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Mental
versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X
Mental vol.11 no.21 Barbacena jul./dez. 2017
ARTIGOS
A percepção de cuidadoras sobre os cuidados ofertados para crianças e adolescentes em atendimento no CAPSi
The caregivers' perception about offered care for children and adolescents in assistance on CAPSi
La percepción de cuidadoras sobre los cuidados ofrecidos para niños y adolescentes en la asistencia en CAPSi
Lidiane da Silva AraújoI; Felix Miguel Nascimento GuazinaII
IAcadêmica de Psicologia do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA/RS).
IIOrientador; Psicólogo; Doutorando em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica (PUCRS); Mestre em Psicologia pela PUCRS. Especialista em Psicologia Clínica com ênfase em saúde comunitária pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
RESUMO
O processo de Reforma Psiquiátrica foi um movimento de crítica ao modelo hospitalocêntrico e se consolidou na criação de serviços substitutivos de cuidado em saúde mental, com ênfase na territorialização da assistência. Nesse sentido, os Centros de Atenção Psicossocial para Infância e Adolescência (CAPSi) centram suas ações tanto no indivíduo quanto na família de crianças e adolescentes com transtornos mentais graves. Diante disso, o presente estudo teve como objetivo elucidar a percepção das cuidadoras dos usuários sobre os serviços ofertados em um CAPSi de uma cidade do interior do estado do Rio Grande do Sul. Assim, foi proposta uma pesquisa qualitativa, de cunho exploratório, realizada a partir de entrevistas semiestruturadas com cinco cuidadoras de crianças atendidas pelo CAPSi. Quanto aos resultados, observa-se que a via medicamentosa é uma das principais estratégias de cuidado citadas pelas participantes em detrimento de outras modalidades de intervenção. Outro ponto que se destaca é a fragilidade da rede de apoio das cuidadoras quanto ao manejo e ao cuidado no processo de adaptação da família, desde o recebimento do diagnóstico até o desenvolvimento do tratamento.
Palavras-chave: saúde mental; reforma psiquiátrica; cuidado; infância; adolescência.
ABSTRACT
The Psychiatric Reform process was a movement of criticism to hospitalcentered model, and consolidated in creating care substitutive mental health services, with emphasis on territorialization of assistance. In this sense, the Psychosocial Care Centers for Childhood and Adolescence focus their actions in both the individual and the family of children and adolescents with severe mental disorders. Besides, this study aimed to elucidate the users' perception of caregivers about the service offered in one of this centers, in a city in the state of Rio Grande do Sul. Thus, a qualitative research of exploratory nature, made from semi-structured interviews with five caregivers of children served by the service was suggested. As for the results, it is observed that the drug via is one of the main care strategies cited by participants to the detriment of other service intervention modalities. Another point that stands out is the fragility of the support of caregivers network concerning the management and care in the family adaptation process from receipt of the diagnosis to the development of treatment.
Keywords: mental health; psychiatry reform; care; childhood; adolescence.
RESUMEN
El proceso de Reforma Psiquiátrica fue un movimiento crítico al modelo hospitalocéntrico, y se consolidó en la creación de servicios alternativos en la salud mental, con énfasis en territorialización de la asistencia. En ese sentido, los Centros de Atención Psicosocial para Infancia y Adolescencia (CAPSi) centran sus acciones en el individuo como en la familia de niños y adolescentes con trastornos mentales graves. Frente a eso, este estudio tuvo como objetivo dilucidar la percepción de las cuidadoras de los usuarios sobre el servicio que se ofrece en un CAPSi de una ciudad en el estado de Rio Grande do Sul. En ese sentido, se propuso una investigación cualitativa de carácter exploratorio, realizado a partir de entrevistas semiestructuradas con cinco cuidadoras de niños atendidos por el CAPSi. En cuanto a los resultados, se observa que el uso de medicamentos es una de las estrategias de atención principales citadas por las participantes en detrimento de otras modalidades de intervención. Otro punto que se destaca es la fragilidad de la red de apoyo de las cuidadoras en el manejo y cuidado en lo proceso de adaptación familiar desde la recepción de la diagnosis hasta el desarrollo del tratamiento.
Palabras clave: salud mental; reforma psiquiátrica; cuidado; infancia; adolescencia.
1 INTRODUÇÃO
A construção do cuidado em saúde mental no Brasil passou por uma longa história de denúncias de maus-tratos e alienação do sujeito à sua doença, por meio da assistência ofertada por instituições manicomiais e a não problematização da família como parte importante dessa relação de cuidado. A Reforma Psiquiátrica brasileira surgiu ao final dos anos 1970, a partir da atuação dos Movimentos dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), que se inspirou na Reforma Psiquiátrica Italiana, na qual Franco Basaglia, seu precursor, instituiu uma ruptura com a psiquiatria clássica, produzindo novos modelos de cuidado aos doentes mentais. De acordo com Amarante (1998), Franco Basaglia, com suas práticas e reflexões sobre formas de cuidado em saúde mental, desconstruiu e transformou a assistência psiquiátrica ao defender um processo de desinstitucionalização por meio do modelo de comunidade terapêutica, de modo a permitir o consequente fim dos manicômios.
Em suas primeiras iniciativas de reforma ao modelo de assistência psiquiátrica, o MTSM visava a denunciar as violências cometidas nos manicômios e a mercantilização da loucura. Dessa forma, construiu-se uma crítica coletiva ao saber psiquiátrico e ao modelo hospitalocêntrico de assistência às pessoas com transtornos mentais (AMARANTE, 2009). A Reforma Psiquiátrica Brasileira fez um movimento de inflexão, tentando não mais humanizar ou transformar o modelo asilar, mas sobre os pressupostos da psiquiatria clássica, condenar os efeitos normatizantes e de controle que eram oferecidos ao alienado como forma de tratamento (TENORIO, 2002; AMARANTE, 2009).
Quanto aos cuidados em saúde mental, não havia um foco sobre o sujeito, e sim sobre sua doença, sem considerar a família como núcleo importante nos cuidados em saúde mental. Na mesma lógica de institucionalização e alienação do sujeito, seguiam os cuidados em saúde mental infantil. Esses cuidados surgiram para preencher uma lacuna de descaso para com as crianças, situação que ocasionou altos índices de mortalidade infantil, que, por conseguinte, incitou os governantes no início do século XX a voltarem o olhar para a infância como o "futuro da nação", partindo do ideário de higiene mental e da eugenia (CUNHA; BOARINI, 2011). Conforme sublinha Ribeiro (2006), os higienistas foram os responsáveis pelas iniciativas de cuidados com a saúde mental infantil.
Os cuidados em saúde mental infantojuvenil, realizados pelos higienistas1 e eugenistas2, eram pautados nas ciências exatas e naturais, primavam por um caráter preventivo ao transtorno mental infantil e ao reajustamento da criança no contexto escolar até mesmo por meio de internações psiquiátricas (CUNHA; BOARINI, 2011).
Nesse sentido, as instituições que eram voltadas aos cuidados de crianças com transtornos mentais visavam à classificação da anormalidade, pois eram assistidas pelo campo educacional e da assistência social (CUNHA; BOARINI, 2011; COUTO; DUARTE; DELGADO, 2008). As instituições que assistiam as crianças e os adolescentes consistiam em, basicamente, reformatórios, educandários e instituições psiquiátricas — ou seja, todas elas instituições centradas no modelo asilar e de segregação humana (COUTO; DELGADO, 2015).
Buscando a superação desse formato, a Reforma Psiquiátrica teve como proposta a criação de modelos substitutos aos asilares. Esse novo prisma permitiu o surgimento dos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), com a promulgação da Lei Federal n° 10.216 em 2001. Posteriormente, foi instituída a Portaria MS 336/02 que regulamentou os Centros de Atenção Psicossocial para Infância e Adolescência (CAPSi), bem como os CAPS (CUNHA; BOARINI, 2011). Nesse contexto, os CAPSi têm a função de promover a atenção em saúde mental na integralidade do cuidado, assim como também objetivar a reinserção social do usuário, o fortalecimento dos laços familiares e sociais e a promoção de autonomia (PINTO; PINTO; CAVALCANTE, 2011).
No enlace histórico da construção do cuidado em saúde mental, a família sempre foi afastada, sendo culpabilizada pelo adoecimento psíquico de seu membro. Segundo Monteiro et al. (2012), anteriormente ao movimento de Reforma Psiquiátrica, a família era excluída nos cuidados de saúde mental porque acreditava- se que ela prejudicava o doente mental e reforçava seus sintomas. Após a Reforma, com todas as mudanças na forma de tratar o sujeito, a família passou ser responsabilizada pelos cuidados e assumiu o papel de cuidadora, mesmo que não se sentisse organizada para isso (TROMBETTA; MISIAK; RAMOS, 2015).
Dessa forma, a família, no papel de responsável pelos cuidados do sujeito adoecido, sofreu grande impacto em sua dinâmica, além de sobrecarga pelas inúmeras demandas que esse cuidado requer — como, por exemplo, no caso de criança com transtorno mental, em que o cuidador, por vezes, tem que parar de trabalhar para cuidá-la (VICENTI; HIGARASHI; FURTADO, 2015; BRAGA; FERNANDES; ROCHA, 2014).
Nesse sentido, a sobrecarga pode ser compreendida de duas formas: objetiva e/ou subjetiva. Enquanto a primeira se configura nas demandas reais da convivência com a criança ou adolescente em sofrimento psíquico, a segunda corresponde aos sentimentos despertados nos demais membros da família por esse transtorno (BORBA; SCHWARTZ; KANTORSKI, 2008). De acordo com Delgado (2014), a família em pleno desamparo, ao ter de assumir os cuidados (muitas vezes sem a ajuda da família ampliada), passa a encontrar no CAPS uma forma de apoio diante das suas fragilidades e inseguranças.
A partir da perspectiva da construção histórica do cuidado no campo da saúde mental infantil e dos pressupostos teóricos dessa trajetória, o presente estudo teve como objetivo investigar a percepção das cuidadoras sobre os cuidados ofertados a crianças e adolescentes que frequentam o CAPSi. Buscou-se identificar as relações que as cuidadoras estabelecem com o serviço de saúde mental CAPSi, e como o serviço as tem auxiliado nas relações com as crianças e os adolescentes.
Nesse sentido, o este estudo mostra-se importante porque a temática abordada não tem aparecido em publicações recentes. Além disso, permite demonstrar, de forma devolutiva ao serviço, a representação da percepção das cuidadoras com relação aos serviços ofertados em saúde mental, tendo em vista a importância dessas no convívio diário com crianças e adolescentes. Para o campo da psicologia, as implicações que essa percepção tem no processo terapêutico da criança poderá possibilitar o avanço ou a estagnação do processo. Nessa perspectiva, portanto, torna-se viável desconstruir possíveis conceitos de normatização e de reajustamento infantil que foram construídos ao longo da história da psicologia como profissão.
2 MÉTODO
2.1 Delineamento
O presente estudo teve uma abordagem qualitativa de caráter exploratório, objetivando compreender e se familiarizar com a temática no campo da saúde mental infantil. A pesquisa qualitativa de cunho exploratório permite o conhecimento do objeto com a articulação da teoria e da realidade empírica (MINAYO, 2006, p. 23).
2.2 Participantes
Participaram da entrevista cinco cuidadoras de crianças e adolescentes que frequentam o CAPSi, em uma cidade do interior do Rio Grande do Sul. O número de participantes foi delimitado em virtude de os objetivos da pesquisa possuírem como interesse específico a percepção das cuidadoras com relação ao serviço ofertado pelo CAPSi. O critério de inclusão para participar da pesquisa foi a criança estar em atendimento há pelo menos um mês. Foi definido também um fator excludente das participantes: estar em acolhimento no serviço3.
Cumpre ressaltar que as participantes receberam a nomeação de "cuidadoras" (Tabela 1) porque a intenção da pesquisa não se resume à identificação das mesmas pelo grau de parentesco, mas, sim, pela função de cuidadora em si. Importante destacar, ainda, que todas as participantes são do sexo feminino e divorciadas, sendo, assim, as únicas responsáveis pelos cuidados das crianças e adolescentes. As caracterizações das participantes encontram-se abaixo.
Tabela 1 - Características das participantes.
A Tabela 2, a seguir, elucida as características das crianças e dos adolescentes, como: idade atual, tempo de serviço usufruído, diagnóstico e comorbidades que surgiram com o decorrer do tempo.
Tabela 2 - Características dos usuários.
2.3 Instrumentos
O estudo foi delineado a partir de um roteiro de entrevista semiestruturada, que teve por finalidade investigar a percepção das cuidadoras com relação ao serviço ofertado pelo CAPSi. Essa pesquisa deu-se por meio de roteiro básico, investigando como foi a chegada ao serviço, qual a percepção com relação ao diagnóstico, qual a relação delas com as formas de tratamento que o serviço oferece, e como é a relação das cuidadoras com as crianças, com os adolescentes, e também com o CAPSi. As entrevistas foram gravadas em áudio e posteriormente transcritas e analisadas pelos pesquisadores. Após esse processo, as gravações foram apagadas. A entrevista semiestruturada foi norteada pelo uso de questionários com perguntas abertas, possibilitando livre expressão às participantes.
2.4 Procedimentos éticos e de coleta de dados
O presente estudo foi realizado dentro dos princípios éticos, regido pela Resolução nº 446/12 do Conselho Nacional de Saúde (BRASIL, 2012). O projeto passou pela avaliação de uma banca virtual composta por dois professores convidados e o orientador do Trabalho Final de Graduação, e só se deu início à coleta de dados após a aprovação do Comitê de Ética sob o CAEEE nº 54041516.9.0000.5306.
2.5 Procedimento de análises dos dados
A análise dos dados foi realizada a partir da Análise de Conteúdo, método que visa a compreender a significação do conteúdo daquilo que está por trás das palavras sobre as quais se debruça. É um método empírico, dependente do tipo de fala a que se dedica, e dos tipos de interpretação que se pretende como objetivo (BARDIN, 2010).
Primeiramente, as transcrições foram lidas e relidas criteriosamente; em seguida, foram analisadas com a finalidade de identificar os temas presentes nas falas das participantes (e as semelhanças entre os discursos). A partir disso, foram realizados recortes que, agrupados, permitiram o surgimento de duas categorias: "O Impacto do diagnóstico nas cuidadoras" e "A expectativa de melhora da criança e adolescentes para as cuidadoras, e a percepção destas sobre o serviço ofertado no CAPSi". Ambas as categorias foram discutidas teoricamente, e as falas das cuidadoras foram utilizadas como exemplificação da temática que compõe cada uma delas.
3 RESULTADOS E DISCUSSÃO
Para fins de melhor compreensão dos resultados obtidos com a pesquisa, foram construídas duas grandes categorias de análise. A primeira, "O Impacto do diagnóstico nas cuidadoras", visa elucidar a trajetória das cuidadoras diante do sintoma infantojuvenil, como a compreensão e o impacto do diagnóstico. A segunda categoria, "A expectativa de melhora da criança e adolescentes para as cuidadoras, e a percepção destas sobre o serviço ofertado no CAPSi", ilustra a percepção das cuidadoras sobre expectativas de melhora das crianças e dos adolescentes, assim como a compreensão dos serviços ofertados pelo CAPSi e a forma como esses serviços as têm auxiliado nos cuidados e na relação com as crianças e os adolescentes, além de mostrar as atuais redes de apoio das cuidadoras.
3.1 O Impacto do diagnóstico nas cuidadoras
O diagnóstico de transtorno mental infantojuvenil tem grande impacto no cuidadores de crianças e adolescentes devido à sobrecarga emocional e à demanda de cuidados requeridos, além dos desgastes físico e emocional na busca por ajuda até se chegar ao serviço de saúde mental CAPSi. De acordo com Leonardo e Suzuki (2016), tanto a família quanto a escola fazem parte do desenvolvimento infantil e, dependendo das exigências dos contextos, podem favorecer mais ou menos o desenvolvimento da criança.
Conforme as cuidadoras, as primeiras evidências dos sintomas surgem na escola, a partir de queixas escolares associadas, em grande parte, a quaisquer dificuldades de aprendizagem. A criança frequentemente é entendida pela pedagogia como um aprendiz que tem que sustentar um ideário desenvolvimentista; e quando a criança não corresponde a esse ideário, deve ser recolocada nos caminhos saudáveis por meio da reeducação ou dos serviços assistenciais (COUTO, 2004).
Dessa forma, as participantes da pesquisa perceberam certas dificuldades em seus filhos a partir de queixas escolares – quando a escola sinalizou para a família que algo não estava indo bem com a criança, conforme relatam as cuidadoras abaixo:
(...) no colégio eles viviam chamando, que ele tinha problema que não aprendia [sic] (Cuidadora B).
(...) fui chamada várias vezes na escola porque ela estava botando o corpo à mostra, e agressiva tive que trocar ela de colégio... [sic] (Cuidadora E).
Na escola todas as semanas eu era chamado...[sic] (Cuidadora D).
Muitas vezes, os sintomas apresentados por meio dos comportamentos infantojuvenis passam despercebidos pelo grupo familiar, por avaliarem a criança/adolescente de forma pejorativa, como agressiva, inquieta, mal-educada, entre outras coisas. Esses comportamentos infantojuvenis específicos são, em geral, mal interpretados.
Diante do mal-estar provocado pelo mau comportamento da criança, as cuidadoras adotam como prática educativa a coerção. As práticas aversivas, que podem chegar às raias das violências física, verbal e punitiva, são adotadas como medidas para inibir ou corrigir comportamentos considerados, pelos cuidadores, como inadequados à educação das crianças e adolescentes (PATIAS; SIQUEIRA; DIAS, 2012). As formas de enfrentamento inicial das cuidadoras e o mal-estar delas diante dos comportamentos apresentados pela criança, podem ser elucidados a partir das falas a seguir:
Na verdade, e a gente como não sabia, a gente ficava irritada por ela machucar outra criança aí ela acabava apanhando em casa também, porque nós nem sabia o que ela tinha, nós nem sonhava, aí a gente acabava perdendo a paciência com ela, que a gente não queria que ela brigasse com outras crianças... [sic] (Cuidadora A).
Ele sempre assim tinha problema, só que eu achava que ele era preguiçoso, muito preguiçoso, aí eu dizia, brigava com ele até casa, porque ele não fazia nada, só ficava daquele jeito parado olhando para um lado só...[sic] (Cuidadora B).
Eu batia nela sabe, ela tinha bastante medo de mim, ela saia para fora da casa assim, aí eu mandava ela entrar, ela não entrava e dizia, tu vais me bate em mim, e eu as vezes estava nervosa e batia nela, achando que batendo nela eu ia resolve o problema dela sabe... [sic] (Cuidadora C).
Para Patias et al. (2012), essas práticas aversivas tendem a acarretar prejuízos psicológicos no desenvolvimento infantil, tais como reproduzir as dificuldades do núcleo escolar nas interações com os colegas e professores, além de dificultar a relação entre o jovem e seu cuidador. Assim, diante da não resolução dos sintomas, a família passa a buscar a solução fora do ambiente familiar. É nesse momento que a escola ou o conselho tutelar surgem como forma de resposta e direcionamento para os cuidadores. De acordo com Jucá, Nunes e Barreto (2009), quando os cuidadores se deparam com os sinais ou sintomas, a mobilização se dá pela busca de identificação do problema do filho, e o tratamento, a posteriori, como um recurso. Portanto, os encaminhamentos podem se dar de diversas formas (em alguns momentos até confusas), o que demonstra a falta de informação da população sobre a existência do CAPSi e da sua proposta de serviço (MONTEIRO et al., 2012).
Ainda nessa ótica, Monteiro et al. (2012) afirma que a procura por atendimento especializado ocorre, muitas vezes, por indicação ou encaminhamentos de terceiros. Essa inicialização, para crianças e adolescentes, significa uma reinserção ao cuidado integral, conforme relatam as cuidadoras abaixo:
Foi a escola, ela foi descoberta que ela tinha hiperatividade, daí a escola fez todo o encaminhamento porque a escola tem contato direto com o CAPS... [sic] (Cuidadora A).
(...) ela venho pra cá pelo conselho tutelar porque ela andou aprontando umas bem feia. [sic] (Cuidadora C).
Eu comecei a levar ela no médico, e uma menina que trabalha nos postos pediu, ela disse leva lá(...), e eu consegui através do conselho(...)[sic] (Cuidadora D).
Após todo o percurso das cuidadoras em busca de ajuda, encaminha-se ao CAPSi, no qual é ofertado um espaço de escuta e acolhimento às crianças e aos adolescentes. Posteriormente, há uma consulta com os psiquiatras como forma de avaliar esse jovem, a fim de emitir um diagnóstico que deve ser comunicado à família. O diagnóstico infantojuvenil é algo que requer muito cuidado, pela complexidade que se remete diante do desenvolvimento infantil (D'ABREU, 2012).
Do mesmo modo, Monteiro et al. (2012) elucidam que a dificuldade de diagnosticar crianças e adolescestes se dá pela via da interpretação e julgamentos dos que convivem com eles. O diagnóstico nas famílias perpassa pela constituição cultural e social que se tem do adoecimento psíquico, e é diante dessa construção do imaginário social da família e das informações prestadas pelo saber do médico que se torna possível compreender a estruturação da subjetividade infantojuvenil e os desejos dos pais sobre ela. Essa questão fica evidente na elucidação das falas das cuidadoras sobre o diagnóstico, e as explicações médicas:
(...) hiperatividade, e déficit de atenção, daí depois que ela ficou aqui o médico descobriu que ela também é bipolar... (Cuidadora A)
(...) a doutora disse que ela tinha um distúrbio na cabeça, de bipolaridade (Cuidadora C).
(...) aí eles falaram que ele tem tipo de um autismo, um retardo que ele não vai consegui aprender que nem as outras pessoas (...), o doutor disse que é tipo uma psicopatia, psicopa... não sei como é o nome...[sic] (Cuidadora B).
O diagnóstico tem muitas implicações na dinâmica familiar e nas suas relações, além de suscitar sentimentos ambivalentes e, em alguns momentos, até ambíguos. Em decorrência do adoecimento psíquico da criança/adolescente, a família sofre grande impacto, uma vez que se operam mudanças na rotina da família, nos hábitos e nos costumes (BORBA et al. 2008). Da mesma forma, Monteiro et al. (2012) ressaltam que o adoecimento psíquico traz uma grande sobrecarga emocional para os cuidadores. Para Braga et al. (2014), a sobrecarga emocional está atrelada à forma com que os cuidadores enfrentam a realidade diante do diagnóstico, perpassada de sentimentos ambivalentes e abandono de planos familiares em prol das necessidades do sujeito adoecido.
Diante disso, pode-se observar que os sentimentos despertados pelo recebimento do diagnóstico pelas cuidadoras são uma mistura de alívio por ter uma resposta e por se sentirem amparadas pelo serviço, mas, ao mesmo tempo, de tristeza e medo. Esses sentimentos são decorrentes da angústia frente à perda simbólica do filho idealizado. Para Góes (2006), a perda do filho idealizado movimenta na família, de forma inconsciente, sentimentos de aceitação e rejeição da realidade que se apresenta na convivência com a criança que possui transtornos mentais, conforme relatam cuidadoras abaixo em seus discursos:
Aí, foi bem assustador (Cuidadora E).
(...) eles souberam preparar bem para receber, sem se apavorar né, porque não é o fim do mundo né, a gente entende bastante, né, tem médicos, bastante médico para ajudar, tem psicólogos para atender se caso a gente está entrando em desespero, às vezes a gente entra, porque é difícil, é complicado...[ sic] (Cuidadora A).
Aí, eu senti uma tristeza no coração, quando a doutora, disse que ela tinha problema né [sic] (Cuidadora C).
Ai, foi bem assustador assim porque o pai dela já tem e não se trata né [sic] (Cuidadora E).
O adoecimento mental deve ser compreendido como um fenômeno que se estrutura pelos atravessamentos históricos e dimensões psicossociais, fatores que determinaram o processo saúde/adoecimento (COLVERO; IDE; ROLIM, 2004, p. 589). O processo de compreensão do diagnóstico na explicação de algumas cuidadoras é relacionado com os aspectos da hereditariedade de ordem familiar como justificativa e/ou na construção do senso comum do imaginário social sobre o adoecimento.
Assim porque o pai dela já tem e não se trata né ...[sic] (Cuidadora E)
(...) porque é um problema psicológico né que é hereditário porque é de família...[sic], é genético né, daí vem da minha mãe, dá vó dela...[sic] (Cuidadora A)
Ou seja, tendo em vista as diferentes associações das possíveis causas do adoecimento psíquico infantil, passando pela culpa dos pais, a ordem das experiências como causadoras e posteriormente o fator biológico, verifica-se uma dificuldade, por parte dos pais, em entender o adoecimento (COLVERO; IDE; ROLIM, 2004). Os aspectos hereditários citados pelas cuidadoras remetem à busca dessa família em reconhecer essas crianças/adolescentes como pertencentes dessa filiação pela via da semelhança de patologia na família.
Contudo, o senso comum das cuidadoras sobre o adoecimento psíquico se dá pela construção de experiências adquiridas na relação com os sintomas da criança/ adolescente no cotidiano, e por meio das experiências de outras pessoas das suas relações (experiências, é claro, que acabam sendo reforçadas pelo saber científico). A noção de normalidade ou ausência passa pelo saber popular, pelo senso comum que advém dos discursos de pais e avós, e de teses reforçadas pelas instituições e pelo saber científico (PEDROSO; RIBEIRO; NOAL, 2010). Sabe-se que o imaginário social do transtorno mental infantil tem um peso na construção da nova representação que a família tem sobre a criança e a constituição de uma nova realidade (GÓES, 2006). Evidencia-se nas falas a questão da destituição do saber da família sobre o seu filho, permeado pelo saber médico como único e verdadeiro, fato bem ilustrado pela dificuldade de as cuidadoras informarem o nome da patologia, o que de certa forma não possibilita a elas nem uma compreensão mais ampla sobre o adoecimento do filho, nem a sua participação como apoio no projeto terapêutico da criança ou do adolescente. Essa ideia ganha força a partir dos relatos abaixo:
Não, mas ele tratando cuidando dele eu acho, e eles tem mais estudo que eu, eu não tenho estudo nenhum né, então estou deixando com eles [sic] (Cuidadora B)
Não ela só explicou que ela era bipolar né, que eu tinha que saber lidar com o problema dela, um pouco até hoje eu não entendo o que é biporalidade, e que biporalidade as pessoas que me explicam que é troca de humor [sic] (Cuidadora C).
Pode-se observar que, ainda dentro do serviço, as cuidadoras encontram dificuldades para expressar suas dúvidas com relação aos termos técnicos do diagnóstico ou dos sintomas. Para Vorcaro (2011), quando o saber da família é destituído pelo saber médico, a afiliação da criança passa ser de ordem médica em detrimento do saber que a família constrói sobre a criança.
Em contrapartida, a Reforma Psiquiátrica propõe a desterritorialização do saber médico sobre a doença, como forma de possibilitar a valorização do sujeito a partir da sua experiência e corresponsabilizar pelo cuidado tanto a equipe como a família (AMARANTE, 2009).
Diante do exposto, observa-se que toda a trajetória de cuidado a partir a relação das cuidadoras com o diagnóstico é de extrema importância na construção da expectativa de melhora da criança e do adolescente.
3.2 A expectativa de melhora da criança e do adolescente para as cuidadoras, e a percepção destas sobre o serviço ofertado no CAPSi
A expectativa de melhora da criança ou do adolescente com diagnóstico de transtorno mental vincula-se, muitas vezes, às possibilidades de manejo das cuidadoras com relação ao adoecimento psíquico desse jovem. Dessa maneira, a forma como o cuidado é ofertado, tanto positivamente quanto negativamente, pode influenciar na promoção ou não de saúde da criança e do adolescente. Ante a esse entendimento, pode-se observar que as expectativas de melhora das crianças e dos adolescentes para as cuidadoras perpassam por toda a relação de cuidado constituída nas experiências vividas no cotidiano e na oferta de cuidado pelo serviço de saúde mental CAPSi.
Com relação ao adoecimento psíquico infantojuvenil, a expectativa das cuidadoras sobre a melhora da criança ou do adolescente surge atrelada à melhora do sintoma com o uso de psicofármacos. Isso porque, quando se centraliza o saber no médico e a família ocupa um lugar de passividade no tratamento, as expectativas de cura passam a ser todas depositadas no tratamento ofertado (ROSA, 2003). Destaca-se que a medicação aparece fortemente nas falas como fonte de recurso adaptativo da criança e do adolescente ao convívio familiar e escolar:
Que ela tem esse problema, às vezes ela está bem, às vezes ela está bem agitada, às vezes ela foge e sai para rua, daí quando ela volta, se ela volta, daí ela estava tomando, daí ela tomando a medicação eu consigo controlar ela, calma e bem, mas ela não pode ficar sem a medicação...[sic] (Cuidadora C).
(...) não dá para deixar ela um dia sem, não dorme, e no outro dia ninguém aguenta ela, levanta brigando com todo mundo...[sic] (Cuidadora D).
Assim melhora ela não tem, porque ela está sempre agitada, mas pra medicação, pra escola teve muita melhora, bastante melhora, mas pra ela E, sem a medicação hã, hã... (Negação), (...) mas para me orientar, pra orientar ela sobre a medicação que ela é obrigada a tomar, que ela precisa tomar a medicação, porque quando eu não consigo mais eu apelo né, olha eu não, não consigo fazer ela tomar a medicação, daí aqui conversam com ela bastante, que tem que tomar, então pra mim, já, bah, uma melhora muito grande, pra nossa família também, muito...[sic] (Cuidadora A).
Em um primeiro momento, a "melhora" nas falas das cuidadoras remete ao comportamento adaptado que é atribuído ao uso da medicação. Em um segundo momento, essa melhora vai aparecer na relação entre as cuidadoras e as crianças e os adolescentes, no fortalecimento dos vínculos familiares. Esses vínculos são muito importantes no processo terapêutico da criança e do adolescente, uma vez que as cuidadoras são as responsáveis por esses, além das influências que o convívio familiar tem sobre os indivíduos (SILVIA; PARRÃO, 2014).
As falas também apontam que o serviço tem auxiliado de forma significativa no desenvolvimento das relações familiares, e ajudado as cuidadoras a lidarem com os conflitos com as crianças e os adolescentes. Em conformidade com Trombetta et al. (2015), os serviços substitutivos para as famílias têm se mostrado de forma positiva nos aspectos de melhora de seus parentes com transtorno mental. As cuidadoras, abaixo, relatam as melhorias nas relações e as formas de enfrentamento que foram constituídas a partir do serviço de saúde mental:
Muitas melhoras assim no jeito de me tratar, no jeito de ela não fugir mais de casa, de sair pra rua, de ficar na rua, de dormir na rua, de eu não dormi de noite, de sair procurar ela na rua, de tudo assim, ela melhorou de tudo, nunca mais ela fugiu de casa assim, só as vezes que ela é meia braba mas é por causa da doença dela, que vem assim, vem aquela biporalidade, ela fica nervosa, mas daqui a pouco a gente conversando com ela com calma devagarinho explicando as coisas pra ela, eu explico olha o que o CAPS ensina a gente, conversa as coisas boas com a gente. [sic] (Cuidadora C).
A melhora é porque ela é muito agitada, e lá, ela não brincava com a irmã dela, com ninguém, outras crianças não, mas como indo lá ela está brincando mais [sic] (Cuidadora D)
Compreende-se que o adoecimento psíquico modifica toda a dinâmica familiar, interferindo no cotidiano dos membros, dificultando as relações familiares e inserindo uma carga emocional intensa (MONTEIRO et al., 2012). Partindo-se, então, dos levantamentos da percepção das cuidadoras com relação à melhora, é possível questionar a expectativa de futuro das crianças e dos adolescentes. Mediante os discursos das cuidadoras, percebe-se que elas se mostraram pessimistas nas expectativas, com alegações que exemplificam as experiências cotidianas como justificativa de um futuro marcado por adoecimento crônico e dependência na relação de cuidado. Conforme assinala Rosa (2003), é no processo de expectativa da cura e controle comportamental que se insurge a constatação do cuidador de que o adoecimento psíquico é incurável. No discurso das cuidadoras, aparece claramente a preocupação delas com a dependência das crianças e dos adolescentes, além do medo de não estarem mais presentes para efetuar os cuidados:
(...) vou ser bem sincera, a gente vê ela com certeza dependente de remédio, porque se deixa ela sem o remédio ela se transforma, ninguém suporta ela dentro de casa, no sentido que ela agressiva, respondona, de mal humor, parece mulher em TPM, grita...[sic]" "ela com certeza ela irá continuar tomando a medicação, vai continuar tendo um acompanhamento de um profissional assim[sic] (Cuidadora D).
(...) medo, esse é o meu medo o pai dele não vai querer ele morando com ele, já falaram, porque ele não faz nada né, só fica sentado naquela cama, é esse o meu medo, e eu acho que eles vão interna né, porque eu não vou viver pra sempre, eu disse pra ele, tudo tem que ir eu junto, tudo tem que ir eu junto ele não se anima fazer nada, paga uma conta, saí assim sabe, tem que estar sempre comigo, esse é meu medo se eu morre o que vai ser desse guri, eu queria assim que ele tivesse assim, que ele soubesse fazer as coisas sem, que ele aprendesse a fazer as coisas sozinho[sic] (Cuidadora C).
Sinceramente dependente de mim até eu ficar velhinha (risos), muito dependente de mim... por ela pensa em casa ter filhos, ter a casa dela, mas eu nem me vejo nem ela com namorado, nem, não futuro com filhos, que eu penso será que a criança não vai nascer com o mesmo problema, e aí cuida dela e cuida da criança, seria complicadíssimo né, então, eu vejo o futuro da E como comigo, até quando dê né[sic] (Cuidadora A).
Em se tratando de expectativas das cuidadoras com relação ao futuro das crianças e dos adolescentes, levanta-se, então, a possibilidade de alta do serviço. Nesse momento, as cuidadoras se mostram receosas ao se verem sozinhas, com medo diante da possibilidade de gerirem o futuro daqueles que elas cuidam. Outros relatos apontam um receio quanto à continuidade da assistência prestada pelo serviço de saúde mental, e pelo temor de ficarem sem o tratamento medicamentoso. Parte desses sentimentos denuncia a falta do apoio familiar, porque o fato de se verem novamente sozinhas com a criança ou o adolescente se torna desconcertante para elas.
De acordo com Moraes et al. (2013), muitas vezes, devido ao sintoma, os familiares se afastam da posição de cuidado, elegendo cuidadores fora do núcleo, pois se angustiam com a possibilidade da impotência diante das dificuldades do cuidado e das demandas intrínsecas a ele. Essa constatação também é reforçada pelas cuidadoras:
Mas eu acho que eles não vão parar o atendimento assim, porque o guri não está nada bem né, assim mija e precisa das medicações, eu acho não sei, eles vão encaminhar para outro CAPS, porque eu não posso ficar sozinha com essa responsabilidade ai, ai eu não sei como é que eu vou fazer, o pai dele pega ele de vez em quando né, leva ele para casa dele um dia na semana, mas morar não quer, aí eu não sei o que que vai ser [sic] (Cuidadora B).
(...) eu tenho medo sabe, que dão alta dela, eu queria sempre continua com ela, aqui sabe, até ela ficar moça, ela crescer, eu queria sempre ter um acompanhamento com ela sabe, até ela fica moça, até ela te idade, assim se não tem aqui pra ela, mas botar ela em outro CAPS, de, de adulto, pra ela ter um acompanhamento porque ela tem bastante, ela bastante assim uma coisa assim no coração dela, assim revolta do pai, sobre a gente a família, eu queria sempre ter o contato com CAPS, pra poder ter foça, continua cuidando dela, tendo aquele auxílio [sic] (Cuidadora C).
Mas eu quero saber os remédios, como eu vou pegar, porque ela não pode ficar sem remédio, pois eu não sabia que existe, porque faz anos que ela está lá [sic] (Cuidadora D).
Tendo em vista os relatos, pode-se pensar que essas cuidadoras não se sentem preparadas para a possibilidade de alta do serviço. Temem também não terem acesso a outros serviços, a não ser por meio dos encaminhamentos realizados pelo CAPSi para consultas fora. Conforme Dimenstein (2006), quando o CAPS não possibilita saídas e limita os espaços de circulação do sujeito na rede, tende a institucionalizá-lo no serviço, transformando o CAPS em manicômio disfarçado. Isso remete à questão dessas cuidadoras não conseguirem se desvincular do serviço, sendo até mesmo angustiante a cogitação de alta, pois o tratamento lhes parece estar todo centrado em um único serviço de saúde mental.
Entretanto, a proposta da Reforma Psiquiátrica é a possibilidade da construção de serviços substitutivos que não reproduzam a lógica manicomial e hospitalocêntrica de atendimento na saúde mental, mas, sim, a promoção de saúde consubstanciada por um cuidado mais emancipatório e humanizado ao doente mental (MORAES; DIAS; ROMIO; PEIXOTO, 2011). Diante do que se propõe, na reforma como política de saúde mental cabe compreender a relação que se estabelece nos cuidados ofertados pelo CAPSi, que poderá reforçar uma relação de dependência ou, então, auxiliar para uma condução autônoma.
A respeito da relação das cuidadoras com o serviço de saúde mental, observou- se que elas encontram no serviço uma rede de apoio devido à perda dos vínculos familiares, situação que causa grande sobrecarga às mesmas. No entanto, a relação entre as cuidadoras e o serviço de saúde mental pode ser permeada por diversas ordens de demanda, que vão desde a dificuldade de lidar com os sintomas ou com o tratamento, até os conflitos familiares emergentes, culpabilizações e frustração das expectativas de cura (COLVERO; IDE; ROLIM, 2004).
A relação do cuidador com o CAPSi constitui-se na estratégia de cuidado como forma de inclusão social e no seio familiar, pois é por meio do auxílio e do apoio da família nos cuidados que serão promovidas a autonomia e a reabilitação do sujeito (VICENTE; HIAGARASHI; FURTADO, 2015). Assim, o CAPSi acaba desempenhando um papel importante para as cuidadoras, conforme relatado abaixo:
Como mãe, bah! Nossa! É minha segunda casa né, por causa que se não fosse aqui, não teria atendimento para a E, porque é muito difícil ter atendimento, é muito espalhado os atendimentos, o psicólogo lá não sei onde, psicopedagoga lá no outro lado da cidade, o psiquiatra é lá perto do Cedas [sic] (Cuidadora A).
(...) clareou as coisas para mim sabe, eu vi as coisas mais claras as pessoas me explicaram a realidade que eu não sabia sabe, eu não vivia esse mundo da realidade, eu não sabia nada só aqui dentro que eu fui prender muita coisa, que hoje eu sei através aqui do CAPS...[sic] (Cuidadora C).
O apoio e a assistência encontrados pelas cuidadoras no serviço de saúde mental pode permitir uma ressignificação das experiências no convívio com o adoecimento, e possibilitar melhorias nas relações familiares. O fortalecimento dos vínculos familiares é muito importante no processo terapêutico da criança e do adolescente, isso porque a dinâmica familiar tem influências sobre o sujeito, reforçando a possibilidade de saúde ou de adoecimento (SILVIA; PARRÃO, 2014, p. 12). As participantes da pesquisa expressam que o serviço de saúde mental CAPSi tem auxiliado na relação com as crianças e os adolescentes por meio do manejo de determinadas situações de conflito, situações que não eram compreendidas anteriormente ao aprendizado no serviço:
(...) e às vezes eu não tenho muita paciência, porque eu tenho um monte de problema, só que ela é o tudo na minha vida, hoje eu sou uma mãe melhor, aprendi aqui também, as doutoras conversando comigo, as psicólogas conversando comigo me explicando tem que ser assim C, tem que fazer assim, tentando, o que eu posso fazer por ela, eu faço, dou é, antes eu não sabia conversa [sic] (Cuidadora C)
Ele é muito importante para mim, porque bah! Se não fosse o CAPS eu não sei o que seria de mim hoje, porque eu vivia chorando em casa (risos), ele quebrava as coisas de raiva, eu quebrava também, porque eu achava que ele que era ruim, aí agora eu acho que tem ajudado bastante, se acalmou [sic] (Cuidadora B)
Diante dos relatos acima, fica evidente a importância de o serviço de saúde mental estar atento não só aos manejos do tratamento medicamentoso mas também à interação familiar, pois muitas implicações psíquicas emergem de relações insatisfatórias. A afetividade e os cuidados ofertados pelos pais/cuidadores possuem função norteadora no desenvolvimento intelectual, emocional e psíquico das crianças e dos adolescentes. Do contrário, a privação da afetividade e dos cuidados permite que o transtorno mental infantojuvenil se acentue em mais crises (SANTOS; CARRAPATO, 2009).
Portanto, o suporte ofertado pelo serviço tem sido reconhecido pelas cuidadoras não só pela atenção despendida a elas diante das dificuldades de enfrentamento, mas também como ação norteadora de cuidados tanto para as crianças e os adolescentes quanto para as cuidadoras. Na representação das cuidadoras, existe o reconhecimento do serviço prestado como sendo de boa qualidade. Inclusive, elas sublinham o caráter positivo do serviço por possuir variados tipos de atendimento. Dizem, ainda, que se não fosse o serviço elas se sentiriam perdidas:
Assim o, é bom tem uma qualidade no atendimento secretarias, todos, não é, começa lá na porta, aqui dentro o atendimento é muito importante sem o CAPS, não sei, eu nem sei por onde começar porque quando a gente já começou aqui, se me tirarem o CAPS, eu nem sei para que lado eu vou na cidade eu não sei médicos em lugar nenhum, nada, nada, nada, eu sou perdida, vivo aqui, o aqui, se me mandarem para outro lugar eu não sei para onde ir [sic] (Cuidadora A).
(...) parece que o CAPS me dá mais força assim sabe, o CAPS me dá mais coragem, para mim pode ajudar ela, ela pode se ajudar assim sabe, porque se não fosse o CAPS assim eu acho que até tinha perdido a minha filha para rua sabe [sic] (Cuidadora C).
Esse reconhecimento do serviço se dá pela via do sentimento de rede de apoio, que as cuidadoras adquirem devido a suas trajetórias na busca por atendimento especializado, e do sentimento de desamparo frente ao adoecimento. De acordo com Delgado (2014), as estratégias que almejam ajudar a família devem ser construídas de forma compartilhada entre o serviço/cuidadores/usuários, para que as práticas de cuidados façam sentido no real para a família e para as crianças e os adolescentes.
A partir desse reconhecimento, e mediante às dificuldades enfrentadas (sejam elas econômicas, comportamentais ou afetivas), as cuidadoras atribuem ao CAPSi as funções de prestação de ajuda e assistência multidisciplinar, tanto a elas como às crianças e aos adolescentes. Os relatos revelam um sentimento de agradecimento:
Sim para ajudar eles eu acho né, para ajudar porque eu não tinha ninguém eu, eu, ele fugia de casa único recurso eu ia na polícia, é porque ele tinha essa mania de fugir e amanhecer, eu ficava amanhecida na rua aí eu ia na polícia civil pedir ajuda, aí eles me ajudavam, se não, né...[sic] (Cuidadora B).
Hoje o que percebo é que eles estão aqui para acolher a gente, para ajudar, bah, o que eles fizeram por mim eu só tenho que agradecer muita a todos eles aqui[sic] (Cuidadora C).
O CAPS é assim, a gente tem um atendimento multi né, porque ali a gente vai é psicólogo, é eu não sei se ali tem fono, é psicóloga, aham...tem a parte da enfermagem tem o apoio né [sic] (Cuidadora E).
Dessa forma, a função social do CAPSi é atribuir assistência aos usuários e às cuidadoras no controle dos sintomas e nas dificuldades que implicam. De acordo com Pinto, Pinto e Cavalcante (2011), o papel dos CAPS está voltado às práticas que possibilitem dar amparo ao paciente em crise – tais práticas não envolvem só o tratamento clínico, mas também a compreensão das situações que cercam o paciente, intervindo a fim de reinseri-lo na família e socialmente.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A Reforma Psiquiátrica propõe a desinstitucionalização dos processos de manicomializações, a partir de modelos substitutivos que possibilitem, por meio de intervenções, a reinserção familiar e social do usuário. Desse modo, as práticas de cuidado ganham visibilidade, pois passam a ser construídas de forma singular e de acordo com a necessidade de cada criança ou adolescente, pois o foco não é mais a doença, e sim o sujeito e sua experiência. No entanto, o que também se percebe nos discursos das cuidadoras de crianças e adolescentes que frequentam o CAPSi é que o olhar está todo voltado para o usuário, de modo que a inclusão da família tem se dado pela via da demanda do adoecimento.
Portanto, nas respectivas categorias, pode-se evidenciar como as cuidadoras compreendem os serviços e quais as implicações das mesmas quanto aos cuidados em relação a essas crianças e adolescentes.
Quanto ao impacto do diagnóstico, pode-se observar que o mesmo repercute na vida da criança e do adolescente, e no seu convívio com as cuidadoras. Nota-se que, quando o diagnóstico não é trabalhado com a família, ele acaba dando lugar ao imaginário social do estigma da loucura como algo debilitante de produção do sujeito, um sintoma do seu adoecimento. Por isso a importância das cuidadoras terem um espaço importante de cuidado no CAPSi, desde o acolhimento no serviço. No que tange ao comunicado do diagnóstico, esse não deve ser pontuado como algo estanque, mas que a evolução do caso e seu prognóstico também dependem da vinculação dos cuidadores ao serviço e do investimento e engajamento no que se refere ao tratamento da criança. Ao se levar em consideração o impacto do diagnóstico para as cuidadoras, como demonstram os resultados, é importante um trabalho voltado para o fortalecimento do vínculo familiar como rede de apoio, pois é por meio desse trabalho que se dará autonomia e promoção de saúde aos sujeitos em questão, e assistência às cuidadoras no manejo diário diante das lacunas que o adoecimento psíquico propõe. A rede de apoio teria que ser composta por três importantes grupos: o familiar, as equipes de saúde no âmbito territorial e a rede escolar, a fim de possibilitar inclusão social a essas crianças e adolescentes, bem como para suas famílias.
Em relação à percepção dos cuidados ofertados, pode-se concluir que, na relação cuidadora-serviço, o modelo biomédico está muito presente e, por intermédio deste, o apoio familiar que tem se contemplado no serviço ocorre pela dificuldade da família em lidar com os sintomas. Portanto, é importante que as práticas do CAPSi sejam constantemente repensadas, a fim de evitar a reprodução da alienação do sujeito como nos modelos asilares ou ambulatoriais.
Por fim, observa-se que um dos obstáculos encontrados no CAPSi é a questão da centralização dos atendimentos não realizados, e também a falta de intersetorialidade no campo da saúde mental no município estudado, pois o serviço acaba "inchado" de demandas e com poucas possibilidades de dar alta ao paciente. Uma das possibilidades de enfrentamento dessas questões seria o fortalecimento do matriciamento em saúde mental, que tem como finalidade fortalecer as escolas e os dispositivos de saúde. Nesse sentido, o matriciamento pode ser um dispositivo intercessor para a reflexão sobre as demandas e encaminhamentos de crianças e adolescentes que vivem em sofrimento psíquico agudo, fortalecendo assim as redes de cuidado em saúde mental consubstanciadas em uma aposta em um cuidado mais integral.
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Endereço para correspondênciaI
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Artigo recebido em: 15/08/2016.
Aprovado para publicação em: 01/02/2017.
1Visavam cuidar da população por meio da educação e do ensinamento de novos hábitos.
2Tinham como objetivo o controle social no sentido de melhorar física, mental e racialmente as futuras gerações brasileiras.
3O acolhimento é uma espécie de serviço de triagem do serviço, com o objetivo de avaliar demanda e realizar encaminhamentos.