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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427

Mental vol.10 no.19 Barbacena dez. 2012

 

A metáfora enquanto ponto de basta: uma articulação possível entre a noção de metáfora e a teoria dos nós

 

The metaphor as a point padding: a possible link between the notion of metaphor and the theory of knots

 

 

Juliana Gonçalves MenicucciI; Jésus SantiagoII

IPsicóloga. Mestre em Psicologia, na área de concentração em Estudos Psicanalíticos (UFMG). Psicóloga do Instituto Raul Soares
IIPsicanalista. Pós- doutorado em Psicopatologia e Psicanálise (UFRJ). Doutor em Psicopatologia e Psicanálise (Université Paris VIII). Professor adjunto da Universidade Federal de Minas Gerais

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

O artigo busca uma articulação entre a noção lacaniana de metáfora delirante e algumas ferramentas conceituais forjadas posteriormente por Lacan. Um dos pontos a ser levantado refere-se à teoria lacaniana dos pontos de basta. Partindo de algumas formulações do campo da linguística, desenvolve-se um percurso teórico orientado em torno da conceituação da metáfora. Busca-se na noção de ponto de basta alguns elementos que abram para a perspectiva da amarração sinthomática. Trata-se, portanto, de indagar se o ponto de basta é um nó, o que só é possível a partir da extração de algumas consequências advindas das formulações posteriores de Lacan.

Palavras-chave: Metáfora linguística; metáfora paterna; metáfora delirante; ponto de basta; significante; significado.


ABSTRACT

The article seeks to reconcile the notion of lacanian delusional metaphor and some conceptual tools forged later by Lacan. One of the points to be raised refers to the lacanian theory of points enough. Starting with some formulation in the field of linguistic, is develping a theoretical path oriented around the concepto f methaphor. Search on the notion point padding a few elementes that are open for the perspectiva mooring sinthomatica. It is therefore to ask whether the pont is simple a node, which is only possible from the extraction of some consequences coming from the later formulations of Lacan.

Keywords: Linguistic metaphor; paternal metaphor; metaphor delirious; point padding; significant; meaning.


 

1 Introdução

A metáfora delirante, apesar de paradigmática, é uma noção que traz consigo algumas lacunas, em termos tanto conceitual quanto de sua operatividade clínica. Certamente, precisar tal noção não é tarefa simples, pois trata-se de uma ferramenta conceitual, que perde a importância ao longo do ensino de Lacan, já que ele praticamente não volta a esse termo. Além disso, a clínica das psicoses conta hoje com dispositivos de tratamento que não privilegiam a metáfora delirante como tratamento possível. Decerto, encontram-se nesses impasses elementos que ajudarão a compreender por que nas formulações posteriores de Lacan a metáfora delirante ocupará um lugar marginal.

É interessante marcar que não se pretende trabalhar o último ensino de Lacan e, sim buscar em sua doutrina da metáfora elementos que sinalizem sua tentativa de dar conta dos instrumentos clínicos com que ele se defrontava, mas que só puderam ser formalizados com o auxílio do aparato da linguística estrutural. Trata-se de buscar na própria formulação da metáfora delirante algo que descortine a perspectiva do sinthoma.

Um dos pontos a ser levantado refere-se à teoria lacaniana dos pontos de basta. Mas o desenvolvimento dessa questão exige a construção de um percurso teórico orientado pela seguinte pergunta: Qual é o estatuto da metáfora no campo da psicanálise? Para tal análise, situa-se a metáfora a partir de três vertentes: a metáfora linguística, a metáfora literária e a metáfora paterna/delirante. Certamente, recolocar em discussão essa figura de linguagem que é a metáfora, por meio de uma formalização conceitual, torna mais consistente a compreensão daquilo que aparece depois no ensino de Lacan.

 

2 A conceituação da metáfora: linguística e psicanálise

A metáfora é uma noção fundamental no âmbito da psicanálise. A forma como Lacan apropriou-se desta figura de linguagem ­possibilitou-lhe formular questões clínicas preciosas e norteadoras daquilo que se pode considerar como pertencente ao campo analítico. O emprego da conceituação de metáfora, no terreno da psicanálise, parece consistir numa verdadeira subversão, já que Lacan se serve desse conceito de maneira absolutamente inédita e o insere em suas formulações ­teórico-clínicas. A metáfora, antes vislumbrada apenas no campo da retórica clássica, da poética ou da linguística, ganhou um importante lugar na psicanálise. E o curioso, ou melhor, a subversão, está no fato de Lacan manter o significante "metáfora" para tratar de algo bem diferente.

É notória a apropriação por Lacan de algumas noções da linguística, assim como sua inserção no campo da psicanálise de maneira bastante peculiar. O trabalho de Roman Jakobson marca consideravelmente o pensamento de Lacan e persiste em diferentes momentos do seu ensino. Para abordar a noção de metáfora em Jakobson, ­recortam-se as questões centrais de sua investigação acerca dos dois eixos de funcionamento da linguagem. Pois foi ancorado nessas formulações da linguística que Lacan estabeleceu sua tese do inconsciente estruturado como uma linguagem, situando a metáfora e a metonímia como dois mecanismos distintos de funcionamento do inconsciente. É preciso, então, localizar e extrair os elementos que Lacan colheu do trabalho de Jakobson sobre as afasias para que se possa compreender a sua formulação da metáfora.

Uma das grandes contribuições de Jakobson foi o seu estudo crítico sobre os dois eixos de funcionamento da linguagem: o paradigmático e o sintagmático. Saussure já havia se detido nessa questão, mas foi Jakobson quem extraiu as consequências disso. Ao associar os dois eixos à metáfora e à metonímia, ele teve a fina percepção de que tais mecanismos poderiam ter uma aplicação metodológica em suas investigações acerca dos fenômenos da afasia e da poesia.

Detém-se aqui apenas naquilo que interessa a esta investigação, ou seja: a metáfora e a metonímia como os dois mecanismos distintos de funcionamento da linguagem. Há, portanto, um duplo caráter da linguagem, que se mostra presente no próprio ato da fala. Quando uma pessoa fala, ela executa dois atos, que se constituem da seguinte maneira: a partir de um arsenal de unidades linguísticas, ela escolhe algumas e relaciona-as entre si até formar unidades mais complexas. Assim, "quem fala seleciona palavras e as combina em frases" (JAKOBSON, 2003, p. 37). Portanto, um discurso apresenta-se sobre dois eixos, que aparecem quando das operações de seleção e combinação. A seleção implica a possibilidade de substituição de um termo por outro, equivalente num aspecto, mas diferente em outro. Assim, seleção e substituição fazem parte da mesma operação. Já a combinação é um agrupamento de unidades linguísticas, articulações que servem de contexto e encontram contexto numa formação mais complexa. Dessa forma, combinação e contexto estão estritamente ligados.

Os distúrbios da fala podem afetar a capacidade tanto de combinar quanto de selecionar as unidades linguísticas, sendo, portanto, imprescindível distinguir qual dessas operações está prejudicada. Seguindo essa direção, Jakobson (2003) aponta para dois tipos principais de afasia, conforme a deficiência principal resida na seleção e substituição ou na combinação e contextura. Assim, as afasias são analisadas segundo dois tipos de distúrbios da linguagem: o da similaridade e o da contiguidade. Em relação às duas figuras de estilo, Jakobson (2003) associa a metáfora à similaridade e a metonímia à contiguidade.

 

3 A metáfora literária

Tomando a poesia como um exercício da metáfora, Lacan (1957) recorre aos versos de Victor Hugo para localizar o modo particular de relação entre significante e significado que se realiza na metáfora. Seu feixe não era avaro nem odiento, eis o exemplo de que Lacan se serve para explicitar o mecanismo de substituição operado pela metáfora, descartando a ideia de que a metáfora é "uma comparação abreviada" (LACAN, 1956/2002, p. 248). Não se trata aqui de uma comparação, mas de uma identificação. Partindo do princípio de que uma metáfora se sustenta por uma articulação posicional, Lacan afirma que o simbolismo expresso na metáfora supõe a similaridade que só pode manifestar-se pela posição. É pelo fato de que o feixe é o sujeito de avaro e odiento que ele pode se identificar com o sujeito Booz. Trata-se, portanto, de uma similaridade de posição possibilitada pela sintaxe da linguagem, que estabelece uma distância entre o sujeito e a articulação predicativa.

Portanto, é a partir dessa referência poética que Lacan analisa o efeito metafórico, mostrando, assim, a relação de substituição de um significante por outro, da qual decorre a produção de um efeito inesperado de sentido. É por meio da substituição de Booz por feixe que se processa toda a eficácia poética que permite a criação de sentido no contexto poético. É importante ressaltar que a substituição significante não implica o desaparecimento completo do significante substituído. É aí que se encontra a metonímia como condição da metáfora, já que é esse mecanismo que possibilita o deslizamento da cadeia significante, em que o significante capturado, apesar de ausente, insiste em marcar sua presença.

A centelha criadora da metáfora não brota da presentificação de duas imagens, isto é, de dois significantes igualmente atualizados. Ela brota entre dois significantes dos quais um substitui o outro, assumindo seu lugar na cadeia significante, enquanto o significante oculto permanece presente em sua conexão (metonímica) com o resto da cadeia. (LACAN, 1957/1998, p. 510).

É valendo-se da metáfora poética que Lacan formaliza a metáfora da seguinte maneira (imagem 1):

 

 

Essa fórmula indica que é a partir da substituição de um significante por outro que advém uma nova significação. O sinal + representa um mais de sentido que só é possível por meio da transposição da barra, transposição necessária para a emergência da significação, que se representa aqui pelo s. O significante que está acima da barra é o significante manifesto - ou seja, feixe - e o significante que se encontra embaixo da barra é o significante substituído, que no exemplo escolhido é Booz. Aqui, o produto da metáfora é a significação da paternidade de Booz.

 

4 Metáfora paterna

Revisitar o conceito de metáfora em Lacan implica necessariamente percorrer outros conceitos, também fundamentais à psicanálise, tais como a noção de pai. Quando Lacan se propôs a abordar o problema da metáfora a partir de sua leitura de Jakobson, estava certo de que a dimensão da verdade ingressa na economia subjetiva por intermédio do pai. Lacan retoma o texto freudiano "Moisés e o monoteísmo" (1939) para marcar o quanto Freud insistiu nessa questão até seus últimos trabalhos. Portanto, é imprescindível considerar a estreita relação entre o problema paterno e o problema da metáfora.

A ideia do pai como metáfora já permeia "O seminário, livro 3: as psicoses" (1955-1956) e "O seminário, livro 4: a relação de objeto" ­(1956-1957). Mas o tratamento linguístico dado por Lacan ao movimento do Édipo e ao da castração, por meio da escrita formal da metáfora paterna, aparece algum tempo depois em "O seminário, livro 5: as formações do inconsciente" (1957-1958) e em "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose" (1957-1958). Nesses trabalhos, Lacan faz do pai um significante - o significante do Nome-do-Pai -, de modo que a função paterna passa a ser vislumbrada como uma função significante, que opera segundo as leis da metáfora.

Em "O seminário, livro 4: a relação de objeto" (1956-1957), Lacan formula a seguinte pergunta: "O que é ser um pai"? (LACAN, 1957/1995, p. 209). Já em "O seminário, livro 5: as formações do inconsciente" ­(1957-1958), ele parte do seguinte princípio: "O pai é uma metáfora" (LACAN, 1958/1999, p. 180). Se uma metáfora se constitui mediante a substituição de um significante por outro, pode-se, a partir dessa afirmação, concluir que "o pai é um significante que substitui um outro significante" (LACAN, 1958/1999, p. 180). Portanto, é aí que reside a função do pai no Complexo de Édipo.

Mas que significante é esse que o pai vem substituir? Trata-se da mãe, enquanto uma simbolização primordial, operada pela criança por meio da subjetivação do par significante ausência-presença materna. É a essa simbolização primordial que Freud se refere ao tratar da brincadeira do fort-da, em que o automatismo da repetição permite à criança simbolizar esse movimento da mãe, que ora está presente, ora está ausente. É essa ausência materna que lança um enigma para a criança, ao apontar-lhe que, para além dela, existe algo que fisga sua mãe.

Portanto, a função do pai no Complexo de Édipo é ser um significante que substitui o primeiro significante introduzido na significação, que é o significante materno. O resultado desse processo de substituição significante é a emergência de uma nova significação: a significação fálica. É essa significação que confere um sentido ao ser do sujeito, estando diretamente ligada às suas identificações imaginárias. A significação fálica permite ao sujeito se orientar na ordem simbólica. Tal operação é formalizada por Lacan da seguinte maneira (imagem 2):

 

 

Trata-se, como se vê, de uma operação metafórica ao nível do significante, "que coloca esse Nome em substituição ao lugar primeiramente simbolizado pela operação da ausência da mãe" (LACAN, 1958/1998, p. 563). Mas para além da operação de substituição há o engendramento de uma nova significação. Ora, se o processo de substituição significante operado pela metáfora paterna possibilita a precipitação da significação fálica, isso implica certa estabilização do sentido. Estaria aí, na operação da metáfora paterna, aquilo que Lacan formalizou como ponto de basta? A esse respeito Lacan esclarece:

De fato, a fórmula da metáfora que lhes forneci não quer dizer nada senão isto: existem duas cadeias, os S do nível superior, que são os significantes, ao passo que encontramos abaixo deles tudo o que circula de significados ambulantes, porque eles estão sempre deslizando. A amarração de que falo, o ponto de basta, é tão somente uma história mística, pois ninguém jamais pode alinhavar uma significação num ­significante. Em contrapartida, o que se pode fazer é atar um significante num significante e ver no que dá. Nesse caso, sempre se produz alguma coisa de novo, a qual, às vezes, é tão inesperada quanto uma reação química, ou seja, o surgimento de uma nova significação. (LACAN, 1958/1999, p. 202).

 

5 Metáfora delirante: uma formulação lacaniana

O conceito de metáfora delirante foi forjado de acordo com um referencial teórico pautado pelos alicerces da linguística e da literatura. Trata-se de uma formulação que é fruto de uma clínica, que concebe o sujeito como um efeito do significante decorrente da articulação de um significante com outro significante. É a clínica da metáfora. É a clínica da interpretação. É a clínica do sentido. É o sintoma enquanto metáfora e, portanto, carregado de sentido e passível de interpretação. Mas não se trata de uma interpretação fechada, e sim de uma interpretação que se abre para múltiplos sentidos, já que estes estão sempre deslizando. Essa é a lógica do sentido.

A relação do sujeito com o sentido, todavia, é extremamente problemática, tanto na neurose quanto na psicose. Decerto, essa dificuldade é mais gritante nas psicoses, que, por serem desprovidas da significação fálica, encontram maiores obstáculos em conferir um sentido ao sexo e à existência. Foi esse embaraço com o sentido que fez com que Schreber se engajasse pela via da construção delirante. Seu empreendimento nessa façanha foi tão grande que, apesar de nunca ter sido atendido por nenhum psicanalista, seu caso serviu, durante muito tempo, de paradigma à clínica psicanalítica das psicoses.

Graças a Freud e à leitura das memórias de Schreber feita por ele, a questão das psicoses ganhou um campo de estudo no âmbito da psicanálise. Apesar de o objetivo do seu encaminhamento não ter sido propriamente o de promover uma direção do tratamento das psicoses, mas, pelo contrário, apontar para uma contraindicação de tal tipo clínico ao trabalho analítico, ele foi fundamental para um desenvolvimento clínico-teórico posterior. Certamente, o bom uso que Lacan fez do texto de Freud permitiu-lhe extrair elementos clínicos preciosos e formalizar uma consistente teoria das psicoses.

Se Freud vislumbrou a formação delirante como uma tentativa de restabelecimento, esse foi o ponto de partida para a formulação lacaniana acerca da metáfora delirante. Tal formulação traz consigo a perspectiva de tratamento da psicose pela psicose. No entanto, a experiência clínica não encoraja qualquer aposta no delírio e, até, sugere outras saídas, que escapam à via do sentido.

Lacan, ao retornar a Freud e formalizar o seu avanço na leitura do caso Schreber, possibilitou um salto decisivo na teoria psicanalítica da psicose. A partir de uma sistematização do Complexo de Édipo, produz a categoria de Nome-do-Pai, e a psicose passa a ser pensada a partir da concepção de forclusão do Nome-do-Pai. Freud já havia vislumbrado esse mecanismo, para o qual introduziu o termo Verwerfung. Mas foi Lacan quem extraiu as consequências disso, dando à forclusão um caráter determinante da psicose. Ou seja, trata-se, em Lacan, de uma concepção estrutural da psicose que opera com a ideia de um mecanismo essencial, a forclusão do Nome-do-Pai.

Esse pensamento de Lacan está formalizado no texto "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose" (1957-1958), que se encontra nos Escritos. Tais elaborações marcam um período do ensino de Lacan caracterizado pela primazia do simbólico, acarretando, assim, considerável influência em sua formulação acerca da metáfora delirante. O delírio como solução psicótica é trabalhado por Lacan antes do término da sua formulação do objeto a. Portanto, o seu referencial nesse momento é a metáfora paterna. É daí que resulta sua tese de que a metáfora delirante tem por função fazer suplência à metáfora paterna, ou seja, suprir a falta de inscrição do significante do Nome-do-Pai. É interessante pensar que se Lacan traz a possibilidade de uma metáfora de suplência, ou seja, de algo que compense a falta de inscrição do significante do Nome-do-Pai, por meio de um substituto que exerça uma função análoga, isso implica uma relativização do Nome-do-Pai. Portanto, é uma via aberta para o que Lacan desenvolverá mais tarde acerca da pluralização dos Nomes-do-Pai.

Em "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose" (1957-1958), Lacan toma a metáfora como um princípio de estabilização, um ponto de basta, algo que detém o deslizamento do significado sobre o significante, permitindo, assim, a sustentação de uma significação. Mas ele não se refere a qualquer metáfora, e sim à metáfora paterna, já que é dela que emerge uma significação sobre o ser do sujeito. Na neurose, a substituição do significante materno pelo significante do Nome-do-Pai tem como efeito a emergência da significação fálica. Portanto, o efeito de significação que se dá na neurose está sempre ligado ao falo. Já nas psicoses, que têm como condição essencial a forclusão do significante do Nome-do-Pai, esse efeito de significação decorrente do processo de substituição significante não opera, deixando o sujeito fora da significação fálica. Ou seja, se há forclusão do significante do Nome-do-Pai (P0), a metáfora paterna não opera, acarretando, assim, a forclusão da significação fálica (F0).

Portanto, o que está em jogo nas psicoses é a questão da significação, mas uma significação outra, que não opera a partir da substituição significante efetuada pela metáfora paterna. Nesse sentido, o delírio é uma tentativa de cura pela via da significação. Mas a construção delirante só ganha estatuto de metáfora delirante quando atinge a função de restabelecer a relação entre o significante e o significado. A estabilização do sujeito seria, portanto, o resultado dessa nova forma de relação. Assim, pode-se pensar a metáfora delirante como outra forma possível de relação entre significante e significado.

É a falta do Nome-do-Pai nesse lugar que, pelo furo que abre no significado, dá início à cascata de remanejamentos do significante de onde provém o desastre crescente do imaginário, até que seja alcançado o nível em que significante e significado se estabilizam na metáfora delirante. (LACAN, 1958/1998, p. 584).

Servindo-se do trabalho de Jakobson sobre as afasias, Lacan coloca a metáfora ao lado da identificação e do simbolismo e a metonímia ao lado da articulação e da contiguidade. Ele localiza no fenômeno alucinatório das psicoses um desequilíbrio do fenômeno da contiguidade. E mais: tudo aquilo em torno do qual se organiza o delírio está inevitavelmente ligado a esse fenômeno. Como pensar, então, a construção delirante em sua vertente de metáfora se o que esse fenômeno revela é algo da ordem de uma articulação metonímica infinita? A nova significação, decorrente da metáfora delirante, funcionaria como ponto de basta dessas articulações infinitas? Mas o delírio não conduz a uma infinitização do sujeito? Trata-se de questões que incitam a uma reflexão, pois, apesar de paradigmática, a estabilização delirante traz alguns paradoxos.

 

6 A metáfora enquanto ponto de basta

Ao retornar a Freud e introduzir os fundamentos de Jakobson sobre o funcionamento da linguagem e de suas leis, Lacan tentava dar conta daquilo que estabilizaria a relação entre o significante e o significado. A metáfora funcionaria, assim, como um ponto de basta, um nó, algo que deteria o deslizamento incessante do significado sobre o significante, possibilitando um efeito de sentido. Trata-se, então, de uma operação que, além de possibilitar a criação de sentido, permite que este, em toda sua fugacidade, seja retido, mesmo que por um breve instante. Residiria nessa operação de capitonagem produzida pela metáfora os primórdios daquilo que, posteriormente, Lacan desenvolve em sua teoria dos nós?

Nessa perspectiva, a metáfora funcionaria como algo que amarra. Mas, se a metáfora amarra, ela tem um ponto anterior, que é um mecanismo de substituição. Será que toda substituição amarra? A metáfora - particularmente, a metáfora delirante - estaria nesse horizonte? A impressão que se tem é que Lacan, ao definir a metáfora delirante, acaba por introduzir algo novo, que extrapola a discussão da metáfora. E, inclusive, pode-se questionar se o que Lacan chamou de "metáfora delirante" é efetivamente uma metáfora, pois, certamente, há diferenças entre aquilo que se concebe como metáfora paterna e aquilo que se trata na metáfora delirante. Será que tais diferenças afetam a própria concepção que Lacan tem da metáfora? Se afetam, não se pode buscar nesse ponto algum indício de que Lacan já começava a defrontar-se com os limites de sua formulação?

Como solução ao perpétuo deslizamento do significado sob o significante, Lacan propõe algo que se assemelha à técnica do estofamento, ou seja, técnica em que um tecido, ao sobrepor-se a outro, prende-se a ele de alguma maneira. Assim, tal como o estofamento capitonê permite que os dois tecidos de um sofá se unam a partir de uma espécie de abotoamento, algo que se assemelha a essa técnica deve tornar possível um grampeamento do significado sob o significante, de modo a permitir algum efeito de sentido. Trata-se do ponto de basta, uma espécie de abotoamento que articula significante e significado.

A sistematização da função lógica do Nome-do-Pai e a escrita formal da metáfora paterna acabaram por orientar o encaminhamento de Lacan acerca do ponto de basta. Assim, o processo de substituição significante efetuado pela metáfora paterna e a consequente produção da significação fálica tornaram-se operadores fundamentais daquilo que se denomina "ponto de basta". Desse modo, o ponto de basta - ou seja, o ponto que afivela a operação significante com a produção do significado - passa a ser atribuído ao Nome-do-Pai. No entanto, é interessante assinalar que a elaboração da teoria dos pontos de basta por Lacan, realizada em "O seminário, livro 3: as psicoses" (1955-1956), é anterior a sua formalização da metáfora paterna e do Nome-do-Pai. Mas extrair desse fato a ideia de que já havia nesse momento algo equivalente à pluralização dos nomes do pai parece errôneo. Pois todo o percurso construído por Lacan nesse seminário parece culminar no Nome-do-Pai.

Mas se o seminário sobre as psicoses abre caminho para a formalização da metáfora paterna, o texto escrito posteriormente por Lacan, que sintetiza esse seminário, ou seja, "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose" (1957-1958), traz novos apontamentos. Pois, ao definir a metáfora delirante, Lacan introduz a ideia de que a estabilização do significante e do significado pode efetuar-se por outras vias que não a da metáfora paterna. Ora, se Lacan parte do princípio de que outros mecanismos que operam sem o Nome-do-Pai produzem certo efeito metafórico, isso significa que há outras maneiras de amarrar significante e significado que prescindem do Nome-do-Pai. Diante disso, será que se pode inferir que a ideia de uma pluralização dos nomes do pai já existe nesse momento do ensino de Lacan? Eis uma questão de difícil manejo. Pois o fato de a metáfora delirante atestar a possibilidade de outro elemento funcionar como Nome-do-Pai significa que essa formulação mantém a lógica de antes. Nesse sentido, tratando-se ou não do Nome-do-Pai, a função a ser desempenhada é a mesma. Ou seja, trata-se de um ponto no simbólico que possibilita a ordenação da cadeia significante.

Se a operação da metáfora, seja paterna ou delirante, tem um efeito de ponto de basta, é porque dela resulta uma estabilização do significante e do significado. Trata-se, portanto, de um mecanismo capaz de atar significante e significado. Se Lacan buscou uma comparação entre a técnica do estofamento e o ponto de basta é porque ele partia do princípio de que em algum ponto significante e significado se amarrariam. Ora, se o que Lacan buscava com essa formulação era justamente esse ponto que amarra, não estaria aí, na doutrina da metáfora, os princípios daquilo que posteriormente ele formalizará em sua teoria dos nós? Será que o ponto de basta cumpre uma função semelhante à do nó?

Certamente, há diferenças entre os dois termos. Além disso, não se trata de algo que esteja claramente desenvolvido no ensino de Lacan. Mas, apesar dessas divergências, considera-se pertinente a tentativa de buscar na noção de ponto de basta alguns elementos que abram para a perspectiva da amarração sinthomática. Trata-se, portanto, de indagar se o ponto de basta é um nó, o que só é possível a partir da extração de algumas consequências advindas das formulações posteriores de Lacan. Desse modo, é pelo viés de uma operação retroativa que se pode inquirir se a ideia de nó já permeia o ensino de Lacan desde a sua formulação acerca do ponto de basta.

Examine-se, portanto, de que maneira o ponto de basta pode ser considerado um nó. Mas para tal é preciso esclarecer o que se entende por nó. A noção de amarração, sugerida pela função que se deduz de um nó, está estritamente ligada à ideia de articulação dos registros. Nesse sentido, enodar significa articular registros. Assim, simbólico, imaginário e real podem estar soltos ou amarrados. Na metáfora, a substituição significante, que ocorre no registro do simbólico, produz uma significação que se situa no registro do imaginário. Desse modo, o ponto de basta deve ser considerado como o momento em que se realiza essa articulação. Trata-se, portanto, do instante em que o significante se introduz no imaginário, pela produção de uma significação. Ou seja, o ponto de basta marca o momento da intromissão do significante no significado. Ora, se a função do nó consiste em articular registros, é perfeitamente justificável inferir que o ponto de capitonê, efeito da metáfora, é um nó. É interessante assinalar que em 1958, ao trabalhar a significação do falo, Lacan declarou que "o complexo de castração inconsciente tem uma função de nó" (LACAN, 1958/1998, p. 692). Mas o fato de Lacan utilizar o significante nó aqui não significa necessariamente que a sua intenção fosse trazer à tona a ideia de amarração. Outros sentidos podem ser extraídos dessa formulação, de forma que não se pode afirmar que a sua intenção nesse momento era a de sugerir um uso lógico do nó. Além disso, o ponto de capitonê não está definido em nenhuma teoria dos nós. Será que Lacan pretendia demarcar uma diferença radical entre a amarração efetuada pelo ponto de basta e outras amarrações, tal como a borromeana? Há uma ruptura entre uma formulação e outra?

Trata-se de uma questão complexa, que abre margens a diversas discussões. No entanto, não é objetivo deste artigo assumir uma posição fechada, e sim levantar alguns pontos que, certamente, ajudarão na compreensão da lógica da metáfora. Mas uma coisa deve ficar clara: afirmar que o ponto de basta é um nó não significa ­assimilá-lo ao nó borromeano. O interesse de tal comparação é trazer à tona a perspectiva de que, desde a formulação de sua teoria da metáfora, Lacan tentava dar conta de uma amarração possível entre os registros. Argumenta-se aqui que a escrita formal da metáfora paterna permitiu a Lacan vislumbrar o enodamento entre o simbólico e o imaginário. Mas tal hipótese pode ser refutada pelo seguinte argumento: a metáfora não articula os registros, e sim submete-os ao simbólico. Sob essa perspectiva, trata-se de uma determinação do simbólico sobre o real e o imaginário, diferindo, portanto, da lógica de amarração inerente à teoria dos nós. Certamente, a lógica da metáfora, ao contrário do nó borromeano, pressupõe uma hierarquia entre os registros, já que é o efeito da operação significante que possibilita a amarração do simbólico ao imaginário. Mas, além da lógica hierárquica presente na teoria da metáfora, as elaborações aqui formuladas sugerem outro limite dessa formulação. Ora, nas inferências suscitadas localizou-se na operação da metáfora o mecanismo que torna possível a articulação entre os registros simbólico e imaginário. Mas até o momento nada foi dito acerca do real. E se o ponto de basta, efeito da metáfora, consiste na amarração entre o simbólico e o imaginário, isso significa que se trata de um nó de dois. Será que se pode pensar em um nó de dois? Nesse sentido, há uma vantagem do nó borromeano em relação ao nó (deduzido) do ponto de basta, já que a característica principal do nó borromeano é a articulação entre os três registros.

No entanto, conceber a operação da metáfora, seja paterna ou delirante, como uma articulação que se dá apenas nos registros imaginário e simbólico contraria uma preocupação evidente no ensino de Lacan: "as três ordens [...] necessárias para se compreender o que quer que seja da experiência analítica, a saber: o simbólico, o imaginário e o real" (LACAN, 1955/2002, p. 17). Portanto, excluir o real dos efeitos da metáfora não parece ser um bom caminho. Afinal, a metáfora deve ter uma incidência sobre o gozo. Para examinar essa questão, faz-se uso da noção de "aparelho do sintoma", elaborada por Miller na "Conversação de Arcachon".

 

7 A metáfora enquanto aparelho do sintoma

Ao evidenciar a relação entre significante e significado, a fórmula da metáfora paterna esclarece o problema da articulação entre os registros imaginário e simbólico. Se se toma como referência a representação gráfica do esquema R, vê-se claramente a presença do triângulo simbólico e do triângulo imaginário. Nesse sentido, não resta dúvidas de que a articulação simbólico/imaginário é um dos efeitos da metáfora. Mas, certamente, a estrutura da metáfora paterna não somente articula simbólico e imaginário como também incide sobre o real. Se Lacan postula que a forclusão do Nome-do-Pai tem como consequência o retorno no real, isso indica que, de alguma maneira, a metáfora paterna incide sobre o gozo. Assim, as consequências clínicas decorrentes da ausência da metáfora paterna apontam para o seguinte: a operação metafórica do pai, além de incidir sobre a produção da significação fálica, também estabelece uma articulação entre uma operação significante e suas consequências sobre o gozo do sujeito. Nesse sentido, a metáfora paterna não apenas permite ao sujeito interpretar o Desejo da mãe como também possibilita a localização do gozo. Portanto, se há retorno no real, como os fenômenos elementares observados nas psicoses evidenciam, é porque a metáfora paterna também incide sobre o real. Por conseguinte, uma conceituação precisa do ponto de basta não pode se esquivar do real.

Com o intuito de ampliar a concepção acerca do Nome-do-Pai e superar a lógica binária do significante, busca-se em Miller uma definição de metáfora paterna que abranja não somente os efeitos significados da operação significante, mas também suas consequências sobre o gozo. É nesse sentido que ele situa a metáfora paterna como "o primeiro aparelho do sintoma que Lacan haja demonstrado" (MILLER, 1998, p. 118). Trata-se de fazer da noção de aparelho um conceito de extrema importância, já que é "o aparelho do sintoma que assegura a articulação entre uma operação significante e suas consequências sobre o gozo do sujeito" (MILLER, 1998, p. 118). Assim, em relação ao resultado dado pela fórmula da metáfora paterna, Miller declara:

Tudo se passa em termos de significante e significado: a incidência do Nome-do-Pai se traduz pela emergência da significação fálica. Mas não podemos esquecer sua significação libidinal. Para dizê-lo de forma breve, o Nome-do-Pai localiza o gozo. Simplesmente, esse gozo é aqui apresentado em termos de significado - o que não está tão longe do objeto pequeno a, que por uma parte é um significado. Portanto, a esse respeito, já aqui, o Nome-do-Pai é um sintoma. (MILLER, 1998, p. 118).

Portanto, o propósito de Miller com a definição de aparelho do sintoma é torcer a conceituação linguística, de modo a dar conta dos efeitos do significante sobre o gozo. Nesse sentido, o conceito de aparelho do sintoma recupera a conexão significante-gozo. É essa conexão que impulsionou Lacan a falar em "Televisão", de um gozo-sentido.

É o real que permite desatar efetivamente aquilo em que consiste o sintoma, ou seja, um nó de significantes. Atar e desatar que aqui não são apenas metáforas, mas a serem apreendidos como os nós que realmente se constroem ao formarem uma cadeia com a matéria significante. Pois essas cadeias não são de sentido, mas de gozo-sentido (jouis-sens), a ser escrito como vocês quiserem, de conformidade com o equívoco que constitui a lei do significante. (LACAN, 1973/2003, p. 515-516).

 

REFERÊNCIAS

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JAKOBSON, R. "Dois aspectos da linguagem e dois tipos de afasia". ______. Lingüística e comunicação. 19 ed. São Paulo: Cultrix, 2003.         [ Links ]

LACAN, J. "A instância da letra no inconsciente ou a razão desde Freud". ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998a.         [ Links ]

______. "De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose". ______. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998b.         [ Links ]

______. As psicoses, O Seminário, livro 3. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.         [ Links ]

______. As formações do inconsciente, O Seminário, livro 5. Rio de Janeiro: Jorge Zahar , 1999.         [ Links ]

______. "Televisão". ______. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.         [ Links ]

MAZZUCA; R., SCHEJTMAN; F., ZLOTNIK, M. Las dos clínicas de Lacan, introducción a la clínica de los nudos. Buenos Aires: Tres Haches, 2000.         [ Links ]

MILLER, J.A. "O aparelho do sintoma". In: ______. A conversação de Arcachon, Os Casos Raros, Inclassificáveis da Clínica Psicanalítica. São Paulo: Coleção da Biblioteca Freudiana Brasileira, 1998. p. 117-127.         [ Links ]

NANCY, J.-L.; LABARTHE, P.-L. O título da letra: uma leitura de Lacan. São Paulo: Escuta, 1991.         [ Links ]

 

 

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Artigo recebido em: 17/10/2010
Aprovado para publicação em: 22/10/2011

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