carreira profissional de um indivíduo dá-se, necessariamente, nas inter-relações entre os desempenhos de papel e nos significados que este indivíduo atribui a cada um dos papéis e a cada um deles em relação a todos os outros. Por consequência, a compreensão da prontidão de uma pessoa para realizar escolhas de carreira profissional pressupõe a compreensão da importância relativa que atribui aos diversos papéis sociais que desempenha (Super & Nevill, 1986b), especialmente o papel de trabalhador, cuja saliência possibilita, em grande parte, um processo de socialização mais ajustado a contextos econômicos como os verificados no contexto da nova economia global.

Para concluir, algumas considerações de natureza mais prática que visam à eficácia da intervenção neste domínio do novo paradigma da construção da vida. Com relação à intervenção em desenvolvimento e aconselhamento de carreira, orientadores de carreira devem auxiliar seus clientes a interpretar e formatar seu próprio desenvolvimento de carreira profissional, dentro de um projeto global de construção da vida (Savickas, 2002, Savickas e cols., no prelo). O desenvolvimento da carreira profissional, uma vez que é um processo de implementação de autoconceitos (Super, 1963) que ocorre ao longo de toda a vida, dá-se, essencialmente, na indissociabilidade entre os diversos significados construídos a partir de injunções sociais interiorizadas e, sendo assim, não se pode tomá-lo como um processo singular que ocorre fora do contexto concreto de vida dos indivíduos.

Com relação à pesquisa em desenvolvimento e aconselhamento de carreira, embora o conceito de saliência de papel venha ganhando força teórica e prática desde a década de 1980 no cenário global da área, está ausente da pesquisa em aconselhamento de carreira no Brasil. É preciso que sejam emitidos esforços na direção de se identificar instrumentos adequados para a avaliação da saliência de papel no novo contexto do trabalho, a fim de se criar um escopo de conhecimento com o qual se possa desenvolver programas de pesquisa e intervenção adequados à nova realidade. Por exemplo, é preciso verificar, no contexto brasileiro, a percepção que possuem os trabalhadores acerca de seu papel de trabalho nos contextos concretos do emprego formal e informal, nas transições esperadas ou traumáticas. É preciso identificar antecedentes e conseqüentes da vivência da multiplicidade de desempenho de papéis, que tanto enriquecem quanto pressionam, identificando-se os indicadores de stress e, consequentemente, burnout e outros problemas na área da saúde. Finalmente, é fundamental que os estudos brasileiros estejam alinhados aos novos procedimentos, métodos e paradigmas internacionais, para que investigações comparativas sejam realizadas e possam fundamentar um aconselhamento de carreira realmente eficaz para a era da globalização.

 

 

Figura 3. Modelo de saliência do papel do WIS.

 

 

Figura 4. Modelo da saliência de papel na LRSS.

 

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Recebido: 16/01/2009
1ª Revisão: 19/06/2009
Aceite final: 11/09/2009

 

 

1 Os autores agradecem à Profa. Dra. Maria Eduarda Duarte pela leitura atenta e relevantes sugestões.
2 Endereço para correspondência: Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Instituto de Psicologia. Rua: Ramiro Barcelos, 2600, sala 117, 90.035-003, Porto Alegre-RS, Brasil. Fone: (51) 3308-5454. E-mail: maria.lassance@ufrgs.br.

 

 

Sobre os autores
* Maria Célia Lassance é psicóloga pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Mestre em Aconselhamento Psicopedagógico pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), doutoranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professora Adjunta do Departamento de Psicologia do Desenvolvimento e da Personalidade do Instituto de Psicologia da UFRGS, membro da equipe técnica do Centro de Avaliação Psicológica, Seleção e Orientação Profissional (CAP-SOP/UFRGS) e do Núcleo de Apoio ao Estudante (NAE/UFRGS). Fundadora e ex-presidente da Associação Brasileira de Orientação Profissional.
** Jorge Castellá Sarriera é Doutor em Psicologia e Especialista em Psicologia Organizacional, professor do Departamento de Psicologia do Desenvolvimento e da Personalidade do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pesquisador do CNPq e coordenador do Grupo de Pesquisa em Psicologia Comunitária (UFRGS).

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