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Pensando familias
versão impressa ISSN 1679-494X
Pensando fam. vol.21 no.2 Porto Alegre dez. 2017
ARTIGOS
Adolescentes que cometeram ofensa sexual: análise documental em processos judiciais
Adolescents who have committed sexual offense: documentary analysis in legal proceedings
Daniela Fontoura Domingues1 ; Liana Fortunato Costa2, I
I Universidade de Brasília (UnB)
RESUMO
A ofensa/abuso sexual cometido por adolescentes é um fenômeno multideterminado e heterogêneo. Para compreender os episódios é importante conhecer as semelhanças e as diferenças entre subgrupos de ofensores. Este estudo busca descrever características de adolescentes autores de ofensa sexual, de suas vítimas e o contexto em que os episódios ocorreram com o intuito de identificar fatores comuns e elencar temas para intervenção. A coleta de dados foi realizada por meio da análise documental de 15 processos judiciais, em uma região do Brasil. A análise foi feita com base em um protocolo. Os achados revelam que as ofensas ocorreram no contexto intrafamiliar, extrafamiliar e institucional, cujas vítimas eram, em sua maioria, do sexo feminino. As ofensas contra crianças foram praticadas por adolescentes conhecidos das vítimas, ao contrário dos abusos cometidos contra indivíduos com 18 anos de idade ou mais. O estudo revela a necessidade de intervenções individualizadas e de medidas preventivas.
Palavras-chave: Abuso sexual, Adolescente, Intervenção.
ABSTRACT
The sexual offense/abuse committed by adolescents is a multidetermined and heterogeneous phenomenon. To understand the episodes, it is important to know the similarities and differences between subgroups of offenders. This study seeks to describe characteristics of adolescents who committed sexual offense, their victims and the context in which the events occurred in order to list the common features and choose subjects for intervention. Data collection was conducted through document analysis of 15 lawsuits relating to the practice of sexual offense committed by adolescents in a region of Brazil. The analysis was based on a protocol. The findings reveal that the offenses occurred in intra, extra-familial and institutional contexts. The victims were mostly female. Sexual assaults against children were committed by adolescents known to the victims, unlike those perpetrated against individuals who were 18 years or older. The study reveals the need for individualized interventions and preventive measures.
Keywords: Sexual offense, Adolescent, Intervention.
Introdução
O abuso sexual cometido por adolescentes é um grave problema de saúde pública que tem despertado, nas últimas décadas, o interesse de pesquisadores de várias nacionalidades (Barroso, 2012; Ryan, 2012; Worling & Langton, 2012). Também é denominado de ofensa sexual em países de língua inglesa, especialmente ao se referir ao agente da ofensa (McCuish, Cale, & Corrado, 2015; Ryan, 2012). É definido como todo o ato sexual que empregue violência física ou verbal, além de estratégias de manipulação e coerção contra as vítimas (American Psychiatric Association, 1999). A prática pode incluir diversas atitudes sexualizadas, com ou sem contato físico, que causem danos e prejuízos à pessoa vitimada (Hatzenberger, Habigzang, & Koller, 2012).
Trata-se de um fenômeno complexo e heterogêneo (Barroso, 2012; Fanniff & Kolko, 2012; Ryan, 2012; Worling & Langton, 2012) em virtude dos modos de atuação do perpetrador, do contexto, do alvo das ofensas (Leclerc, Proulx, & Beauregard, 2009), da trajetória do ofensor e de suas experiências pregressas (Seto & Lalumière, 2010). Segundo Hunter (2012), há subgrupos com características comuns como, por exemplo, aqueles que praticam somente ofensas sexuais e aqueles que, além das ofensas, cometem diferentes tipos de infração (Butler & Seto, 2002). Outra categorização possível é distinguir jovens que buscam vítimas na fase da infância dos que procuram pessoas de sua própria faixa etária ou adultas (Kjellgren, Wassberg, Carlberg, Langström, & Svedin, 2006). Assim, diversos autores (Fanniff & Kolko, 2009; Leclerc et al., 2009; Seto & Lalumière, 2010) têm tentado elencar as similaridades e as diferenças presentes nesses grupos com o intuito de ajustar o tratamento às características psicológicas, aos traços de personalidade e às necessidades dos perpetradores.
No que se refere ao contexto relacionado à escolha da vítima, por exemplo, os abusos intrafamiliares são praticados, em sua maioria, contra crianças cujos ofensores são membros da mesma família, exercem papel de autoridade ou de cuidadores da vítima (Fanniff & Kolko, 2012) e são geralmente irmãos e primos mais velhos (Costa, 2011). Do ponto de vista emocional, esses adolescentes costumam apresentar mais baixa autoestima, pouca habilidade social e traços depressivos (Robertiello & Terry, 2007), diferentemente daqueles que atuam no contexto extrafamiliar. Neste último, as ofensas quase sempre se direcionam a pares ou pessoas adultas, com predomínio de vítimas desconhecidas (Kjellgren et al., 2006), sendo que esses adolescentes exibem outros comportamentos delinquentes e histórico de prisões, além da conduta sexual desviante (Robertiello & Terry, 2007; Seto & Lalumière, 2010).
Há também um terceiro contexto, ainda pouco mencionado nos estudos, que pode servir de cenário às ofensas sexuais contra crianças e adolescentes: as instituições de acolhimento, popularmente conhecidas no Brasil como abrigo. O acolhimento tem como meta resguardar indivíduos na fase da infância ou adolescência que estejam em situação de risco e que, por diferentes razões, precisem se afastar do convívio familiar. Esses espaços devem fornecer proteção e garantir a integridade física e mental dos indivíduos sob responsabilidade do Estado (ECA, 1990), embora, não seja rara a existência de violações nos referidos ambientes (Carinhanha & Penna, 2012).
A pesquisa realizada no Reino Unido por Williams e Pritchard (2016) revela a necessidade de intervenções em espaços coletivos destinados à proteção infantil. Segundo os autores, em uma amostra de 36 jovens entre 13 e 18 anos de idade acusados de cometer ofensas sexuais contra crianças em um centro de acolhimento infanto-juvenil, 29 tinham menos de 14 anos de idade e também haviam sido vítimas de negligência, violência física ou sexual. Ou seja, a experiência de vitimização no meio doméstico pode ser reproduzida pelo adolescente em locais de acolhimento (Williams & Pritchard, 2016), o que requer tratamento especializado para prevenir os abusos (Worling & Langton, 2012), mesmo com o silêncio mantido em torno do assunto e a falta de denúncias (Williams & Pritchard, 2016).
Tal lacuna, contudo, não se refere exclusivamente às ofensas cometidas no ambiente institucional; em todos os demais, as estatísticas são ínfimas. No Brasil, a prevalência de ofensas sexuais praticadas por adolescentes é ainda desconhecida (Costa, 2011; Costa, Ribeiro, Junqueira, Meneses, & Stroher, 2011), ao inverso de outras nações, como os Estados Unidos, cujas estimativas sugerem em mais de um terço os abusos praticados por adolescentes contra indivíduos menores de 12 anos (Finkelhor, Ormrod & Chaffin, 2009).
O Plano Nacional de Enfrentamento à Violência Sexual contra Crianças e Adolescentes (2013) recomenda ampliar, aprimorar e integrar o sistema de notificação no território nacional, uma vez que os dados disponíveis se referem predominantemente ao tipo de violência cometida, mas não incluem dados sociodemográficos dos autores, como idade e relação de parentesco com a vítima. Sensível à demanda, o SINAN – Sistema de Informação de Agravos de Notificação (IBGE, 2015), pertencente ao Ministério da Saúde, efetivou atualizações no modo de registro de casos de violência. As mudanças dizem respeito à ficha utilizada para a coleta de dados, que passou não somente a detalhar as características da agressão sofrida pela vítima, como também colher referências acerca do provável responsável. Isto porque, sem informações consistentes, torna-se difícil a elaboração de políticas de atendimento aos perpetradores (Costa, 2011; Costa, Junqueira, Meneses & Stroher, 2013).
Para combater situações dessa natureza, portanto, é preciso ampliar o conhecimento teórico e incentivar ações preventivas (Hunter, 2012) em todo o país. São ainda modestos os locais de atendimento para pessoas jovens envolvidas na prática de ofensa sexual e escassos os resultados sobre os programas interventivos (Costa et al., 2013). A fim de evitar a reincidência, é importante que se conheçam os fatores de risco e as diferentes estratégias para combater a expansão deste crime.
Com o objetivo de conhecer algumas variáveis relacionadas à autoria de ofensa sexual por adolescentes, o presente texto diz respeito a uma análise documental e retrospectiva efetuada em processos disponibilizados pela Vara da Infância e da Juventude (VIJ) de uma cidade brasileira, da região centro-oeste do país. Tal panorama se refere a processos instaurados contra adolescentes do sexo masculino que foram denunciados por prática de ofensa sexual entre o início de 2008 e abril de 2013. O estudo tem como objetivo descrever as características desses adolescentes autores de ofensa sexual, de suas vítimas, colher informações sobre o ambiente em que os abusos foram cometidos e o tipo de vínculo existente entre os perpetradores das agressões e as pessoas abusadas. Esse levantamento pode ajudar na construção de intervenções para os diferentes tipos de adolescentes que praticam atos ofensivos de natureza sexual, e salientar a importância de ações preventivas no contexto intra e extrafamiliar, além do institucional.
Método
Amostra e seleção dos processos
Primeiramente foi solicitada autorização para a realização da pesquisa junto à Vara da Infância e da Juventude (VIJ), órgão vinculado ao Tribunal de Justiça do Distrito Federal, localizado na região centro-oeste do Brasil. Após deferimento do termo, em 1/4/2013, foi feito contato com a seção encarregada pelas medidas socioeducativas da referida Vara. Por intermédio dos funcionários desta, solicitou-se junto ao cartório da instituição providências quanto aos processos. Em seguida, a repartição disponibilizou dois relatórios com dados estatísticos: um deles com os processos que estavam em tramitação, e outro com a lista geral dos documentos que foram registrados desde janeiro de 2008 até abril de 2013.
Procedimentos
Para fins da pesquisa, foi separada uma amostra de 15 processos no total, sendo três de cada ano. Esse número foi definido pelo funcionário responsável pela seção da VIJ. Em razão do intenso fluxo de trabalho, das demandas na repartição e do curto período de tempo para atendimento à população, somente 15 processos foram disponibilizados para pesquisa. Portanto, essa escolha não foi feita pela pesquisadora. Os processos foram selecionados de forma aleatória, cujo critério norteador foi o período (janeiro de 2008 – abril de 2013) e o ato infracional cometido pelo adolescente. Trata-se, assim, de um recorte feito no conjunto de processos em que o próprio funcionário da repartição definiu o material fornecido à pesquisadora. Esta última não teve participação na seleção dos processos que lhe foram entregues.
A pesquisa documental, para Gil (1999), é aquela que utiliza materiais que ainda não receberam qualquer tipo de análise e podem ser explorados e reelaborados de acordo com a finalidade da investigação. Há diversas fontes de pesquisa que podem servir a tal fim; entre elas estão os documentos oficiais, cartas, filmes, gravações e fotografias. Além disso, é consenso que esse tipo de material requer um cuidado especial por parte do investigador. Os cuidados éticos devem ser redobrados para preservar a identidade dos sujeitos, como por exemplo, os dados oriundos da esfera judicial e criminal (Berg, 2007). Assim sendo, o nome dos adolescentes e o número dos processos que fizeram parte da amostra foram preservados a fim de evitar possíveis riscos de identificação.
O exame do material e as anotações ocorreram nas dependências da VIJ, em recinto designado pelos servidores do local, sendo concluído em dois dias consecutivos no mês de maio de 2013. O projeto de pesquisa foi antecipadamente aprovado pelo Comitê de Ética responsável pelas pesquisas realizadas na instituição. Também contou com a autorização do Juiz da Vara da Infância e da Juventude, da respectiva localidade, para a realização da pesquisa processual. Tal estudo compõe um conjunto de investigações sobre o tema adolescência e ofensa sexual no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília (UnB).
Instrumento
As informações foram registradas de forma manual com base em um protocolo construído antecipadamente. Para a construção do protocolo, foram escolhidas oito categorias baseadas na literatura e nas informações disponíveis nos processos. As categorias dirigiram-se, primeiramente, aos adolescentes que cometeram as ofensas, conforme segue: identificação numérica do adolescente, idade do adolescente, abuso cometido individualmente ou em associação com outros jovens (individual ou coletivo) e número de vítimas. Em seguida, os itens se destinaram a coletar informações sobre as vítimas dos episódios: idade, sexo e relação com o agressor (conhecido ou desconhecido). Por fim, buscou-se coletar dados a respeito do contexto onde o abuso foi praticado (intrafamiliar, extrafamiliar ou em instituição de acolhimento/abrigo). Este último – instituição de acolhimento – foi incluído na pesquisa pelo fato de estar citado no processo de dois adolescentes como o ambiente onde ocorreu a violência.
Resultados
Os resultados estão organizados em duas seções. A primeira delas mostra o número de processos presentes na VIJ entre janeiro de 2008 e abril de 2013 relativos ao ato infracional investigado no presente estudo. Tais informações fazem parte do Acervo de Processos. A segunda seção apresenta a caracterização do adolescente que cometeu a ofensa sexual relacionando-o ao perfil e características da vítima e ao tipo de abuso cometido.
Acervo de processos
Mediante acesso ao relatório de processos disponibilizados pela VIJ, foi possível realizar o levantamento, cujos dados indicam que entre 1/1/2008 e 5/4/2013 foram contabilizados 192 processos relativos a atos infracionais pertencentes à categoria ofensa sexual. Todos os autos estavam sob segredo de Justiça, de acordo com as diretrizes estabelecidas nos artigos 143 e 144 do ECA (Brasil, 1990). Os processos estão divididos por ano, conforme segue: 2008 há 12 processos; 2009 há 17; 2010 há 29; 2011 há 72; 2012 há 31 e 2013 há 31, cujo total soma 192 processos.
Caracterização do adolescente e de suas vítimas
Com a finalidade de descrever o perfil dos adolescentes e de suas vítimas, os dados foram organizados na Tabela que segue. As oito categorias resultantes do estudo estão agrupadas e divididas por subtítulos com o objetivo de descrever o conteúdo da pesquisa. Ressalta-se que todos os adolescentes desse estudo, autores de ofensa sexual, são do sexo masculino.
Idade do adolescente no conjunto de processos
Do total de 15 adolescentes, a idade dos jovens oscilou entre 12 - 14 anos de idade (n = 4) e entre 15 - 17 anos (n = 11).
Modo de atuação do adolescente, contexto da ofensa e número de vítimas
Houve preponderância da ofensa sexual praticada no contexto extrafamiliar (n = 10), sendo que em três situações elas ocorreram de forma coletiva e em sete, de modo individual. Embora o número de processos pesquisados tenha sido 15 – correspondendo a 15 distintos adolescentes – foram cometidas ofensas contra 19 vítimas, tendo em vista que dois adolescentes, um no contexto extrafamiliar e outro no institucional, praticaram o ato contra três pessoas.
Contexto da ofensa e idade das vítimas
Quanto à idade das vítimas selecionadas por contexto, se observa que as vítimas subjugadas no ambiente extrafamiliar (n = 10) tinham entre 11 e 48 anos de idade; no contexto intrafamiliar (n = 5) entre 4 e 9, e no contexto institucional (n = 4) entre 3 e 9 anos.
Sexo das vítimas
Das 19 pessoas vitimadas, 17 eram do sexo feminino e apenas duas do sexo masculino.
Discussão
Os resultados coincidem com os dados de outros trabalhos no que diz respeito à diversidade do fenômeno da ofensa sexual praticada por adolescentes (Hunter, 2012; Kemper & Kistner, 2007; Kjellgren et al., 2006) e às implicações para a prática clínica (Leclerc et al., 2009; Ryan, 2012). Conforme mencionado na introdução, por tratar-se de uma população heterogênea, é importante identificar subgrupos que demonstram características similares (Fanniff & Kolko, 2012) com o objetivo de conhecer as estratégias usadas na execução das ofensas, levando em consideração a faixa etária das vítimas e o local das ocorrências (Leclerc et al., 2009).
Neste sentido, o presente levantamento – ainda que limitado quantitativamente – apresenta informações relevantes sobre uma amostra de adolescentes envolvidos em ofensas sexuais que foram denunciados e chegaram a um tribunal da justiça juvenil brasileira. Com base neste recorte, é possível perceber a pluralidade de interesses dos jovens frente às vítimas, a modalidade de atuação e estimar a importância de intervenções adaptadas às características destes ofensores (Fanniff & Kolko, 2012; Worling & Langton, 2012).
De acordo com o levantamento, as ofensas contra crianças ocorreram não apenas no contexto intrafamiliar, como no institucional/abrigo. Depreende-se que as violações contra esses indivíduos foram protagonizadas por um membro da família, alguém de confiança da vítima (Costa, 2011; Kemper & Kistner, 2007), ou de sua convivência (Williams & Pritchard, 2016). O estudo de Domingues (2016) aponta, por exemplo, que adolescentes identificados como autores de ofensa sexual intrafamiliar necessitam receber atendimento diferenciado, pois costumam viver em contextos não protetivos, enfrentar variadas formas de violência e muitas vezes estão expostos à vitimização sexual e a comportamentos sexualizados por parte dos adultos.
A autora argumenta que a intervenção deve ser dirigida a todo o sistema familiar e ser conduzida por um corpo de profissionais apto a trabalhar temas como sexualidade, violência e transgeracionalidade, tendo em vista que a maior parte dessas famílias não consegue fornecer proteção, cuidado e carinho a seus descendentes, mas, ao contrário, constitui um ambiente de risco. Em outras palavras, a normatização do ciclo da violência em tais contextos pode levar à repetição de um padrão de funcionamento disfuncional ao longo de gerações (Costa et al., 2013). Segundo Grant et al (2009), para uma mudança consistente, o atendimento deve almejar a compreensão ampliada acerca da história do autor de ofensa sexual. O intuito é integrar à sua trajetória – e a de sua família – as experiências de vitimização sexual, física e psicológica que costumeiramente são mantidas em segredo. Se, por um lado, tais fatores potencializam o comportamento sexual ofensivo do adolescente (Ryan, 2012; Worling & Langton, 2012), por outro, quando adequadamente trabalhados, constituem verdadeiras ferramentas para evitá-lo (Costa, 2011).
Em termos de modalidade de intervenção, uma das possibilidades é promover o atendimento em grupos Multifamiliares com o propósito de beneficiar famílias que enfrentam dificuldades similares e que precisam de apoio e fortalecimento de sua rede social (Nahum & Brewer, 2004). Para Costa (2011), este tipo de terapia está vigente no Distrito Federal com reconhecido sucesso em seus objetivos. O primeiro deles é instrumentalizar a família para lidar com a situação. Os genitores, por exemplo, precisam arcar com uma dupla tarefa, uma vez que “têm sob sua responsabilidade uma criança vitimada e um adolescente vitimizador, além de um contexto no qual não conseguiram impedir a violência” (Costa, 2011, p. 194).
Para driblar as alterações no sistema familiar e eventuais críticas oriundas do ambiente externo, muitos pais recorrem a subterfúgios. É comum haver uma tentativa de atenuar o problema e desqualificar a interação incestuosa estabelecida entre os filhos, comprometendo a detecção e elucidação do episódio. A negação costuma ser uma das possíveis reações, pois, para os pais, a experiência é tão avassaladora que adotam posturas defensivas para não tomar conhecimento sobre o fato (Domingues, 2016). Admitir a ocorrência do evento ofensivo é uma árdua tarefa e envolve ambivalência, sentimento de impotência e culpa (Jones, 2015), cujo processo terapêutico precisa abarcar a validação do discurso parental, ajudar na recomposição de vínculos, promover uma transformação nos padrões de comunicação e na própria dinâmica do sistema familiar (Costa et al., 2011; Grant et al., 2009).
O segundo passo, e não menos importante, se destina a garantir a proteção da vítima, bem como a do adolescente, em virtude do momento peculiar de desenvolvimento em que ambos se encontram. O resgate e o fortalecimento do papel parental são fundamentais na criação desse contexto protetivo, livre de retaliações ao autor das ofensas e propício à reparação (Costa, 2011; Costa et al., 2013). Tais elementos fazem parte do processo de reabilitação do adolescente na medida em que contribuem para a conscientização dos prejuízos causados a todos os membros da família e para a responsabilização do acusado.
Quanto às ofensas praticadas em contexto de abrigamento, as intervenções precisam ser específicas. O excesso de contingente nas suas dependências e a falta de supervisão adequada favorece o contato entre adolescentes e crianças que, nestas circunstâncias, tornaram-se vítimas em potencial. Dito de outra forma, os espaços de acolhimento não estão imunes a situações de violência (Carinhanha & Penna, 2012) e, tampouco, à reprodução de episódios de abuso sexual, exigindo um programa de capacitação e treinamento para os cuidadores e responsáveis pelas unidades (Williams & Pritchard, 2016), bem como de atenção aos adolescentes que vitimam outros indivíduos em situação de vulnerabilidade. Proteger e responsabilizar o autor de ofensa sexual no ambiente institucional também é um caminho para prevenir novas situações abusivas desde que seja acompanhado de mecanismos legais dirigidos a coibir outras violações, como superlotação, falta de recursos humanos e de infraestrutura nos locais de acolhimento.
No que se refere às ofensas contra os pré-adolescentes, adolescentes e adultos, percebe-se que elas ocorreram no contexto extrafamiliar e vitimaram pessoas desconhecidas (n = 4). Os achados corroboram o estudo de Kemper e Kistner (2007), cuja investigação realizada em arquivos da justiça juvenil americana, aponta que há uma tendência por parte de ofensores de pares e adultos a buscar pessoas fora do seu círculo social. E mais, a preferência é por pessoas do sexo feminino, o que coincide com os dados apurados.
Quanto à abordagem do adolescente relativa às vítimas não conhecidas, presume-se o uso de coerção e violência, principalmente pelo fato das idades das mulheres oscilarem entre os 18 e os 48 anos de idade. Nestes casos, não é incomum o uso de força durante a investida sexual, uma vez que estratégias de manipulação são menos utilizadas, segundo o estudo conduzido por Hunter, Hazelwood, e Slesinger (2000), cujas conclusões também referem a preferência desses perpetradores por pessoas do sexo feminino.
Outro dado que chama a atenção no levantamento, é a forma de atuação do perpetrador. As ações ofensivas realizadas na coletividade (n = 3) se deram exclusivamente no contexto extrafamiliar, cujas vítimas tinham 11, 14 e 18 anos de idade, ao contrário do que aconteceu no intrafamiliar e institucional. Segundo o trabalho de Kjellgren et al. (2006) com jovens ofensores sexuais registrados no departamento de Serviço Social do governo da Suécia, em 2000, a agressão cometida em parceria costuma ter como meta indivíduos conhecidos dos perpetradores. A atuação em grupo pode ter a finalidade de marcar a superioridade de determinados indivíduos sobre outros, praticar bullying e humilhar o alvo escolhido (Ullman, 1999), semelhante ao que, supostamente, ocorreu à vítima de 11 anos, do sexo masculino. O estilo de intervenção para autores de ofensas sexuais no ambiente extrafamiliar deve incluir também a prevenção a delitos de natureza não-sexual, como o envolvimento em brigas, conflitos, o uso de força, de táticas de intimidação, além de outros comportamentos delinquentes. O objetivo do tratamento, portanto, ultrapassa a prevenção de recidiva da ofensa sexual e deve se centrar na conduta transgressora e diversificada apresentada pelo adolescente (Butler & Seto, 2002).
Por fim, o texto sinaliza o aumento no número de processos de adolescentes que receberam medida socioeducativa decorrente de ofensa sexual entre 2008 e 2011, apesar de uma rápida redução em 2012. A elevação destes índices parece estar atrelada à visibilidade ainda que recente, dispensada ao fenômeno em todo o contexto nacional. Dois eventos podem ter contribuído para tal mudança: as campanhas elucidativas a respeito da violência sexual veiculada na mídia e o combate à pedofilia (Brasil, 2013).
É preciso, todavia, envidar esforços para a construção de programas interventivos, tanto para adolescentes que pela primeira vez ingressam no sistema de justiça, como para aqueles que são acusados reiteradamente pela prática ofensiva. Além desses cuidados, espera-se que novos estudos possam aprimorar o entendimento sobre os fatores ambientais, intrapessoais, interpessoais e psicossociais que levam à desistência do comportamento ofensivo ou, ao contrário, à reincidência (Hunter, 2012). As investigações também precisam avançar na detecção de subgrupos homogêneos, que permitam ações preventivas e diferenciadas (Fanniff & Kolko, 2012; Leclerc et al., 2009). O intuito é ajustar os objetivos terapêuticos às necessidades dos adolescentes e evitar prejuízos àqueles que demonstram conduta menos comprometida, conforme a recomendação de Worling e Langton (2012).
Considerações finais
No que tange à construção deste estudo, propriamente dito, ainda é preciso superar alguns obstáculos relacionados à coleta de dados. A inacessibilidade a arquivos sigilosos pode constituir um empecilho para a realização de análise documental em instituições públicas. Muitas vezes, em virtude do volume de tarefas nesses estabelecimentos, a solicitação dos autos e a exploração do material constituem demandas extraordinárias que exigem tempo e empenho dos funcionários. Tanto sob o aspecto quantitativo como qualitativo, há uma escassez de dados e referências a respeito do autor de ofensa sexual no Brasil, sendo necessário recorrer à literatura internacional (Costa, 2011; Costa et al., 2013). Este é, assim, um desafio a ser enfrentado, mas não o único.
Os dados provenientes do levantamento não podem ser generalizados em função do número reduzido de processos e do conteúdo presente nos documentos. Informações sobre a história pregressa dos sujeitos, das relações familiares e da rede social a qual pertencem, são inexistentes. Essas informações ajudariam a contextualizar melhor os episódios e a expandir a compreensão sobre os mesmos. Por outro lado, as variáveis apresentadas neste artigo oferecem uma visão do perfil do adolescente autor de ofensa sexual. E com base nesta pesquisa, pode-se afirmar que é fundamental prover orientação, educação e cuidados não somente ao jovem que comete ofensa sexual, como para seus pais ou responsáveis, independente do contexto e das circunstâncias em que foram praticadas, pois todos necessitam de atenção. Noções sobre equidade de gênero, comportamento sexual compatível à idade dos parceiros, trocas afetivas e sexuais, prevenção à violência no namoro e respeito à diversidade são temas que devem ser trabalhados antes mesmo de meninos e meninas atingirem a puberdade (Domingues, 2016). Ademais, prevenção à prática sexual precoce e à violência sexual são assuntos que envolvem outros setores da sociedade, como a escola, a comunidade e o estado através de políticas públicas.
É preciso criar, em diferentes regiões brasileiras, espaços de atendimento psicossocial às famílias e aos adolescentes, tendo em vista tratar-se de um fenômeno que exige uma abordagem familiar e uma visão processual do desenvolvimento. No que diz respeito à perspectiva teórica, no contexto nacional (Costa, 2011; Costa et al., 2013) assim como no internacional (Nahum & Brewer, 2004), a metodologia do Grupo Multifamiliar (GM) e a perspectiva sistêmica são recursos já disponíveis para compor as intervenções, sobretudo com pessoas economicamente desfavorecidas, conforme as evidências de Costa (2011). Segundo Nahum e Brewer (2004), trata-se de uma forma sofisticada de troca transferência de conhecimento e orientação entre famílias que vivenciam situações similares e que necessitam encontrar soluções a seus problemas em um ambiente seguro e emancipatório.
A afirmação de Costa et al. (2011) reforça a ideia da importância deste recurso, ou seja, “a inclusão da perspectiva familiar no tratamento é relevante para a sua eficácia por ser um agente favorável para evitar a reincidência do ato violento, de melhora do compromisso do jovem com o tratamento e de prevenção da violência transgeracional” (p. 451). Desta forma, pretende-se que os adolescentes que cometem ofensa sexual recebam um olhar menos preconceituoso e coercitivo e mais continente. Significa dizer que não basta cuidar de quem sofre a violência, se ao agressor não for oferecido atendimento, espaço de escuta, proteção, chance de responsabilização e oportunidade de reparação.
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Endereço para correspondência
Daniela Fontoura Domingues
E-mail: danydom61@gmail.com
Liana Fortunato Costa
E-mail: lianaf@terra.com.br
Enviado em: 17/03/2017
1ª revisão em: 15/08/2017
Aceito em: 04/09/2017
1 O manuscrito compõe a tese da primeira autora, intitulada “Adolescentes em situação de ofensa sexual intrafamiliar: Conhecer e intervir para prevenir a reincidência”, orientada pela segunda. Psicóloga e terapeuta familiar sistêmica. Doutora pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília (UnB). Atualmente é pesquisadora colaboradora sobre o tema na UnB.
2 Psicóloga e Pós-doutora em Psicologia. Professora do Curso de Pós-Graduação em Psicologia Clínica e Cultura da Universidade de Brasília (UnB).