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Mental

versão impressa ISSN 1679-4427versão On-line ISSN 1984-980X

Mental vol.16 no.30 Barbacena jul./dez. 2024  Epub 16-Dez-2024

https://doi.org/10.5935/1679-4427.v16n30.0003 

Artigo

O ESPAÇO DISCIPLINAR E A DOCILIZAÇÃO DOS CORPOS: MENORES CAPTURADOS PELO DISCURSO1

THE DISCIPLINARY SPACE AND THE DOCILISATION OF BODIES: MINORS CAPTURED BY DISCOURSE

EL ESPACIO DISCIPLINARIO Y LA DOCILIZACIÓN DE LOS CUERPOS: MENORES CAPTURADOS POR EL DISCURSO

Helder Rodrigues Pereira2 
http://orcid.org/0009-0008-7631-3560

Geovana de Paula Paiva3 

Paola Vidigal Scolari4 

Teresa Cristina Mendes5 
http://orcid.org/0009-0000-0488-3806

2Professor do Centro Universitário Presidente Antônio Carlos – Barbacena. Coordenador de Projeto de Pesquisa que estuda as relações entre o sujeito, o discurso, as instituições e a psicanálise. helderpereira@unipac.br. ORCID 0009-0008-7631-3560

3Aluna do Curso de Psicologia do Centro Universitário Presidente Antônio Carlos – Barbacena. Bolsista do UNIPAC/PROBIC (2022). 181-001155@aluno.unipac.br

4Aluna do Curso de Psicologia do Centro Universitário Presidente Antônio Carlos – Barbacena. 212-001235@aluno.unipac.br

5Aluna do Curso de Psicologia do Centro Universitário Presidente Antônio Carlos – Barbacena. 211-000126@aluno.unipac.br. ORCID 0009-0000-0488-3806


RESUMO

As instituições sociais têm um poder delineador de bordas. Assim elas fazem para que possam conter em si mesmas o principal objeto de sua constituição. Esforçam-se, pois, para manter em seus limites alguns dos desejos humanos: conhecimento, sexualidade, transcendência. Além dessas, há as instituições corretivas que, sob coerção, limitam a liberdade e encerram o sujeito sob regras rígidas de controle de suas condutas. São instituições que reduzem o sujeito a objeto de regras, uniformizando-o e declarando-o inadequado para o convívio da sociedade. Algumas dessas instituições, sustentadas pelo discurso ideológico da periculosidade das classes sociais empobrecidas, dedicaram-se a encarcerar menores a fim de reinseri-los, após um longo processo punitivo e pedagógico, na mesma sociedade que os excluiu.

Palavras-chave: Menoridade; instituição; transgressão; discurso

ABSTRACT

Social institutions have a borderline delineating power. They do so in order to contain within themselves the main object of their constitution. They strive, therefore, to keep within their limits some of the human desires: knowledge, sexuality, transcendence. Besides these, there are the corrective institutions which, undercoercion, limit freedom and enclose the subject under strict rules to control his behaviour. They are institutions which reduce the subject to the object of rules, making him uniform and declaring him inadequate for living in society. Some of these institutions, supported by the ideological discourse of the dangerous nature of the impoverished social classes, are dedicated to imprisoning minors in order to reinsert them, after a long punitive and pedagogical process, in the same society that excluded them.

Keywords Minority; institution; transgression; discourse

RESUMEN

Las instituciones sociales tienen un poder delimitador. Lo hacen para contener en sí mismos el objeto principal de su constitución. Se esfuerzan, pues, por mantener dentro de sus límites algunos de los deseos humanos: el conocimiento, la sexualidad, la trascendencia. Además de éstas, están las instituciones correctivas que, bajo coacción, limitan la libertad y encierran al sujeto bajo reglas estrictas para controlar su comportamiento. Son instituciones que reducen al sujeto a objeto de reglas, uniformándolo y declarándolo inadecuado para vivir en sociedad. Algunas de estas instituciones, apoyadas en el discurso ideológico de la peligrosidad de las clases sociales empobrecidas, se dedican a encarcelar a menores para reinsertarlos, tras un largo proceso punitivo y pedagógico, en lamisma sociedad que los excluyó.

Palavras-chave: Minoría; institución; transgresión; discurso

INTRODUÇÃO

A leitura da obra de Ginzburg (1992) é instigante. Trata-se de Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. Nesta obra, o autor faz uma explanação sobre um paradigma de investigação nas ciências humanas denominado de paradigma indiciário. É uma metodologia que busca no detalhe, na margem, no índice oculto alguns sinais significativos que têm o poder de estabelecer com o contexto oficial um diálogo importante. Por contexto oficial compreende-se, por exemplo, um determinado documento emitido por alguma autoridade legalmente constituída. O paradigma clássico (positivista) considerava que tal documento trazia em si a verdade possível de ser alcançada e, portanto, seria por si mesmo capaz de revelar uma constante histórica e social presente em determinada época e local. No caso do paradigma indiciário, o documento não é desprezado, mas nele são investigados outros sinais marginais que podem revelar uma outra verdade: uma verdade oculta pelo mesmo discurso oficial. Um ocultamento que opera por silenciamento (algo deve ser silenciado para que alguma coisa seja dita e faça sentido pois, se o silenciado emergir, o que foi dito inicia a produzir um outro sentido) e que opera, também, por recalque: o conteúdo recalcado, no entanto, insiste em fazer sentido diante de uma realidade importante para o sujeito e sua história.

O paradigma indiciário visa a reconhecer a visibilidade aos escondidos da História, aos ocultados pela História oficial narrada pelos documentos oficialmente produzidos pelas instituições legais. Um discurso que, de alguma forma, produz um ocultamento do outro, relegando-o à margem do saber sobre si mesmo. Esse discurso fala, mas impede a interlocução, mantendo o outro no silencioso lugar dos sem-fala (in fans). Ora, assim desqualificado, o outro não encontra espaço de significação possível, passando a ser considerado unicamente pelos atributos a ele direcionados pelos donos da fala: pobre, sem trabalho, inconstante, louco e perigoso. Atributos que a instituição correcional assume como de sua responsabilidade e controle, revestindo-se do discurso científico capaz de construir uma imagem de eloquente verdade. Quanto ao outro, limita-se (nos limites do documento oficial) afazer eco a esse discurso, repetindo antigos sentidos a ele atribuído.

A pesquisa – cujos resultados aqui se apresentam – se propôs a identificar, por meio dos estudos discursivos, as falas que trazem os pressupostos institucionais acerca dos menores internados no Instituto Psicopatológico de Ensino e Estudo ao Menor (IPEME), localizado em Barbacena – MG (extinto a partir da promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente6). O corpus de estudo e análise foi formado pelo conjunto de prontuários dos menores internados nos anos 1970, sob a guarda da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais – Núcleo de Ensino e Pesquisa do Complexo Hospitalar de Barbacena – Museu da Loucura.

Do conjunto dos prontuários foi identificado um que, conforme nossos estudos, apresentava características gerais sobre a apreensão de um menor no contexto daquela instituição de caráter punitivo-pedagógico. Seu prontuário está constituído de partes significativas quanto às ações praticadas pelo internado, bem como os mecanismos institucionais acionados para as tentativas de readequações. O que podemos perceber é um trajeto (ou vários) delineados pelo discurso institucional que busca, a seu modo, significar o menor nos parâmetros ideológicos, classificando-o nos moldes da delinquência e do distúrbio mental.

Direito, Psiquiatria e Psicologia se uniram no contexto discursivo para significar o menor. Nossos estudos, todavia, buscaram a fala dele, o seu discurso, mas não logramos encontrá-lo com clareza. Esteve oculto, escondido, silenciado, recalcado – mas insistia em significar nas páginas no processo e da História. Buscamos o sujeito, mas precisamos nos contentar com as sombras – como já havia constatado Lacan.

No entanto, é preciso esclarecer que a proposta foi possível a partir dos estudos discursivos sobre a análise documental (o que fizemos a partir das considerações sobre o documento e o monumento histórico e dos estudos linguísticos). Ademais, necessário e oportuno um recurso aos estudos dos discursos de Lacan ([1969-1970] 1992), o que permitiu uma compreensão das falas organizadas em discursos sob um viés psicanalítico.

A partir do prontuário escolhido e analisado, foi possível uma breve incursão em uma instituição, em uma época e, principalmente, em um conjunto de ideias que, a seu modo, ainda significam em nossa atualidade, dificultando a reinvenção de políticas públicas voltadas para a infância e a adolescência.

1. PESSOAS INSTITUCIONALIZADAS: DIRIGENTES E DIRIGIDOS

Quiçá por motivos de sobrevivência, o homem julgou por bem organizar-se em sociedade e, nela, em instituições para tentar classificar seus desejos (lícitos e ilícitos), adequando-os às mais diversas ideologias disponíveis ao longo da história. Uma dessas instituições foi erigida para a finalidade de conter os arroubos irrefreáveis da delinquência juvenil. Façamos, pois, dela, um relato nos termos seguintes.

Corria o mês de fevereiro do ano de 1976. Do Pavilhão Milton Campos7 foi emitida uma correspondência destinada ao Sr. José Marcos8 – então Chefe de Disciplina do Instituto Psicopatológico de Ensino e Estudo ao Menor (IPEME). Quem assinou a missiva foi o menor João Ricardo Piemonte que contava 17 anos de idade. Eis o seu teor:

Barbacena

Caro amigo José Marcos9.

Eu estou no M. J. J. V. [Manicômio Judiciário Jorge Vaz]10. | Eu ti concidero com um pai – portanto que você, me pediu a arma | E eu li dei ela sem receió algum | E então você mim disse que ia ver | O.K. [o que] podia fazer por mim, então eu – | Já ia embora, você min pediu –que eu voutassi para o Instituto | eu emtãoobdesi [obedeci] e voutei com | você para lá mais isto tudo foi | por que li concidero como pai – | pesso a voce e o seguinte ve, si | da para localizar o doutor | Silvério11 para mim e diga-lhe que | que a promesa que eu li fis |de nunca mais fugi da cadeia | Eu estou comprindo. que eu só | quero-lhe dizer que assim que | eu for libertado custe quanto anos | que for, porque ai eu não vou | ter outra chanci mesmo.

Estis dito cujos que atrapalharão [atrapalharam] – | a minha situação? que eJosé Odécio, Elmo. Gilberto é [e] Nilson – | Custe o que custar mais ai e [é] que –Eu vou atrapalhar minha vida – | mesmo. não quero que voces acrediteagora, por que si não vai achar | que e [é] so ameaças. Elis [Eles] só vão ficar tranqúilos enquanto eu | tiver prêso. E quanto a você Marcos

Eu ti pesso que venha aqui no – | manicomio que eu preciso de lhe dizer uma coisa muito séra [séria] | falou?

João Ricardo Piemonte

FIM

Instituto Psicopatologico – De encinoão menor.

.Obrigado.

(FHEMIG. Museu da Loucura. Documentos do IPEME. Prontuário de João Ricardo Piemonte. Correspondência).

Esta carta, aqui tomada como documento, dialoga com outros tantos produzidos pelos profissionais do IPEME e, a seu modo, dá voz a um dos internos, trazendo sua letra e sua forma de ver as ocorrências que se desenrolavam no cotidiano de uma das instituições que foram erigidas para dar conta da problemática do menor infrator na sociedade brasileira.

Certamente, não foi essa carta enviada ao destinatário, pois está anexada ao prontuário em questão, talvez para fazer confirmar o que registravam os documentos oficiais (laudos e pareceres técnicos).

A trajetória de João Ricardo Piemonte não é única e, tampouco, isolada. Por isto ela é aqui tomada como exemplo para ilustrar a trajetória dos menores que foram encarcerados no IPEME nos anos 1970 e 1980, até ser desativado, nos anos 1990, com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, que redirecionou as formas de abordagem quanto aos atos infracionais cometidos por menores no Brasil.

Antes de estabelecermos um trabalho de trocas discursivas entre o menor e a instituição que lhe encarcerava, vamos esclarecer alguns pontos que trazem informações sociais e históricas.

Estão atualmente sob a guarda do Museu da Loucura – Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais – Complexo Hospitalar da Barbacena, Minas Gerais, alguns prontuários de menores que foram internados no Instituto Psicopatológico de Ensino e Estudo ao Menor – o IPEME. Era um pavilhão que compunha o complexo do então Hospital Colônia de Barbacena, mais especificamente o Pavilhão Milton Campos. Esse pavilhão foi cedido em empréstimo à Secretaria de Estado do Interior e Justiça para funcionar como uma instituição prisional a fim de abrigar menores infratores.

A unidade contava com médicos psiquiatras, psicólogos, assistentes sociais e agentes disciplinares (policiais militares e carcereiros). A arquitetura seguia os mesmos moldes de uma prisão, pois os quartos coletivos eram trancados à noite, para fins de impedimento de contatos maiores e para um melhor controle dos meninos e adolescentes. Além dos dormitórios-celas, havia ainda as celas solitárias, para onde eram encaminhados aqueles que se comportavam de forma a exigir a execução disciplinar de maneira mais severa. Para a solitária eram encaminhados os meninos-prisioneiros que, por algum motivo, desrespeitassem a disciplina e a ordem do complexo prisional ao qual estavam submetidos.A instituição atuava, pois, para reconduzir o recalcitrante para o lugar social adequado – o de respeito à ordem para a garantida do progresso12. Compreendemos, pois, que a função institucional identificava a desordem e seu ator, retirando-o do contexto social e inserindo-o no contexto ordinário. A promessa, como se sabe, está alicerçada nos princípios clássicos de um sistema, que preconiza uma entrada (input), um processo e uma saída (output). Ora, tendo sido submetido a um processo pedagógico, por exemplo (como é o caso do IPEME), o sujeito seria devolvido à sociedade de forma recuperada, adequada, podendo voltar a tentar cumprir o que preconizava a sociedade capitalista: adequação ao trabalho e a subordinação à autoridade constituída.

A construção do presente artigo apoia-se, pois, nos princípios de uma pesquisa qualitativa. Por ela importa a capacidade dialógica que guardam com a realidade estudada e como essa mesma realidade pode ser questionada a fim de melhor elucidar as formas que escolheu para lidar com os menores infratores, estabelecendo uma crítica dos comportamentos atuais que, não obstante as conquistas do Estado Democrático de Direito no Brasil, podem tender a um retrocesso e a uma visão nos menores tão-somente como agentes perturbadores da ordem, destinados a experimentar a solidão e o banimento.

Assim, do ponto de vista metodológico, privilegiamos o prontuário do menor João Ricardo Piemonte que, à época de sua internação (prisão) tinha 17 anos de idade. Essa escolha não exclui, por si só, a possibilidade de fazermos remissão a outros de igual estrutura para melhores diálogos explicativos do cotidiano institucional que revela, a seu modo, o cotidiano da sociedade brasileira diante dos menores.

Antes de iniciarmos essa trajetória – que está baseada em considerações filosóficas, históricas e psicanalíticas – principalmente na teoria dos discursos de Jacques Lacan ([19691970] 1992) – façamos algumas considerações metodológicas.

2. O ASPECTO MONUMENTAL DO DOCUMENTO

Ao discutir o poder do arquivo, Roudinesco (2006) nos convida a uma retomada do sentido grego da palavra arché, que designa o princípio causador de todas as coisas. Os primeiros filósofos gregos colocaram-se diante de tal princípio, buscando elucidá-lo a partir de suas considerações especulativas para melhor entenderem o início de todas as coisas que compõem a physis, ou seja, a natureza, o homem e suas concepções de verdade. De acordo com a autora, a prática do arquivamento tem sua origem nas buscas pelo princípio (arché) organizador de todas as coisas. Assim é que ela apresenta a figura do arconte, aquele que, na Grécia Antiga, tinha a função de organizar, aquele homem que estava imbuído de um poder arquívico, um poder classificador, um poder capaz de designar o que seria preservado e mostrado e o que seria olvidado, escondido e perdido. A partir dessa figura simbólica, podemos compreender que o ato de arquivar demonstra, pois, um poder arquívico que, à semelhança dos mecanismos inconscientes, associa em cadeias significantes os processos históricos e documentais, recalcando, por assim dizer, os traços neuróticos inconciliáveis com a sociedade que, via de regra, não quer se haver com os delinquentes desejos que lhe constituem.

O arquivo segue, pois, uma certa função arcôntica, selecionando o que será mostrado e escondendo o que deverá ser esquecido.Em nossa trajetória metodológica também exercemos um poder arcôntico. Um poder que já havia sido exercido antes de nós. Vejamos:

Menores transgressores foram internados (encarcerados) no Instituto de Psicopatologia e Estudo do Menor (IPEME)13 em Barbacena entre os anos de 1977 e 1990. Quando foi desativado e seus prédios (pavilhões) foram devolvidos à Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (antiga FEAP – Fundação Estadual de Assistência Psiquiátrica). Durante esse período, foram produzidos documentos (prontuários) que relatavam o cotidiano dos menores. Tais documentos estão compostos por relatórios e laudos psiquiátricos e psicológicos, além de anotações dos agentes responsáveis pela disciplina e pela organização administrativa interna. Chama a atenção as chamadas Cartas de Guia, pelas quais os menores eram identificados e encaminhados (guiados) pela autoridade policial ou jurídica para as práticas de internamento psiquiátrico, ou seja, para um cumprimento de pena em ambiente controlado pela Justiça e pela Ciência. Via de regra, as referidas cartas traziam um breve histórico sobre o menor, demonstrando sua inadequação ao convívio social, sempre em função de um abandono prévio (pais envolvidos com drogas; miséria econômica; dificuldades em se colocar no mundo do trabalho), o que significavam destinos sociais funestos: envolvimentos em assaltos e homicídios.

Nas cartas de guia os menores aparecem significados pelo discurso do Outro, que lhes qualifica de acordo com suas redes de relacionamento familiar e social, não apontando outra escolha senão o mesmo fim: o IPEME – elogiado pelas autoridades, como se lê na citação de Dias (2012) 14 mas vivenciado duramente pelos internos.

De um lado, os menores, com seus desejos próprios da infância e da adolescência, com suas prerrogativas de conquistar o mundo pela curiosidade, mas impedidos por questões maiores do que eles próprios e, de outro, as instituições ciosas por classificá-los e, portanto, contê-los em limites previsíveis.

É justamente esse embate que procuramos evidenciar nas escolhas do corpus de análise discursiva. Um único prontuário investido como paradigma indiciário, que aqui serve de espelho para trazer todas as realidades dos menores que transitaram no intramuros da instituição localizada em Barbacena – MG, em terras do Hospital Colônia – lugar significativo que, por décadas, acolheu (conteve) os párias sociais: loucos e demais dissidentes. Aqui, pois, faremos uma breve incursão no cotidiano dos menores encarcerados para compreender os mecanismos discursivos que se ergueram para tentar significar suas realidades que, nos princípios positivistas do Estado Moderno, seriam inconciliáveis: a infância e a transgressão.

Ao privilegiarmos um único prontuário estamos, de igual forma, exercendo uma função arcôntica. Ao fazermos uma seleção dentre os documentos que sobreviveram, estamos selecionando aquele que será ouvido, mas buscando identificar, em uma cadeia de significantes, aqueles elementos que dizem sobre as abordagens e, de alguma forma, permitindo que a criança fale por meio deles.

De acordo com Le Goff ([1990] 2016, p. 197), “o que sobrevive não é o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas forças que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam à ciência do passado e do tempo que passa, os historiadores”.

O documento, para o positivismo do fim do século XIX e início do XX é, por si só, o testemunho da história, aquele que traz em si a verdade do fato e funciona como prova máxima de algo que se quer compreender e, de certa forma, comprovar. Mesmo que ele resulte da escolha do historiador (pesquisador), ele se mostra como uma prova histórica, ainda mais quando se trata de um documento escrito – tal como estamos ora apresentando. Todavia, como bem sabemos, não há documento inócuo, não há produção que não traga em si uma ideologia que caracteriza uma determinada época, seus homens e seus pensamentos. Portanto, mais que apresentar o documento como uma fotografia estática de nosso passado, a metodologia discursiva propõe uma análise maior, que extrapole as margens dos escritos produzidos. É para além das margens que deve ser lido o documento. As margens documentais funcionam como barreiras, como muralhas medievais. No entanto, mesmo essas muralhas não se constituíam como um conjunto monolítico, mas eram marcadas por porosidades que permitiam as trocas entre os de dentro e os de fora (Le Goff, 1998).Entre o sagrado e o profano; entre o urbano e o subúrbio. A análise discursiva nos permite essas trocas, bem como a concepção porosa das margens documentais que, a seu modo, dialogam com as visões de mundo de uma determinada época.

Façamos, pois, essa incursão: a partir do documento produzido, analisemos os discursos que sobressaem em cada um deles, fazendo dialogar a História, a Filosofia e a Psicanálise para a compreensão de nossa sociedade a partir da infância encarcerada.

3. AOS ANORMAIS E PERIGOSOS, A ATUAÇÃO DO BIOPODER

Do ponto de vista da mentalidade burguesa, as classes pobres eram (são) também consideradas classes viciosas. O emprego adequado do tempo parecia ser uma boa prevenção para o vício. Por isto, estar inserido no mundo do trabalho poderia significar a melhor maneira de se viver em sociedade. Ora, as classes pobres, a partir do século XIX, foram identificadas às classes viciosas e perigosas. Quem retoma esse conceito é Chalhoub (2004) que, ao tratar do tema das epidemias no Brasil Império, identifica a função importante das ideologias que associavam todas as misérias sociais às ações das classes pobres (empobrecidas), atribuindo a elas a emergência dos males sociais: epidemias e violência. Ora, o XIX foi propício em identificar o perigo oferecido pelas classes pobres, informando que elas deveriam ser mantidas sob suspeita pois, afinal, nessas classes é que estavam os desordeiros, aqueles que provocavam o mal-estar na sociedade, os que atacavam os transeuntes e colocavam em sério risco a paz social. Para fazer frente a esse mal, a sociedade engendrou as mais diversas formas de controle e vigilância, exercendo a coerção sempre que necessário, justificando as violências estatais com o discurso da preservação do corpo social15.

Eis como se expressa o historiador:

Vamos encontrar o conceito de classes perigosas como um dos eixos de um importante debate parlamentar ocorrido na Câmara dos Deputados do Império do Brasil nos meses que se seguiram à lei da abolição da escravidão, em maio de 1888. Preocupados com as consequências da abolição para a organização do trabalho, o que estava em pauta na ocasião era um projeto de lei sobre a repressão à ociosidade (Chalhoub, 2004, p. 20).

Nesse mesmo contexto, a descrição dos viciosos e malfeitores acabaram por coincidir com a descrição da pobreza de uma forma geral, constituindo-se em uma das mais sólidas bases para identificar os pobres com a periculosidade. Ora, esse empenho sobreviveu à época imperial e vêmo-lo sobrevivendo no século XX, exercendo seu poder inquestionado pelos tempos seguintes.

Para os parlamentares do Império, a principal virtude do bom cidadão era o gosto pelo trabalho. Furtar-se a ele seria um sinal de degenerescência inevitável e passível de controle coercitivo por parte dos agentes da ordem. Portanto, a carta de João Ricardo Piemonte não se constitui um fato isolado: ela demonstra o reconhecimento da autoridade do discurso da ordem ao mesmo tempo em que se propõe a ela se submeter – uma submissão aos significantes da ordem que não são capazes de designar os significantes do sujeito.

Pelo visto, menores infratores pareciam se opor claramente aos ideais da ordem e do progresso – tão caros à sociedade brasileira – e, por isto mesmo, haveriam que se submeter à ordem estabelecida em uma mesma sociedade que lhes já havia se demonstrada frágil em seu acolhimento.

Cabe ressaltar que uma das fichas que compõe o prontuário dos menores internos do IPEME fazia menção às condições de moradia, abrindo um espaço discursivo importante para identificar a pobreza das condições de habitação com os vícios que iam emergindo no cotidiano das crianças. Ora, concepções assim definidas não deixavam muito espaço para as trocas simbólicas inerentes às ações humanas. Os prontuários revelam a miséria das relações, cercando a infância de sintomas psiquiátricos e de inadequações legais.

Dois discursos que se faziam imperativos: a Psiquiatria e o Direito. Significantes-mestres capazes de produzir uma falta no campo do outro16, que se mantinha ora submisso, ora revoltoso diante da incapacidade da fala constitutiva do sujeito.

A título de exemplo, retomemos o prontuário de João Ricardo Piemonte. Trata-se de um relato de ocorrência escrito pelo Chefe de Disciplina:

Exatamente quando eu José Marcos, reponsavel pela disciplina che| gava a este estabelecimento fui procurado emediatamente (sic) pelos moni| tores acima citado [Armando de Osmar e Felipe Moniz Lomas] e pelo interno Emílio Aantenor [de] Paulo, ambos di| zia (sic) que precisava falara comigo urgentemente. Levei ambos para a inspetoria.

Foi quando estava sendo relatado a mim os acontecimentos da noite | do dia 07 para o dia 08 que fomos interrompidos por fortes batidas na | porta, abri a porta e fui informado que o interno João Ricardo Piemonte | estava armado com um revolver e deu um tiro no chão para assustar | um interno que estava em sua frente e achava que o mesmo estrava bri| ncando, isto se deu em frente ao alojamento dos militares que saui (sic) | para verificar o que estava acontecendo, foi quando o interno João | Ricardo Piemonte atirou no mesmo e este vendo sem nenhuma chance de rea| gir entrou para o seu alojamento e feichou a porta, em seguida este | referido interno deu um tiro na porta principal do IPEME e saiu cor| rendo pelos fundos dando mais um tiro na porta da cozinha atingin| do as latas de mantimento e por pouco não atingiu a moça que traba| lha no almoxarifado [.] Diante de todos os acontecimentos mandei que o | monitor telefonasse para rádio patrulha mais considerando que a FE| APE [FEAP – Fundação Estadual de Assistência Psiquiátrica]17 atualmente não estava deixando [telefonar aproveitei o carro da | D. Felícia que acabava de chegar, pedi que tocasse para delega| cia, procurei o detetive Dimasque levou-me aos chefes dos detetives | e relatei todos acontecimentos logo em seguida fui informado que que o | carro da policia já estava indo para o local. Foi quando procurei | pela D. Felícia que tinha dado carona até a delegacia, não mais | encontrei.

Preocupado com os acontecimentos e desprevinido (sic) de dinheiro para to [mar]-um carro resolvi telefonar para o manicomio chamei o jose e pedi | para ele me mandar a camioneta se pudesse proque estava com proble-|mas grave lá embaixo fui atendido. Quando regressei pude constatar que o militar apesar de tudo estava | bem a bala resbalara em seu peito cauzando um arranhão, com a situ| ação que se encontrava recolhi todos os internos. Foi entregue, da| dos de identificação do interno para a rádio patrulha para buscas.

De 15hs as 17hs pude verificar que foi recolhido o policiamento pe| di ao Miguel Carneiro supervisor do IPEME que tomasse as providenci| as cabíveis para que eu não ficasse desguarnecido.

Foi resolvido tudo novamente, a guarnição que todos esperava.

(FHEMIG. Museu da Loucura. Documentos do IPEME. Prontuário de João Ricardo Piemonte. Relato de Ocorrência).

No relato supra, apenas o ato violento do interno e as ações disciplinares policiais para a manutenção da segurança. Esse relato estabelece uma estreita relação com as suspeitas acerca da periculosidade inerente às classes pobres, que se mostravam, também por esses motivos, anormais. Não sem razão eram esses menores presos pela polícia e enviados para um local de tratamento pois, como se pode inferir da leitura dos documentos, apesar de estar o IPEME localizado no território da FEAP, esse instituto era considerado um anexo do Manicômio Judiciário, também localizado em Barbacena, mas distante cerca de sete quilômetros da FEAP. Por sua constituição, o Manicômio internava transgressores da lei (criminosos de uma forma geral) que tinham sido diagnosticados como doentes mentais. Anormais, portanto.

Classes pobres e perigosas – como justificar a periculosidade? Os discursos sobre a inferioridade das raças seriam capazes, por si só, de sustentar uma tese que associava a pobreza com o risco social? Que pesem as considerações freudianas sobre o malestar na civilização (Freud, [1930] 2006), que explicam as neuroses nos termos de uma economia pulsional, aqui vai nos importar, por enquanto, o contexto científico positivista, que classificava como anormalidade os desvios que desafiassem a constituição de uma sociedade organizada e pacífica. Ora, os desvios eram sempre aplicados aos empobrecidos, cuja visibilidade se fazia evidente quando rompiam as margens do subúrbio e adentravam, de forma violenta, o contexto civilizado – em constante mal-estar.

Ao estudar sobre os anormais, Foucault ([1975] 2001) coloca o seu leitor diante de discursos da verdade: discursos ditos por autoridades científicas e que, dado seu valor, se erigem como discursos capazes de definir um contorno possível sobre aqueles que se destoam dos ideais da moral burguesa. Aliciadores, homossexuais, avessos ao trabalho formal, lacaios perversos desviantes da sexualidade reprodutiva, os anormais são falados pelo discurso jurídico que se baseia na autoridade médica. Segundo Foucault ([1975] 2001), muitas dessas pessoas não conseguiam erguer-se para além de sua mediocridade – algo inerente a elas em função de uma decrepitude moral herdada da família – e, por isto mesmo, buscavam chamar a atenção por meio de atos extravagantes e de vestuários impróprios. Esse universo de pessoas repugnantes permeia as páginas dos anormais (Foucault, [1974-1975] 2001), trazendo os qualificativos que classificavam as pessoas e sua forma de agir, fatores que as aproximavam da captura judiciária, haja vista que tais comportamentos eram colocados sob suspeita, afinal, “(...) ninguém é suspeito impunemente. O mais ínfimo elemento de demonstração ou, em todo caso, certo elemento de demonstração, bastará para acarretar certo elemento de pena” (Foucault, [1975] 2001, p. 10).

Haveria, pois, uma transformação: do duro ofício de punir para o belo ofício de curar. Esse é o papel do psiquiatra que, por si, não condena ninguém à reclusão. Essa função cabia unicamente ao juiz. Mas, ao colocar em seus laudos os sinais psíquicos de uma mentalidade pouco afeita aos ditames sociais, o psiquiatra estava sendo o próprio juiz, fornecendo ao processo as condições necessárias para o aprisionamento ou a soltura.

Essas descrições se davam por vários termos: “evolução ansiosa”; “desajuste psicossocial”; “excessiva solicitação pulsional”; “intensa imaturidade”; “padrão psicótico de incontinência emocional”. Esses qualificativos morais inseriam o sujeito em determinado discurso que se punha a falar sobre ele, a qualificá-lo e a demonstrar sua incapacidade de adequação à sociedade. Discurso da Psiquiatria, discurso do saber universitário que produz, no campo do outro, uma falta. Neste sentido, o outro é sempre faltoso: seja o menor delinquente ou seja a Justiça soberana, que necessitava dos significantes do saber para lograr algum êxito em suas considerações finais acerca da decisão pela prisão ou pela liberdade. Afinal, é o saber psiquiátrico que detinha a conclusão diagnóstica pois, então, a punição já havia se tornado mais específica. Isto quer dizer que o discurso do saber não pôde enviar para a prisão um transgressor sem antes saber as causas que motivaram a sua transgressão. Se a causa fosse psicológica, por exemplo, não caberia o envio à prisão, mas a uma prisão especializada: o manicômio judiciário – revestido pelo eufemismo da cura a sobrepujar a simples punição. Afinal, o doente mental não podia ser punido em função de sua condição psicopatológica. Não no universo científico.

O documento abaixo ratifica tais considerações:

SERVIÇO PÚBLICO DO ESTADO DE MINAS GERAIS Nº 035/76/PCP.

Assunto: autoriza transferência.

Secretaria: do Interior e Justiça.

Serviço: Departamento de Organização Penitenciária. Belo Horizonte, 11 de fevereiro de 1976.

Senhor Diretor,

Comunica a Vossa Senhora que nesta data, | estou autorizando a transferência do menor JOÃO RICARDO – | PIEMONTE, desse estabelecimento, para o Pavilhão anexo ao Mani| cômio Judiciário “Jorge Vaz”, em Barbacena.

Renovo a Vossa Senhoria neste ensejo, meus | protestos de elevada estima e consideração.

Silvério de Bastos Fortes

DIRETOR

Excelentíssimo Senhor

Doutor Joaquim da Silva Cardoso.

DD. Diretor do Centro de Recolhimento Provisório de Menores.

RIO ESPERA.

(FHEMIG. Museu da Loucura. Documentos do IPEME. Prontuário de João Ricardo Piemonte. Correspondência).

Perversidade e perigo, conforme sublinha Foucault ([1975] 2001),estão no cerne da classificação dos menores que deveriam ser mantidos sob constante vigilância para que fosse identificada uma forma de punição.

Se a punição espetacular já havia desaparecido do horizonte das práticas da justiça (Foucault, [1975] 1999), o “cruel prazer de punir” ainda se fazia presente em grande parte das encenações em que se colocavam em polos opostos o agente e a vítima. Havia, por certo, toda uma construção discursiva para inferiorizar a vítima, colocando-a sem condições de movimentos ou de interlocuções. A vítima, no entanto, aos poucos foi sendo vista como alguém que denunciava, em seu corpo dilacerado, a crueldade daqueles que a puniam. Então, o melhor destino encontrado foi a supressão do olhar do povo para a vítima que padecia de algum castigo em virtude do mal praticado.

Não obstante as tentativas, João Ricardo Piemonte não demonstrava um comportamento dócil e estava sempre envolvido em questões de brigas com outros menores. As causas? O seu prontuário não é claro com relação a isso. Sabe-se que brigava, fugia e, em seguida, era colocado na cela.

Novamente, pela sua própria voz, ele diz:

Sr. José

o que eu quero dizer ao senor (sic), e que eu – | estou precisando de sair desta cela – E eu queria que o senhor fizesse alguma – |coisa por mim aqui no manicômio. Porque eu – | ja estou ficando até doente aqui na | cela. Eu queria saber também uma solução | sobre o meu caso se eu vou ficar aqui ou| se eu vou vou tar lá para baixo.

gostaria de saber támbém se estam resolven – | do – o meu caso ou pra mim ir pra cadeia | ou pra mim ficar ou então la em baixo.

quero támbém que o senhor diga a sauda – | nha[Saldanha] – qui não e pra ficar assustado – | comigo naõ por [que] o meu sangue ja esfriou – | E eu ja resolvi deixar a vingança prá | la – eu não farei mais mal nem a êle – | e nem a meus inimigos. Eu esteve (sic) – | pensa[n]do e dissidi que êles támbém| quer viver. Eu resolvi deixar eles viver – | apesar de tudo que mem fizeram!

Êles mer[e]cem viver igúal a mim – | Portanto que pesso, que tanto o sauda– |nha [Saldanha] – etanto meus inimigo -> | nos não somos mais inimigos – |de hoje endiante somos amigos.

.FIM.

João Ricardo Piemonte

(FHEMIG. Museu da Loucura. Documentos do IPEME. Prontuário de João Ricardo Piemonte. Correspondência).

Uma voz que se fazia adequada aos princípios da prisão? Esfriar o sangue, reatar laços amistosos com os amigos são as evidências de um corpo dócil?

Mais uma correspondência emitida não enviada ao destinatário, tendo sido anexada, certamente, mais para indicar os sinais da má conduta do que proporcionar uma relação com o mundo exterior, de onde poderia advir algum tipo de interlocução. Uma voz não ouvida não produz sentidos.

De acordo com Foucault ([1975] 1999, p. 208), “houve, durante a época clássica, a descoberta do corpo como objeto e alvo de poder. Encontraríamos facilmente sinais dessa grande atenção dedicada então ao corpo – ao corpo que se manipula, se modela, se treina, que obedece, responde, se torna hábil ou cujas forças se multiplicam.” O corpo-máquina obediente aos comandos: este é o maior dos ideais das práticas institucionais que desempenham a função de conter os movimentos dos menores considerados perigosos para a sociedade, pois que se haviam mostrado inconstantes, não adaptados ao trabalho, com dificuldades de aprendizagem e, por fim, violentos e mortais.

Docilizar um corpo não se constituía como tarefa fácil. Várias ações e vários saberes precisaram se unir em torno de uma ação tão intensa e constante. O corpo dócil é aquele que pode ser submetido e utilizado, transformado e aperfeiçoado (Foucault, [1975] 1999), a fim de cumprir as expectativas institucionais que, a seu modo, designam as práticas consideradas aceitáveis pela sociedade. É o ideal do autômato homem-máquina que é educado para obedecercomandos e a não questionar os rumos das ordens e de suas obediências. É preciso, pois, que haja uma coerção ininterrupta, um esquadrinhamento de espaços e de corpos em movimento que devem ser, por isso mesmo, cada vez mais contidos. Como no caso dos menores que, retirados do convívio social, eram colocados na instituição escolar-punitiva e, se dentro dela, eles ainda demonstrassem os sinais de inadequações, eram colocados nas celas e, depois, na temível solitária – este desenho demonstra o controle do corpo sob a restrição dos movimentos em espaços cada vez menores. A obediência está relacionada à disciplina e vice-versa. Foucault ([1975] 1999) designa esse trabalho como a biopolítica, ou como uma anatomia política, pela qual o poder se exerce sobre os corpos, ensinando-os a ser dóceis e capazes de contribuir para uma retórica cada vez mais enraizada na sociedade, na qual é o próprio indivíduo o único responsável pelo seu sucesso ou pelo seu fracasso, isentando os diversos mecanismos sociais e econômicos dos destinos das pessoas que vivem sob diversas condições em uma mesma sociedade.

Como anotado no prontuário de João Ricardo Piemonte: “Não temos histórico do referido menor, sabe-se que tem homicídio simples e roubo”.

Ora, diante da carência das ações institucionais, a disciplina docilização dos corpos parecia ser a única medida utilizável:

A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma “aptidão”, uma “capacidade” que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada (Foucault, [1975] 1999), p. 212).

A disciplina exige o cercamento, o isolamento, a concentração em um único local fechado, onde os corpos podem ser vigiados e, caso necessário, punidos exemplarmente. Se, no início, houve o “grande encarceramento”18 (Foucault, [1975] 1999), as grades evoluíram e passaram a ser mais discretas, mas não menos eficientes.Tratava-se de anular os efeitos das repartições indecisas e, por conseguinte, o desaparecimento descontrolado dos indivíduos, sua movimentação confusa, a fim de saber com exatidão onde cada indivíduo se localizava. Ora, essas medidas disciplinares estão presentes nas prisões, nas escolas, nas fábricas, nos quartéis, nos conventos, ou seja, em todos os espaços que se fazem notar pelo controle do indivíduo em sua localização espacial. O esquadrinhamento dos espaços corresponde, pois, ao esquadrinhamento19 das ações, a fim de evitar o inesperado, a surpresa e o desatino próprios das classes pobres e perigosas.

4. O JOGO DISCURSIVO E A CONSTRUÇÃO DAS SUBJETIVIDADES

Estamos no contexto de uma instituição educacional-punitiva. Estamos em um anexo do Manicômio Judiciário, onde estão pessoas que cometeram algum crime cujo ato foi compreendido por uma prática originada em um determinado desatino mental. Essa instituição (IPEME) não era um caso isolado: ela pode ser comparada a tantas outras instituições de controle e repressão de pessoas não adequadas às expectativas sociais (burguesas). Dentro dessa instituição transitam menores de idade: algozes ou vítimas?

Estando o IPEME desativado, ficaram registros dos menores nas paredes e vários registros das autoridades nos prontuários. Como dito anteriormente, escolhemos um deles: o de João Ricardo Piemonte para adentrarmos o universo das instituições para menores infratores, para caminharmos pelos corredores sombrios das estruturas das leis. Por meio da leitura dos registros lemos as considerações sobre um menor: o seu prontuário está organizado como os de tantos outros que tiveram o mesmo destino: o crime, a cadeia, o exame psiquiátrico, o manicômio. Alguns foram libertados ao final de um certo tempo de adequação às normas e de dedicação ao trabalho, tendo sido identificados como capazes de retomarem a vida em sociedade, embora continuassem necessitando de constante vigilância; outros permaneceram na instituição.

José Paulo, Nilson B. de Olavo, Felipe de Araújo, João Alves A. dos Santos, Delson Luiz R. de Souza, Onésimo M. Fortes, Fernando Fagundes de Souza, Edilson Aalberto de Paulo, Antônio Lopes Cosme, Pedro Silva Stelmo, Gerson Júlio Marcos, Anésio Montes e João Ricardo Piemonte – apenas para citar alguns. São menores que, ainda na adolescência, experimentavam a rude tarefa de fugir da polícia, portar uma arma, roubar e matar.

A sociedade brasileira engendrou seus mecanismos de repressão para dar conta de tais transgressores. Um desses mecanismos é o discursivo. Ao tomarmos o Seminário 17 de Jacques Lacan ([1969-1970] 1992) encontramos uma discussão importante sobre os discursos que permeiam as cidades e, aqui, de uma forma específica, a instituição educacional-punitiva.

Lacan ([1969-1970] 1992) localiza quatro discursos capazes de significações: mestria, saber, histeria e análise.

Antes de nos aproximarmos deles, exploremos, brevemente, a função do chamado objeto a – causa do desejo. De acordo com Coutinho Jorge (2008, p. 139), “o objeto a é um objeto faltoso, ou, nos dizeres de Freud, para quem o encontro do objeto é sempre um reencontro, é um objeto perdido que o sujeito busca reencontrar”. Ora, esse objeto está em um dos pontos (quadrantes) da estrutura discursiva e, a seu modo, vai designar o que se esconde – e fundamenta – para que o discurso faça sentido social e subjetivamente falando. Essa designação da falta constitui o discurso: ora no lugar de agente (como no caso do discurso analítico); ora no lugar da verdade (como no caso do discurso histérico); ora no lugar da produção (como no caso do discurso de mestria) e ora no lugar do outro (como no discurso universitário).

Presentemente, para uma aproximação do que foi dito nos prontuários dos menores internados no IPEME, vamos priorizar duas categorias do discurso: o universitário (ou discurso do saber) e da histeria (ou discurso histérico). Obviamente, não estamos lidando aqui com a nosologia da histeria propriamente dita, mas de uma organização discursiva que, analoga à histérica, guarda uma relação muito particular com o mestre, em um jogo de aproximação e repulsa; de subserviência e de destituição.

De acordo com Lacan ([1969-1970] 1992), os lugares a partir dos quais se organizam os discursos são quatro e, portanto, cada um desses lugares refere-se a um quadrante específico na estrutura discursiva.

Os lugares são invariáveis e são assim denominados: agente, verdade, outro e produção. O agente e a verdade (à esquerda) estão no campo do sujeito, ao passo que o outro e a produção estão no campo do Outro.

Em seguida, temos os elementos que se articulam nas formações discursivas20:

S1 – o significante-mestre (significante da primeira experiência de satisfação, que jamais poderá ser retomada plenamente), o significante do sujeito; S2 – busca constante da primeira experiência de satisfação – o saber inconsciente; $ – o sujeito desejante, que falta-a-ser e a – o objeto causa de desejo, o excedente na busca da experiência de satisfação indicada pelo S1.

É na articulação desses quatro elementos nos quatro lugares estabelecidos que os discursos revelam seu funcionamento, propondo constantes ressignificações do objeto perdido.

Como dito, vamos priorizar dois discursos: o universitário e o histérico.

Sobre o discurso universitário, temos a seguinte construção:

S2S1a$

O saber, no lugar de agente, fala e se remete ao outro, acionando nesse campo uma faltaa-ser. Esse saber é impulsionado pelo significante do sujeito (significante mestre) que, no entanto, permanece sob a barra, produzindo um sujeito desejante nessa sua fala. O discurso universitário é um discurso do saber (S ) que tem como pretensão objetificar (a) o outro de forma a produzir um sujeito ($) dissociado de seus significantes primordiais (S ). Assim, ao outro resta apenas o silêncio e, quando enunciar algo, será apenas uma reprodução discursiva dos enunciados que já lhe foram incorporados pela insistência do significante do outro.

Esse discurso do saber pode ser lido em algumas partes das considerações sobre João Ricardo Piemonte:

Paciente visto em evolução ansiosa do quadro de desajuste psicossocial. Excessiva solicitação pulsional, ausencia de recursos estênicos para controle.

Intensa imaturidade.

Padrão psicopático de incontinência emocional.

Associa-se com atuação suficientemente boa no plano verbal.

(FHEMIG. Museu da Loucura. Documentos do IPEME. Prontuário de João Ricardo Piemonte. Laudo psiquiátrico).

As escolhas lexicais assim constituídas colaboram para acionar, no campo do outro, a falta. É um discurso sobre o menor que não se dirige diretamente a ele, mas a um outro (a autoridade judiciária que, de posse de tal laudo, determinaria o destino do menor). Portanto, essa produção de sujeito desejante é uma ação discursiva produzida pelo saber. Os agentes que assinam o laudo estão no verdadeiro (Foucault, [1970] 1996) e, portanto, estão autorizados pela ideologia institucional a emitir uma verdade sobre o sujeito, pois o seu significantemestre (a verdade da ciência) permanece sob a barra que, simultaneamente, o oculta e o impulsiona. Mas, mesmo assim, esse é o discurso que designa um lugar institucional para o menor e, como toda formação discursiva, está associada a ideologias institucionais calcadas no poder psiquiátrico – aquele que detém o saber sobre o outro (transgressor, delinquente, perigoso, doente mental) e que, sobre ele, está autorizado a dizer e significar sempre que seu discurso é solicitado.

Vejamos mais outra parte do discurso, aqui sob a visão psicológica:

Personalidade ansiosa, afetivamente inibida, insegura/ | com percepção voltada mais para formas globais. Pouco produtiva e | com a área de interesses bastante limitada. Sua inteligencia é | mais do tipo reprodutivo que produtivo e sua fórmula vivencial a| presenta-se coartada. Apresenta uma inibição acentuada da afetivi| dade, sendo de relacionamento superficial carecendo de interesses | ou cordialidade em relação aos outros. Manifesta traços de ansie| dade acentuados originados de suas fantasias inconscientes que

não saõ submetidas ao controle do pensamento lógico.

(...)

SÍNTESE: Trata-se de personalidade ansiosa com deficiencia dos con-| troles, apresentando sinais de desajustamento social e constituição/ | afetiva.

(FHEMIG. Museu da Loucura. Documentos do IPEME. Prontuário de José Roberto Pio. Laudo psicológico).

Em outra formação igualmente significativa, podemos ler:

Atualmente se caracteriza exacerbação da periculosidade,

revelação de traços até então latentes de sadismo e homossexualismo,

atitudes de violência descontrolada, evolução no sentido parapsicótico,

caracterizando intensa periculosidade e recomendando medida de segurança por já ter completado dezoito anos.

(FHEMIG. Museu da Loucura. Documentos do IPEME. Prontuário de João Ricardo Piemonte. Laudo psicológico).

Trata-se de um sujeito produzido pela própria instituição que, finalmente, via no “sadismo e homossexualismo”, sinais de sua degradação física, psíquica e social. O discurso psiquiátrico também enfatizava sua periculosidade, o que fez de João Ricardo Piemonte não um menor recuperado pelos dispositivos pedagógicos e penais pois, dali,ele fora encaminhado para a Delegacia de Polícia da Comarca de Barbacena – MG, tendo sido desligado do IPEME no dia 15 de fevereiro de 1978.

No dia 28 de fevereiro de 1978, o interno, então desligado do IPEME, era entregue ao Delegado de Polícia, encerrando sua trajetória sob a designação de menor e iniciando-a nos meandros de outra instituição. Decerto, o destino de João Ricardo Piemonte foi o mesmo de tantos outros jovens que foram demarcados pelo discurso do saber jurídico e psiquiátrico: envolto em dúvidas quanto às possibilidades de retorno à sociedade, foi considerado melhor mantê-lo encarcerado, para salvaguarda da sociedade de seus agentes perigosos e inoportunos.

Um discurso do saber é aquele que se dirige à falta no campo do outro, produzindo um sujeito faltoso – um sujeito histérico? – pois o discurso histérico tem como agente justamente o sujeito barrado, aquele que se reconhece faltoso e que, por consequência, produz um saber no campo do outro:

$aS1S2

O avesso do discurso universitário é o discurso histérico, pois seus termos se espelham nessa relação de interligação entre ambos. Podemos afirmar que, assim como o discurso universitário produz o sujeito desejante (agente do discurso histérico), o discurso histérico produz um saber no campo do outro. Um saber de si mesmo.

Por isto, já encarcerado, líamos nas correspondências emitidas por João Ricardo Piemonte: “pesso a voce e o seguinte ve, si | da para localizar o doutor | Silvério para mim e diga-lhe que que (sic) a promesa que eu li fis | de nunca mais fugi da cadeia | Eu estou comprindo” (FHEMIG. Museu da Loucura. Documentos do IPEME. Prontuário de João Ricardo Piemonte. Correspondência).

De acordo com Lacan ([1969-1970] 1992, p. 88), “o próprio sujeito [histérico] se aliena no significante-mestre como aquele que esse significante divide (...). Fala-se, a propósito da histérica, de complacência somática”. Um corpo complacente que se submeteu ao discurso do outro, mas que não logrou mais do que ser o objeto da própria significância dele.

Certo, pois, que não se pode falar de um discurso do saber sem a referência de seu avesso: o discurso histérico. Há uma relação entre ambos: um saber sobre o outro e um sujeito desejante, que fala impulsionado por uma falta-a-ser, um mais-de-gozar e que, ainda assim, se remete a um significante-mestre, um significante do sujeito, a fim de produzir um saber. Quando o saber é produzido, em seu avesso, ele é impulsionado por uma mestria e remete a uma falta-a-ser no campo do outro, produzindo, por sua vez, um sujeito barrado, desejante – docilizado?

Libertando-se do lugar de produção do discurso universitário, o histérico apresenta outras formas de ação: uma voz que se manifesta nas missivas mas que é imediatamente silenciada quando essas não são enviadas aos destinatários, indicando que suas manifestações verbais não ultrapassaram os muros institucionais, ainda que suas palavras quisessem tão-somente indicar sua subordinação às leis e às normas locais. Ele escrevera ao Diretor, ao Chefe de Disciplina, acionando o mestre para obter uma resposta quanto ao seu lugar: permaneceria ainda na cadeia? Não sabemos acerca dos resultados dessas reivindicações. Sabemos apenas que ele – como muitos outros – percorreu os anos de sua adolescência como perigoso, transgressor e inadequado para a vida em sociedade. Ao iniciar a idade adulta, as portas do IPEME se abriram não para libertá-lo, mas para transferi-lo para a cadeia, sob os cuidados do Delegado de Polícia, por ordem do Juiz de Direito da Segunda Vara de Menores de Belo Horizonte.

Caso fosse evidenciado o comportamento dócil e adaptado às regras institucionais, a aceitação da família e o compromisso de um trabalho oficial, o menor podia ser liberado para a vida em sociedade. Mas, os registros do prontuário em questão evidenciam muito mais a falência institucional do que o seu sucesso, indicando que outras formas de abordagem deviam ser criadas em substituição à prisão e ao silêncio.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A leitura de um documento produzido por uma instituição é um importante caminho para a compreensão dessa mesma instituição. No entanto, aproximar-se do documento exige do pesquisador um olhar atento para as informações que podem estar silenciadas ou marginalizadas por aqueles que o produziram. Assim entendemos: todo discurso está perpassado por concepções ideológicas que se colocam na sua produção. Isto quer dizer que todo discurso tem um interdiscurso, ou seja, não há um discurso puro, independente de outros que igualmente lhe constituem e significam. Se assim não fosse compreendido, o prontuário do IPEME seria uma forma estática de abordar o cotidiano dos sujeitos e eles, por sua vez, se nos pareceriam exatamente como lá estão decalcados (descontextualizados de uma realidade específica).

Por esta razão, dizemos que, pelo viés das interpretações discursivas, uma instituição é sempre polissêmica, ou seja, ela não fala por si apenas, mas se apresenta eivada de concepções ideológicas que, a seu modo, justificaram as práticas e as falas.

Mas é preciso criticar: o fato de eleger um único prontuário para se fazer uma compreensão mais abrangente – qual método indutivo próprio das ciências – também tem uma concepção ideológicaarquívica, que opera a modo de silenciar todos os outros. No entanto, esse método não é simplesmente silenciador de outras várias produções. A eleição de um único prontuário, ao ser tratada de forma heurística, permite que os outros também falem e que os sentidos produzidos no que foi escolhido também traz o mesmo sentido daqueles que foram rejeitados. Todavia, não se trata de uma escolha pueril e inconsequente. Antes: trata-se de uma escolha que permite uma leitura capaz de deslindar os silenciamentosproduzidoseossentidosmarginalizados,ouseja,contidosnasmargensdosdocumentos que constituem o prontuário, como a designar um espaço único possível de gerar sentidos.

Todavia, o documento possui uma capacidade dialógica. Ele dialoga com outros do mesmo gênero textual e discursivo; dialoga com a instituição que o produziu; dialoga com as concepções técnicas e científicas que o sustentaram e, finalmente, dialoga com a sociedade.

Cabe-nos perguntar: e quanto ao menor? Há um diálogo com ele?Os estudos mostraram que não. O menor é o in-fans, o desprovido de fala significativa. Neste sentido, o menor balbucia apenas. Emite sons e espera ser significado, mas sua emissão permanece sob as margens pré concebidas, como atestam as cartas emitidas. Ficaram presas no discurso controlado da ciência e da ordem, como a exemplificarem o sujeito perigoso que insiste em sair das normas fixadas para si e para sua segurança. O discurso do saber (universitário) que se depreende da leitura do prontuário é um discurso que se sustenta na falta do outro. Uma falta que é produzida pelo próprio discurso e não oferece outras significações além daquelas previstas: anormal, ansioso, carente, pobre, doente, transgressor, perigoso.

Pouco – ou quase nada – das falas desses menores institucionalizados chegaram até nós. Se eles fossem ouvidos, decerto nos fariam capazes de criar abordagens mais seguras para o desenvolvimento de nossas ciências voltadas para o cuidado do outro, mas que ainda carecem da capacidade de ouvir esse sujeito que, não obstante as amarras, insiste em significar, apontando para aspectos da sociedade que, via de regra, não quer ser revelada em suas abordagens.

1Este artigo traz os resultados da pesquisa realizada durante o ano de 2022 no Curso de Psicologia sob o título: O espaço disciplinar e a docilização dos corpos: um estudo sobre a infância encarcerada. A pesquisa teve o financiamento do UNIPAC/PROBIC.

6Lei 8.069, de 13 de julho de 1990.

7O Pavilhão Milton Campos fazia parte do conjunto de pavilhões do Hospital Colônia de Barbacena e, por um acordo dos dirigentes, estava cedido à Secretaria de Estado do Interior e Justiça de Minas Gerais.

8Por motivos éticos, os nomes próprios que aparecem ao longo do texto são fictícios.

9Chefe de Disciplina do IPEME.

10De acordo com nossas pesquisas, o IPEME, apesar de estar no espaço territorial da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (FHEMIG), estava sob a administração do Manicômio Judiciário Dr. Jorge Vaz (hoje Hospital Psiquiátrico e Judiciário Dr. Jorge Vaz), também em Barbacena – MG. Isto se dava em razão de ter sido esse pavilhão cedido à Secretaria de Estado do Interior e Justiça (vide nota 7).

11Diretor do Departamento de Organização Penitenciária de Minas Gerais da Secretaria de Estado do Interior e Justiça.

12A teoria sociológica de Émile Durkheim está apoiada na filosofia positivista do final do século XIX e início do XX. Em suas Regras do Método Sociológico, Durkheim ([1895] 2004) estabelece uma distinção entre o normal e o patológico, configurando aquilo (ou aqueles fatos sociais) que podem manter a sociedade em parâmetros normais, distinguindo-o (os) dos que podem levá-la à patologia da desordem.

13O IPEME era uma instituição ligada à FUNABEM (Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor) e à FEBEM (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor), que tinham como objetivo prevenir a marginalização dos menores, oferecendo-lhes oportunidades de promoção social. No caso do IPEME, havia a preocupação com o vínculo entre a transgressão e a doença mental. Não sem razão, o Instituto era dirigido por um médico psiquiatra.

14“O Instituto de Psicopatologia e Estudo do Menor (IPEME) preenche áreas de atividade de relevante significação para o estado moderno e, sobretudo, para nosso país, como sejam a prevenção social, o tratamento e recuperação do menor de conduta anti-social e características psicopatológicas. Cuida assim, de agentes criminosos da maior periculosidade, quer pelas condições inerentes ao vigor da idade, quer pelas graves perturbações mentais que ditam o comportamento e o registro dos acontecimentos dolorosos de que tem participado. [...] o IPEME, em convênio com o Instituto de Assistência Social e Estudos Psicopatológicos (IASEP), realiza uma obra singular, mas polivalente, com a atribuição de Centro de Custódia, de núcleo escolar de profissionalização, de hospital psiquiátrico e de campo de pesquisa, visandoà obtenção de modelo de prevenção social e recuperação de jovens com a tipologia acima citada (Andrada, 1979, p.5, apud Ferreira, 2001)”.

15A noção de corpo social também está aliada às concepções positivistas, que elaboram um paralelo entre o organismo humano e o organismo social – ambos, em ordem, estão saudáveis. Quando há, pois, um agente patológico, que adoece o corpo, as defesas são acionadas para a retomada da saúde. Também na sociedade, por analogia, deve haver um conjunto de agentes da ordem que agem em conjunto para conter o avanço dos agentes patológicos, causadores dos males morais e sociais.

16A abordagem do discurso na Psicanálise será retomada logo adiante, quando da análise do corpus aqui proposto.

17A FEAP, como fundação pública, antecedeu a atual FHEMIG (Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais) na atenção à assistência psiquiátrica no âmbito do Estado de Minas Gerais.

18Em outra obra (História da Loucura na Idade Clássica), Foucault discute também a Grande Internação, designando os mecanismos de contenção que foram utilizados também para os loucos.

19Igualmente a este respeito, Duarte (2018) apresenta uma discussão sobre o que chama de “obsessão esquadrinhadora”. Segunda ela, uma política de esquadrinhamento dos espaços, de mapeamento das movimentações esteve em voga em Minas Gerais do século XIX, cujo principal objetivo seria a contenção e o controle da produção aurífera e dos movimentos suspeitos dos desordeiros, que agiam contra a economia.

20De acordo com Foucault ([1970] 1996), uma formação discursiva é definida pela compreensão das relações entre dispersões e regularidades no interior de um campo discursivo. A rigor, não há uma fixidez nos discursos, mas uma dispersão, que somente pode ser compreendida a partir da regularidade, informada, então, pela análise do discurso.

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