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Pensando familias
versão impressa ISSN 1679-494X
Pensando fam. vol.22 no.2 Porto Alegre jul./dez. 2018
ARTIGOS
A família de crianças transexuais: o que a literatura científica tem a dizer?
The transsexual children’s family: what is the scientific literature has to say about it?
João Paulo Zerbinati1, I ; Maria Alves de Toledo Bruns2, I
I Grupo de pesquisa SexualidadeVida-USP/CNPq
RESUMO
A transexualidade é uma temática contemporânea que instiga diálogos multidisciplinares a fim de compreender e promover cuidado em nível educacional e de saúde à população em trânsito de gênero e sexo. Os sujeitos transexuais são caracterizados como uma população de risco ao desenvolvimento de psicopatologias, não por sua condição de identidade de gênero, mas pela influência de fatores interpessoais e sociais como estresse, ambiente hostil e negligência familiar. A família merece atenção por ser considerada uma instituição que pode garantir importantes funções protetoras ao desenvolvimento físico e psicológico das crianças que não se identificam ou pouco se identificam com o gênero lhes atribuído no nascimento. Este artigo pretende apresentar, por meio de uma revisão integrativa da literatura internacional, o perfil das pesquisas acerca das famílias de crianças transexuais. A família, enquanto uma instituição de zelo e cuidado deve proteger e preparar a criança transexual para enfrentar os riscos e pré-conceitos de uma sociedade majoritariamente binária.
Palavras-chave: Família, Transexualidade, Revisão integrativa.
ABSTRACT
Transsexuality is a contemporary theme that instigates multidisciplinary dialogues in order to understand and promote care at the educational and health level to the population in transit of gender and sex. Transsexual people are characterized as a population at risk for the development of psychopathologies, not because of their gender identity status, but because of the influence of interpersonal and social factors such as stress, hostile environment and family neglect. The family deserves attention because it is considered an institution that can guarantee important protective functions for the physical and psychological development of the children who do not identify or poorly identify with the gender attributed to them at birth. This article aims to present, through an integrative review of the literature, the profile of international research on families with transsexual children. The family, while an institution of care and care, must protect and prepare the transsexual child to face the risks and preconceptions of a mostly binary society.
Keywords: Family, Transsexuality, Integrative review.
Introdução
Gênero é definido pelo modo como o sujeito se percebe enquanto uma identidade sexual no decorrer de seu processo de subjetivação e identificação com os genitores na interface com os processos de socialização, construção de códigos sociais, modelos sociais de masculinidades e feminilidades, entre outras (Bruns, 2013). Segundo a perspectiva de Butler (2003a), gênero é uma “coalizão aberta” que permite múltiplas convergências e divergências. Nesse sentido, há uma crítica quanto ao entendimento do sexo e gênero como uma característica natural e binária. Butler (2003a) e Preciado (2015) apontam para a necessidade de uma compreensão de gênero que se afaste da normativa ligada ao sexo biológico e/ou ao desejo afetivossexual.
Nesse sentido, “gênero é o mecanismo pelo qual as noções de masculino e feminino são produzidas e naturalizadas, mas gênero pode muito bem ser o aparato através do qual esses termos podem ser descontruídos e desnaturalizados” (Butler, 2014, p. 253). Assim como compreende Zerbinati e Bruns (2018a), a desconstrução do gênero possibilita um processo criativo e original de identificação e subjetivação, ou seja, abre caminho para complexas possibilidades de ser e existir no mundo. O transitar por entre os modelos de sexo e gênero expressa mais uma possibilidade.
A transexualidade é um matiz da sexualidade em que o sujeito não se identifica com o gênero lhe atribuído no nascimento, tendo como referência o modelo binário, cisheteronormativo3, para o sexo e gênero. O desejo de transitar por entre os papéis e expressões dos gêneros bem delimitados pela norma de gênero enquanto feminino ou masculino, mulher ou homem, parece estar presente na história da humanidade desde o mundo antigo (Bruns & Pinto, 2003; Bento, 2006; Ceccarelli, 2013). Assim como relata Bruns e Pinto (2003), seria, portanto, equivocado acreditar que tal fenômeno é próprio somente da contemporaneidade, a novidade é a possibilidade de atuar concretamente a mudança de sexo por vias hormonocirúrgicas, assim como a problematização quanto às relações afetivas e sexuais ancoradas a partir de regras binárias para o sexo e gênero (Winter et al., 2016; Green, 2016).
O caminho que se segue na atualidade é de dissociar o termo gênero do sexo biológico, interrogando o gênero como característica individual, parte do corpo ou algo classificado a partir de regras rígidas e binárias (Spizzirri, Pereira & Abdo, 2014). Entretanto, há ainda muito que caminhar, inclusive acerca da compreensão e cuidado no âmbito da saúde e saúde mental dos sujeitos transexuais.
A ciência contemporânea volta sua atenção para compreender as questões que levam os sujeitos transexuais a serem relacionados como população de risco ao desenvolvimento de psicopatologias (Witcomb, et al. 2015; Prunas, et al.2014; Fisher et al. 2014; Lai, et al. 2009; Gómez-Gil, et al. 2008). De modo geral, já se sabe que há uma redução dos quadros psicopatológicos após o início do tratamento (Costa & Colizzi, 2016; Dhejene et al., 2016; Bouman et al; 2016; Heylens, 2014). Assim, a hipótese de maior aceitação entre os pesquisadores é a de que o sofrimento mental da população transexual seja uma “reação transitória da não satisfação ligada à imagem corporal incongruente” e não necessariamente uma “comorbidade psiquiátrica estável” (Costa & Colizzi, 2016, p. 1965).
Estudos como o de Olso et al. (2016) demonstram níveis mínimos de depressão e ansiedade em crianças transexuais que são apoiadas em sua transição social. A vulnerabilidade da população trans a problemas de saúde mental parece estar relacionada a fatores interpessoais e sociais, influenciados por um ambiente estressante, hostil e de negligência familiar (Davey, Bouman et al., 2015; Davey et al., 2014; Pandya, 2014; Rijn, Steensma, Kreukels & Cohen-Kettenis, 2013; Simon, et al. 2011; Lai, et al. 2009).
Neste sentido, chegamos ao elemento familiar e a matriz de sentido família. É possível compreender que o modelo de família enquanto organização doméstica de cuidado e vínculo foi consolidada no século XIX. Até então a família existia como instituição política, agrupada por linhagem. As casas não possuíam divisões, os pais dormiam juntos com os filhos, não havia pudor ao nudismo, nem ao incesto, o que despertou a preocupação da igreja (Ariès, 1981). Chauí (1984) compreende que o vínculo por linhagem passou a ser substituído pela família conjugal nos séculos XVI e XVII, momento em que se iniciou a separação física nas casas entre lugares comuns e privados, assim como uma normalização e naturalização de modelos hierárquicos.
Não havia também a ideia de infância, a criança era um adulto pequeno. O conceito de infância enquanto uma fase do desenvolvimento humano inicia-se no século XVIII, momento em que o discurso científico começa a se fortalecer e com ele a normalização e padronização de comportamentos como as próprias fases do desenvolvimento humano e a definição e normalização das relações afetivas, sociais e, principalmente, sexuais (Chauí, 1984).
Um dos aspectos da família contemporânea é justamente uma maior flexibilidade aos modelos até então hierárquicos. Há uma pluralidade nas relações que a torna muitas vezes original, sem referência, levando a uma crise de identidade (Hall, 2002). Todavia, estar em crise não necessariamente deve ser visto como algo ruim; de uma crise se pode emanar novas possibilidades emancipatórias, humanas e inclusivas de ser e existir no mundo cuja origem está na mudança estrutural subjetiva, econômica, política e sociocultural.
A história demonstra que a instituição familiar é complexa, plural, sofre modificações influenciadas conforme seu contexto; espelha um mosaico de infinitas possibilidades como compreende Scabello e Bruns (2004). Contudo, de modo geral:
A família é uma unidade sistêmica que tem uma identidade característica, a qual, seguidamente, adquire o perfil transgeracional dos pais, de modo que, às vezes, a aludida identidade fica anquilosa, sempre repetindo as mesmas pausas de conduta e de valores. Porém, em muitas outras vezes, vai sofrendo inevitáveis transformações, em meio a crises e surgimento de novas necessidades e problemas, dessa forma adquirindo uma modificação de estrutura familiar, e uma aquisição de novos valores, normas e conduta (Zimerman, 2010, p. 85).
Independente das transformações históricas que a família assuma, sua função vital é oferecer cuidado, fornecer terreno suficientemente bom para o germinar e amadurecimento de suas proles. Assim como considera Winnicott (1990, p. 174), o papel da família é se tornar “gradualmente menos essencial à medida que o tempo vai passando”, até a sobrevivência e um momento de maior independência de seus membros humanos.
O conceito de família não se refere apenas à família natural, instância formada pelos pais ou cuidadores principais, mas, família também se estende “para além da unidade pais e filhos ou da unidade do casal, formada por parentes próximos com os quais a criança ou adolescente convive e mantém vínculos de afinidade e afetividade”, é o que diz o Estatuto da Criança e do Adolescente (Brasil, 2015, p. 14). É dever da família, assim como da comunidade, da sociedade em geral e do poder público, assegurar a “efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária” (Brasil, 2015, p. 9).
A importância familiar para a sobrevivência física e psíquica de uma criança é inquestionável. A família também obtém um papel relevante no desenvolvimento psicossexual dos filhos, no que se refere à transmissão de informações acerca da sexualidade, assim como na constituição quanto à identidade de gênero, uma vez que é no universo familiar que as primeiras experiências afetivas e sexuais acontecem (Campos, Tilio & Crema, 2017).
Botton, Cúnico, Barcionski e Strey (2015) destacam que é na família que muitos dos comportamentos estereotipados em relação ao gênero são reproduzidos. Ao mesmo tempo, a contemporaneidade intima e instiga um rompimento com modelos arcaicos e rígidos ao gênero e a sexualidade a fim de ultrapassar barreiras de hierarquização, exclusão, violência sexual e de gênero. Aqui se inclui discutir machismo, sexismo, misoginia, homofobia, por fim transfobia e transnegatividade.
No contexto histórico atual, a família é instigada a unir o tradicional ao contemporâneo no qual o gênero se insere de modo pulsante, em trânsito conceitual e fenomenal. A família com filhos que não mais se enquadram aos padrões cisnormativos é um fenômeno crescente, atual, com iniciais pesquisas científicas, o que instiga e demonstra sua relevância investigativa. É nesse sentido que se torna pertinente enveredar a compreensão de quais considerações teóricas e clínicas estão sendo discutidas tendo a família com filhos transexuais como objeto de investigação. Quais suas particularidades e quais horizontes as pesquisas científicas vêm delimitando em âmbito internacional? A partir de tais delimitações, este artigo pretendeu apresentar uma revisão integrativa internacional acerca da família de crianças transexuais.
Método
A revisão integrativa é um método de revisão que possibilita uma compreensão abrangente de um fenômeno particular ou problema de saúde pública (Whittemore & Knafl, 2005). A revisão integrativa pode desempenhar um papel importante no desenvolvimento de práticas baseadas em evidências (Hopia, Latvala & Liimatainen, 2016). Optamos pela realização da uma análise integrativa por ser uma estratégia de pesquisa detalhada e abrangente, proporcionando a síntese de conhecimento empírico ou teórico, incluindo estudos quantitativos e qualitativos, auxiliando na compreensão de um determinado fenômeno, assim como no frutificar de propostas práticas de cuidado e atenção (Whittemore & Knafl, 2005; Souza, Silva & Carvalho, 2010).
Esta revisão integrativa foi realizada de acordo com o método de revisões integrativa proposto por Souza, Silva e Carvalho (2010). Foram seguidas todas as seis etapas essenciais para a elaboração de uma revisão integrativa: (1) Elaboração da pergunta norteadora; (2) Estratégia de busca, localização, definição de critérios de inclusão e exclusão; (3) Coleta de dados e análise da qualidade dos estudos; (4) Análise crítica dos estudos incluídos; (5) Discussão dos resultados e (6) Apresentação da revisão integrativa.
A busca foi realizada no período de maio de 2018, abrangendo três grandes bancos de dados eletrônicos nacionais e internacionais, amplamente utilizados pelas ciências da saúde e humanas, e que contém uma extensa literatura, a saber: SciELO (Scientific Electronic Library Online), Bireme (Biblioteca Regional de Medicina) e PubMed (National Library of Medicine). Para busca dos artigos foi utilizado o descritor “Transsexuality”, combinado com “Child” e “Family”.
Todos os artigos completos e publicados nos últimos cinco anos foram incluídos. Foram excluídos os artigos duplicados ou não relacionados à população tema deste estudo. Os artigos selecionados foram lidos na íntegra pelos autores de forma independente para confirmação quanto à pertinência para este estudo. Não houve discordância para composição da amostra. A análise consistiu na redução, exposição e comparação entre os artigos com demais estudos, possibilitando a interpretação, síntese e discussão dos resultados (Souza, Silva & Carvalho, 2010).
Resultados e discussão
A Figura 1 apresenta o fluxograma de seleção dos estudos e extração dos dados. Foi identificado um total de 92 artigos (Scielo n= 0; Bireme n= 43; PubMed n= 49). Nesta etapa inicial foram excluídos 24 artigos duplicados. Com a avaliação dos resumos, a partir da avaliação dos autores para comprovação quanto à relevância, foram excluídos 53 artigos. O principal motivo para a exclusão dos artigos foi a averiguação de que não correspondiam ao tema proposto por esse estudo, não contemplavam a relação com a família, debruçando-se em compreender outras facetas como a relação parental de transexuais ou a própria transexualidade. Por fim, obteve-se como amostragem final 15 artigos (Quadro 1).
A partir do Quadro 1 é possível observar que dos poucos artigos encontrados, a maioria são trabalhos de pesquisadores dos EUA (n = 10), assim como também destacado por Schneeberger et al. (2014). O paradigma médico bastante difundido nos EUA e seu alto investimento em pesquisa contribuíram para esse resultado. Historicamente, da construção do conceito gênero ao diagnóstico de transsexualismo, transexualidade e disforia de gênero (American Psychiatric Association, 2013), de Harry Benjamin4 (1885-1986) a Robert Stoller5 (1924-1991) e mais recentemente Judith Butler6 (2003a), os EUA se destaca como vanguardistas aos estudos sobre o gênero e a sexualidade (Green, 2009). Bélgica, Brasil, Holanda, Reino Unido e Suíça também foram representados com um artigo cada. Devido a grande maioria dos artigos selecionados para esta revisão advirem dos EUA, a generalização dos dados apresentados é principalmente limitada aos EUA e não aplicável aos demais países do mundo, o que não impede ou anula sua validade e relevância, pelo contrário, pode estimular e servir de modelo para a realização de novas pesquisas, em diferentes contextos e territórios.
A família de crianças transexuais
Coolhart e Shipman (2017) destacam que o gênero não é necessariamente binário, ou seja, não é simplesmente feminino ou masculino. A identidade de gênero pode demonstrar aspectos plurais, que correspondam às variações sexuais de constituição e subjetivação, um caminho complexo e indiscutivelmente singular, permitindo diferentes manifestações.
Coolhart e Shipman (2017) apontam perspectivas importantes em que desestigmatizar ao ponto de naturalizar as expressões de gêneros além dos modelos binários é fundamental para diminuir o sofrimento dos jovens em trânsito de sexo e gênero, assim como de suas famílias. O problema não está no sujeito transexual que expressa sua identidade de gênero de modo distinto da maioria, mas na sociedade rigidamente binária, que oferece apenas dois caminhos prontos e determinados para a expressão do gênero, assim como destaca Porchat (2014).
A grande problemática dos padrões ao gênero é que inevitavelmente não revelam uma ordem verdadeira, mas corroboram com discursos articulados a partir de uma fórmula gramatical de sujeito, algo como uma “metafísica da substância”. Essa crítica nietzschiana é utilizada por Butler (2003a) para demonstrar o discurso sobre o gênero natural a fim de salvaguardar certos dogmas e reforçar a ordem compulsória do sexo/gênero/desejo. Para a autora esse padrão de “normalidade” é o que produz efeitos sociais de hierarquia, classificação, dominação, estigma, logo exclusão.
Segundo Adelson, et al., (2016), o preconceito social, no qual a rejeição familiar e não aceitação da condição de identidade de gênero se destacam, são os principais fatores de risco para problemas de saúde mental. A literatura aponta para a relevância do apoio familiar nos casos de jovens transexuais (Coolhart & Shipman, 2017; Alegría, 2016; Dierckx et al., 2016; McConnell et al., 2015; Silva & Oliveira, 2015; Simons, et al, 2013).
O apoio familiar é compreendido como um fator de proteção para as crianças, podendo impactar positivamente na saúde mental e física delas, amenizando sintomas depressivos e ansiosos, assim como diminuindo tentativas de suicídio, autoagressão, uso e uso abusivo de álcool, tabaco e outras drogas (Coolhart & Shipman, 2017). Compreendendo tais implicações, o posicionamento de alguns pais, assim como demonstra Gray et al. (2016), é procurar proporcionar às crianças uma infância não estigmatizada, lutando por um mundo mais tolerante e acolhedor da diversidade.
A presença de um sentimento de pertença e uma maior vinculação com a família e amigos está correlacionada a um aumento na confiança, autoestima e maior qualidade de vida dos jovens trans (Simons, et al 2013; Romijnders et al, 2017). Aspectos qualitativos familiares como vínculos duradouros, acolhimento e aceitação das possibilidades da identidade de gênero são descritos como recursos fundamentais potentes em proporcionar uma maior capacidade da criança transexual para lidar com experiências estressantes (Schneeberger, et al., 2014).
A família deve permanecer em alerta quanto ao comportamento do filho trans ao mesmo tempo em que desempenha sua função de cuidado, um papel complexo que muitas vezes precisa de ajuda especializada. Coolhart e Shipman (2017) propõem um modelo de terapia familiar para famílias com crianças ou adolescentes transexuais ou não binários. A terapia consiste, sobretudo, em duas etapas. A primeira etapa propõe avaliar e intervir no sentido de aumentar a sintonia familiar e o nível de compreensão acerca das identidades trans, promovendo um ambiente compreensivo e acolhedor ao jovem transexual. Nesta etapa, os profissionais devem discutir com os pais acerca de pesquisas atuais sobre a população transexual, demonstrando justamente a importância do apoio familiar para a saúde mental dos filhos.
O profissional da saúde deve também oferecer escuta, acolhimento e reflexão para as angústias da família, promovendo um lugar para que possam ser elaborados os possíveis sentimentos de culpa ou decepção, constrangimento, ansiedade, raiva, preocupação, ou ainda questões como as levantadas por Katz-Wise et al (2017): dúvidas em relação ao tratamento hormonal e cirurgia de readequação, incertezas quanto à identidade trans dos filhos, preocupações sobre segurança física e emocional, enfim qualquer emoção ou pensamento que possa interferir negativamente no processo de aceitação e apoio ao filho, que é a segunda etapa.
A segunda etapa corresponde a explorar e apoiar a transição de gênero e a expressão acerca da identidade de gênero com a qual o jovem se identifica. A proposta é auxiliar a família na diluição de suas crenças e preconceitos sobre o gênero, expandindo o conhecimento sobre o assunto. Quanto ao jovem trans, ajudá-lo a explorar expressões de gênero que sejam confortáveis e congruentes para eles (Coolhart & Shipman, 2017).
O processo de trânsito ao sexo e/ou gênero podem trazer intenso sofrimento, assim como escancaram comportamentos e entendimentos preconceituosos ou negativos à transexualidade no núcleo familiar. Por outro lado, aspectos positivos da paternidade e maternidade de filhos lésbicas, gays, bissexuais ou transexuais (LGBTs) são retratados por Gonzalez, et al. (2013), identificando algumas oportunidades de crescimento e desenvolvimento pessoal dos pais a partir do vínculo com filhos que em algum nível rompem com a ordem hegemônica naturalizada do binarismo ao gênero e à sexualidade. Dentre os aspectos desvelados, a consciência de discriminação, compaixão e proximidade entre o filho e a família, foram alguns destaques positivos da mudança.
Para que o tratamento e auxílio profissional possam acontecer, é importante que os profissionais da saúde mental tenham uma formação qualificada para acolher o sofrimento e auxiliar o sujeito trans e sua família na transição (Levine et al, 2013). Os profissionais da saúde devem permanecer atentos para não reproduzir estereótipos binários de gênero que nada irão agregar ao cuidado clínico com jovens transexuais (Wiseman & Davidson, 2012). Assim como considera Zerbinati e Bruns (2017; 2018b), a necessidade de formação profissional se liga a educação sexual enquanto uma área multidisciplinar contemporânea que necessita de investimentos para adentrar na formação profissional de profissionais da saúde e também de educadores, assim como chegar às bases populares, à família, promovendo espaços de pertinentes diálogos emancipatórios acerca da sexualidade, rompendo com posturas autoritárias e rígidas.
Horizontes de compreensão: considerações finais
De modo geral os artigos apontam a necessidade de acolher a diversidade afetiva e sexual humana. A família, enquanto uma instituição de zelo e cuidado deve proteger e preparar a criança transexual para enfrentar os riscos e pré-conceitos de uma sociedade majoritariamente binária. Nesse caminho, a família é convidada a uma autoanálise e reflexão dos próprios preconceitos, mitos e fantasias relacionados ao gênero e a sexualidade.
Os achados aqui discutidos sugerem a atualidade da temática, ainda pouco discutida, assim como uma possível dificuldade social e econômica que impede uma maior representação de pesquisas em demais países, principalmente da América do Sul e América Central, países que urgentemente precisam se movimentar para compreender e intervir nos seus contextos de extrema violência transfóbica uma vez que correspondem a aproximadamente 80% das mortes de pessoas transexuais por transfobia no mundo7.
A pesquisa no âmbito da família de crianças transexuais é limitada. Apesar do aumento nas taxas de crianças transexuais, poucos estudos se concentram especificamente nessa etapa inicial do desenvolvimento trans e são ainda mais escassos quando a proposta é investigar a relação entre a criança e sua família, aspecto que corrobora os achados de Simons, et al. (2013); Gray et al. (2016) e Dierckx et al. (2016).
Nesse sentido, é importante pensar acerca de qual o lugar que a família vem ocupando na sociedade contemporânea. Sua importância para conter realidades violentas e excludentes estaria sendo negligenciada até mesmo pela ciência? Essas indagações sugerem a necessidade de ampliar, a partir de novas pesquisas, os achados aqui discutidos. Pesquisas futuras devem visar identificar os amplos aspectos da população transexual de diferentes culturas e compreender, em nível quantitativo e qualitativo, quais os sentimentos, desejos, idealizações e fantasias da família com filhos trans e como tais aspectos podem influenciar no cuidado e desenvolvimento dessas crianças e de suas próprias famílias.
A identidade de gênero é construída na interface com o ambiente disponível na infância e segue por todo ciclo do desenvolvimento humano. A criança com traços de uma identidade de gênero em trânsito deve ser acolhida e ter reconhecido sua espontaneidade à constituição desse aspecto de si-mesmo. Quando o ambiente familiar tem a disponibilidade para romper com as normas ao gênero, podem então promover um ambiente acolhedor para a constituição de uma identidade de gênero autêntica, na qual os modelos normativos nem sempre poderão servir como referência.
A partir desta revisão integrativa, foi possível atingir os objetivos propostos e compreender que, independentemente de sua organização ou orientação afetivossexual de seus membros, é dever específico da família assumir seriamente sua função de cuidado, responsabilizando-se em prover um ambiente suficientemente-bom para a constituição subjetiva, desenvolvimento e amadurecimento humano. Assim como compreende Butler (2003b), essa função da família se constitui a partir de práticas que emergem para “dirigir as formas fundamentais de dependência humana, que podem incluir o nascimento, a criação das crianças, as relações de dependência e apoio emocional, os vínculos de gerações, a doença, o falecimento e a morte (para citar alguns)”, ou seja, fundamentam e organizam todo o processo do viver.
O fator psicopatológico da população transexual desvela o sintoma de um ambiente rígido quanto aos modelos de gênero. Algumas vezes a família também precisará de ajuda e atenção especializada para que ela consiga cumprir sua própria função. Compete à sociedade, ao Estado, assim como às instituições de saúde e educação, auxiliar essas famílias para que o desenvolvimento psicossexual, mental e físico de seus membros aconteça da melhor maneira possível.
A família na contemporaneidade é convidada a se distanciar de uma compreensão rígida, normativa, estática e naturalizante ao gênero e sexualidade, para então se aproximar de uma compreensão que leve em conta os múltiplos contornos possíveis. A família com filhos trans é encorajada a legitimar e potencializar sua instância maior: a força das relações que se estabelecem no núcleo familiar.
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Endereço para correspondência
João Paulo Zerbinati
E-mail: joaopaulozerbinati@hotmail.com
Enviado em: 10/01/2018
1ª revisão em: 11/05/2018
2ª revisão em: 09/11/2018
Aceito em: 06/12/2018
1 Faculdade de Ciência e Letras, UNESP-Araraquara. Membro do grupo de pesquisa SexualidadeVida-USP/CNPq.
2 Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, USP-Ribeirão Preto. Faculdade de Ciência e Letras, UNESP-Araraquara. Líder do grupo de pesquisa SexualidadeVida-USP/CNPq.
3 Normas relacionadas à determinação e naturalização da existência de uma coerência entre o sexo de nascimento, a identidade de gênero e o desejo afetivossexual. Ao trazer o termo cisheteronormativo, a proposta é, assim como discutido por Jardim (2016), ampliar o termo heteronormatividade de modo a englobar também a cisnormatividade.
4 Médico endocrinologista alemão radicado nos EUA, pioneiro no trabalho com transexuais.
5 Psiquiatra estadunidense que introduziu o termo gênero na medicina.
6 Precursora da teoria queer.
7 Dados publicados pela ONG Transgender Europe no relatório “TMM annual report 2016”, recuperado de http://transrespect.org/wp-content/uploads/2016/11/TvT-PS-Vol14-2016.pdf.