INTRODUÇÃO
A Reforma Psiquiátrica Brasileira (RPB) representa uma mudança paradigmática na abordagem da saúde mental no país, rejeitando a lógica de isolamento e exclusão dos indivíduos em sofrimento psíquico e promovendo uma transformação significativa na forma como esses indivíduos são tratados e apoiados. Essas mudanças tiveram um impacto profundo na maneira como o sistema de saúde e as políticas de saúde mental são concebidos e implementados no país (Silva, 2019).
Com a promulgação da Lei 10.216/2001, conhecida como Lei Antimanicomial, é fortalecido no território brasileiro a transformação no paradigma de assistência em saúde mental. A partir da instituição das Redes de Atenção em Saúde (RAS), é consolidado um novo modelo de atenção à saúde (Amadei et al., 2023). O cuidado em saúde mental se configurou na Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), criada em 2011 pela Portaria nº 3.088, como uma iniciativa que visava priorizar a atenção comunitária, a inclusão social e a humanização do tratamento para pessoas com transtornos mentais e necessidades relacionadas ao uso de substâncias psicoativas (Nóbrega, Mantovani & Domingos, 2020).
O processo de municipalização da saúde foi um avanço na perspectiva de expansão dos serviços, melhor gerenciamento da assistência e participação social. Limoeiro sedia a 2ª Gerência Regional de Saúde (II GERES) com a responsabilidade de apoiar e supervisionar 20 municípios da referida região, dos quais a sede é responsável pelo cuidado em saúde mental de 8 desses municípios. Dispõe de rede de atendimento e acolhimento em saúde mental segundo a Política Nacional de Saúde Mental (PNSM). Mesmo diante da implantação dos serviços, o funcionamento da RAPS municipal é desconhecido, sinalizando à necessidade de desenvolvimento de pesquisas que contribuam para o debate regional e para uma melhor interlocução entre os diversos pontos de atenção que compõe a rede assistencial em saúde mental.
A avaliação da estrutura e do processo de atenção em saúde mental é fundamental para o fortalecimento da RAPS e a efetiva implementação da política de desinstitucionalização. Nesse sentido, este artigo objetivou analisar a organização da Rede de Atenção à Saúde Mental do município de Limoeiro-PE, no que diz respeito a sua estrutura e funcionalidade. A partir disso, será possível subsidiar o aprimoramento do planejamento governamental acerca das práticas e dos serviços da RAPS condizentes com as diretrizes do novo modelo assistencial em saúde.
1. MÉTODO
Este é um estudo descritivo e exploratório, sendo realizado em forma de um estudo de caso de cunho qualitativo, com a utilização de entrevistas semiestruturadas e análise documental.
O estudo foi realizado nos meses de abril e maio de 2024, no município de LimoeiroPE. Município urbano, porém, com aglomerados caracterizados por atividades rurais, é considerado polo regional do agreste, sendo sede da II GERES. Dados estimados do Censo Demográfico de 2022 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indicam que o município conta com aproximadamente 56.510 habitantes (IBGE, 2022).
Desde 2012, vivencia a expansão da rede de cuidados em saúde mental, desencadeada, principalmente, após a implantação do CAPS AD III Capibaribe. Com isso, foram criados novos dispositivos de cuidado, a exemplo da unidade de acolhimento e serviço residencial terapêutico para atuarem em consonância com a atenção básica, o ambulatório de saúde mental e os leitos psiquiátricos, resultando na reorganização dos modelos de cuidado desenvolvidos.
As técnicas utilizadas para obter o material empírico foram entrevistas semiestruturadas e análise documental. O roteiro das entrevistas abrangeu questões relacionadas à estrutura, funcionamento e atores influentes da RAPS, bem como a articulação entre os serviços municipais e intersetoriais. Também foram abordadas perspectivas em relação ao funcionamento ideal preconizado pela PNSM. A coleta foi realizada nos principais serviços que prestam cuidados em saúde mental: Secretaria de Saúde com a participação dos gestores responsáveis pela organização e planejamento da RAPS municipal, no Centro de Atenção Psicossocial ADIII (CAPS ADIII) com enfoque na visão da gestão e da assistência, na Unidade de Acolhimento (UA) e no Serviço Residencial Terapêutico (SRT). Ao combinar entrevistas com diferentes atores envolvidos na RAPS, análise de documentos relevantes e observação direta dos serviços em funcionamento, foi possível obter uma análise abrangente do panorama da saúde mental, considerando diferentes perspectivas e contextos de atuação.
As entrevistas foram realizadas com dois grupos de participantes: gestores e profissionais atuantes na assistência. A seleção dos participantes foi definida com base na técnica metodológica Snowball (Bola de Neve). Nesse método, o pesquisador começa com um participante inicial, que é recrutado por conveniência, nesse caso foi a Coordenadora de Saúde Mental, sendo apontados 10 informantes estratégicos integrantes dos diversos serviços que compõem a RAPS, seja na função de gestor ou da assistência, para colaborarem com a pesquisa. Como também foram analisados documentos, listados no Quadro 1, que corroboraram com o objetivo da pesquisa.
Quadro 1 Documentos analisados no estudo da Rede de Atenção Psicossocial. Limoeiro, Pernambuco, Brasil, 2024.
Documentos | Ano | Finalidade | Utilidade |
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Mapa de Saúde da II Regional de Saúde de Pernambuco | 2021 | O Mapa trata-se de um importante instrumento de gestão que busca descrever geograficamente a distribuição de ações e serviços de saúde ofertados pelo SUS, considerando-se a capacidade instalada existente, os investimentos e o desempenho aferido a partir dos indicadores de saúde do sistema. | Forneceu o desenho da RAPS da II Regional de Saúde, a distribuição dos equipamentos de Saúde Mental no Território e os serviços instalados nos municípios de referência. |
Mapa Regional de Saúde do Estado de Pernambuco – Instrutivo nº 01 | 2022 | Dispõe de informações da capacidade instalada da rede existente, dos investimentos, do desempenho aferido a partir da série histórica dos indicadores assistenciais e de saúde, indicadores sociodemográficos e econômicos, de forma a possibilitar a análise da situação de saúde em cada território. | Retirado informações atualizadas referentes aos componentes da RAPS. |
Resolução CIR* Nº 12 | 2024 | Aprova a remodelagem da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) na II Região de Saúde, do Estado de Pernambuco. | Atualização do Desenho da RAPS da II Regional de Saúde. |
Projeto Terapêutico CAPSad III – CAPIBARIBE | 2012 | Implantação do CAPS ad III regional | Retirado informações a respeito da estrutura, funcionamento, fluxo interno e itermunicipal, rotina do serviço e seu fluxo intersetorial e intermunicipal. |
Projeto Unidade de Acolhimento Adulto | 2016 | Impantação da Unidade de Acolhimento | Retirado o modelo de funcionamento, a composição da equipe atuante, a rotina de funcionamento e seu fluxo intersetorial. |
Fonte: Autoria própria. *CIRComissão Intergestores Regional
Os critérios de inclusão para os gestores e profissionais foram estabelecidos conforme a posição que os participantes ocupavam na RAPS, apresentadas no Quadro 2. Quanto aos gestores, identificados pela letra G, foram incluídos os que exerciam funções de gestão municipal de saúde e das coordenações dos serviços da RAPS. Entre os profissionais assistenciais, identificados pela letra A, foram considerados os que prestavam atendimento contínuo aos usuários, considerando diferentes categorias, com a finalidade de contemplar as diferentes percepções a atuação. Assim como documentos que possuíam informações pertinentes ao estudo. Os critérios de exclusão foram tempo de atuação inferior a 1 ano para os profissionais e gestores, bem como documentos incompletos.
Quadro 2 Caracterização dos participantes do estudo da Redede Atenção Psicossocial. Limoeiro, Pernambuco, Brasil, 2024.
Participantes | Categoria Profissional | Escolaridade | Vínculo profissional na saúde | Tempo de serviço na saúde mental | Competência no serviço |
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G1 | Odontologia | Especialista | Concursado | 11 a 15 anos | Gestão |
G2 | Enfermagem | Especialista | Contrato Administrativo | 6 a 10 anos | Gestão |
G3 | Psicologia | Mestre | Cargo comissionado | 16 ou mais | Gestão |
G4 | Enfermagem | Especialista | Cargo comissionado | 6 a 10 anos | Gestão |
G5 | Psicologia | Mestre | Cargo comissionado | 11 a 15 anos | Gestão |
G6 | Psicologia | Especialista | Concursado | 6 a 10 anos | Gestão |
A1 | Enfermagem | Especialista | Contrato administrativo | 1 a 5 anos | Assistência |
A2 | Psicologia | Especialista | Contrato administrativo | 1 a 5 anos | Assistência |
A3 | Arteeducador | Especialista | Contrato administrativo | 1 a 5 anos | Assistência |
A4 | Psiquiatria | Especialista | Contrato administrativo | 6 a 10 anos | Assistência |
Fonte: Autoria própria.
Para os procedimentos de análise foi utilizada a técnica de Análise de Conteúdo Temática proposta por Bardin. A análise das entrevistas foi feita em três etapas: a pré-análise, a exploração do material e o tratamento dos resultados, inferência e interpretação (Bardin, 2016). As categorias principais foram delimitadas previamente à entrevista, servindo inclusive de parâmetro para a construção das perguntas no roteiro de entrevista. As categorias principais foram delimitadas previamente à entrevista, servindo inclusive de parâmetro para a construção das perguntas no roteiro de entrevista. Foram elas: Desenho da RAPS a nível regional e as pactuações intermunicipais; Organização e fluxo dos serviços de saúde mental de Limoeiro; Articulação intersetorial da RAPS. Os dados coletados nas entrevistas foram cruzados com os documentos obtidos na investigação documental, sendo utilizados para embasar oficialmente as informações adquiridas nas entrevistas e complementá-las.
Na dimensão desenho da RAPS a nível regional e as pactuações intermunicipais, foi considerada a visão macro da II Região de Saúde, incluindo o processo da sua implantação, as resoluções de implantação dos serviços e a organização de forma regionalizada da RAPS. A dimensão organização e fluxo dos serviços de saúde mental de Limoeiro considerou a disponibilidade dos serviços de saúde mental com atendimento aos usuários, sendo avaliado a estrutura da rede e a identificação dos fluxos assistenciais entre os diversos serviços integrantes. A dimensão articulação intersetorial da RAPS teve por interesse a análise da articulação do cuidado entre os diversos serviços integrantes da rede. O processo analítico dessa dimensão tomou como correspondência os mecanismos de comunicação, referência e contrarreferência estabelecidos e a integração entre os diversos pontos de atenção.
A realização da pesquisa obedeceu aos preceitos éticos conforme preconiza a Resolução 510/2016 do Conselho Nacional de Saúde para pesquisas com seres humanos. O projeto foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa (CEP), tendo sido aprovado com nº do parecer 2.356.348.
2. RESULTADOS E DISCUSSÃO
Nesse capítulo será apresentada a RAPS regional, com ênfase no município-polo Limoeiro, dividida em seções oriundas da análise das entrevistas correlacionandoas às informações obtidas por meio dos documentos outrora mencionados, são elas: Desenho da RAPS a nível regional e as pactuações intermunicipais; organização e fluxo dos serviços de saúde mental de Limoeiro; articulação intersetorial da RAPS. Assim, procuramos elucidar simetrias e contrastes entre as diretrizes da RAPS e o seu funcionamento no município de Limoeiro-PE.
2.1 DESENHO DA RAPS A NÍVEL REGIONAL E AS PACTUAÇÕES INTERMUNICIPAIS
Para que os gestores de municípios de pequeno porte possam instalar pontos de atenção da RAPS é preciso existir uma análise que vai além do território municipal, mas que permanece sob a responsabilidade contínua dos gestores locais. É necessário a articulação entre as Comissão Intergestores Regional (CIR) para planejamento dos fluxos assistenciais e estabelecimento de protocolos de execução (Garcia & Santos, 2022). Nesse sentido, a partir da Resolução CIB/PE nº 2.314, de 03 de junho de 2013, foram estabelecidas as diretrizes para a remodelagem da RAPS em Pernambuco, na perspectiva de aprimorar a oferta de serviços de saúde mental no estado. Na II GERES, a RAPS foi formalizada no ano de 2013, com a aprovação do Desenho da Rede de Atenção Psicossocial em uma reunião da CIR ordinária, conforme a resolução CIR nº 49, de 21 de outubro de 2013 e remodelada pela resolução CIR n°12, de 22 de fevereiro de 2024.
Atualmente, o desenho da RAPS na II GERES organiza-se de forma regionalizada, considerando Limoeiro, Passira e Surubim como municípios-polo que funcionam como referência para os demais municípios apresentados na imagem que compõe a II Região de Saúde proporcionando suporte técnico e assistencial, conforme ilustrado na Figura 1. Limoeiro é referência para os municípios: Feira Nova, Orobó, Passira, Bom Jardim, Salgadinho, Machados e João Alfredo. Souza (2022) evidenciou em seu estudo, a pactuação intermunicipal como solução para o cuidado em saúde mental de municípios de pequeno porte com quantidade insuficiente de habitantes para implantação de CAPS.

Fonte: Mapa de Saúde da II Regional de Saúde de Pernambuco, 2021.
Figura 1 Desenho da RAPS da II GERES
Pacientes que necessitam de tratamento em saúde mental na RAPS são encaminhados através de fluxos internos entre os municípios. As comunicações e interações ocorrem entre os coordenadores de Saúde Mental e/ou profissionais dos serviços de saúde, regulados por resolução CIR. Por meio da assinatura do Termo de Compromisso e Responsabilidade os municípios assumem uma parceria intermunicipal com o CAPS ad III. Garcia e Santos (2021), abordam a contratualização/pactuação como um elemento chave para a integração municipal. Esse processo envolve a formalização de contratos de gestão entre os municípios e a região de saúde à qual eles pertencem para definir as responsabilidades dos pactuantes.
Na contrapartida dessa pactuação de abrangência regional, a gente solicita um técnico de referência no município e a garantia do transporte para realizar o translado desses usuários e usuárias. A figura do técnico de referência do município é para que a equipe do CAPS consiga dialogar e construir esse PTS com o seu território de origem. Tendo em vista que esse usuário retorna para o seu município e a necessidade desse acompanhamento na sua cidade é importantíssima para a gente acompanhar o usuário aqui no CAPS (G5).
É de responsabilidade do município pactuante garantir translado para o usuário de acordo com a proposta terapêutica a ele atribuído durante a realização da triagem pela equipe do CAPS, como é trazido nas seguintes falas:
Transporte é um grande entrave em vários municípios. E aí a gente tenta fazer esse diálogo. Às vezes acontece que o transporte por alguma limitação tenha atrasos e faltas. Em alguns casos a gente faz a hospitalidade noturna, algumas vezes o transporte não vem para o CAPS, a gente faz pernoite. Então, o que a gente tenta fazer é sempre a clínica sendo soberana (G5).
Diante dos achados foi possível perceber a dificuldade de adesão dos municípios pactuados com algumas obrigações a serem cumpridas, listadas no termo assinado. Dentre as principais estão: chegada do usuário ao serviço sem a presença do técnico de referência e problemas com o transporte. Pesquisas sobre a relação entre transporte e saúde ainda são iniciantes no que diz respeito à países latino-americanos. A falta de políticas que regulamentem o transporte intermunicipal de usuários faz com que esses sejam custeados por financiamento municipal, sendo insuficiente principalmente em municípios pequenos e do interior devido ao elevado custo, ou por meio de subsídio dos próprios usuários. O estudo na Região Ampliada de Saúde Oeste de Minas Gerais constatou que esse impasse de transporte ocasiona o tratamento ambulatorial de forma precária no próprio território ou o encaminhamento à hospitais psiquiátricos (Gama et al., 2020).
2.2 ORGANIZAÇÃO E FLUXO DOS SERVIÇOS DE SAÚDE MENTAL DE LIMOEIRO
O cuidado em saúde mental do município durante longa data se resumia ao atendimento ambulatorial e assistência da Atenção Básica (AB) de forma desestruturada. A RAPS do município de Limoeiro começou a ser organizada enquanto rede de atenção nos últimos 12 anos com a implantação do CAPS para o público de álcool e outras drogas, através de parceria entre o Governo Municipal e o Ministério da Saúde. Posteriormente, foram sendo instalados outros dispositivos expandindo e fortalecendo essa rede. Esse progresso tem estreita relação com as mudanças na gestão e nos atores políticos da cidade que apoiam a RPB e o cuidado em saúde mental centrado no território, como podemos observar:
Nós fizemos um diagnóstico e, nesse diagnóstico foi identificado que Limoeiro era uma cidade que não tinha nenhuma experiência em saúde mental, a não ser ambulatório em Psicologia na policlínica. E fomos buscar, a partir do Ministério da Saúde, a coordenação nacional de saúde mental, alguns serviços que começaram a dar corpo a nossa capacidade instalada (G1).
O cenário municipal reflete o contexto nacional que por um lado vivencia a expansão dos serviços de saúde mental e por outro, persistem os desafios de uma assistência alinhada aos princípios do SUS e da RPB (Almeida, 2019). A implementação e a ampliação de diversos pontos de atenção em saúde mental, reafirma o comprometimento da gestão com a PSNM. Este ordenamento visou aumentar a acessibilidade da população e a resolutividade das necessidades de saúde mental dos territórios. Gama et al., (2021), abordam esse processo de construção da rede de atenção como sendo bastante complexo, por demandar comunicação entre diferentes pontos de atenção, bem como entre profissionais e gestores de diferentes serviços, além da necessidade de estabelecer fluxos em conjunto para garantir o atendimento integral.
A RAPS segundo a PNSM é organizada por meio de 07 componentes (Pernambuco, 2022), no entanto, desse total, Limoeiro no momento do estudo, dispõe de 06 deles, não possuindo ainda a reabilitação psicossocial. Enquanto portas de entradas preferenciais, o município possui 19 Unidades Básicas de Saúde (UBS) e 22 equipes de saúde da família, responsáveis pelo acolhimento das demandas de saúde mental, bem como o encaminhamento, quando necessário, para os serviços especializados. Os profissionais fazem o mapeamento do território para identificar potenciais casos de saúde mental, como confirma as seguintes falas:
Quando a gente fala de sofrimento mental e de transtornos, está ali muito banhado por condicionante social de saúde, então ali geralmente são fatores que vêm da própria família, do próprio território que mora. Então a gente já consegue visualizar quais são os territórios de maior vulnerabilidade. É importante que a nossa atenção básica esteja trabalhando em cima disso também (G4).
A gente conta com as unidades básicas de saúde, onde existe um matriciamento que é quando o responsável técnico do CAPS entra em contato com o enfermeiro da unidade básica, onde se faz uma visita, onde senta com a equipe, discute, conversa. Para ver se existe algum caso ali dentro do território onde precisa ter esse olhar da saúde mental e é a partir disso que a gente tem identificado muitos casos (A1).
A AB é o serviço ordenador do cuidado, sendo um dos pilares da RAPS. No âmbito da saúde mental deve concentrar-se em ações individuais e coletivas para promoção, prevenção e redução de danos. No entanto, não foi mencionado a execução de atividades coletivas e comunitárias nesse setor, sendo o apoio matricial o maior destaque enquanto atividade desenvolvida com frequência entre os profissionais dos diferentes setores de saúde. Silva et al., (2021), em seu estudo na cidade do Recife, verificou que o apoio matricial é a principal estratégia de interlocução entre a AB e o CAPS, possibilitando a corresponsabilização dos serviços e dessa forma, garantindo a resolutividade da assistência prestada.
A assistência especializada em saúde mental conta com a Policlínica Inacinha Duarte, onde funciona a rede de ambulatório em saúde mental, por meio do núcleo de psicologia. O plantão psicológico é diário e atende por demanda espontânea. Já a psicoterapia funciona mediante encaminhamento dos demais serviços da RAPS conforme identificado a necessidade. Conta também com o CAPS AD III, regulamentado em 2010 e funcionante a partir de 2012, sendo o segundo a ser implantado no estado de Pernambuco (Limoeiro, 2012). Este último disparou a organização da RAPS no município, uma vez que iniciou na lógica regional e já passou a desenvolver ações exitosas em seu território e na região. No entanto, ficou evidente a necessidade de implantação de um CAPS especializado para o público de transtorno mental.
Essa equipe a qual eu integro cresceu muito nos últimos anos enquanto equipe. Mas ainda temos uma deficiência em Limoeiro do CAPS transtorno né. Hoje eu acho que a principal deficiência da RAPS Limoeiro é essa (A4).
Eu acredito que o CAPS transtorno vindo para cá vai ajudar muito, é a nossa dificuldade, né. Por não ter, o CAPS acaba dando suporte, mas acaba superlotando o CAPS porque é outra política. Aí fica misturando o CAPS AD e transtorno (G6).
Foi constatado de forma unânime a preocupação dos gestores e profissionais com a necessidade de implantação do CAPS voltado para os transtornos mentais, diante da crescente procura de atendimento por esse público. A ausência desse serviço no município compromete a prestação de assistência ao transtorno, prejudicando o cuidado em saúde mental necessário e sobrecarregando os serviços existentes com a demanda que é acolhida e a mistura de políticas de tratamento distintas. Nessa condição pode-se inferir entraves financeiros, visto que, o município possui uma proposta cadastrada no Ministério da Saúde para implantação do CAPS transtorno, mas depende da aprovação e repasse financeiro da União. Macedo et al., (2017), destacam que a urgência de reinserir os usuários de longa internação na sociedade, inviabiliza a atenção necessária para os demais usuários que necessitam de tratamento, como o público de transtorno.
A UA, enquanto ponto de atenção residencial de caráter transitório, está diretamente vinculada ao CAPS AD III, sendo este serviço a sua porta de entrada, atuando enquanto espaço de moradia e institucional. É intenso o fluxo de usuários entre esses serviços, além de serem instituições vizinhas, ambos os serviços atuam de forma conjunta na terapêutica dos usuários. Filho (2023), em seu estudo sobre a unidade de acolhimento para dependentes químicos no Ceará, descreve que os usuários acolhidos na UA precisam de um CAPS de referência para formulação do projeto terapêutico de cada usuário e esse será acolhido nesse espaço de trocas sociais, garantido o tratamento em rede e territorial através da articulação com os demais serviços da rede de saúde.
A atenção de urgência e emergência foi composta pelo Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) e uma Unidade de Pronto Atendimento Estadual (UPAE). O fluxo assistencial e particularidades desses serviços não foram explorados nas falas dos participantes. O município também é constituído do Hospital Regional José Fernandes Salsa, o qual possui seis leitos integrais em sua emergência para atenção aos usuários de álcool e outras drogas. Segundo Gama et al., (2020), a oferta de leitos emergenciais é uma proposta baseada no modelo assistencial vigente para acolher os casos mais complexos sem resolução à nível de CAPS, reduzindo a necessidade de internações psiquiátricas hospitalares. Conta ainda com os leitos integrais de Carpina e de Vitória de Santo Antão, como detalhado na fala:
A gente tem Carpina como suporte para o CAPS AD para as pessoas adultas que precisam fazer o processo de desintoxicação e a gente também tem o suporte do hospital de Vitória, João Murilo, que atende adolescentes (G6).
Foi observado uma disparidade de informações quanto ao serviço de referência do público adolescente, alguns profissionais o desconheciam enquanto serviço pactuado com o município e outros defendiam o seu pertencimento aos fluxos de transferência, não sendo localizado documentos que comprovem a ligação do serviço à RAPS municipal. Esta situação corrobora com o estudo de Sampaio e Bispo Júnior (2021), no estado da Bahia, em que foi evidenciado o desconhecimento dos profissionais acerca dos fluxos assistenciais e componentes da RAPS, comprometendo a eficácia do cuidado.
Como estratégia de desinstitucionalização o município possui um SRT que foi projetado para atender os municípios vizinhos, mas diante da desinstitucionalização estadual, o serviço expandiu a oferta de leitos para outras regiões. É um serviço criado para acolher usuários egressos de hospitais psiquiátricos e usuários pertencentes à rede municipal, que se encontram em estado de alta vulnerabilidade e estão em tratamento na RAPS por longos períodos, por meio de pactuação estadual com a coordenação municipal de saúde mental.
A Figura 2 apresenta o fluxo assistencial de saúde mental, detalhado anteriormente, de forma esquematizada.
Nele percebe-se os serviços de AB e CAPS AD III como sendo portas de entradas para a RAPS, bem como o plantão psicológico do Ambulatório de Saúde Mental que atende por demanda espontânea. Por meio desses serviços é realizado o acolhimento dos usuários, triagem dos casos e se necessário, referenciação para os dispositivos convenientes. É possível notar que a AB interliga os usuários com os demais pontos de atenção, sendo responsável pelo cuidado territorial dos usuários da RT, UA e do CAPS AD III e encaminhamento para a rede hospitalar e de pronto atendimento em casos de emergência. Da mesma forma, o CAPS AD III pactua o fluxo dos usuários com os demais serviços da rede, tanto municipais quanto estaduais, encaminha diante da necessidade detectada e serve como porta de entrada exclusiva para a UA.
Os fluxos assistenciais estão presentes no município e são executados entre os dispositivos da RAPS, ainda que de forma incipiente. Foi evidenciado o desconhecimento por parte de alguns profissionais, bem como a incerteza quanto aos serviços ofertados pelo município. O não reconhecimento dos fluxos e dos serviços produzem fragilidades na comunicação institucional e comprometem a articulação entre os serviços. Da Rocha, Dos Santos e Wyszomirska (2022), inferem que esses entraves de comunicação podem estar associados pelo sistema incipiente de referência e contrarreferência, no qual a informação é veiculada pelo próprio usuário aos diferentes pontos de atenção. Para Mendes e Almeida (2020), esses entraves seriam resolvidos com a consolidação de um instrumento de comunicação eficiente entre os profissionais, agilizando o fluxo dos usuários na rede.
2.3 ARTICULAÇÃO INTERSETORIAL DA RAPS
Houve avanços positivos na organização e articulação da RAPS desde a sua implantação. Porém, ainda existem lacunas a serem preenchidas, sendo a principal delas, a identificação da APS enquanto dispositivo da RAPS, com a finalidade de diminuir o quantitativo de referenciamento e aumentar o acolhimento e resolução dos casos no território, diminuindo a demanda dos serviços especializados. Lopes, Paulon e Pasche (2022), trazem a percepção do não acolhimento nos serviços como uma ação que compromete a confiança do usuário no serviço, causando insegurança quanto a resolutividade do sistema de saúde., Isso reafirma o desafio da RPB na inserção da saúde mental na AB por meio da equipe de saúde da família (SILVA et al., 2021).
No trecho da fala de G2 “então existe toda essa integração do serviço da RAPS com a AB”, é visto nitidamente essa visão equivocada da AB enquanto suporte da RAPS e não como dispositivo dela. Makiyama (2020), também evidencia em seu estudo sobre a saúde mental em uma Região de Saúde do Paraná, essa visão distorcida, apresentada anteriormente, por meio do elevado número de encaminhamento ao serviço especializado. Esse entrave também é confirmado na seguinte fala:
Educação permanente é uma ferramenta muito importante para fazer com que esses profissionais estejam preparados para, tanto entender como se dá a própria RAPS, como se dá os dispositivos que compõem a RAPS, para que a atenção primária se sinta pertencente a RAPS. Porque muitas vezes é como se a atenção primária fosse fora da RAPS (G4).
Dentre os serviços ofertados no município, o CAPS AD III comporta o maior fluxo de tratamento, sendo a RAPS resumida à atenção especializada (Lima, Silva & Guimarães, 2023). A referência equivocada de todo e qualquer sujeito em condições de sofrimento psíquico ao CAPS, por serviços com capacidade de acolhimento e resolução dos casos, atenta para a limitação de apropriação dos fluxos assistenciais e do modelo de tratamento comunitário. Rezio, Conciani e Queiroz (2020), afirmam em seu estudo que o processo de referenciação recorrente pela AB aos serviços especializados, pode estar relacionado a deficiência na formação técnica dessas equipes para lidar com o público de saúde mental ou à estigmatização dada a esses usuários. Braga et al., (2020), já constatam em seu estudo que esse fato pode estar relacionado ao predomínio do modelo manicomial, concentrado nos serviços especializados por meio do redirecionamento do cuidado que deveria ser prestado no território.
A cogestão entre as coordenações municipais de saúde mental e da atenção básica é uma integração em potencial no que se refere ao cuidado compartilhado entre as duas gestões. No entanto, foi evidenciado que, embora existam ações conjuntas, a integração ainda é frágil e incipiente, resultando em centralização das demandas nos serviços especializados. Os principais desafios que corroboram com os identificados neste estudo incluem a fragilidade do cuidado por meio da percepção de que o usuário de saúde mental é demanda do CAPS (Rezio, Conciani & Queiroz, 2020); muitas vezes os profissionais da AB a desconhecem enquanto dispositivo e porta de entrada da RAPS (Makiyama, 2020); gestão da AB insuficiente quanto ao planejamento do cuidado em saúde mental no território (Campos, Bezerra & Jorge, 2020). Sampaio e Bispo Junior (2021), reforça a importância de pesquisas que contribuam para o debate a respeito da interlocução dos diferentes pontos de atenção, com a finalidade de minimizar situações como as descritas anteriormente.
Nos casos de assistência médica de urgência e prestação de socorro é acionado o SAMU, que faz a estabilização do usuário e o transporte do mesmo para a emergência do hospital de referência do município. O público atendido pelo CAPS AD III, apresenta peculiaridades que influenciam significativamente o fluxo pela RAPS. O maior número de referência para serviços de urgência/emergência é devido a crises de abstinência, quadros convulsivos ou overdose e esses usuários muitas vezes são julgados pelas suas práticas, desconsiderando sua condição mental. Carrijo et al., (2022), em seu estudo sobre o perfil das emergências psiquiátricas no Vale do Araguaia, faz uma crítica em relação ao manejo clínico emergencial, no qual os profissionais atuam na estabilização do quadro de crise, porém não é contemplado a abordagem psicossocial, ocorrendo um rompimento na linha de cuidado do usuário. O que revela a necessidade de treinamento e especialização dos profissionais de todos os pontos de atenção atuantes na RAPS para lidarem com o manejo do sofrimento psíquico.
Os usuários da RAPS também possuem a necessidade de integração com a assistência social, visto que, muitos enfrentam vulnerabilidades sociais, como falta de moradia, desemprego e ruptura de laços familiares. Nesse sentido, existe uma relação dos serviços com o CRAS e o CREAS no processo de reinserção social dos usuários e recuperação dos seus direitos violados, como pode ser observado na fala:
Tem também o trabalho com o CRAS, com o CREAS, onde a gente trabalha como eu falei essa questão da retirada de documentação, né. No caso, do cadastro de bolsa família, a gente também tenta tá vendo junto com eles. A gente não trabalha sozinho, a gente tem esse apoio da rede aqui dentro do município e tem trazido assim grandes resultados. E aí a gente vai tá trabalhando para devolver esse usuário ao território” (A1).
Os gestores em conjunto com os profissionais investem no processo de desestigmatização dos usuários e da reinserção dos usuários nos espaços sociais, educacionais e culturais. Severo e Amorim (2019), sinalizam para a importância da articulação dos dispositivos da cidade com a finalidade de acolher e reinserir esses usuários nos espaços de trabalho para que se sintam pertencentes à comunidade e capazes de realizar atividades fora dos muros dos serviços, uma vez que suas habilidades ficam restritas às oficinas terapêuticas que se tornam enfadonhas por muitas vezes não serem baseadas no projeto de vida deles.
A falta de informações detalhadas sobre todos os dispositivos, visto que, não foram selecionados informantes de todos os pontos de atenção da RAPS, limitou o conhecimento do funcionamento de alguns serviços e seus respectivos fluxos. O segundo ponto que também resultou na limitação de informações foram as respostas rápidas e sem riqueza de detalhes, o que pode apontar para ainda incipiência da rede, não sendo absorvida plenamente por parte dos seus trabalhadores. Por fim, houve uma grande dificuldade de localizar protocolos institucionais, documentos sobre o funcionamento dos serviços e outras informações pertinentes ao estudo, visto que, ficam armazenados de forma particular com a gestão o que pode significar a pouca transparência na construção e compartilhamento da política.
Diante disso, mesmo sendo reconhecida a eficácia da atenção psicossocial no tratamento de usuários de saúde mental, esses serviços não funcionam como preconizado, especialmente em países de baixa e média renda, como o Brasil (Guilhardi Manca & Costa, 2020). Dessa forma, impõe-se o desafio à Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Limoeiro de aprofundar a interface entre os pontos de atenção em saúde mental e os profissionais atuantes, indo além da construção coletiva de protocolos assistenciais e fluxogramas. Embora esses elementos sejam necessários, cabe à SMS conformar a RAPS municipal e sua articulação de forma integrada e eficiente.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente estudo mostra o cenário da RAPS do município de Limoeiro-PE e seu papel à nível regional, no que diz respeito a sua organização e articulações. Desta maneira, este estudo não se propôs a fazer uma avaliação minuciosa sobre a dinâmica interna de funcionamento de todos os serviços oferecidos, mas trazer um panorama geral sobre eles e a forma como se articulam. No entanto, o diagnóstico realizado permite uma visualização das potencialidades e limitações presentes na atenção em saúde mental de Limoeiro munindo os gestores para melhorias do sistema e possibilitando que pesquisas futuras possam aprofundar as análises realizadas.
Os dados aqui analisados demonstram importantes avanços na RAPS de Limoeiro, no que diz respeito ao planejamento da gestão quanto a expansão dos serviços, no entanto o estudo evidenciou fragilidades na articulação dos pontos de atenção e o cuidado centralizado nos serviços especializados. Essas limitações comprometem o desenho proposto pela PNSM referente a assistência de forma integral. Fazendo-se necessário uma mudança no arranjo organizacional da RAPS, especialmente no olhar da gestão para as limitações diagnosticadas, com a finalidade de garantir ao usuário seu protagonismo.
A organização da RAPS de Limoeiro em 6 componentes demonstra o anseio com a oferta de um cuidado integral para a população com sofrimento mental. Cada dispositivo atua dentro da sua competência, mas é a integração entre eles que garante a integralidade do cuidado. Nesse sentido, a articulação intersetorial existente entre o CAPS AD III, UA, SRT e Ambulatório demonstra um esforço em construir uma rede de cuidado integrada, como preconiza a PNSM. No entanto, a AB ainda enfrenta desafios para se estabelecer como dispositivo de cuidado da RAPS, atuando de forma resolutiva no território, logo não pode ser considerada um serviço que funciona adequadamente nesse sentido. Quanto aos serviços hospitalares e de urgência e emergência, atuam de forma articulada com os demais componentes, porém não foi explorado particularidades desses serviços, não dando subsídios para fazer maiores inferências nesses âmbitos.
Diante do panorama evidenciado, faz-se necessário o investimento da gestão na capacitação dos profissionais da RAPS para entendimento da rede, seus dispositivos e o papel a ser desempenhado por cada ator, facilitando a comunicação entre os serviços e a operacionalização dos fluxos estabelecidos no município. Bem como na implantação de serviços verificados como indispensáveis ao processo de cuidado. Essa análise não esgota a discussão a respeito da temática, mas instiga futuras pesquisas sobre a efetividade da organização e funcionamento da RAPS tendo como parâmetro as limitações e entraves identificados no presente estudo.