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Pensando familias

versão impressa ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.19 no.1 Porto Alegre jun. 2015

 

ARTIGOS

 

Alienação parental: complexidades despertadas no âmbito familiar

 

Parental alienation: complexities aroused within family

 

 

João Pedro Fahrion Nüske1, I; Alexandra Garcia Grigorieff2, II, III, IV

I Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM
II Bolsista de Iniciação Científica Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico - CNPq
III Pós-Graduação da Faculdade de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS
IV Estagiária de Psicologia Clínica na Sigmund Freud Associação Psicanalítica

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

Nos dias atuais, é comum casais não suportarem o divórcio ou separação, ensejando, diversas vezes, em atitudes hostis a fim de distanciar o filho do outro genitor. Tais atos podem ser considerados alienação parental, onde embora, por vezes, não exista intenção de prejudicar a criança, esta acaba por ter sua constituição psíquica desestruturada. O presente artigo busca evidenciar, por meio do diálogo entre o Direito de Família e a Psicanálise, o cenário no qual a alienação parental ocorre e as consequências que este fenômeno implica. É possível constatar que na medida em que os pais conseguem respeitar o filho e não usá-lo como objeto de vingança, a criança adquire melhores recursos para suportar e elaborar a ruptura conjugal.

Palavras-chave: Alienação parental, Direito de família, Psicanálise, Família, Consequências psicológicas.


ABSTRACT

Nowadays it is common that couples do not cope with divorce or separation, occasioning sometimes hostile attitudes in order to distance the child's other parent. Such acts may be considered Parental Alienation, where although sometimes there is no intention to harm the child, this turns out to have his psychic constitution unstructured. This paper seeks to show, through dialogue between the Family Law and Psychoanalysis, the scenario in which the parental alienation happens and the consequences that this phenomenon implies. It can be seen that when parents are able to respect their child and not use it as an object of revenge, the child acquires the best resources to withstand and understand marital disruption.

Keywords: Parental alienation, Family law, Psychoanalysis, Family, Psychological consequences.


 

 

Introdução

Atualmente, o fenômeno da alienação parental se faz presente em muitos casos de divórcios e separações litigiosas, de forma que seus efeitos estão sendo frequentemente discutidos nos âmbitos da Psicologia e do Direito. Assim, as forças que geram danos irreversíveis à criança e aos seus pais ganham reconhecimento do Poder Judiciário no cenário brasileiro contemporâneo. Diante desta necessidade, a Lei nº 12.318/2010 surgiu como forma de proteger a parte prioritária dessa relação, isto é, a criança, e seu direito fundamental à convivência familiar saudável.

A ideia de que a família “leva à sua idealização e a crença de que, com o casamento, todos serão felizes” (Dias, 2014, p. 5), enseja na não elaboração da separação e do fim do amor. Com o rompimento do vínculo conjugal, todos os membros da família precisam se adaptar a uma nova situação estrutural, aprendendo a viver dentro de um novo formato familiar e redefinindo papéis e funções. Nessas situações, sobram mágoas e ressentimentos, podendo ocorrer de um dos genitores não conseguir lidar com a frustração do fim do relacionamento. Assim, há casos em que, ao perceber o interesse do outro genitor em preservar a convivência familiar com o filho, busca vingar-se do mesmo, nem que para isto tenha que recorrer a práticas lesivas ao próprio filho, que muitas vezes se caracterizam como alienação parental.

Esse fenômeno pode ser conceituado como uma interferência negativa, por parte de uns dos pais ou responsável pela criança, na formação psíquica da prole, visando prejudicar o relacionamento com o outro genitor. Ademais, este instituto configura-se como uma forma de abuso e descumprimento dos deveres inerentes ao poder familiar, além de violar preceitos constitucionais, como o melhor interesse da criança, a dignidade humana e a paternidade responsável (Pereira, 2013).

A partir dessa perspectiva, ressalta-se a importância da identificação desses atos tão recorrentes, para que providências sejam tomadas e seja assegurada a proteção integral da criança, com absoluta prioridade, conforme exposto no texto constitucional, em seu art. 2273. Além disso, é necessário considerar o conjunto familiar, de forma que todos os envolvidos mereçam cuidados e atenção, visto que estão sofrendo de modo subjetivo. Insta frisar, assim, a relevância da manutenção do vínculo na constituição das relações afetivas da criança vítima do litígio familiar.

Neste contexto, o presente artigo busca ampliar o olhar para as consequências desse fenômeno sobre a criança, que está psiquicamente abalada em função da fragilidade de um vínculo fundamental para o seu desenvolvimento. Assim, opta-se pela interlocução entre os saberes do Direito de Família e as contribuições teóricas da Psicanálise para compreender as consequências de um contexto familiar conflituoso e direcionar o olhar para as partes, a fim de amenizar o sofrimento psíquico dos pais, alienante e alienado, e proteger a criança e seu desenvolvimento psíquico de um fenômeno que se faz tão presente no cenário brasileiro atual.

As partes da alienação parental e seu contexto

Divórcios e separações, tão frequentes atualmente, implicam diversos desafios para a esfera jurídica e para a clínica analítica, de forma que a qualidade das vivências entre pais e filhos determinará a intensidade dos efeitos do fim do relacionamento conjugal. Tais experiências são decisivas principalmente quando houver grande litigiosidade neste rompimento e na própria definição da guarda dos filhos, podendo acarretar um forte abalo emocional para todos os envolvidos.

Quando existem filhos, o fim da conjugalidade não é o fim da família, mas sim, a sua transformação de família nuclear em binuclear (Pereira, 2014). Assim, o fim da sociedade conjugal não enseja um distanciamento paterno ou materno-filial, visto que a separação é apenas desta família e não da família parental. Deve haver, para tanto, uma cooperação e maturidade dos genitores, para que aceitem e compreendam o fim do relacionamento. Os pais devem buscar preservar o relacionamento familiar do filho comum, além de ajudá-lo na compreensão da nova estrutura familiar, a fim de dar efetividade ao princípio do melhor interesse da criança e do adolescente, que “deve ser apreendido em todos os vínculos jurídicos relacionados à criança e ao adolescente, inclusive no seu cotidiano, o que envolve as relações paterno-materno filiais” (Gama, 2008, p. 82).

Entretanto, na medida em que um dos membros do casal não aceita a separação, a situação se torna mais complexa, pois se cria um processo litigioso, onde uma das partes passa a evidenciar atitudes hostis do outro genitor para inviabilizar o contato deste com o filho em comum. Ou seja, caso um dos genitores não elabore a perda sofrida, passa a existir uma ânsia por punir a pessoa amada como medida de um desejo de vingança, buscando então destruir a imagem do outro perante o filho em comum (Oliven, 2010).

Neste contexto de disputa e competição, os genitores não renunciam ao seu narcisismo e não investem no filho, sem perceber o quanto seus discursos e atitudes ambíguas trazem prejuízo para os mesmos. Normalmente, todavia, a alienação é feita de forma inconsciente, mas abriga claramente sentimentos de vingança ao outro pai (Mello, 2012). A ideia não é prejudicar a prole, mas dificultar a vida do outro genitor, ainda que para isso deva, também inconscientemente, causar severos danos ao próprio filho. O fenômeno em questão versa sobre a tirania dos pais, “entre si, mas, sobretudo, tiranos em relação aos filhos, porque utilizam a criança como instrumento de ataque ao outro” (Molinari & Trindade, 2014, p. 24).

Deste modo, é comum ocorrer uma dissonância entre o que é racionalmente propagado como benéfico, isto é, a importância de ambos os genitores na vida do filho, e a dificuldade emocional de alguns deles em aceitar tal condição, podendo implicar um processo de alienação parental. Embora nem sempre consciente este fenômeno, ele facilita o uso perverso dos filhos em diversos processos litigiosos, afastando-os do outro genitor. Nestes casos, este filho é retirado do patamar de sujeito de direitos, tornando-se objeto de desejo e satisfação do anseio vingativo do genitor, a fim de torná-lo um veículo de ódio, que tem como fonte principal a relação conjugal mal resolvida (Pereira, 2014). Dessa forma, o filho encontra-se assujeitado ao relacionamento conflituoso dos pais, de modo que sua condição de criança e sujeito de desejos é desconsiderada. Isto é, a criança, submetida ao desentendimento familiar, acaba por viver uma diacronia, a qual nada pode fazer para interrompê-la.

Imperioso relatar que se trata de um trabalho silencioso e sutil do alienador, visando apenas o rompimento do vínculo do outro genitor com o filho. O filho passa a se encontrar em um conflito de lealdade, onde se vê obrigado a escolher um dos pais, já que é induzido a pensar que um deles é totalmente bom e o outro totalmente mau, ocorrendo uma dissociação e incapacidade de tolerar diferenças. Assim, o alienador acaba utilizando-se da inocência e ingenuidade da criança, conseguindo com que o próprio filho respalde mentiras e volte-se contra o ascendente. Para o filho, nestes casos, resta estar “condenado” a permanecer diversos anos com estas falsas alegações: a construção de uma inexistência (Molinari & Trindade, 2014). De acordo com Dolto (2011), não importa qual é a idade do filho, ofender e acusar o outro genitor é desestruturante para a criança.

Dessa forma, “a verdade do alienador passa a ser verdade para o filho, que vive com falsas personagens de uma falsa existência” (Dias, 2013, p. 16). A criança transforma-se em um defensor do guardião, reproduzindo, de forma desapropriada, os discursos agressivos sobre o outro genitor. Além disso, a própria criança colabora para a desmoralização do alienado, passando a odiar e desprezar aquele genitor que até então, amava e respeitava.

Insta frisar, em relação às partes, que estes atos não se limitam apenas aos genitores, podendo ainda ser praticados por avós ou quaisquer outras pessoas que tenham responsabilidade sobre a criança. Mais comum, entretanto, é a alienação praticada por um dos genitores, afastando-o do convívio com o filho, sendo a mulher a principal alienadora. Muitas mães caem na armadilha da possessividade perante o filho, na medida em que nos primeiros anos de vida da criança, mãe e filho vivenciam uma díade, proporcionando uma sensação de completude. Este artifício pode funcionar temporariamente, pois o pai só assume importância na vida da criança quando a mãe permitir, de forma que no momento em que a genitora valoriza o papel do pai, o filho passa a reconhecê-lo e a díade é rompida (Dolto, 2011). De acordo com Nasio (2011), “ainda que a referência ao pai não seja explícita, é a autenticidade do desejo da mulher pelo companheiro que opera” (p. 66). Ou seja, enquanto a mãe não autoriza a importância da presença do pai, torna-se mais improvável que a criança atribua-lhe valor.

Pode-se perceber, portanto, que muitas mães se aproveitam dessa condição quando vivenciam a experiência da separação, configurando uma forma de abuso. Assim, a alienação parental é um descumprimento dos deveres inerentes ao poder familiar, que coloca em risco a saúde emocional e psicológica da criança, devendo ser identificada a fim de garantir o melhor interesse da criança e do adolescente e a sua proteção integral. Justifica-se tal amparo à infância e à juventude em decorrência da especial fase de desenvolvimento em que se encontram, autorizando a quebra do princípio da igualdade. Ou seja, há uma preferência no que diz respeito ao interesse da criança, o qual se sobrepõe aos demais. Esta desigualdade é intrínseca a criança, como indivíduo em formação e, desta forma, carecedora de tratamento diferenciado, considerando a singularidade e particularidades desta etapa. Assim, o infante é titular de uma proteção integral e prioritária, visando equilibrar a desigualdade de fato e atingir a igualdade jurídica material, e não meramente formal (Machado, 2003).

Desdobramentos da alienação parental

É de extrema importância esclarecer que o divórcio nem sempre é o responsável pelos prejuízos psíquicos e danos irrecuperáveis desenvolvidos em uma família. Esse fenômeno apenas faz surgir angústias que estavam sendo ocultadas, na tentativa de manter a harmonia familiar. Tais sentimentos já existiam durante o período de divergências, sendo o divórcio apenas o catalisador (Despert, 1970).

Assim, a separação dos pais assume a autorização do desentendimento e dos conflitos, que antes estavam ocultos. Logo, o divórcio, em muitas vezes, acaba sendo a solução ideal para uma família que tem seus sentimentos inibidos a fim de aparentar uma harmonia familiar, ou ainda para uma família que vive em um contexto cotidiano conflituoso, que traria mais prejuízos aos filhos.

Assim, deve-se considerar sempre o melhor para a criança e a forma como cada parte está lidando com a situação, pois todo o sujeito tem uma interpretação e reação subjetivas sobre um mesmo fato. Portanto, o rompimento conjugal não é o causador da alienação parental, mas sim o modo singular com que cada genitor, a partir de suas condições e estrutura psíquica, lida com esta nova realidade. Ou seja, trata-se de um momento da “vida familiar precedida de uma crise e seguida de fortes mudanças estruturais” (Grisard Filho, 2014, p. 260).

Tal crise pode vir a ter grandes proporções, chegando ao extremo de haver falsas acusações de abandono e abuso sexual. O Judiciário, diante da gravidade das acusações e a fim de proteger a criança, acaba por distanciar imediatamente os filhos do genitor alienado, por vezes estabelecendo um contato monitorado, ficando estes à mercê das acusações infundadas do alienador. Esse distanciamento acaba por produzir consequências nefastas sobre os filhos, separando-os de um genitor que o ama e que é de fundamental importância para a formação de sua personalidade e para o desenvolvimento da noção da diferença que a presença do outro impõe.

Entretanto, há que se frisar que os efeitos da alienação parental são diversos, variando de acordo com a idade da criança, características de estrutura de personalidade, traços de caráter, qualidade dos mecanismos de defesa, vínculo estabelecido entre as partes, além de inúmeros outros fatores. Dessa forma, considera-se a importância de olhar cada caso compreendendo a subjetividade do mesmo, na medida em que cada sujeito carrega em si uma história de vida, sentindo, pensando e reagindo de forma ímpar.

A psicanalista Leila Tannous Guimarães (2001) relaciona a alienação parental com as identificações inconscientes, associando-as a sentimentos como ciúmes, inveja, ressentimento e vingança, conduzindo à fragmentação das relações familiares. O rompimento da relação amorosa seria suficiente para situar estes sentimentos para além da contenção, levando a um desejo de vingança que será concretizada na destruição do outro. Assim, este fenômeno se apresenta de modo a evidenciar paixões obscuras a partir do rompimento do vínculo conjugal, evidenciando o ódio e o desejo de vingança, em função de não aceitar ser abandonado. Ou seja, o alienador reflete no filho o seu fracasso afetivo, ansiando pela punição do objeto amado, confundindo o exercício da conjugalidade com o da parentalidade (Oliven, 2010).

Com a vivência da alienação parental, o alienador influencia a criança a exprimir emoções falsas e manipular pessoas e situações, acarretando diversos prejuízos futuros ao filho. A fala do genitor alienador é sempre desagradável para a criança, a ponto de desenvolver uma crise de lealdade. O discurso do genitor constitui o sujeito, de forma que a fala imposta pelo alienador constitui/desconstitui a criança de tal forma, que esta não saberá mais o que ela “é”, “senão a constituição/desconstituição que fez a refração à imagem parental do alienado” (Molinari & Trindade, 2014, p. 26).

Desse modo, este filho pode se sentir obrigado a defender o alienador, adotando uma postura agressiva frente ao alienado. Assim, é possível que se perca um vínculo fundamental, de forma que o alienado pode se tornar um estranho para o filho (Rosa, 2008). Oliven (2010) afirma que, ao alterar a percepção do filho sobre o outro genitor, o alienador abate seu desafeto, estabelecendo na criança um desamparo ao qual não tem direito: o de privar o filho do afeto materno-paterno. O alienador muitas vezes crê que a sua fala é verdadeira, visto que sente a dor tão intensamente que não consegue enxergar e interpretar de outra forma. Este genitor acredita no abandono e não na separação e constituição de dois grupos familiares distintos. No momento em que exclui o par parental, não reflete sobre as implicações deste ato na formação da criança e como o fenômeno pode deixar traumas (Oliven, 2010). Conclui-se então, que para o alienador é muito difícil deixar de lado seu narcisismo, e direcionar o olhar para o filho.

É possível, porém, que a criança mais tarde se revolte contra o alienador, na medida em que perceba o dano que este sujeito lhe causou. Em um cenário satisfatório, dependendo da qualidade das vivências iniciais da criança, poderá ser desenvolvida uma neurose. Porém, é raro que nos casos de alienação parental este diagnóstico se faça, na medida em que as funções parentais aparentam apresentar uma precariedade de recursos para investir no filho.

Dessa forma, há a possibilidade de este fenômeno levar à psicose, caso seu narcisismo não tenha sido bem constituído e tal situação seja ameaçadora à constituição psíquica. Assim, para defender-se da realidade imposta, a criança cria uma nova realidade, permeada por delírios e alucinações para dar conta de sua dor psíquica. Também pode ocorrer a repetição do padrão comportamental cindido entre o bem e o mal para a sua vida futura (se um dos genitores é percebido como bom e o outro como mau), de modo que a ambivalência e a diferença são insuportáveis.

Além disso, na medida em que a díade mãe-filho não se rompe, pois a figura paterna não é valorizada e reconhecida, é provável que seja desencadeada uma perversão. Assim, o sujeito passa a perceber a realidade, mas a nega e distorce-a de acordo com seu desejo. Logo, é colocado em evidência o comprometimento das relações de alteridade, visto que não há a percepção da diferença que a presença do outro impõe.

Todavia, na sociedade atual, as patologias do corpo são predominantes, sendo que a forma possível de expressão dos conflitos emocionais dá-se em termos de enfermidade somática e comportamental. Logo, é sob a forma de ansiedade, baixa tolerância à frustração, alcoolismo, uso de drogas e, em casos extremos, ideias e comportamentos suicidas que o sujeito poderá expressar a dor advinda da alienação parental (Trindade, 2013).

É nesta perspectiva que se faz necessário recorrer à teoria do amadurecimento de Winnicott (1965), a qual afirma que para o ser humano se constituir como sujeito é preciso que exista um potencial inato em direção ao amadurecimento, o que só é possível com um ambiente facilitador. Ou seja, é por meio da experiência vivida com os responsáveis que esse potencial, denominado self verdadeiro, irá se desenvolver na criança. Assim, tanto a partir do cuidado e proteção dos pais, como do incentivo de autonomia, a criança sente-se segura para viver a sua realidade. Trata-se de uma relação que se estabelece como sustento e apoio para a criança, fornecendo o amor, a linguagem e o cuidado, fundamentais para a constituição do sujeito psíquico. De acordo com Freud (1914/1996), “o amor dos pais, tão comovedor e no fundo tão infantil, nada mais é do que o narcisismo dos pais renascido, o qual, transformado em amor objetal, inequivocamente revela sua natureza anterior” (p. 108).

Na medida em que o ambiente falha, a criança fica fragilizada, surgindo o falso self como tentativa de se defender deste contexto, que não lhe garante proteção, cuidado e autonomia. "Trata-se de uma forma primitiva de autossuficiência na ausência do cuidado” (Phillips, 2006, p. 190). Quando há a predominância do falso self, há a necessidade de esconder e negar a realidade interna, como uma máscara de proteção. A criança passa a incrementar características que não são suas para que possa suportar a situação. Assim, essa defesa torna a vida esvaziada de sentido, na medida em que não é possível entrar em contato com os sentimentos verdadeiros (Galván & Amiralian, 2009).

Nesse sentido, a teoria psicanalítica afirma que os atos de vontade, os ditos e tendências são apontados inconscientemente. Um sintoma psicopatológico, segundo Freud (1917/1996), é sobredeterminado e substitui um conflito, ou seja, é simbólico. Assim, esse casal reatualiza, na cena da separação, conflitos existentes desde antes de efetivá-la. Conforme Freud (1909/1996), tudo o que não foi compreendido, isto é, tudo o que ainda não constituiu um sentido, de alguma forma reaparece, até que se consiga decifrar seu simbolismo. Galván e Amiralian (2009), ainda afirmam que eventos de extrema angústia provocam a sensação da falta de compreensão do si mesmo e da ausência de sentido. Desta forma, a alienação parental reflete conflitos inconscientes importantes a serem escutados em toda a sua complexidade, na medida em que só será possível transformar o sofrimento psíquico, quando tais conflitos forem elaborados (Oliven, 2010). Na medida em que os pais cumprem com o seu papel, garantindo afeto e proteção ao filho, este possuirá mais condições para se adaptar à nova realidade que se impõe (Winnicott, 1965). Assim, as crianças e adolescentes necessitam de diálogos sinceros com os pais, e que estes demonstrem aos filhos que a relação de amor para com eles permanece íntegra, apesar da separação.

Garantindo o olhar para a criança

A Lei 12.318/10, que dispõe acerca da alienação parental, veio confirmar o que a doutrina e a jurisprudência já afirmavam, visando à proteção da criança alienada e a contenção destes atos ainda nos estágios iniciais. A própria lei cita ações que podem ser caracterizadas como alienação parental, em um rol exemplificativo. Além disto, diante da necessidade de atitudes do Poder Judiciário nesses casos, a legislação prevê a tramitação preferencial do processo determinando urgência em eventuais medidas provisórias. Garante-se também, no curso do processo, a convivência familiar entre os envolvidos, ainda que de forma assistida, visando não romper o vínculo materno ou paterno-filial, protegendo ainda a família de possíveis falsas acusações. Buscando coibir a prática destes atos, o juízo poderá impor medidas à família, enfatizando a ampliação do regime de convivência familiar entre a criança e o genitor alienado, a imposição de tratamento psicológico, e até a suspensão do poder familiar do alienador, visando ainda garantir a proteção integral da criança, vítima deste instituto nocivo.

Para que seja possível a efetivação do contexto jurídico, é necessário considerar a criança no cenário da alienação parental, para que ela possa lidar melhor com esta situação até que consiga elaborá-la. Conforme Dolto (2011), o ideal é que o filho permaneça na residência em que morava com a família, de forma que o genitor não detentor da guarda física fosse periodicamente viver ali sua função parental. Entretanto, há de se ressaltar que tal hipótese torna-se complexa devido à constituição de novas famílias, e o detentor da custódia não deseja que o antigo relacionamento adentre em sua residência como antes, de forma que, para que isto ocorra, deverá haver entre estes genitores um diálogo e cooperação que, nos tempos atuais, é raro.

Apesar desta dificuldade própria das novas concepções familiares, a guarda compartilhada surge como forma de garantir o direito fundamental da criança à convivência familiar, tendo em vista que prevê o compartilhamento das responsabilidades inerentes ao filho, e assim buscando a participação de ambos os genitores na vida deste. Com a manutenção do vínculo materno-paterno filial e o efetivo desempenho das responsabilidades parentais pelos pais, esta modalidade de guarda pode coibir a prática da alienação parental, reduzindo as chances de o filho vir a ser objeto de disputa entre os pais, tendo em vista a participação parental.

Faz-se fundamental esta permanência ainda no âmbito escolar, em virtude de que não é aconselhável que, após o rompimento, a criança venha a deixar sua escola para ingressar em outra. Na medida em que este filho for estudar em outro local, a confusão é dupla: de um lado, seu ser pessoal fica abalado; de outro, seu ser social é danificado (Dolto, 2011). Nessa perspectiva, a instituição de ensino exerce papel fundamental, na medida em que pode oferecer um amparo à criança e, temporariamente, aceitar comportamentos agressivos e regressivos, agitação e, então, reduzir as exigências. Se o divórcio é violento, a criança pode entender que agressão é a forma correta de expressar o que sente, repetindo esse comportamento. Assim, o rendimento escolar também decai e as dificuldades aumentam (Thormann, 2000).

Diante deste momento, não somente a escola, mas a família ampliada, como tios e avós, também podem auxiliar, tranquilizando a criança de que, apesar desta ruptura, a família irá se conservar. Thormann (2000), alerta que se deve frisar a existência de vínculos fortes a fim de gerar no filho segurança, estabilidade e perspectiva de futuro. Em muitos casos, é preferível que a criança tenha tido laços familiares e os perdido, e assim possivelmente garantindo a sua constituição psíquica, do que nunca ter tido um ambiente familiar, sendo provável o seu desamparo psíquico. Porém, deve ficar claro que este apoio não é no sentido de negar a situação familiar, mas sim que a criança perceba que não está sozinha em seu sofrimento. Neste aspecto, é fundamental que o filho saiba da sua forma, o que está ocorrendo na família, de modo que possa ter contato com seus sentimentos e consiga, então, elaborar a situação.

Essa circunstância pode fazer com que a criança fique triste, distraída, brincando menos ou ainda isolada em seus pensamentos e reflexões. É fundamental que fique claro ao filho que ele não tem culpa da decisão pela qual os pais optaram. É comum que a criança sinta-se culpada, pois ela se percebe como sendo o centro do mundo, acreditando ser o agente provocador de qualquer fato que ocorra. Assim, o filho acredita que os pais estão anulando não só os acordos entre si, mas também o amor que têm por ele.

Desta forma, os pais devem lidar com a situação de forma a dizê-la em palavras, ao invés de guardá-la sob a forma de angústia. É importante assumir a responsabilidade da separação e considerar que há um filho que precisa de todo o apoio e escuta necessário. Nos casos de alienação parental, os pais também estão abalados e não conseguem dar conta de sua dor e da dor do filho. Nestas ocasiões em que a família não se faz suficiente para elaborar a nova situação, é essencial um terceiro para facilitar este processo. Assim, é fundamental a psicoterapia para cada um dos genitores, na medida em que estes possuem questões narcísicas que estão interferindo diretamente no modo como a criança está vivenciando este momento. Além disso, o tratamento psicológico é de extrema importância para o filho, que precisa compreender a nova dinâmica familiar e terá um espaço garantido para ter sua dor, angústias e questionamentos escutados.

 

Considerações finais

A qualidade das experiências primordiais e o modo como a família lida com a ruptura conjugal definirá a intensidade das consequências para cada membro. Por vezes, quando um dos cônjuges não suporta a separação, tendo assim atitudes com a finalidade de distanciar o filho do outro genitor, instaura-se um processo litigioso. A alienação parental, embora por vezes inconsciente, possui sentimentos vingativos ao ex-companheiro, sem atentar diretamente ao filho, de forma que, embora não exista a intenção de prejudicar a saúde psíquica da criança, esta acaba atingida por um conflito de lealdade, gerando prejuízos à formação de sua personalidade. O distanciamento de um genitor e seu filho provocado por este fenômeno é danoso principalmente para a criança, na medida em que a convivência com ambos os pais é essencial para o desenvolvimento de vínculos afetivos e da noção de diferença e alteridade. Dessa forma, o diálogo sincero torna-se fundamental durante a separação para que os pais possam demonstrar ao filho que a relação de amor para com ele permanecerá íntegra.

Assim, a existência da Lei 12.318/10 veio assegurar a proteção da criança nas situações de alienação parental, exemplificando os atos e impondo medidas protetivas. Tal legislação tem a intenção de manter a convivência familiar sadia e o desenvolvimento da criança, sempre atentando ao melhor interesse da criança e do adolescente.

A família ampliada e o ambiente escolar exercem papel fundamental neste momento de rompimento conjugal, estabelecendo um espaço de apoio e escuta acolhedora, no sentido de amparar a criança. Quando essas vias não são suficientes para que o filho suporte essa situação, é importante recorrer ao tratamento psicoterápico. Tal medida tem a finalidade de facilitar o processo de elaboração da nova realidade e oferecer um espaço singular para a escuta de seus temores e angústias, que se fazem presentes neste momento de mudança da dinâmica familiar, onde muitas vezes o lugar da criança é anulado.

Portanto, conclui-se que é preciso considerar a importância de assegurar o sujeito que a criança constitui, bem como garantir que sua identidade e raízes não se percam no momento em que ocorre uma mudança familiar. Diante da alienação parental, é essencial que o filho seja ajudado a se estruturar, evitando o perigo da fragmentação. Por fim, faz-se necessário respeitar a dignidade da criança, por meio do constante afeto, cuidado e proteção, que garantem a sua condição de sujeito de desejos e direitos.

 

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Winnicott, D. W. (1965). A família e o desenvolvimento individual. São Paulo: WMF Martins Fontes.         [ Links ]

 

 

Endereço para correspondência
João Pedro Fahrion Nüske
E-mail: joaopedro@nuske.com.br

Alexandra Garcia Grigorieff
E-mail: alexandra.grigorieff@hotmail.com

Enviado em: 10/02/2015
1ª revisão em: 12/05/2015
Aceito em: 15/05/2015

 

 

1 Advogado. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul – PUCRS. Especializando em Direito de Família e Sucessões na mesma Universidade. Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM.
2 Graduanda em Psicologia na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul - PUCRS. Bolsista de Iniciação Científica CNPq no Grupo de Pesquisa: Fundamentos e Intervenções em Psicanálise, no Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Psicologia da PUCRS. Monitora das disciplinas Metapsicologia Psicanalítica, Clínica Psicanalítica I e Clínica Psicanalítica II. Estagiária de Psicologia Clínica na Sigmund Freud Associação Psicanalítica.
3 Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

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