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Revista Brasileira de Orientação Profissional
versão On-line ISSN 1984-7270
Rev. bras. orientac. prof vol.20 no.2 Florianópolis jul./dez. 2019
ARTIGO
Relações intergrupais e sistema de cotas: percepções de estudantes de direito1
Intergroup relations and affirmative action: law students perceptions
Relaciones intergrupales y sistema de cuotas: percepciones de estudiantes de derecho
Elisa Maria Barbosa de Amorim RibeiroI; Adriano de Lemos Alves PeixotoI; Antônio Virgílio Bittencourt BastosII
IUniversidade Salgado de Oliveira, Niterói, RJ
IIUniversidade Federal da Bahia, Salvador, BA
RESUMO
A adesão às cotas promove a convivência entre grupos de status econômico e cultural distintos. Estudos de mapeamento de interação entre cotistas e não cotistas demonstram tendência a baixa interação entre esses grupos em cursos concorridos. Este trabalho analisa a trajetória discursiva de grupos focais compostos por 30 estudantes de direito (21 não cotistas e 9 cotistas) de uma universidade pública sobre a interação entre cotistas e não cotistas. Os estudantes identificam a separação entre os grupos e refletem sobre fatores influentes. Diferenças de renda, tendência a associação por semelhança, discriminação por parte dos professores e uma cultura de competitividade são indicados como possíveis causas da baixa interação. Evidencia-se a necessidade de um projeto pedagógico e organizacional condizente com a adesão ao sistema de ingresso por cotas.
Palavras-chave: ações afirmativas; grupos; ensino superior
ABSTRACT
Adherence to quotas promotes coexistence between groups of distinct economic and cultural status. Interaction mapping studies between quota and non-quota students show a tendency for low interaction between these groups in crowded courses. This paper analyzes the discursive trajectory of focus groups composed of 30 law students (21 non-quota students and 9 quota students) from a public university on the interaction between quota students and non-quota students. Students identify the separation between groups and reflect on influential factors. Income differences, tendency to association by similarity, teacher discrimination and a culture of competitiveness are indicated as possible causes of low interaction. The need for a pedagogical and organizational project consistent with adherence to the quota entry system is evident.
Keywords: affirmative actions; groups; higher education
RESUMEN
El ingreso universitario a través del sistema de cuotas promueve la convivencia entre grupos de status económicos y culturales distintos. Estudios de mapeo de interacción entre estudiantes que ingresaron por el sistema de cuotas y los que no muestran tendencia a la baja interacción en carreras universitarias de expresiva concurrencia. Este trabajo analiza la trayectoria discursiva de grupos focales compuestos por 30 estudiantes de Derecho (21 del sistema de cuotas y 9 no) de una universidad pública sobre la interacción entre estudiantes que ingresaron por el sistema de cuotas y los que no. Los estudiantes identifican la separación entre los grupos y reflexionan sobre factores influyentes. Las diferencias de renta, tendencia a la asociación por similitud, discriminación por parte de los profesores y una cultura de competitividad, se indican como posibles causas de la baja interacción. Se evidencia la necesidad de un proyecto pedagógico y organizacional acorde con la adhesión al sistema de ingreso por cuotas.
Palabras clave: acciones afirmativas; grupos; educación superior.
Introdução
As universidades brasileiras precursoras na adesão ao sistema de cotas acumulam mais de uma década de experiência neste sistema. No caso da Universidade Federal da Bahia (UFBA), o processo foi iniciado em 2002, ano em que foi constituído um grupo de trabalho (GT) para elaborar e definir os critérios da política de ações afirmativas. Em 2004, a UFBA implantou a reserva de vagas e propôs a adoção de ações concomitantes de preparação para o vestibular, permanência e pós-permanência (Consepe, 2004; Santos & Queiroz, 2013).
A adesão ao sistema de cotas nas universidades produziu um ambiente de maior diversidade, ao promover a convivência entre pessoas de origem, condição socioeconômica, perfil étnico racial e background cultural distintos. Pensando no ingresso de estudantes cotistas como processo de mobilização de fronteiras intergrupais (Hogg, 2013), esse processo exigiu a reformulação de critérios de ingresso de membros à comunidade universitária. Nesse sentido, colocou em dúvida a própria identidade do tradicional estudante de ensino superior de universidades públicas que se sentiu ameaçado por esta nova realidade. De acordo com a teoria da identidade social, a ausência de história comum e identificação pessoal favorecem a emergência do viés intergrupal (Kelly, McCarty, & Iannone, 2013). Este fenômeno amplia diferenças entre membros pertencentes a grupos distintos e intensifica semelhanças entre membros do mesmo grupo, estabelecendo uma relação caracterizada pela polarização entre o "nós" e o "eles" (Hogg & Abrams, 2005; Hogg, 2013).
Estudos realizados na UFBA sobre o padrão de interação entre cotistas e não cotistas têm demonstrado entraves no processo de inserção dos cotistas na comunidade acadêmica. Por exemplo, em um estudo realizado por Ribeiro, Peixoto, Miranda e Bastos (2019) utilizou a medida de homofilia para compreender o padrão de interação entre cotistas e não cotistas na universidade. Essa medida se refere à tendência de formação de laços entre semelhantes (McPherson, Smith-Lovin, & Cook, 2001). Nesse estudo, foram analisadas as redes sociais de 25 turmas de cursos de alta e baixa concorrência. Os resultados indicaram haver baixa interação entre cotistas e não cotistas, principalmente nos cursos de alta concorrência.
As pesquisas que analisam as percepções sobre cotas demonstram que a comunidade universitária mantém dilemas centrais em torno do sistema de cotas, a exemplo das discussões sobre meritocracia, isonomia, reparação histórica e racialização. Na perspectiva específica dos estudantes cotistas, estes dilemas se expressam nas interações cotidianas da comunidade universitária e dificultam a inclusão dos mesmos, tornando mais árdua sua formação acadêmica. O estudo de Menin, Shimizu, da Silva, Cioldi e Buschini (2008), por exemplo, analisou valores associados à percepção de alunos de uma universidade pública sobre estudantes cotistas onde 403 alunos responderam a uma escala de avaliação dos critérios de ingresso e a uma questão aberta. Os alunos foram solicitados a descrever em algumas palavras alunos negros, afrodescendentes, ou provenientes de escolas públicas. Os pesquisadores identificaram predominante rejeição ao sistema de cotas, considerado ameaçador quando comparado a outras estratégias de inclusão, como cursos pré-vestibulares gratuitos. O vestibular por livre concorrência foi considerado a forma mais justa de ingresso por representar valores como igualdade e mérito.
Piotto (2010) analisou aspectos subjetivos relatados por cinco estudantes sobre suas trajetórias acadêmicas em uma universidade pública. Os critérios para participar do estudo foram: ser proveniente de curso de alta concorrência, ter realizado metade do curso, serem filhos de pais com baixa escolaridade e ter perfil socioeconômico destoante do predominante no curso. Os estudantes selecionados eram brancos, moravam na residência universitária e pertenciam a cursos distintos. Foram realizadas duas entrevistas com cada estudante sobre a vida escolar e universitária. Os resultados indicaram sentimento de não pertencimento ao grupo e dificuldade em conviver com os colegas por conta da discrepância da renda, da diferença cultural e do clima competitivo.
A trajetória acadêmica de cotistas também foi analisada por Valentim (2012) a partir de entrevistas com 16 egressos da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, autodeclarados negros. Os resultados indicaram que a figura do cotista esteve associada ao fenótipo negro, fazendo com que este grupo fosse identificado como cotista e carregasse o estigma de aluno desacreditado. A relação com os professores foi caracterizada pela baixa expectativa quanto ao desempenho, atitudes de discriminação, ausência de sensibilidade intercultural no manejo das turmas, não posicionamento diante da política de cotas e falta de abertura para oportunizar elaborações sobre o tema. Já a relação dos cotistas com não cotistas foi de hostilidade e segregação em algumas turmas. Os não cotistas ocuparam uma posição hierárquica superior, exercendo poder e prestígio na condição de universitários por mérito. O percurso acadêmico dos alunos foi marcado pelo racismo institucional e por dificuldades financeiras. A permanência na universidade foi viabilizada pela assistência estudantil, acesso à biblioteca, atividades de pesquisa e extensão, pelo trabalho concomitante aos estudos e através do suporte social de redes de apoio (Valentim, 2012).
Camino, Tavares, Torres, Álvaro e Garrido (2014) estudaram os repertórios discursivos sobre cotas raciais de 105 estudantes da Universidade Federal da Paraíba. Por ocasião do estudo, a universidade estava no primeiro ano de adesão ao sistema de cotas imposto pela lei nº 12.711/2012 (Brasil, 2012). Para produzir os repertórios discursivos, os pesquisadores pediam que os alunos se posicionassem por escrito a partir da consigna: escrever sobre o fato de os negros alegarem a necessidade de políticas compensatórias por conta da discriminação por eles sofrida. A análise dos resultados evidenciou quatro classes discursivas, sendo comum a todas elas uma forte oposição às cotas raciais. Na primeira delas, há o argumento da não diferença intelectual entre brancos e negros. A segunda classe atribui as diferenças sociais existentes entre os dois grupos à pobreza, propondo que as cotas deveriam estar baseadas em critérios sociais apenas. Nas últimas duas classes foi salientada a possibilidade de o sistema de cotas diminuir a qualidade de ensino das universidades, havendo o argumento de que o melhor seria investir na educação básica.
Melo, Dantas, Fernandez, Pereira e Chaves (2014) investigaram as representações sociais de graduandos da UFBA a respeito das cotas universitárias. Os 66 participantes responderam um questionário com um teste de evocação para as palavras cotas e cotistas, além de duas perguntas sobre o posicionamento e o grau de conhecimento sobre a política afirmativa de cotas. Os resultados indicam que a política de cotas é percebida como mais racial que social, expressando a crença de que elas são dirigidas predominantemente para estudantes negros de escolas públicas. No entanto, na lei de cotas, os critérios de origem escolar e renda antecedem o critério racial. Para os autores, esta percepção racializada das cotas pode ter relação com o fato de a militância pela reserva de vagas ter sido empreendida principalmente pelo movimento negro.
Há ainda, um importante debate sobre ações afirmativas na universidade que é o questionamento sobre o desempenho acadêmico do estudante cotista. Um estudo na Universidade Federal da Bahia realizado por Peixoto, Ribeiro, Bastos e Ramalho (2016) comparou o rendimento dos cotistas e não cotistas da universidade, o que representava na época 26.175 alunos matriculados. Na comparação geral, os não cotistas apresentaram desempenho maior, sendo esta diferença na comparação entre os grupos de 6,81%. Quando comparados por área de conhecimento, os cotistas obtiveram desempenho superior em cursos de média e baixa concorrência, nas áreas de artes e humanidades. Outro estudo, também realizado na Universidade Federal da Bahia, buscou identificar associações entre o desempenho acadêmico e o grau de integração entre 926 estudantes cotistas e não cotistas de cursos de alta e baixa concorrência. Os resultados indicaram que estudantes cotistas com alto rendimento acadêmico tendem a estabelecer relações mais heterogêneas, ou seja, seu círculo de contatos possui cotistas e não cotistas (Ribeiro, Peixoto, & Bastos, 2017).
Os resultados desses estudos nos fazem pensar que apesar da inserção assegurada pelo vestibular, o processo de inclusão plena dos cotistas na universidade ainda está por acontecer. A despeito do confronto de opiniões a favor e contra o sistema de cotas, este tem sido consolidado e legalizado no Brasil. Ou seja, o sistema de cotas está implementado, mas opera em condições insuficientes para atingir com efetividade os resultados a que se propôs. É possível que essa crescente valoração da ética da diversidade não tenha sido acompanhada por ações preventivas de ressignificação e fomento de uma cultura favorável à convivência.
Assim, para encontrar respostas aos questionamentos direcionados à efetividade deste sistema é preciso acompanhar o cotidiano das universidades, observar e analisar o desdobramento da adesão a esta política afirmativa para a integração social dos atores universitários, em especial os alunos, público alvo destas organizações. Para aprofundar a compreensão destes padrões de interação este estudo buscou compreender como os estudantes cotistas e não cotistas do curso de direito avaliam a interação entre eles, se percebem a distância entre os grupos e o que sugerem como fatores influentes nesses padrões de interação.
Método
Com o objetivo de descrever as percepções dos alunos sobre a integração entre cotistas e não cotistas na universidade foram realizados três grupos focais com estudantes do curso de direito. O curso foi escolhido por ter apresentado altos índices de homofilia, conforme procedimento indicado no estudo de Ribeiro et al. (2019), ou seja, uma alta tendência de integração entre os iguais e uma baixa abertura aos diferentes. Além disso, o curso de direito se apresenta na universidade como sendo um curso de alta desejabilidade social (alta concorrência). Neste sentido, é o espaço típico no qual se busca a inserção de estudantes cotistas; por outro lado, é um curso associado a um perfil formal e tecnicista, como já descrito acima, o que impõe conhecer os processos de interação entre grupos sociais distintos de modo a facilitar a construção de ações de intervenção e superação das dificuldades encontradas.
Os participantes dos grupos focais foram selecionados com base em uma medida de Análise de Redes Sociais (ARS) denominada E-I index. Esta medida, que varia entre -1 e 1, informa se o aluno tende a manter mais relações entre semelhantes (cotista com cotista; não cotista com não cotista) ou diferentes (cotista com não cotista). Para gerar o E-I index, os estudantes responderam um questionário de mapeamento das redes de amizade e informação da turma. A partir destes resultados, os grupos focais foram planejados com o seguinte desenho: 1) um grupo com estudantes cotistas com tendência à homofilia (valores negativos, de -0,1 à -1); 2) um grupo de estudantes não cotistas, também com homofilia e; 3) um terceiro grupo misto, com estudantes Cotistas e não cotistas com maiores índices de heterofilia. Os parâmetros de corte para definição dos índices de heterofilia e homofilia para composição dos grupos foram definidos com base nos quartis de E-I index da rede de amizade. Ao todo participaram 30 estudantes, assim distribuídos: seis no grupo misto, seis no grupo de cotistas e 18 no grupo de não cotistas. A composição dos grupos se deu em função do interesse e da disponibilidade de participação dos estudantes. Por outro lado, diante do interesse despertado pela pesquisa junto aos alunos não cotistas, optou-se por dar oportunidade à participação de todos os que manifestaram interesse em discutir a questão das cotas no curso, isso justifica o tamanho do grupo não cotista.
O grupo focal foi eleito como estratégia de coleta de dados por compreendermos o processo grupal como propício à emergência de memórias, debates e manifestação de crenças. Nesse sentido uma questão ou tema pode ser abordado de maneira mais ampla e mais aprofundada (Millward, 2010). O objetivo da formação de dois grupos "puros" (apenas de cotistas ou não cotistas) foi gerar espaço para expressão de crenças a favor ou contra as cotas sem uma eventual pressão social implícita exercida por estudantes com classificação de ingresso distinta. No caso do grupo misto, estão reunidos estudantes com índices mais elevados de heterofilia, ou seja, com tendência a conviver com membros do grupo externo no cotidiano da universidade. Neste sentido, compreender suas crenças sobre cotas e sobre a integração dos dois grupos pode auxiliar na construção de estratégias de intervenção na melhoria da coesão entre estudantes cotistas e não cotistas.
Os participantes do estudo assinaram termo de consentimento livre e esclarecido, documento que declarava os objetivos da pesquisa e seus direitos como participantes do estudo. O projeto de pesquisa foi avaliado e aprovado pelo comitê de ética de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia (parecer número 815.585). As falas dos estudantes transcritas na seção de resultados estão codificadas com nomes fictícios.
A discussão sobre as cotas foi disparada por três pontos centrais sobre: o sistema de cotas na universidade; as repercussões da política de cotas no curso de direito; e as repercussões desta ação afirmativa na turma de origem dos participantes. A estratégia de mediação no grupo consistiu em não induzir a discussão sobre o tema da convivência e /ou da falta dela, mas esperar que emergisse de forma espontânea na manifestação dos participantes. A partir desse momento a discussão passou a ser dirigida para a compreensão das possibilidades de causas e sugestões de ampliação da integração entre cotistas e não cotistas. O tempo de duração de cada grupo focal foi de 60 minutos, em média.
As falas dos participantes foram analisadas em duas etapas. Na primeira etapa, descrevemos a trajetória discursiva de cada grupo. Nessa descrição buscamos delinear o percurso peculiar de cada grupo diante do mesmo roteiro de consignas: cotas na universidade, no curso e na turma. Nesta etapa, estivemos atentos às diferenças nas reações e na natureza do conteúdo emergente. Estas diferenças foram discutidas, como também foram consideradas as possibilidades de associação com o perfil de composição dos grupos (não cotista, misto e cotistas). Na segunda etapa, e com o objetivo de aprofundar a comparação dos discursos nos três grupos, categorizamos as falas com base na percepção dos estudantes sobre: o sistema de cotas; o padrão de interação entre os grupos; os motivos associados a esse padrão de interação; e as estratégias para promover a integração de cotistas e não cotistas. Nesse sentido, fizemos uso da codificação temática proposta por Strauss (1987), como estratégia para comparar diferentes grupos sociais com o uso de tópicos pré-definidos e diretamente associados aos objetivos do estudo e à natureza dos grupos.
Resultados
Os resultados são apresentados de acordo com a estratégia de análise delineada na seção de método. Nesse primeiro momento são narradas as trajetórias discursivas de cada grupo focal. No segundo momento, as falas dos estudantes são comparadas de acordo com a natureza do grupo, e com base nas respectivas percepções sobre o sistema de cotas e as repercussões deste para a convivência na universidade.
A distribuição dos alunos nos grupos focais de acordo com o tipo de ingresso e a tendência de cada um a se relacionar com iguais ou diferentes, influenciou na trajetória da discussão e nos conteúdos enfatizados por cada grupo. A seguir este percurso é descrito, iniciando pelo grupo misto, seguido pelo grupo de cotistas e, por fim, o de não cotista.
O grupo misto
O grupo misto, composto por estudantes cotistas e não cotistas, foi formado por alunos que mantêm maior quantidade de relacionamentos com pessoas de fora do seu grupo de origem, quando comparados aos membros dos demais subgrupos (cotistas ou não cotistas).
Ao expressarem suas percepções sobre as cotas, os participantes denotam uma posição favorável, destacando tanto aspectos que enriquecem a formação de todos, a exemplo da importância de conviver com o diferente na universidade, como os ganhos específicos para o grupo de cotistas e suas comunidades de origem.
"... a gente teve um ganho com as cotas muito grande porque você pode ter contato com mais pessoas de outras realidades." (Juliana)
"Tem muitas pessoas na família (dos cotistas) que não tiveram acesso à universidade, e aquela pessoa foi a única e traz uma história diferente para a família." (Lia)
Espontaneamente, os estudantes passam a refletir sobre temáticas como desempenho e interação entre os grupos. O discurso inicial busca minimizar diferenças entre cotistas e não cotistas no cotidiano da universidade.
"...entrou na universidade as barreiras começam a cair... os alunos conseguem aprender, assimilar e a gente não vê uma diferença tão grande de nota ou de relacionamento entre alunos cotistas e não cotistas." (Lia)
No entanto, ao avançar da discussão, os alunos começam a identificar distinções na vivência universitária de cotistas e não cotistas. Tais distinções estão concentradas principalmente na diferença de padrão de renda e na falta de suporte institucional para minimizar as consequências desta na formação.
"... é óbvio que o desempenho de um cotista geralmente vai ser um pouco menor... na última vez que eu fui ao restaurante universitário .... eu sai daqui 10:40, ... terminei de almoçar 14, cheguei em casa quase 15... Quem perde quatro horas pra almoçar, vai chegar em casa acabada! Você tem os pratos, roupa para lavar, chão para limpar, uma casa para gerir. Que horas você vai descansar e que horas você vai estudar?" (Lia)
"Pessoas que têm um rendimento melhor porque têm um ambiente mais propício para que ela desenvolva, ao contrário de outras que encontram um caminho muito mais árduo pela frente." (Fábio)
A partir deste momento, a avaliação do sistema de cotas passa a ser mais crítica e o grupo ressalta a necessidade de ações concomitantes ao sistema de cotas, como a melhoria da educação básica e ações mais eficazes de assistência estudantil. Como estratégia de tornar a discussão mais próxima da vivência pessoal dos estudantes, o mediador os convoca a pensar nas cotas no contexto do curso de direito e na própria turma. Neste momento a questão da interação surge com mais veemência e os alunos passam a tratar da distância entre cotistas e não cotistas e possíveis motivos associados. Ao discorrerem sobre esses motivos, o grupo considera uma ampla gama de aspectos: diferenças exacerbadas na renda; associação por semelhança de hábitos; origem escolar semelhante; isolamento geográfico da faculdade de direito do restante do campus UFBA; cultura de pouca abertura a relacionamentos na faculdade de direito; práticas docentes pouco integradoras; e composição das turmas por escore.
"mas essa separação de grupos sociais ...acaba sendo uma questão de que todo lugar tem isso... os iguais se atraem ... coisa de frequentar os mesmos lugares, ter os mesmos assuntos... essa segregação de cotista e não cotista já foi predefinida antes." (Bruno)
"a amizade vem de antes, da escola..., mas é claro que a questão financeira influencia... você vai encontrar essa pessoa no ambiente que você frequenta..." (Fábio)
A adoção do ranking de escorescomo critério para a matrícula nas disciplinas acaba por agrupar os alunos com notas mais altas em determinadas turmas, bem como os alunos com notas mais baixas em outras. Após refletirem sobre os impactos dessa associação, o grupo avalia como este arranjo perpetua a desigualdade e configura formações distintas para estudantes do mesmo curso. Isso se dá em função dos alunos com escores mais altos ocuparem as vagas das disciplinas ministradas pelos professores considerados melhores.
"... aí vem o sistema de escore para segregar ainda mais." (Bruno)
"Mas existe uma aproximação maior de quem tem escore maior com quem tem escore maior... e geralmente todo semestre pegar aquele dito professor melhor... vão estar lá sempre aquelas mesmas pessoas, porque escore é algo muito difícil de mudar..." (Fábio)
"... o seu escore muda muito as relações que você vai ter." (Lia)
Além do escore como elemento distanciador dos grupos, a postura dos professores em sala é considerada outro aspecto favorecedor desta distância. Primeiro em função do trato desigual entre estudantes cotistas e não cotistas, privilegiando os não cotistas. Depois por ostentarem com frequência uma realidade financeira muito distinta da dos cotistas.
"Tem professores aqui nessa faculdade que não se tocam de que a posição social do alunado mudou. Tem professor que diz: 'olha, não defenda causa de pobre, você ganha, mas não leva', isso choca os cotistas pobres que entram e estão ali ouvindo. Isso é a própria perversão do sistema de cotas, entendeu?" (Júlio)
No processo de encerramento da discussão, os participantes do grupo misto propõem estratégias para ampliar a integração entre os alunos, a saber: formação pedagógica para os docentes; promoção de espaços coletivos que viabilizem contato com alunos de outros semestres; cursar disciplinas de outras unidades da UFBA; ampliar o número de projetos de pesquisa e extensão que agreguem pessoas de classes diferentes. O grupo finaliza retomando a questão das condições desiguais de formação para os dois grupos, considerando que esta desigualdade poder ser perpetuada no mercado de trabalho.
O grupo de cotistas
O grupo de cotistas foi formado em sua maioria por estudantes com maior homofilia, ou seja, com tendência a interagir com outros cotistas. Ao receber a consigna mais ampla para comentar sobre as cotas na UFBA, o grupo inicia argumentando em defesa do sistema de cotas e de sua vigência até que a educação básica melhore a qualidade. As primeiras falas já expressam incômodo com o discurso do senso comum e dos professores de que o sistema de cotas prejudica a qualidade do curso. Denominam esta visão de preconceituosa, e chamam atenção para a ocorrência de uma crise mais ampla no ensino superior no Brasil. Nessa direção avaliam como simplista atribuir aos cotistas a responsabilidade pela queda da qualidade, por desconsiderar a influência de aspectos estruturais, como a ampliação das vagas desacompanhada de ampliação do corpo docente e de melhoria da infraestrutura da universidade.
"... várias pessoas têm essa opinião de que a qualidade do ensino superior tem baixado por causa dos cotistas. Uma coisa que eu acho que é extremamente preconceituosa." (Luiza)
"Aqui na faculdade tem uns professores... que acreditam ser culpa dos cotistas o nível do ensino cair...eles não têm a noção do reuni... essa duplicada de alunos e a demanda de professores é muito menor que a demanda de alunos e o ensino foi prejudicado de diversas maneiras que não por causa dos cotistas." (Mariana)
Após argumentarem contra a ideia de que os cotistas reduzem a qualidade do curso, passam a abordar a questão do desempenho do cotista sob dois enfoques. No primeiro, os alunos destacam exemplos de cotistas com alto desempenho. No segundo, questionam a qualidade do processo de avaliação de desempenho na universidade, centrado exclusivamente na eficácia do aluno nas provas escritas, sem considerar outras esferas da formação, como a prestação de serviços à comunidade. Mesmo com um discurso voltado para minimizar questões sobre diferença de desempenho, os alunos comentam sobre o esforço extra despendido para redigir provas abertas em comparação aos não cotistas com mais leituras prévias.
"Tem um colega meu que é cotista só que o cara é muito inteligente, ele passa na frente de todo mundo por escore...é uma coisa assim fantástica e ele mora em Paripe." (Leandro)
"Para os alunos da escola pública ainda é mais complicado porque a prova tem filosofia e sociologia... meus colegas (de escola particular) já tinham visto, e olhe que eu sempre fui muito de gostar de ler, mas eles já tinham lido muito mais, é outra base..." (Cícero)
Ao serem convocados a refletir sobre as cotas no curso de direito, o grupo caracteriza o curso como elitizado e muito caro, dando exemplos de alunos que evadiram por não ter tido acesso à assistência estudantil. Neste e em vários outros momentos da discussão, o grupo se detém a falar sobre o alto custo dos livros, a indisponibilidade destes na biblioteca, e como são imprescindíveis para cumprir as tarefas acadêmicas.
"o nosso curso é muito caro, e o pior ... você tem uma defasagem de algo que é muito grande na universidade que é a assistência estudantil... é muito pouco e tem muita gente. Eu conheço muita gente que desistiu do curso porque não teve residência, porque não teve um auxílio moradia ... não tem dinheiro para comprar um livro..." (Mariana)
Após dar ênfase aos aspectos financeiros, os cotistas passam a abordar a distância na interação com professores e colegas. No primeiro caso, os cotistas ressaltam como os professores expressam predileção pelos não cotistas e valorizam suas famílias de origem. Além disso, demarcam que a docência não é sua atividade prioritária, o que, associado aos comentários sobre hábitos e gastos, é denominado pelos cotistas como uma postura ostentação em sala de aula. Como exceção a este quadro assinalam a existência de alguns professores com uma história de vida mais difícil, os quais são a favor das cotas e tratam cotistas e não cotistas de maneira equitativa.
"... tem professores que... de uma forma bem sutil, bem velada, ... direcionam um cuidado maior para o não cotista... entrega a nota... e 'parabéns! Qual o nome do seu pai? Você é filho de doutor não sei quem?" (Pedro)
"Tem um colega que é dono de fazenda e o pai dele é advogado, o professor olhou pra ele e disse 'porque, por exemplo, se eu for comprar suas fazendas de café, que eu conheço seu pai...". (Leandro)
"O que recebe como professor é para colocar gasolina do carro, só." (Ana)
"Infelizmente os professores aqui ainda não se acostumaram com o novo perfil do estudante da Universidade Federal da Bahia." (Cristiana)
Quando solicitados a refletir sobre a interação com os pares do curso, comentam sobre a formação de grupos fechados de estudantes que já se conheciam por serem egressos da mesma escola particular.
"Você percebe uma separação... os meninos que estudam no... Tem uma galera que está aqui que já se conhecia antes, eles fazem parte de um grupo social que os cotistas não fazem parte. Então fica aquela panelinha, aquela galerinha bonitinha na frente que se conhece." (Pedro)
"... os cotistas nunca fizeram parte desse convívio na faculdade... pessoas que moravam na residência, ... que se vestiam de forma simples; ...não tinham carro, ...não frequentavam essas festas caras que eles vão, ...não fazem parte da relação, são pessoas que não tem como entrar..." (Mariana)
Dois alunos discordaram do teor da discussão sobre a separação entre os grupos. Um aluno egresso do colégio militar, avaliou como "natural" haver certo distanciamento entre os grupos, em função dos grupos terem hábitos distintos. Outra aluna, destacou que o contexto do curso noturno era menos elitista e que não percebia a separação entre cotistas e não cotistas.
Na sequência destas falas, surgiu um momento mais tenso no grupo, quando uma aluna cotista do turno da manhã (única participante negra) descreveu uma situação vivida em sala de aula com a intenção de demonstrar que faz diferença ser cotista negro ou pardo:
"... tem uma diferença no tom da pele, ... as pessoas te olham meio diferente... se você tenta falar alguma coisa todo mundo observa... Às vezes com um olhar de...'não sei'. Ou 'ela está querendo se aparecer' (...) acabo sofrendo esses tipos de retaliações... um professor do noturno... do nada ele parou a aula..., olhou para mim e disse...: 'venha cá, você é dessa sala mesmo?', aí eu disse...: 'Sou professor.' Ele respondeu: 'tem certeza?'... Eu me senti constrangida... O professor tinha que pelo menos entender que se aluno ele faz a noite muitas vezes vem de uma história muito diferente, entendeu? Corro o dia todo.... Quando eu chego à sala de aula, eu não estou com o cabelo bonito, eu não estou arrumada... eu me senti mal, simplesmente eu abandonei a matéria.'." (Sueli)
Apesar desta fala com claras referências à vivência de discriminação por raça por parte da aluna, o grupo evita conduzir a discussão nesta direção, e reforça o argumento baseado nas diferenças de renda. Assim, argumentam como os grupos se distinguem na vestimenta e no acesso à tecnologia, bem como isso se reverte em vantagens na formação para os que têm maior poder aquisitivo.
Como estratégias para integrar cotistas e não cotistas sugerem que a universidade promova atividades direcionadas para isso. Destacam a convivência com cotistas como vantajosa para a formação, considerando o aprendizado que pessoas de baixa renda podem prover para futuros operadores do direito.
"O cotista traz para a universidade outra visão de mundo. Se não tivesse cotista, estava todo mundo igual, um monte de 'patricinha' e 'mauricinho'... Isso é ótimo para nossa área porque daqui sai magistrado, mas sai com uma visão da vida, para ele não ficar só com a cabeça branca, que acaba distorcendo tudo, praticando um monte de injustiça. A UFBA deveria manter uma forma, como instituição, de explorar isso e manter essa riqueza que os cotistas trouxeram". (Ana)
Para finalizar o relato do percurso do grupo de cotistas, destacamos o exemplo metafórico dado por uma das participantes do grupo para relacionar as diferenças entre os grupos e seus impactos na formação:
"... existe distinção... Você não pode pôr duas pessoas para correr (...) disputar a mesma maratona, uma vai descalça e a outra tá com o tênis melhor que tem pra correr." (Luiza)
O grupo dos não cotistas
O grupo de não cotistas foi formado predominantemente pelos alunos com tendência à homofilia, ou seja, que se relacionavam predominantemente com não cotistas. Quando deparados com a pergunta inicial sobre o que pensam sobre as cotas na UFBA, passam um período silentes e iniciam apenas após alguma insistência do mediador. Este silêncio pode representar dificuldade dos estudantes em abordar o tema e a falta de espaço na universidade para debater este assunto em fóruns grupais.
O grupo inicia com um discurso favorável às cotas, ao justificar a necessidade destas em função da discrepância entre a qualidade do ensino particular e público. Ao considerar a qualidade das escolas públicas ruim, demonstram preocupação com a evasão dos cotistas. Esta preocupação se refere às dificuldades financeiras, à realização das atividades da faculdade (principalmente as que exigem escrita), à falta de acompanhamento por parte dos professores. Um dos participantes coloca como vantagem a diversidade na universidade, fala que não repercute no grupo.
"Porque talvez o problema da universidade nem seja esse de ser mais difícil, mas uma dificuldade financeira. Porque tem alguns alunos que eu percebo faltar muito, que chegam atrasados, eu tenho essa sensibilidade de perceber: será que essa pessoa está passando por algum problema? Tem assistência estudantil aqui na UFBA mas não é suficiente. " (Milena)
Na sequência, retomam a discussão sobre o sistema de cotas, defendendo que o sistema priorize os critérios social e racial em detrimento da origem escolar (escolas públicas), bem como exista um prazo delimitado de vigência. Embora defendam o critério racial, discordam entre si sobre os parâmetros, se fenotípicos ou genotípicos, estes últimos dependentes da autodeclaração (considerada questionável pelo grupo).
"... muitas pessoas que têm boa condição econômica dizem que são negras e entram com as cotas." (Clara)
Avaliam que as cotas raciais não estão sendo efetivas, em função da pouca quantidade de negros presentes no curso de direito. Essa discussão sobre a legitimidade dos critérios de inserção pelo sistema de cotas parece muito motivada pelas percepções de injustiça quanto ao ingresso de alunos do Colégio Militar e dos Institutos Federais. O grupo dedica um tempo a esta discussão, defendendo que estudantes das referidas escolas não deveriam ter direito às cotas.
"... a maioria dos cotistas vem do colégio militar e ... a maioria deles conseguiriam sem as cotas. ... as cotas que a gente tem que são para incluir aqueles que não são favorecidos, mas acaba que o colégio militar tira a vaga de mais duas pessoas que são favorecidas e tiram a vaga de muitas pessoas que vieram de colégio particular, que os pais fizeram esforço para que os filhos estudassem em colégio particular para que passassem em uma universidade pública." (Caio)
Ao serem questionados sobre a convivência entre cotistas e não cotistas no curso relatam que a separação é nítida, logo de imediato. De maneira paradoxal percebem a separação, mas declaram não identificar quem é cotista e não cotista. A declaração de não saber quem é cotista e quem não é parece ter relação com o desejo de demarcar que não é uma exclusão pelo 'título' de cotista ou não cotista. Antes, defendem que esta separação está muito vinculada às diferenças no padrão de vida, hábitos e lugares frequentados.
"... eu vivo com pessoas mais próximas da minha realidade, isso não quer dizer que eu estou excluindo as outras... daqui para fora você vai querer sair com uma pessoa que goste de ir para o mesmo lugar que você e isso é normal... e eu acho que isso não tem a ver com discriminação... convivo com várias pessoas diferentes, mas os meus amigos mais próximos são pessoas mais parecidas comigo..." (Lúcio)
O grupo passa a debater se esta separação entre os grupos acontece em por conta de comportamentos de discriminação. Não chegam a um consenso, mas chegam a elaborar sobre a dificuldade em reconhecer a discriminação, considerando que esta acontece de forma velada.
Ao aprofundar sobre formas de discriminação vivenciadas pelos cotistas, os estudantes fazem uma análise do quanto a falta de suporte institucional representa uma discriminação e perpetua a desigualdade entre os grupos.
"Nosso curso é voltado para um público e exclui o outro público. Tem professores preconceituosos. Fora isso tem eventos da faculdade que são caros .... Isso são modos de discriminação também." (Adriano)
"...a partir do momento que você não se identifica com outras pessoas, que você não é bem-vindo à faculdade, a faculdade não te dá suporte para isso, suporte que eu digo em geral, tudo isso é uma forma de discriminação. Ninguém vai te dizer 'não' diretamente... 'não quero ser seu amigo', mas não tem nenhuma oportunidade para driblar isso." (Caio)
O curso é caracterizado pelos alunos como elitista, principalmente no turno diurno. Já o noturno é percebido como mais plural, no sentido de que os membros de diferentes grupos interagem e cooperam. Esta interação é atribuída ao fato de serem pessoas mais velhas, já trabalharem (o que os torna menos competitivos) e/ou terem um perfil mais acessível ao contato interpessoal. Ao caracterizar o curso noturno, o grupo retoma a postura crítica em relação aos egressos dos colégios Militar e Federal. Esse tom crítico aparece quando exaltam o fato dos estudantes cotistas do noturno serem de escolas públicas denominadas pelo grupo de "normais".
Quando o mediador traz a discussão do curso para o contexto da turma, novamente os alunos demarcam que a separação não acontece em função das cotas. Nesta convocação para falar da própria turma, os alunos retornam a falar dos professores e passam a atribuir as causas da separação a atitudes de preconceito e comportamento excludentes destes em relação aos cotistas.
"Existe discriminação... eu ouvi um professor falando 'ah, quem quiser que fale que é mentira, mas a primeira turma de cotista na universidade que foi há 10 anos, quando os professores saiam da sala todo mundo comentou: que turma feia.'...E ele ainda falou: 'e era uma turma muito feia mesmo." (Paula)
Novamente provocados a falar da relação entre os alunos especificamente, os estudantes declaram existir preconceito, discriminação e grupos que se sentem superiores aos outros nas turmas. No entanto, isto é justificado pelos alunos como algo que reflete padrões de comportamento de toda uma sociedade.
"Acho que falar de discriminação assim é muito difícil, porque as coisas são muito veladas né, mas a partir do momento que você identifica que são grupos separados certamente existe algo que está impedindo a integração." (Milena)
"... aqui, os espaços que a gente tem de discussão..., em geral, aqueles que tem talvez uma condição social menor, ficam acuados, você não vê 'ousados', que falam, abrem a boca... Em geral, essa questão de separação de grupo, não é só de um estar distante do outro, é de um estar em posição... superior ao outro, ou se sentir assim". (Helena)
Por fim, ao serem questionados sobre estratégias para lidar com os problemas apontados, os alunos sugerem formação para os docentes e melhoria dos programas de assistência estudantil.
"Precisa urgentemente dar um curso de humanidade para os professores." (Paula)
Após esta apresentação da trajetória discursiva percorrida por cada grupo focal, buscamos refletir sobre semelhanças e diferenças entre os grupos e o sentido destas em função da composição dos grupos. Para visualizar o discurso dos três grupos conjuntamente elaboramos a Tabela 1 que compara e sintetiza a percepção dos alunos nas seguintes categorias: sistema de cotas; padrão de interação entre os grupos; motivos associados a esse padrão de interação; estratégias para integrar cotistas e não cotistas.
Embora algumas percepções coincidam, elas adquirem um sentido peculiar no percurso da discussão de cada grupo. Os três grupos focais posicionam-se como favoráveis ao sistema de cotas. No grupo de cotistas, a argumentação adquire caráter de defesa às cotas ao rebater as críticas mais comuns dirigidas ao sistema (defesa da meritocracia e influências na qualidade da universidade). Além disso, os cotistas demarcam as cotas como uma necessidade social e como uma mudança significativa na vida dos cotistas e de suas famílias. Os não cotistas também se declaram favoráveis, mas no decorrer do discurso esse posicionamento apresenta ressalvas, tanto por considerarem injusto o acesso de estudantes dos colégios Militar e Institutos Federais, como por questionarem a legitimidade da autodeclaração como critério racial. Já o grupo misto, se posiciona favorável, valorizando a convivência com a diversidade e a oportunidade de acesso ao público alvo.
Ao avaliar a qualidade da convivência entre cotistas e não cotistas, os três grupos reconhecem haver baixa integração em suas turmas. A separação torna-se evidente também para não cotistas ainda que não se impliquem como corresponsáveis neste processo. Neste sentido, não refletem criticamente sobre o comportamento de clausura do seu grupo. Antes, atribuem as causas do distanciamento dos cotistas aos professores e à falta de suporte institucional. Neste sentido, da não implicação, se aproximam do grupo de não cotistas do estudo piloto, por considerarem a distinção entre os grupos como algo que acontece, mas está distante ou mesmo não impacta no seu cotidiano.
Sobre motivos apontados pelos grupos, estes são unânimes em considerar as diferenças de renda, a associação por semelhança (em função da renda) e a discriminação por parte dos professores como causas para a não integração entre os grupos. Em relação aos professores, os estudantes de direito compararam seus professores com professores de outros cursos (os que cursaram disciplinas em outros cursos), destacando que os dos outros cursos têm uma preocupação em integrar os alunos em sala. Além disso, durante toda a discussão nos três grupos focais, os alunos enfatizaram muito que o tratamento diferenciado dispensado a cotistas e não cotistas era uma característica muito emblemática dos professores do curso de direito. No entanto, no estudo de Peixoto, Ribeiro, Brito e Bastos (2015) sobre a percepção de estudantes de psicologia sobre as cotas, os estudantes também relatam vários exemplos de professores com atitudes e comportamentos desfavoráveis aos cotistas, tanto no curso de psicologia como em outros cursos.
Um aspecto relevante no grupo misto foi avaliar o uso do ranking por escore no processo de matrícula do semestre como promotor de segregação. Além de avaliarem como a prática institucional instaura a competição entre alunos, demarcam as consequências ao longo do tempo para a formação: melhores alunos ocupando as vagas das disciplinas lecionadas pelos melhores professores.
Ainda sobre o grupo misto, chama atenção a abrangência da natureza dos aspectos percebidos pelo grupo misto, considerando aspectos disposicionais, relacionais e organizacionais na compreensão da distância entre os grupos, bem como na sugestão de estratégias para reduzir esta distância. Esses alunos do grupo misto, não apenas transitam entre cotistas e não cotistas do seu curso de origem, mas fazem o movimento de cursar disciplinas em outros cursos, convivendo com alunos de outras formações. Tais características demonstram o quanto o trânsito entre os dois grupos e em diferentes cursos, amplia a compreensão destes sobre a distância entre cotistas e não cotistas, bem como sobre perfis de docência mais favoráveis à inserção dos cotistas.
Além de evidenciar um benefício da manutenção de relações com membros de outros grupos, demonstra o potencial destes alunos em contribuir para ampliar os laços intergrupais. Tanto o grupo de cotistas como o de não cotistas demonstram pouca implicação em direção à integração. Antes, concentram a responsabilidade nos professores e na universidade, como organização.
Discussão e considerações finais
As discussões dos grupos focais trazem pistas importantes para compreensão do padrão de interação entre cotistas e não cotistas em cursos de alta concorrência, conforme evidenciados nos estudos de Ribeiro (2019). Os alunos identificam a separação entre os grupos e refletem sobre possíveis fatores influentes nesta separação tanto na esfera institucional como interpessoal.
Ao pensar na Universidade como uma organização, e na adoção da política afirmativa de cotas como uma mudança de cultura organizacional, torna-se preciso avaliar os paradigmas desta mudança e o quanto estes foram "assimilados" pelos atores institucionais: professores, gestores, corpo administrativo, alunos e pela própria organização. Não se advoga um pensamento consonante sobre a política, mas uma reflexão amadurecida e menos estereotipada dos seus objetivos, consequências e implicações para a universidade e seus alunos. Embora nos relatos sobre a implementação das cotas uma série de medidas além da reserva de vagas fosse mencionada, estas não parecem ter sido efetivadas ou não o foram na amplitude necessária de modo a refletir na percepção dos estudantes sobre esse processo.
Nesta direção, Foroni (2004) alerta que ingresso do cotista na universidade como ação isolada, dissociada de um projeto pedagógico voltado para suprir suas necessidades não garante redução da desigualdade, podendo implicar em evasão, retenção e desempenho insuficiente. É preciso, portanto, suplantar a natureza de normalidade atribuída ao estudante universitário não cotista por meio de contextos educativos de fato inclusivos e plurais. Como estratégia de redução de conflitos intergrupais, a teoria da identidade comum de Gaertner & Dovidio, (2012) propõe a criação de entidades grupais inclusivas, mais amplas. Tais entidades precisam representar o ponto de conexão endo e exogrupo, mas ao mesmo tempo não podem ameaçar a identidade destes.
Na esfera interpessoal, embora os estudantes tenham indicado as diferenças de renda e hábitos como um dos motivos principais para a distância entre os grupos, uma análise mais cautelosa do discurso dos alunos fornece indícios de outros motivos possíveis. O fato dos não cotistas considerarem injusto o ingresso de estudantes de escolas públicas de excelência (Militar e IFBA), pode ser um dos motivos da distância entre estudantes cotistas provenientes destes colégios e não cotistas. Ainda que estes tenham padrões de vida mais semelhantes, quando comparados aos cotistas vindos das demais escolas públicas. Isto indica que a renda, neste caso, não foi determinante para serem considerados semelhantes. Neste caso, a divisão cotista e não cotista foi predominante, pela importância da discordância quanto às normas de ingresso, consideradas injustas.
Além da busca por manter uma identidade social favorável, conflitos entre os grupos também podem ser disparadas por discordâncias relativas ao senso do que é justo. Embasada nos princípios da teoria da identidade social, a teoria da justiça (Tyler, 2012) avalia como o senso do que é justo modula as reações das pessoas aos grupos e organizações a que pertencem. Nesta direção, quanto mais relevante for o pertencimento a um grupo, mais percepção do self será influenciada por julgamentos de justiça. Este julgamento define o grau de concordância com normas e princípios que regulam as relações e baliza comportamentos de cooperação ou competição no grupo. Mas quando se trata de relações intergrupais, a preocupação com procedimentos de justiça se limita aos membros do endogrupo (Tyler, 2012), o que torna difícil a emergência de comportamentos de cooperação entre grupos distintos.
Outra questão que emerge dos grupos focais é a questão racial, embora não tenha sido colocado de forma explícita pelos não cotistas. Ela aparece de forma contraditória, seja em defesa de um critério mais racial, seja no questionamento dos critérios que o legitimam (autodeclaração ou fenótipo). Aparece também em dois relatos, um no grupo de não cotistas e outro no grupo de cotistas, que se coadunam. No primeiro, surge o exemplo do professor dizendo que a turma está "feia". No segundo, uma aluna negra relata o questionamento do professor quanto ao seu pertencimento à turma. No decorrer do seu relato, a aluna informa que não pode arrumar o cabelo naquele dia, quase como uma justificativa para seu pertencimento ter sido colocado em dúvida. Estes relatos nos fazem pensar no papel da variável raça não apenas na separação entre os grupos, mas na hierarquização social dos mesmos (bonitos e feios).
A experiência de realizar os grupos focais nos trouxe esclarecimentos sobre a separação entre os grupos. Mostrou principalmente que apesar dos posicionamentos a favor e contra as cotas não se deflagrarem em forma de debate, se expressam na configuração das relações entre os estudantes. Por outro lado, a possibilidade de participação em um debate aberto nos grupos focais mostrou a generosidade com que os estudantes de todos os grupos expressaram suas ideias e compartilharam experiência, demonstrando o potencial a importância da 'simples' abertura de espaço para elaborar sobre o tema.
Como agenda para estudos futuros é preciso investigar a interação dos alunos com os professores citada de forma unânime pelos grupos como determinante para a inclusão do aluno cotista. Outra análise necessária se faz no âmbito da universidade como organização, para identificar práticas reificadoras da separação entre os grupos e de suas diferenças na formação. Por fim, é preciso investigar a percepção de estudantes de outros cursos e áreas de conhecimento, assim como estudantes pertencentes a contextos menos excludentes. Isso permitirá conhecer contextos de diversidade com maior integração intergrupal e os aspectos que favorecem esta integração.
Referências
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Endereço para correspondência:
Elisa Maria Barbosa de Amorim Ribeiro
Rua Vicente de Finis, 170, Urbanova
São José dos Campos. SP
CEP: 12244320
Fone: 12 3322 0522/ 11 9 99407247
ribeiro.emba@gmail.com
Recebido: 17/09/2018
1ª Reformulação: 26/03/19
2ª Reformulação: 24/06/19
Aceito: 02/09/2019
1 Este artigo é oriundo da tese de doutorado: Análise de redes sociais e relações intergrupais: a convivência entre cotistas e não cotistas e suas influências na formação acadêmica. Elisa Maria Barbosa de Amorim Ribeiro. Universidade Federal da Bahia. 2015. O projeto foi apoiado pelo Programa Pense, Pesquise e Inove a UFBA (edital 2014).
Sobre os autores:
Elisa Maria Barbosa de Amorim Ribeiro é Doutora em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia. Professora da Universidade Paulista. Instituto de Ciências Humanas. Curso de Psicologia. São José dos Campos, SP, Brasil.
orcid.org/0000-0002-4550-454X
Adriano de Lemos Alves Peixoto é Doutor em Psicologia pela University of Sheffield. Professor da Universidade Federal da Bahia, Instituto de Psicologia, Pós Graduação em Psicologia, Salvador Bahia/ Brasil.
orcid.org/0000-0003-1962-1571
Antônio Virgílio Bittencourt Bastos é Doutor em Psicologia pela Universidade de Brasília. Professor Titular da Universidade Federal da Bahia, Instituto de Psicologia, Pós Graduação em Psicologia, Salvador Bahia/ Brasil.
orcid.org/0000-0002-1322-5749