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Winnicott e-prints

versão On-line ISSN 1679-432X

Winnicott e-prints vol.2 no.2 São Paulo  2007

 

ARTIGOS

 

Melanie Klein e as fantasias inconscientes

 

Melanie Klein and the unconscious fantasies

 

 

Marcella Pereira de Oliveira*

Universidade Paulista

 

 


RESUMO

Este artigo é um estudo a respeito das principais características das fantasias inconscientes com base na teorização kleinian. Encontra–se dividido em três partes principais: a primeira é uma introdução que inclui a contextualização da autora que norteia o estudo e uma introdução à temática das fantasias com base na teoria de Melanie Klein. A segunda é uma reflexão acerca das principais características a respeito das fantasias inconscientes abordadas pela teorização kleiniana. A terceira e última contém uma conclusão acerca de tudo que foi abordado ao longo do artigo. Como material de trabalho, foram utilizadas tanto obras de autoria de Melanie Klein quanto outras produzidas por seguidores da mesma, na função de comentadores.

Palavras chave: Fantasia; Klein; Imaginário; Inconsciente; Psicanálise.


ABSTRACT

This article is a study as to the principal characteristics of the unconscious fantasies based on Klein's theory. It is divided in three main parts: the first one is an introduction that includes the presentation of the author who orientates the study and an introduction to the theme of the fantasies on basis of the theory of Melanie Klein. The second one is a reflection about the principal characteristics as to the unconscious fantasies boarded by Klein's theory. The third and last one contains a conclusion about everything that was boarded along the article. Like material of work, they were used so much works of authorship of Melanie Klein all that others produced by followers of same, in the commentators' function.

Key–words: Fantasy; Klein; Imaginary; Unconscious; Psychoanalysis


 

 

1. Introdução

Melanie Klein, psicanalista nascida na Áustria, iniciou seus estudos através do incentivo de seu então analista, Karl Abraham, um importante seguidor de Sigmund Freud. Este autor merece um destaque devido a sua contribuição no desenvolvimento de uma teoria psicanalítica que destacava a agressividade como algo de importância primordial durante os primeiros meses de desenvolvimento da criança, o que pode ser considerado o ponto de partida da teorização kleiniana.

Esta autora austríaca pode ser denominada de principal representante da segunda geração psicanalítica mundial (Roudinesco & Plon, 1998), já que transformou o freudismo clássico, criando uma nova forma de análise, a análise de crianças. Partindo do âmbito fisiológico da teoria freudiana, Klein aprofundou–se na dimensão psicológica, com intuito de estudar a mente das crianças de tenra idade, suas fantasias, medos, angústias, etc. Sua primeira tarefa foi desenvolver uma técnica de análise que viabilizasse o acesso ao inconsciente da criança, já que não é esperado que uma criança pequena colabore com a técnica da associação livre (Money–Kyrle, 1980). Ela desenvolveu então a análise através da brincadeira. Por meio da atividade lúdica, a autora interpretava as fantasias, as angústias, e outras manifestações do inconsciente da criança, as quais eram expressas de maneira simbólica.

Klein diverge do pai da psicanálise em relação à importância crucial que este atribui à sexualidade, na medida em que ela coloca a agressividade, inata na criança, como central em sua teoria, ao invés da vida sexual (Jorge, 2007). Pode–se concluir que esta autora ampliou o freudismo ao estudar estes sentimentos inatos, presentes nas relações do neonato com sua mãe; bem como ao aprofundar–se nos fenômenos psicóticos, já que estes foram abordados por Freud de maneira escassa. Ela produziu uma teoria nova na psicanálise, a qual estuda minuciosamente, de maneira integrada, todos os fenômenos psíquicos desde o nascimento até a morte. A teorização kleiniana a respeito das fantasias inconscientes é extremamente precisa e detalhada (Riviere, 1986a). Pode–se dizer que a autora aumentou o poder da análise clínica e aplicada, ao abordar estes fenômenos que não foram explorados por Freud (Money–Kyrle, 1980).

Uma das principais contribuições da teorização kleiniana são os conceitos de posição esquizo–paranóide e posição depressiva. Estes são períodos normais do desenvolvimento que perpassam a vida de todas as crianças, tais como as fases do desenvolvimento psicossexual criadas por Freud (1905/1969). Contudo, são mais maleáveis do que estas fases, devido ao fato de instalarem–se por necessidade, e não por maturação biológica (embora a autora não deixe de considerar as fases da teoria freudiana a respeito do desenvolvimento infanto–juvenil).

O bebê nasce imerso na posição esquizo–paranóide, cujas principais características são: a fragmentação do ego; a divisão do objeto externo (a mãe), ou mais particularmente de seu seio, já que este é o primeiro órgão com o qual a criança estabelece contato, em seio bom e seio mau – o primeiro é aquele que a gratifica infinitamente enquanto o segundo somente lhe provoca frustração – a agressividade e a realização de ataques sádicos dirigidos à figura materna (Simon, 1986). A partir da elaboração e superação destes sentimentos emerge a posição depressiva. Esta tem como principais atributos: a integração do ego e do objeto externo (mãe/ seio), sentimentos afetivos e defesas relativas à possível perda do objeto em decorrência dos ataques realizados na posição anterior. Estas posições continuam presentes pelo resto da vida, alternando–se em função do contexto, embora a posição depressiva predomine num desenvolvimento saudável (Simon, 1986).

 

2. Melanie Klein e as fantasias inconscientes

Em sua clínica, Klein (Mezan, 2002) percebe que as crianças têm uma imagem de mãe dotada de uma imensa malvadeza, o que, na maioria das vezes, não corresponde à mãe verdadeira. Daí surge o conceito de fantasia kleiniano, a partir da hipótese de que as crianças estão lidando com uma deformação da mãe real, a qual é criada na mente do infante de modo fantasmático. Melanie Klein apoiou toda sua teoria na ênfase das fantasias inconscientes, presentes nas relações objetais primitivas.

A fantasia kleiniana: definições

De acordo com a teorização kleiniana e de suas seguidoras — Heimann (1986), Isaacs (1986) e Segal (1966) — as fantasias são inatas no sujeito, uma vez que são as representantes dos instintos1, tanto os libidinais2 quanto os agressivos, os quais agem na vida desde o nascimento. Elas apresentam componentes somáticos e psíquicos, dando origem a processos pré–conscientes e conscientes, e acabam por determinar, desta forma, a personalidade. Pode–se concluir que as fantasias são a forma de funcionamento mental primária, de extrema importância neste período inicial da vida.

É possível a distinção entre dois conceitos de fantasia: phantasy, com ph, a qual corresponde à atividade de fantasia inconsciente; e fantasy com f, a qual corresponde à atividade fantasmática consciente (Isaacs, 1986). A fantasia pode ser definida como a representante psíquica do instinto e expressa a realidade de sua fonte, interna e subjetiva, embora esteja ligada à realidade objetiva. Ela se transforma de acordo com o desenvolvimento, no decorrer das experiências corporais, sendo ampliada e elaborada, influenciando e sendo influenciada pelo ego em maturação.

Segundo Riviere (1986b), outra seguidora de Melanie Klein, a vida de fantasia do indivíduo pode ser entendida como "a forma como suas sensações e percepções reais, internas e externas, são interpretadas e representadas para ele próprio, em sua mente, sob a influência do princípio de prazer–dor" (Riviere, 1986b, pp. 52, 53).

A origem e a função da vida fantasmática

Melanie Klein, partindo de obras freudianas, toma como principal ponto de enfoque das fantasias sua dimensão imaginária. Para a autora, a atividade fantasmática está presente na vida desde o nascimento — embora as fantasias primitivas sejam processos altamente desconexos, instáveis e contraditórios. Qualquer estímulo sentido pela criança é um potencial eliciador de fantasias, tanto os agressivos – os quais acarretam fantasias agressivas — quanto os prazerosos – os quais, por sua vez, são causadores de fantasias calcadas no prazer.

O primeiro alvo das fantasias da criança é o corpo da mãe, já que ela é o principal objeto com o qual a criança se relaciona em seus primeiros dias de vida. As fantasias acerca da exploração do corpo materno são de extrema importância para a descoberta do mundo externo pela criança. A pulsão de exploração, fundamental para os trabalhos artísticos e científicos, tem sua base nestas fantasias (Klein, 1996).

De acordo com a teorização kleniana, as principais atividades que podemos concluir como sendo as funções da fantasia são: a realização de desejos; a negação de fatos dolorosos; a segurança em relação aos fatos aterrorizadores do mundo externo; o controle onipotente – já que a criança, em fantasia, não apenas deseja um acontecimento como realmente acredita fazer com que ele aconteça –; a reparação, dentre outras.

O funcionamento inicial da criança é através da vida de fantasia, a qual, progressivamente, através das relações objetais, cederá lugar às emoções mais complexas e aos processos cognitivos. Pode–se dizer que a criança de tenra idade suplementa a lógica pela vida fantasmática, na qual estão sempre presentes tanto fatores biológicos quanto ambientais, o que determina que as fantasias, embora obedeçam a certos padrões, sejam infinitamente variáveis. A vida de fantasia é, portanto: "o terreno donde jorram a mente e a personalidade individuais" (Klein, 1986b, p. 284).

A liberação da vida fantasmática ocorre, principalmente, através da atividade lúdica, uma vez que esta é a principal atividade da criança pequena. Ela ainda não expressa seus sentimentos e desejos subjetivos por meio de palavras. Desta forma, é preciso estimular a brincadeira das crianças, já que dando rédea solta à atividade lúdica ela está, consequentemente, liberando suas fantasias inconscientes. Estas brincadeiras podem ser de qualquer tipo: brinquedos, desenhos, jogos, bolas, bonecas, etc.

A fantasia pode ser entendida como a atividade que, em decorrência da ausência de plasticidade e representações verbais, realiza, em ação, o desejo subjacente à mesma, o que é acompanhado por reais excitações físicas nos órgãos utilizados para isto. A relação entre a fantasia e a realização de um desejo sempre foi enfatizada pela teorização kleiniana (Isaacs, 1986). Esta relação pode ser vista na vinculação que a autora realiza entre a fantasia e o princípio do prazer. A imaginação relativa a tudo o que é belo e prazeroso é desenvolvida nos desejos e fantasias.

No início da vida, o princípio do prazer reina em absoluto na mente da criança. A partir do momento em que ela se torna capaz de estabelecer uma relação entre seus desejos e fantasias e a realidade, é estabelecido, então, o princípio de realidade. O sentimento de onipotência, oriundo dos impulsos do id de tudo desejar a qualquer tempo e circunstância, perde força para a entrada do compromisso com a realidade, a qual impõe restrições a certas fantasias e desejos. Desta forma, tudo o que é prazeroso, mesmo que seja fantasiado, está vinculado ao princípio do prazer, ao passo que o que é relacionado ao pensamento racional, concreto, que pode ser cientificamente comprovado, está vinculado ao princípio de realidade.

As relações objetais

De acordo com Klein (Leader, 2001), a fantasia pode ser considerada uma estrutura através da qual o sujeito se relaciona com os objetos exteriores. Durante o período inicial da vida, a mente infantil funciona basicamente através de fantasia inconsciente, a qual suplementa o pensamento racional enquanto este não estiver desenvolvido. Este funcionamento mental provoca ansiedades e angústias diversas, as quais estão relacionadas ao caráter destas fantasias primitivas, dotadas de conteúdos delirantes (Riviere, 1986a).

Como exemplo, podem ser mencionadas as fantasias da criança de que o objeto externo – seio, nos primeiros meses de vida – é mau e persecutório, já que não a gratifica sempre que ela deseja. Esta frustração, por sua vez, ocasiona explosões agressivas por parte da criança, pois ela precisa se vingar deste seio ruim. Para realizar esta vingança, a criança utiliza todas as armas disponíveis, tais como os dentes, unhas, e até mesmo excreções. O controle dos esfíncteres que, concomitantemente, está ocorrendo neste período, é usado também para o controle dos excrementos nos ataques à mãe. A criança sente como se estivesse expelindo um objeto perigoso de seu mundo interno e projetando–o no objeto externo.

Concomitantemente, também existe a imagem de um seio bom, o qual atende a todas as necessidades da criança. Esta divisão do seio é necessária para a proteção deste seio bom, pois, desta forma, todos os ataques agressivos são dirigidos ao seio mau, preservando o bondoso. O seio mau é então sentido, nas fantasias infantis, como se estivesse dilacerado, reduzido a fragmentos; enquanto o bom permanece íntegro, completo.

 

A introjeção e a projeção

A vida fantasmática auxilia o sujeito na formação da impressão de seu mundo externo e interno, através dos processos de introjeção e projeção (Klein, 1986a). Estes mecanismos são os determinantes no estabelecimento dos objetos bons e maus dentro no mundo interno da criança. Eles atuam de diversas maneiras, baseados nos impulsos instintivos, e são determinantes nos processos de formação do ego e superego, ou seja, na formação da personalidade (Heimann, 1986).

Portanto, esta formação ocorre através das fantasias introjetivas e projetivas, as quais determinam a relação do sujeito para com seu mundo externo. Durante toda a vida, a introjeção e projeção continuam presentes nos processos de adaptação do sujeito, em seus progressos e derrotas. Ambas têm suas origens nos instintos orais (o engolir e o cuspir), a partir dos quais as relações maduras vão se desenvolver com as ações de dar e receber, a função de procriação e a criatividade.

A introjeção corresponde ao mecanismo primitivo do bebê de introjetar todos os objetos — começando pelo seio materno, seguido pelo polegar, por brinquedos, etc. A este seio é atribuído poderes sobrenaturais de onipotência tanto para o bem quanto para o mal, já que ele é capaz tanto de uma gratificação infinita, quanto de uma frustração imensa (quando não satisfaz a criança no momento em que ela deseja). Quando o seio é visto como gratificador, todos os sentimentos bons são associados a ele; da mesma forma, quando é visto como mau é o depositário de todos os sentimentos destrutivos. Aos posteriores objetos que também são sugados pela criança são atribuídos os mesmos poderes do seio, uma vez que, em suas fantasias imaginativas, estes objetos o substituem.

Já a projeção tem sua origem nas identificações projetivas que a criança de tenra idade faz em suas fantasias. Como ela ainda não estabeleceu a distinção entre o seu corpo e o corpo de sua mãe, ela percebe este como um prolongamento dela mesma. A genitora passa a ser, desta forma, a representante da própria criança, o que justifica que falemos em uma identificação projetiva. Na projeção encontram–se mecanismos que eram tanto, originalmente, do mundo interior quanto outros que eram, originalmente, do mundo exterior. Como exemplos de fantasias projetivas podem ser mencionados os ataques realizados pela criança através de seus excrementos, entendidos como armas perigosas, para com o objeto externo persecutório – seio da mãe, nos primeiros meses de vida.

Em suma, através dos mecanismos de introjeção e projeção a criança constrói seu mundo interno, sua personalidade, por meio da elaboração destas fantasias. Eles são fundamentais no desenvolvimento emocional e cognitivo, em todas as construções vitais. É importante ressaltar que estes processos não podem ser entendidos como duas entidades separadas, mas sim como um todo; ambos constituem uma experiência única.

A constituição do sujeito: um percurso nas manifestações fantasmáticas ao longo do desenvolvimento

O primeiro e principal alvo das fantasias primitivas da criança é o corpo da mãe (Klein, 1963) A criança, em sua vida fantasmática, tem a imagem do corpo da genitora como algo capaz de lhe proporcionar a mais plena gratificação, uma vez que este é, em fantasia, o possuidor de que tudo o que pode provocar–lhe satisfação, tal como o seio, o pênis do pai e ainda os bebês, possíveis irmãos.

A fantasia, inata na vida da criança, é inicialmente de caráter oral (Klein, 1981), já que Melanie Klein concorda com Freud que a fase oral é a primeira a se desenvolver logo após o nascimento. As primeiras fantasias a se manifestarem são as sádicas, originárias da posição na qual o bebê nasce – esquizo–paranóide – as quais despertam uma imensa ansiedade (Klein, 1963). Seus eliciadores são, principalmente, voracidade, inveja e ódio. Como exemplo, podem ser mencionadas as fantasias do bebê de divisão do seio em um seio bom e um seio mau: enquanto o primeiro é o responsável pela gratificação infinita, o segundo é aquele que frustra infinitamente, já que não está presente no momento que a criança deseja. Contra este seio mau a criança inicia uma série de ataques, em forma de fantasias, com suas armas orais (dentes, mandíbula). Nestas fantasias ela divide o seio mau em milhões de pedaços, enquanto o seio bom permanece íntegro, representante de toda a bondade.

Com o enfraquecimento do narcisismo que dominava a criança até então, e se o objeto predominante em sua mente for de uma mãe boa, origina–se um sentimento de culpa em decorrência da diminuição da angústia presente nos ataques anteriores, cuja intensidade é correspondente à onipotência do sadismo anterior (Klein, 1981). Este sentimento de culpa é acompanhado de um medo de retaliação por parte dos personagens anteriormente atacados, assim como também por parte dos objetos utilizados como armas para a realização destes ataques, como os dentes e os excrementos.

Conforme o interesse da criança desloca–se de fenômenos associados à boca para outros associados ao ânus, a fase oral perde forças com a emergência da fase anal, na qual predominam fantasias anais. O caráter das fantasias permanece sádico, já que a posição esquizo–paranóide ainda é predominante na vida da criança, porém as armas utilizadas nos ataques em direção ao corpo da mãe passam a ser excrementos como urina e fezes. Daí decorre um temor em relação aos mesmos, o qual, embora pareça destrutivo, é importante para o posterior desenvolvimento. O bebê agora teme uma retaliação por parte destes excretos, em resposta aos ataques realizados anteriormente contra eles.

A criança desenvolve então tendências restitutivas em forma de sublimações3, dirigidas a todos os objetos danificados anteriormente através das fantasias sádicas, principalmente à mãe. O predominante agora é o temor de ser deixada no desamparo, devido à destruição anterior da genitora realizada por ela própria. Estas fantasias reparadoras são extremamente importantes para o desenvolvimento bem sucedido da próxima fase, a genital, a qual prevalecerá durante o resto da vida num desenvolvimento saudável.

A partir da emergência da posição depressiva — em detrimento da esquizo–paranóide — a criança adquire a capacidade de introjeção da figura de seus pais de forma íntegra, completa, em suas fantasias imaginativas. A percepção dos objetos externos como entidades divididas em boas e más perde força nesta etapa, dando lugar à imagem integrada dos mesmos. Esta integração é de extrema importância para a vida futura, na medida em que, a partir de então, as pessoas começam, gradualmente, a serem vistas do modo como realmente são; os aspectos bons e ruins são percebidos como presentes em uma pessoa só.

Desta maneira, emerge na mente do infante um medo de perseguições externas e internas por parte dos pais, decorrente dos ataques agressivos realizados, anteriormente, em fantasia (Klein, 1948). Este medo forma a parte cruel do superego, provocando ansiedade. A criança tenta vencê–lo de uma maneira maníaca onipotente, no combate à emergência da posição depressiva. Para isso, ela utiliza as fantasias maníacas, as quais têm como intuito o controle dos objetos, tais como o seio, os próprios pais e até mesmo os excrementos da criança. Estas fantasias aparecem com todas as características de onipotência do próprio distúrbio maníaco.

Outra mudança que ocorre na vida de fantasia é a sua gradual adaptação à realidade. Até então as crianças não distinguiam o que é real e o que é fantasiado, já que a vida fantasmática as dominava completamente. Com a emergência da posição depressiva, as fantasias são ampliadas, elaboradas e diferenciadas, refletindo o progresso que está ocorrendo no desenvolvimento intelectual e emocional (Klein, 1986a). Consequentemente, é possível ao bebê a distinção entre seu desejo e o ato realizado, ou seja, entre a fantasia e a realidade. Esta mudança é devida à diminuição da severidade do superego e a um aumento do sentimento de culpa, o qual é proporcional à intensidade do sadismo anterior. Os ataques sádicos caminham, então, para o desaparecimento.

Prosseguindo no desenvolvimento, durante o período de latência a criança passa a reprimir suas fantasias de uma maneira muito mais severa do que nos períodos anteriores. Enquanto a criança pequena sofre influência imediata de suas experiências e fantasias instintivas, a criança do período de latência já as dessexualizou, assimilando–as de uma maneira diferente (Klein, 1981). Ela passa a reprimir suas fantasias masturbatórias, ou a expressá–las de maneira dessexualizada, para assim atingir as exigências de seu ego e o agrado dos mais velhos, o que passa a ser extremamente importante neste período.

Desta maneira, as fantasias podem estar contidas em atividades nas quais elas não se manifestam claramente, como nos deveres de casa da criança: "as fantasias de cópula ativa dos meninos também emergem em jogos ativos e no esporte, e também encontramos nos pormenores desses jogos as mesmas fantasias expressas na sua lição de casa" (Klein, 1981, p. 322).

Já durante o período de puberdade, os impulsos tornam–se mais poderosos, a atividade de fantasia maior e o ego passa a ter outros objetivos, além de relacionar–se de forma diferente com a realidade. Neste período há — como na criança pequena — uma predominância dos movimentos pulsionais e do inconsciente, o que contribui para a riqueza de sua vida de fantasia. Pode–se dizer que, de uma certa forma, há uma regressão do adolescente aos primórdios da infância, já que há uma nova vivência destes impulsos e fantasias. A sexualidade, que tinha passado por um período de repressão durante a latência, retorna de uma forma mais madura com a tomada de consciência dos impulsos incestuosos do período edipiano, trazendo consigo as fantasias sexuais.

Contudo, as atividades imaginativas do adolescente estão mais adaptadas à realidade e aos interesses incrementados de seu ego, sendo seu conteúdo muito menos reconhecível do que nas crianças pequenas. Além disso, devido à sua maior gama de atividades e suas relações mais firmes com a realidade, o caráter de suas fantasias sofre contínuas alterações, as quais proporcionam uma adaptação ao seu contexto em contínua mudança.

Embora as fantasias inconscientes pareçam perder influência durante a vida adulta, elas continuam tão presentes quanto na criança. Contudo, neste estágio a vida fantasmática se mostra mais diferenciada da realidade, o que quer dizer que os adultos têm uma capacidade, inexistente nas crianças pequenas, de distinguir o que é pertencente à esfera do real do que é pertencente à esfera do mundo fantasmático, dominado pelo princípio do prazer. Seus efeitos inconscientes são provas desta presença, já que as fantasias permanecem ativas no posterior desenvolvimento da sexualidade em inúmeros distúrbios sexuais, até mesmo na perversão (Klein, 1927a/1948).

Quando o sujeito amadurece — psiquicamente e biologicamente — suas fantasias inconscientes infantis são realizadas no estado adulto, ou seja, os desejos e impulsos que anteriormente acarretavam um grande sentimento de culpa são livremente realizados em fantasia, já que a vida fantasmática adulta é pertencente a uma entidade diferenciada da realidade.

A diferenciação entre o que é pertencente à vida de fantasia e o que é real torna–se então mais nítida na vida adulta, o que não quer dizer que um processo opere de forma independente do outro. De acordo com a teorização kleiniana, "o pensamento de realidade não pode operar sem a concorrência e apoio de fantasias inconscientes" (Isaacs, 1986, p. 124).

 

Fantasias e conteúdos patológicos

Para Melanie Klein (Isaacs, 1986), as fantasias estão presentes tanto em mentes normais como nas neuróticas, perversas e psicóticas, em todas as faixas etárias. O que diferencia uma manifestação fantasmática normal de uma patológica é a maneira como as fantasias são tratadas, os processos mentais através dos quais são trabalhadas e modificadas e o grau de adaptação ao mundo real. O neurótico pode ser considerado diferente na medida em que mostra mais claramente aquilo que aparece encoberto na mente normal, portanto seu desenvolvimento não é seriamente prejudicado, apenas a censura não atua de forma satisfatória.

Já o psicótico permanece fixado aos primórdios da infância, apresentando fantasias típicas da tenra idade em anos posteriores ao esperado, as quais são extremamente intensas e repletas de conteúdos angustiantes (M. Klein, 1996). Pode–se dizer que ele acaba vivendo isolado em seu mundo de fantasia, já que este domina sua mente de tal maneira que não permite a entrada da realidade na psique.

Nas fantasias neuróticas apenas uma parte da realidade é reconhecida; há uma negação da outra parte desta, a qual permanece subordinada a vida de fantasia, onde a censura não atua (Klein, 1996). Já nas mentes livres de qualquer tipo de perturbação psíquica — o que é extremamente raro — há um equilíbrio melhor entre a fantasia e a realidade. Elas não deixam de fantasiar, porém sua atividade de fantasia é mais bem elaborada, livre de repressões e está em conformidade com a realidade.

A principal gênese das neuroses patológicas consiste em fixações de fantasias primárias (fantasias primitivas, pertencentes aos estágios orais e anais primordiais). Estas fantasias primárias estão relacionadas, em sua maioria, a conteúdos sexuais, inclusive ao ato sexual dos próprios pais. A fantasia dos pais combinados eternamente no ato sexual – a qual costuma acontecer em crianças de poucos meses de vida – contribui para a emergência de quadros psicóticos se for recorrente e acompanhada de intensa ansiedade.

 

Fantasias e conteúdos sexuais

Assim como o pai da psicanálise que, desde o início de sua teorização acerca da vida fantasmática, abordou as fantasias inconscientes sempre vinculadas a conteúdos sexuais (Freud, 1895/1969) sua seguidora Melanie Klein também ressalta esta ligação. Klein concorda com Freud ao conceber a vida como uma luta constante entre os instintos de vida e de morte, sendo que a sexualidade é o alicerce para o desenvolvimento do primeiro (Temperley, 2001).

A importância do conteúdo sexual das fantasias pode ser comprovada num estágio posterior da vida (Klein, 1996). Embora durante a vida adulta as fantasias não sejam manifestadas tão claramente como nas crianças, elas continuam atuantes na psique. Seus efeitos inconscientes podem ser vistos em distúrbios sexuais como a frigidez, a impotência, dentre outros.

Por trás de cada forma de atividade lúdica encontra–se um processo de descarga de fantasias masturbatórias, as quais operam na forma de uma contínua motivação para a brincadeira. Quando estas fantasias são reprimidas, as brincadeiras, por conseguinte, são paralisadas; ao passo que a liberação fantasmática permite à criança brincar livremente (Klein, 1921/1948). Vinculadas às fantasias masturbatórias da criança estão suas experiências sexuais, as quais encontram também representação nas suas brincadeiras "uma das importantes conquistas da psicanálise é a descoberta de que as crianças têm uma vida sexual que encontra expressão tanto em atividades sexuais diretas quanto em fantasias sexuais" (Klein, 1981, p. 159).

A liberação destas fantasias masturbatórias é essencial não só para a atividade lúdica como também para todas as posteriores sublimações (Klein, 1996). Inibições graves tanto nas brincadeiras como em todo o aprendizado da vida da criança, inclusive no aprendizado da sexualidade, têm sua origem na repressão destas fantasias. Portanto, uma vida sexual satisfatória depende da liberação da vida fantasmática, principalmente das fantasias masturbatórias. As representações que as crianças do ato sexual dos pais podem ser consideradas o conteúdo primordial que se encontra por trás destas fantasias, as quais só são passíveis de revelação depois de um período considerável de análise e do consequente estabelecimento na criança de conteúdos genitais.

A autora ressalta que uma interrupção das fantasias masturbatórias provoca não apenas uma interrupção da atividade lúdica como também compromete toda a vida futura da criança. Ela pode vir a ter sua capacidade de sublimação prejudicada e está propícia a desenvolver diversos tipos de neuroses (Klein, 1981). Esta afirmação pode ser comprovada através da análise de fobias infantis que têm como alicerce a repressão destas fantasias, as quais sempre vêm acompanhadas de intensos sentimentos de culpa. Como exemplo pode ser mencionado o caso do menino Fritz, cuja fobia era um temor a árvores, ao qual correspondia uma fantasia subjacente: a equivalência do tronco de árvore ao pênis do pai. Fixações artísticas e intelectuais, ou até mesmo alguns tipos de neuroses, têm como fator etiológico, na maioria das vezes, fantasias acerca da cena primária que não foram descarregadas devidamente (Klein, 1923/1948).

As situações prazerosas — quer as reais, quer as fantasiadas — precisam ser descarregadas, de acordo com a liberdade oferecida pelo ego. Um bom exemplo de fantasia dotada de conteúdos sexuais não descarregada é a que resulta no sintoma histérico. Este nada mais é do que uma fixação de fantasias, as quais atuam com tanta força que não é possível ao ego permitir sua total descarga. Desta forma, a sublimação pode ser compreendida como um mecanismo saudável, no qual a energia sexual presente nas fantasias sexuais é deslocada de sua finalidade principal para uma nova atividade substituta. Esta atividade pode ser um trabalho, uma ocupação, uma brincadeira, etc. O desenvolvimento de um interesse por um trabalho criativo, como o trabalho dos artistas, depende, então, da capacidade de sublimação das fantasias sexuais.

A fantasia no trabalho analítico

Melanie Klein ressalta a importância da análise ao dizer que o trabalho analítico é uma importante via de acesso à vida fantasmática (Klein, 1927b/1948) e que está dominado, desde o primeiro momento, pelas fantasias inconscientes, de forma a possibilitar a experimentação das mesmas pelas das crianças, através de seus jogos.

De acordo com Isaacs (1986) a relação do paciente com o seu analista é praticamente inteira de fantasias inconscientes. As manifestações da vida fantasmática estão presentes em todas as vocalizações do paciente, em seu estilo verbal: a cadência da fala, as repetições, a forma de mudança do relato, suas negações, a maneira como narra os acontecimentos passados e as pessoas envolvidas nestes; enfim, em todas as formas de transferência (Hinshelwood, 2001).

Klein enfatizou sua clínica na análise de crianças a qual, de acordo com a autora, tem a mesma função da análise de adultos: a interpretação de fantasias inconscientes (Benvenuto, 2001). A autora era contra outras funções expostas por diversos autores; tais como educação e fortalecimento.

No caso de crianças pequenas, suas fantasias inconscientes são expressas, simbolicamente, através de sua atividade lúdica, cabendo ao analista a interpretação destas brincadeiras, de forma a elucidar as fantasias subjacentes a elas e analisá–las. Qualquer tipo de brincadeira é um possível continente de fantasias e desejos inconscientes.

Klein (1980b) enfatiza a importância da criança brincar livremente, para que suas fantasias, sua agressividade e suas angústias possam ser liberadas naturalmente. Jogos infantis; brincadeiras com bola, boneca, carrinhos, blocos; massinha; desenhos; pinturas; obras de arte feitas com barbante, cola, tesoura, papel e água; narrativas de sonhos diurnos, todos estes são meios de expressão da vida fantasmática inconsciente que existe em todas as crianças. Por meio da interpretação destes meios de expressão podemos reduzir a ansiedade presente e ganhar acesso à vida de fantasia. A autora inglesa enfatiza a questão de que o analista deve interpretar as mais diversas manifestações fantasmáticas, já que estas são vias de acesso ao mais profundo inconsciente.

 

3. Palavras finais

Em consequência a tudo que foi refletido, pode–se pensar a fantasia kleiniana como a representante do instinto, inata na vida sujeito, cuja matriz está na percepção sensorial, determinante da atitude da criança em relação a seus objetos (Klein, 1963). É importante ressaltar que Melanie Klein construiu toda a sua teorização a respeito das fantasias com ponto de enfoque na dimensão imaginária.

A teorização kleiniana aponta para diversas funções da fantasia, sempre baseada nas relações objetais, como: proteger o objeto bom e mantê–lo distinto do mau; manter um refúgio para a dura realidade imposta pelo mundo externo, preservando os objetos bons dentro do "eu"; e ainda, a principal de todas, contribuir para a formação da personalidade, na medida em que é responsável pela formação do ego e do superego, através dos mecanismos introjetivos e projetivos.

Desta forma, pode–se concluir que as fantasias atuam na mente de crianças, adolescentes e adultos, ao longo de todo o desenvolvimento psíquico, por meio de diferentes conteúdos imaginários.

 

Referências

Benvenuto, B. (2001). Era uma vez: o bebê na teoria lacaniana. In B. Burgoyne & M. Sullivan (Orgs.), Diálogos Klein–Lacan. São Paulo: Via Lettera.

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*Psicóloga formada pela USP, mestranda em psicanálise pela UFSC. Atualmente atua como professora na UNIP e como psicóloga clínica em consultório particular.
1 Termo utilizado pela escola kleiniana para representar o lado animal existente em todos os seres humanos ao nascimento. Foi substituído por Freud pelo termo pulsão, o qual representa o equivalente humano do instinto. Com esta substituição, o pai da psicanálise ressalta que os seres humanos vão além dos outros animais pela capacidade cognitiva. De acordo com Roudinesco e Plon (1998), pulsão é a "Carga energética que se encontra na origem da atividade motora do organismo e do funcionamento psíquico inconsciente do homem" (p. 628).
2 Libido é um termo conceituado por Sigmund Freud para designar a manifestação da pulsão sexual na vida psíquica e, por extensão, a sexualidade humana em geral e a infantil em particular (Roudinesco; Elisabeth; Plon, 1998).
3 A sublimação é uma atividade humana, conceituada por Freud, que não tem nenhuma relação aparente com a sexualidade, mas que extrai sua força da pulsão sexual, na medida em que esta se desloca para um alvo não sexual, investindo objetos socialmente valorizados (Roudinesco; Elisabeth; Plon, 1998).