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Pensando familias
versão impressa ISSN 1679-494X
Pensando fam. vol.24 no.1 Porto Alegre jan./jun. 2020
ARTIGOS
Relação entre irmãos: a percepção do primogênito
Relationship between siblings: the perception of the firstborn child
Emeline Pompeo da Silva1, I ; Michele Gaboardi Lucas2, I
I Universidade do Oeste de Santa Catarina, Campus Chapecó
RESUMO
O nascimento do segundo filho constitui, de maneira simultânea, o início da relação fraterna e do conflito intrageracional. O presente estudo investigou os impactos do nascimento do segundo filho para o primogênito, com ênfase em como ocorre a relação fraterna na perspectiva do irmão mais velho em idade adulta. A pesquisa teve cunho qualitativo com caráter exploratório. Assim, foram entrevistados seis primogênitos com idade entre vinte e quarenta anos, escolhidos a partir de sugestões de profissionais psicólogos da rede de contatos das pesquisadoras e por intermédio da técnica da bola de neve. A análise dos dados foi realizada de modo qualitativo, com base na análise de conteúdo. Constatou-se que o vínculo fraterno é uma relação estabelecida na continuidade do tempo. As lembranças partilhadas no decorrer da infância e da adolescência e as memórias da vivência familiar irão auxiliar na manutenção, ou não, do vínculo entre irmãos na vida adulta.
Palavras-chave: Primogênito, Segundo filho, Relação fraterna, Relações familiares.
ABSTRACT
The birth of a second child constitutes, simultaneously, the beginning of a fraternal relationship and an intragenerational conflict. This study investigated the impact of the second child’s birth on the firstborn, with emphasis on how the fraternal relationship occurs from the older sibling’s perspective in adulthood. The research was qualitative and exploratory. Thus, six firstborns aged between twenty and forty years old were interviewed, who were chosen from suggestions done by professional psychologists from the researcher’s business network and through the snowball technique. The interview with the participants was based on a semi-structured script with open questions related to the theme. Data analysis was performed qualitatively, based on content analysis. Findings showed that fraternal bond is a relation established over time. Memories shared during childhood and adolescence and family life memories will help in keeping (or not) the bond between siblings in adulthood.
Keywords: First-born, Second son, Fraternal relationship, Family relationships.
Introdução
A relação fraterna pode constituir um dos vínculos mais duradouros que se inicia na infância e persiste ao longo da vida de cada sujeito. Esse vínculo, que exerce um papel significativo no desenvolvimento emocional, representa um laboratório para as relações sociais que serão vivenciadas fora da família. Desse modo, entende-se que ser irmão mais velho é uma função atribuída, uma vez que o relacionamento fraterno só é possível com a chegada do segundo filho (Oliveira & Cerveny, 2010).
O nascimento do segundo filho simboliza um acontecimento marcante do ciclo vital familiar, uma vez que se define como uma etapa específica de transição que pode influenciar mutuamente nos subsistemas familiares. Para tanto, considerando que o ambiente familiar passa a exigir adequações e alterações nas relações entre pai, mãe e criança, especialmente na prática habitual de cuidados que a mãe destina ao primogênito, pesquisadores têm se empenhado para compreender as mudanças que esse evento provoca no âmbito familiar, bem como seus impactos no desenvolvimento de seus membros (Oliveira, 2006).
As repercussões da chegada do irmão para o primogênito tendem a ser mais significativas se comparadas aos efeitos sofridos pelos demais integrantes da família, devido às distintas reações e mudanças de comportamento. Contudo, ainda que existam alguns estudos acerca dos impactos do nascimento do segundo filho para as relações familiares e no modo de se comporta o irmão mais velho, destaca-se a escassez de pesquisa com ênfase nas implicações do processo de torna-se irmão para o primogênito (Oliveira, 2006).
Considera-se de grande importância dar continuidade na investigação sobre o assunto, visto que os estudos podem contribuir para a construção de propostas de intervenção junto às famílias que têm a necessidade de adaptar-se ao novo contexto. Frente ao exposto, esta pesquisa busca analisar a relação fraterna a partir da ótica do primogênito na fase adulta, de modo a destacar o vínculo estabelecido entre irmãos a partir do entendimento do irmão mais velho. Logo, a questão central de pesquisa que se apresenta é: como ocorre a relação fraterna na perspectiva do primogênito em idade adulta?
O presente estudo está estruturado em três partes, sendo que a revisão bibliográfica apresenta os principais conceitos e aspectos relevantes acerca da: relação fraterna, dinâmica familiar, ordem de nascimento e o significado de tornar-se irmão para o primogênito. O método descreve as características da pesquisa como estudo qualitativo. A análise de dados objetiva detalhar e interpretar as informações coletadas para atingir a compreensão de seus significados, com base na análise de conteúdo, conforme recomenda Bardin (2011).
A relação fraterna
O nascimento do segundo filho constitui, de maneira simultânea, o início da relação fraterna e do conflito intrageracional. Ao analisar o relacionamento fraterno deve-se considerar os aspectos partilhados entre irmãos, dado que a carga genética dos pais, a família, o contexto histórico, a camada social, as experiências e recordações são vivenciadas e divididas por mais tempo do que possivelmente com qualquer outro indivíduo. A convivência integra uma série de sentimentos e emoções associadas a elementos de natureza cultural, social e cognitiva, interligadas e difíceis de separar (Goldsmid & Féres-Carneiro, 2011).
O vínculo entre irmãos pode ser compreendido como o resultado de um processo de relação recíproca entre os sujeitos, construído e determinado por meio das trocas ajustadas entre os irmãos, satisfazendo suas distintas necessidades. Independente da forma que o relacionamento se define, isto é, calmo ou tempestuoso, satisfatório ou frustrante, confortante ou conflituoso, é por meio dele que os irmãos adquirem uma base com a qual se modela a vida de cada um (Oliveira & Cerveny, 2010).
Em constante transformação, as relações fraternas poderão se ressignificar ao longo da vida, revelando seu caráter duradouro e dinâmico. Oliveira e Cerveny (2010) definem a relação fraterna enquanto vínculo afetivo como uma ligação duradoura que tende a permanecer mesmo em situações de separação ou afastamento causadas pelo tempo e pela distância. Assim, o entendimento das autoras relaciona-se com o desejo dos irmãos em conviver de forma íntima e familiar, assim como a tristeza em decorrência da distância ou perda.
Com o estabelecimento da relação fraterna, o primogênito sente-se deslocado do lugar privilegiado e único que, até o momento, ocupava na relação com seus pais. Para Goldsmid e Féres-Carneiro (2011), o irmão representa um papel relevante na formação do sujeito, maior do que a competição pelo amor materno e paterno pode sugerir. Assim, verifica-se que o ciúme tem relevância na construção da personalidade: o outro possibilita a definição das particularidades de cada irmão, por intermédio da percepção de semelhanças e diferenças existentes.
Nesse contexto, a relação entre irmãos é considerada como parte integral do mundo social de grande parte das crianças, viabilizando oportunidades para o companheirismo, o apoio emocional, assim como a competição e a rivalidade. Por meio das experiências de conflito e de suas resoluções, os irmãos podem colaborar com o crescimento uns dos outros, desenvolvendo competências que não seriam adquiridas na ausência de divergências (Pereira & Lopes, 2013).
O primogênito e a experiência de tornar-se irmão
O nascimento de um membro do sistema familiar, principalmente a inclusão do segundo filho, é caracterizada como uma etapa de ajustamento, que pode resultar em alterações emocionais e comportamentais no primogênito e, também, em seus pais. Para tanto, esse momento de transição implica em consequências imediatas na interação entre pai, mãe e criança, influenciando no desenvolvimento emocional e cognitivo infantil (Oliveira & Lopes, 2010).
A chegada do irmão, para o primogênito, representa uma profunda mudança no ambiente social e na dinâmica familiar, anteriormente considerada estável. Conforme Pereira e Piccinini (2011a), a experiência retrata uma realidade frequente para muitas crianças, sendo considerada uma das fases mais estressantes do início da infância. Além disso, entende-se que o nascimento do segundo filho acarreta em consequências dramáticas sobre o modo de se comportar do primogênito.
De maneira geral, o período anterior ao nascimento do irmão constitui uma etapa repleta de adequações e apreensões entre os familiares. Para Pereira e Piccinini (2011a) alterações na postura do primogênito são percebidas durante a gestação, especialmente nos casos de crianças com idade pré-escolar. Entende-se que a vivência do primogênito em tornar-se irmão é subjetiva e pode variar, sendo que a intensidade dos comportamentos manifestados corresponde a uma troca reciproca entre questões pessoais, biológicas, situacionais e relacionais.
Nesse sentido, Oliveira e Lopes (2010) defendem a ideia de que ao investigar as implicações emocionais da chegada de um segundo filho para o primogênito, deve-se considerar o impacto significativo desse evento para o sistema familiar, dado que o acontecimento demanda inúmeras adaptações por parte dos membros da família e de certas mudanças nas distintas interações entre eles. Por conseguinte, a relação mãe-primogênito inclina-se a estar mais sensível em razão das necessidades básicas do bebê exigirem os cuidados contínuos da mãe, que passa a não estar totalmente disponível para o primogênito.
A esse respeito, Pereira e Piccinini (2011b) expõem que as mudanças ocorrem tanto de forma comportamental como de forma abstrata, abrangendo as emoções e percepções dos sujeitos envolvidos. A presença e interação dos pais e a qualidade do convívio afetivo são aspectos afetados durante a adaptação, na medida em que os comportamentos regressivos do primogênito seriam estratégias para resgatar as interações e a atenção dadas a ele anteriormente.
Conforme Oliveira e Lopes (2013), dentre as reações comumente observadas no primogênito, as ações regressivas e de crescimento podem constituir uma das mais significativas manifestações da fase de ajustamento, visto que esses movimentos dão início ao processo de independência da criança. Diante disso, as autoras asseguram que as variações entre regressão e crescimento são aceitáveis e características do processo de amadurecimento, sendo, desta forma, perfeitamente saudáveis.
Nessa perspectiva, percebe-se que o início do processo de tornar-se irmão pode arruinar, de maneira temporária, a confiança do primogênito, que passa a solicitar maior apoio e atenção dos genitores. Vulnerável a todas essas transições, a criança precisa lidar com a nova dinâmica familiar e assumir o papel de irmão mais velho. Assim, mesmo antes do bebê nascer, informações de que o primogênito irá cuidar do irmão ou de que ele será seu novo companheiro de brincadeiras, proporcionam ideias concretas sobre como ser irmão mais velho (Oliveira, Pereira, Lopes, Bandeira & Piccinini, 2015).
Com isso, é possível perceber que o nascimento do segundo filho requer adaptações não somente para o primogênito, mas para todos os membros da família, dado que o acontecimento pode trazer um desequilíbrio ao sistema familiar. Dando sequência, passa-se a apresentar as implicações do nascimento do segundo filho na dinâmica familiar, sob a ótica do primogênito.
O nascimento do segundo filho e as relações familiares
No momento em que a família recebe um novo membro, há grandes possibilidades de que essa mudança gere um aumento na tensão familiar, uma vez que traz consigo a necessidade de uma reformulação de papéis e novas regras de funcionamento. De modo específico, a chegada do segundo filho representa um evento marcante no desenvolvimento da família, em que cada membro e, em especial, suas relações, vivenciam o momento de transição de maneira distinta (Piccinini, Pereira, Marin, Lopes & Tudge, 2007).
Para os autores, o nascimento do segundo filho constitui uma fase de expansão do sistema familiar e é apontado como qualitativamente diferente do nascimento do primeiro. O casal, que anteriormente adotou a função parental com o nascimento do primogênito, precisa, agora, apontar as diferenças e evidenciar as particularidades de cada criança, assumindo o papel de pais de dois filhos.
Como explana Ramos e Canavarro (2007) o nascimento de um filho não deve ser julgado como um momento de crise, mas como um evento significativo na vida do casal, previsível e normativo, mas que provoca uma reorganização e adaptação. Em alguns casos, o acontecimento pode simbolizar algo perturbador e indutor de elevados níveis de estresse. No entanto, apesar das grandes transformações que ocorrem na família, nem todos os membros interpretam e dão um sentido negativo a essas mudanças.
Por outro lado, referente a ordem de nascimento, McGoldrick, Gerson e Petry (2012, p. 125) evidenciam que “ser o primeiro a nascer pode se tornar uma bênção conflitante”. Como resposta aos desejos dos pais e com o início da nova família, o primogênito pode receber uma intensidade de atenção que, eventualmente, é negada ao segundo filho. Ainda, há grande probabilidade de que o filho mais velho seja considerado o mais responsável e atencioso da família, pois tende a assumir o compromisso pelo outro (Mcgoldrick et al., 2012).
Da mesma maneira, percebe-se que a constituição dos papéis familiares ocorre a partir das funções atribuídas a cada membro, de acordo com a posição que ocupa nos subsistemas conjugal, fraterno e parental. Segundo Martins et al. (2008) quando cada membro reconhece e realiza seu próprio papel, a família torna-se facilitadora do bem estar físico e psicológico de seus integrantes. Por essa razão, a integração familiar deve objetivar o desenvolvimento saudável de todos os seus componentes.
Conclui-se, dessa forma, que em função do nascimento do segundo filho, tanto o primogênito quanto os demais membros que vivenciam a chegada da criança, passam por um grande desgaste físico e emocional, sendo, portanto, de extrema importância a formação de uma rede de apoio familiar. Para tanto, é válido o entendimento da saúde a partir das relações entre os indivíduos que compõem o sistema familiar, sua dinâmica e estrutura, elementos que atuam como facilitadores ou desfavoráveis na determinação do bem-estar de seus membros (Martins et al., 2008).
Posição de nascimento dos irmãos
A posição de nascimento dos irmãos refere-se à ordem ocupada pelos diferentes filhos de uma mesma família de acordo com a idade de cada um. O psiquiatra austríaco Alfred Adler é considerado um dos primeiros teóricos a pressupor que a posição ocupada na família exerce influências sobre a personalidade do sujeito, ainda que não tenha executado pesquisas controladas para analisar tais influências (Vasconcellos, Valentini, Hauck Filho & Hutz, 2014).
Nichols e Schwartz (2007) expõem que conforme a posição ocupada no sistema familiar, os irmãos desenvolvem características de sua personalidade. Os primogênitos inclinam-se a reconhecer o poder e a autoridade, utilizando a altura e força para preservar sua posição na família. Em contrapartida, os que nascem depois tendem a se identificar com os oprimidos, tornando-se abertos a novas experiências. Essa receptividade os ajuda a encontrar um lugar não ocupado ou preenchido por outro membro da família.
De acordo com Sampaio (2007, p. 150), “quando na família há apenas um filho, ele recebe todo o investimento dos pais. Quando há dois filhos, a soma total do investimento será a mesma entre eles, embora o momento que o investimento ocorra varie”. Desse modo, o primeiro filho recebe maior atenção quando tem menos idade, no período que antecede o nascimento do irmão; ao passo que o segundo recebe mais de seus pais na medida em que o primogênito cresce e não demanda tanto investimento, podendo, até mesmo, não residir no mesmo domicílio (Sampaio, 2007).
Diante disso, os primogênitos têm maior possibilidade de escolha quanto aos papéis e identidades que viabilizam a aquisição dos recursos sociais e materiais que estão à disposição da família e, na medida que o fazem, diminuem as possibilidades de escolha dos mais jovens, que tendem a optar por papéis ainda não ocupados ou a criar opções diferentes. Ao desenvolver aptidões e interesses distintos, os irmãos reduzem a competição direta e continuam disputando pelo investimento dos pais (Magalhães, 2009).
Do mesmo modo, verifica-se que a atribuição de papéis está diretamente relacionada com a ordem de nascimento. Há uma maior identificação do primogênito com seus pais, como também há grandes expectativas destes em relação ao filho mais velho. Já o mais novo tende a considerar tanto os pais quanto o irmão mais velho como modelos válidos de identificação. Assim, os pais atribuem papéis aos filhos; os filhos designam a si próprios seus papéis; os filhos concedem papéis uns aos outros (Fernandes, 2000).
Apesar de sua relevância na construção da personalidade, a posição de nascimento dos irmãos não deve ser considerada uma medida absoluta no desenvolvimento humano; outros elementos podem interferir: as expectativas dos pais, a maneira como cada indivíduo interpreta as tarefas que lhe serão atribuídas e a forma como percebe a herança psíquica herdada dos pais. Ainda, outras pessoas da família têm importância no processo de identificação, como, por exemplo, os avós, tios e outros familiares que poderão estar presentes para um filho e ausentes para outro (Goldsmid & Féres-Carneiro, 2007).
Portanto, conclui-se que a ordem de nascimento constitui um fator diferenciador dos irmãos, especialmente pelos papéis atribuídos a cada posição fraternal, pelas expectativas parentais e pelos processos de identificação decorrentes da relação entre pais e filhos. Segundo o psiquiatra americano Murray Bowen, o perfil de personalidade representa apenas um modelo de referência e há diversas circunstâncias que podem fazer alterar a posição fraterna. Assim, é evidente que o desenvolvimento da personalidade não depende, unicamente, desses aspectos relacionados com o “status fraternal”. As particularidades da relação com os genitores, a conduta e as expectativas destes e a variedade de acontecimentos da vida familiar, irão influenciar, e muito, na personalidade de cada sujeito (Fernandes, 2000).
Procedimentos metodológicos
Analisar a relação fraterna a partir da ótica do primogênito na fase adulta é a tarefa central a que se propôs esse estudo e, para tal objetivo, optou-se pela abordagem de pesquisa qualitativa (Neves, 1996), do tipo exploratória (Gil, 2002).
Os participantes desta pesquisa foram seis primogênitos com idade entre vinte e quarenta anos, faixa etária definida por Bee (1997) como adulto jovem, selecionados por conveniência, a partir de sugestões de profissionais psicólogos da rede de contatos da pesquisadora e por intermédio da técnica bola de neve. Ter um único irmão mais novo constituiu o principal critério de inclusão.
A pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética da Universidade do Oeste de Santa Catarina, sob número 72852417.4.0000.5367. Após aprovação, realizou-se a triagem da amostra indicada pelos psicólogos da rede de contatos da pesquisadora e contato telefônico com os possíveis participantes a fim de divulgar os objetivos da pesquisa. Diante do interesse em participar do estudo, definiu-se o local para a realização da entrevista. Na data da entrevista, os objetivos da pesquisa e seus procedimentos foram novamente informados. Ainda, apresentou-se o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido e o Termo de Autorização de Uso de Gravação de Voz. Com base no aceite, coletou-se a assinatura dos participantes.
Como técnica de investigação científica em Psicologia, a entrevista é um instrumento de fundamental importância na análise e observação da subjetividade de cada sujeito (Bleger, 1998). A entrevista realizada com os participantes baseou-se em um roteiro semiestruturado com dez perguntas abertas relacionadas ao tema. As questões buscaram compreender a rotina familiar atual (ou como era, caso não residisse mais com o irmão), as mudanças percebidas com o nascimento do irmão, a descrição da relação fraterna nas diferentes etapas da vida, bem como o significado do relacionamento atribuído por cada sujeito.
Por meio da técnica da bola de neve (snowball) a pesquisadora recebeu novas indicações de possíveis participantes (Freitas, Oliveira, Saccol & Moscarola, 2000). Conforme Baldin e Munhoz (2011), essa técnica de amostragem é utilizada em pesquisas onde os participantes iniciais de um estudo fazem a indicação de outros possíveis participantes, até que o número de sujeitos previstos seja alcançado.
A análise dos dados foi realizada qualitativamente, com base na análise de conteúdo (Bardin, 2011), descrevendo e interpretando as informações coletadas para atingir a compreensão de seus significados. As categorias de análise foram definidas a partir das informações obtidas nas entrevistas, sendo que a seleção dos temas abordados contribuiu para a organização das categorias que visavam atender aos objetivos da pesquisa.
Apresentação e análise dos dados
Primeiramente, apresentam-se os dados para a caracterização da amostra de participantes da pesquisa, para preservar o anonimato dos sujeitos optou-se por nomeá-los como: sujeito 1, 2, 3, 4, 5 e 6.
Por meio da análise de conteúdo das entrevistas, visando atender aos objetivos da pesquisa, classificou-se os dados em categorias temáticas. A primeira categoria busca analisar as mudanças percebidas pelo primogênito após a chegada do irmão; a segunda categoria pretende verificar as implicações do nascimento do segundo filho na dinâmica familiar na perspectiva do primogênito; a terceira categoria procura compreender o significado de tornar-se irmão mais velho; a quarta categoria visa entender a relação fraterna a partir da ótica do primogênito na fase adulta; e por fim, a quinta categoria objetiva explorar as diferenças entre os irmãos.
Mudanças após a chegada do irmão
Quando questionado sobre as mudanças percebidas após o nascimento do irmão, os sujeitos 1, 4, 5 e 6 afirmaram que a alteração mais perceptível está relacionada com o aprender a dividir. No que diz respeito ao ato de dividir, Pereira e Lopes (2013) apresentam que o relacionamento fraterno carrega consigo muitos desafios, incluindo o de compartilhar os espaços físicos da casa, os pertences de cada um e, mais do que isto, o de dividir o cuidado, a atenção e o afeto dos genitores.
Diante do exposto, verifica-se que a afirmação dos autores é constatada na fala do sujeito 4, no momento em que diz: “A primeira coisa que mudou foi que eu não tinha mais a atenção exclusiva de meus pais. Certas regalias, certos mimos, certas coisas que eu, privilégios que eu tinha, deixaram de existir com o nascimento do meu irmão; porque a partir daquele momento tudo tinha que ser dividido, as atenções, os brinquedos, as brincadeiras, tudo passou a ser dividido”.
Outro aspecto observado na fala dos entrevistados refere-se ao ciúme do irmão mais novo, sendo que tal análise pode ser exemplificada por meio da exposição dos sujeitos 2, 4 e 6. O sujeito 2 afirmou: “no começo eu senti um pouco de ciúme e acho que isso é normal com a chegada do irmãozinho”. Já o sujeito 4 disse: “eu lembro que minha mãe dizia que eu tinha muito ciúme dele, quando ele nasceu”. E ainda, o sujeito 6 declarou que: “quando ela nasceu eu não queria ter outra irmã, tive ciúme, eu queria ser filha única”.
A partir desses trechos das entrevistas, percebe-se ser habitual as demonstrações de ciúmes como resposta ao nascimento do segundo filho. Goldsmid e Féres-Carneiro (2011) entendem que o ciúme pode ser importante na medida em que contribuiu na construção da personalidade: o outro possibilita a definição das particularidades de cada irmão, por intermédio da percepção de semelhanças e diferenças existentes.
Apenas o sujeito 1 expressou comportamentos de regressão com a chegada do irmão: “[...] lembro que tomava mamadeira até um certo tempo, a minha irmã nasceu e eu quis tomar mamadeira de novo, eu quis chupar bico de novo, coisas assim”. O discurso do sujeito 1 condiz com os estudos de Oliveira e Lopes (2013), que apontam o comportamento de regressão como algo totalmente saudável, provisório e reversível, simbolizando uma resposta à tensão de uma situação específica.
Compreende-se, portanto, que o nascimento do irmão pode evidenciar um processo de ir e vir benéfico em que o sujeito tem a capacidade de gerir e se adaptar às atuais demandas e situações estressantes. Diante disso, o processo de amadurecimento requer momentos de regressão e outros de crescimento, sendo que as conquistas são gradativas e só podem ser alcançadas uma após a outra (Oliveira & Lopes, 2013).
Dinâmica familiar
De maneira geral, todos os entrevistados consideram a convivência familiar agradável e positiva. O sujeito 1 manifestou que a principal consequência observada no dia a dia da família, após o nascimento do segundo filho, foram as adaptações que o novo membro exigia, pois, segundo ela, “passou a ser diferente porque tudo era para duas, meus pais pensavam tudo para duas meninas”. Por isso, é válido destacar as considerações de Ramos e Canavarro (2007), pois apesar das grandes transformações que ocorrem na família, nem todos os membros interpretam e dão um sentido negativo a essas mudanças.
Nesse contexto, o sujeito 2 relatou que a chegada do irmão “só acrescentou coisas boas”, já que seus pais procuravam suprir de modo justo e igualitário as necessidades de cada filho. Desse modo, identifica-se que a percepção exposta está em concordância com os estudos de Pereira e Piccinini (2011a), em que crianças relativamente mais velhas dispõem de habilidades cognitivas e sociais mais bem desenvolvidas que lhes viabilizariam compreender e aceitar certas mudanças familiares.
Com relação ao momento de transição, logo na descoberta da chegada do irmão, Oliveira (2006) estabelece que o primogênito pode vivenciar esse período com grande estresse, uma vez que o nascimento do irmão pode abalar a sua relação com a mãe. O sujeito 6 externalizou seu momento de ajuste às alterações na qualidade e na quantidade do tempo e da atenção a ele destinados pelos pais: “quando ela chegou foi um susto e depois foi mais tranquilo [...] acho que o pior foi saber que minha mãe estava grávida”.
A presença do segundo filho, conforme explana Freitas (2008), tende a exigir mais tempo, energia e recursos financeiros dos genitores. Contudo, a maneira como a família se organiza para receber o novo membro pode constituir uma fonte potencial de benefícios para o desenvolvimento emocional do primogênito. Esse progresso foi observado na fala do sujeito 4: “da minha parte houve uma reflexão sobre essa questão do papel do irmão [...] penso que houve mais coisas positivas do que negativas, pois eu tive que aprender a dialogar com o outro”. Assim sendo, nota-se que o nascimento do irmão pode influenciar no crescimento e ajustamento emocional da criança (Freitas, 2008).
Significado de tornar-se irmão mais velho
Todos os entrevistados relacionaram o significado de tornar-se irmão mais velho com a atitude de dar exemplo. A esse respeito, o sujeito 2 afirmou que: “ser irmão mais velho significa passar algo, contribuir com nossas experiências, dar o exemplo, ajudá-lo em situações que ele precisa de auxilio”. Da mesma maneira, o sujeito 1 reconheceu que ser irmão mais velho requer responsabilidade, definindo-se como alguém que precisa, a todo o momento, ser exemplo: “eu vejo que o irmão mais novo se espelha no mais velho e por isso é importante passar algo bom”.
Para Serra e Mota (2013), os irmãos exercem funções de cuidado, de amizade e são figuras de suporte no decorrer da vida. Por meio da mútua socialização, de atitudes de auxílio, de tarefas colaborativas e de companheirismo, os irmãos possuem um papel de grande influência na vida uns dos outros. Portanto, os irmãos que conseguem estabelecer uma relação positiva tendem a compartilhar mais frequentemente suas experiências, ampliando as oportunidades de aprendizado.
Ainda, de acordo com as autoras, o irmão mais novo poderá utilizar as vivências do irmão mais velho como suporte para explorar o ambiente. Tal afirmativa pode ser comprovada através da resposta do sujeito 5 ao ser questionado sobre o significado de ser irmão mais velho: “tudo o que meu irmão está passando agora eu já passei [...] e por isso tento passar para ele alguma coisa que eu acho que fiz de errado, tento ajudar. Me sinto responsável pelo que ele faz, responsável por orientar ele como fazer”.
O sujeito 3 afirmou que o irmão mais velho “é sempre o que toma a frente das situações e que desbrava primeiro as coisas na família”, corroborando com o sentido que Goldsmid e Féres-Carneiro (2007) conferem ao comportamento do primogênito: alguém que se percebe como “plano-piloto” da família, como exemplo para os irmãos e herdeiro da liderança familiar. Por esse motivo, conforme explana Ortega (1985), o papel do primogênito não é considerado simples, tendo em vista que frequentemente lhe são confiadas grandes responsabilidades.
Relação fraterna
Todos os primogênitos entrevistados definiram a relação fraterna como benéfica. Seja pelo fato de os irmãos dividirem suas conquistas e problemas, seja pela necessidade de estarem juntos em momentos importantes. O sujeito 1 destacou os aspectos relevantes de sua convivência com o irmão: “eu agrego a vida dela e ela a minha, eu aprendo com ela e ela comigo, é uma relação de irmãos mesmo, aprendemos juntas, dividimos problemas, felicidades”.
Da mesma maneira, os sujeitos 4 e 5 manifestaram a seguinte opinião sobre a relação com o irmão: “é uma relação saudável, neutra e pacífica, em que cada um entende o ponto de vista do outro e cada um entende o espaço do outro” (sujeito 4); “eu sinto a necessidade de cuidar, de incentivar [...] tento a todo o momento ajudar” (sujeito 5). Percebe-se, desse modo, que para os entrevistados o irmão simboliza a existência de um apoio potencial. O afeto, o companheirismo e o bem-estar são características que podem fazer parte do relacionamento fraterno. O bem-estar não está apenas associado à rede de suporte emocional e social que um irmão pode possibilitar ao outro, mas especialmente a lembrança construída por eles de modo compartilhado (Muniz & Féres-Carneiro, 2012).
O sujeito 3 foi o único que expressou que gostaria de ser mais próximo do irmão: “às vezes poderíamos ser mais próximos. Acho que [...] ou por causa dos horários, a rotina, mas também um pouco por esse perfil dele mais isolado, de não buscar tanto as coisas, de querer fazer ou se dispor a fazer, isso já dificulta um pouco”. A explicação dada pelo participante relaciona-se com a pesquisa de Goldsmid e Féres-Carneiro (2007), tendo em vista que na idade adulta pode ocorrer um distanciamento entre os irmãos, uma vez que cada um percorre seu caminho, iniciando sua trajetória profissional e constituindo seu próprio núcleo familiar.
Em virtude dos aspectos mencionados, conclui-se que o contexto familiar no qual os irmãos estão inseridos representa um elemento de grande influência na relação fraterna. As crenças, princípios morais, expectativas e hábitos familiares interferem na qualidade do relacionamento e na forma com que os sujeitos irão idealizar seus próprios papéis como irmãos. Além disso, a personalidade de cada irmão é um fator importante a ser considerado (Oliveira & Cerveny, 2010).
Diferenças entre os irmãos
A entrevista realizada com os participantes da pesquisa possibilitou o reconhecimento de algumas características da personalidade dos primogênitos. A esse respeito, o sujeito 5 declarou: “é que na verdade, o que eu reparo, é a questão de que eu sempre fui uma pessoa mais responsável que meu irmão, eu acho justo meus pais se preocuparem mais com ele do que comigo porque o perfil dele exige mais cuidados”. Ao revelar seu entendimento sobre as diferenças entre os irmãos, foi possível observar que o sujeito 5 encontra-se em uma posição mais elevada e com maiores responsabilidades, conforme exposto por Goldsmid e Féres-Carneiro (2007) e McGoldrick et al. (2012) em seus estudos.
Do mesmo modo, os sujeitos 4 e 6 determinaram que seu comportamento é marcado por ações responsáveis e prudentes, destacando a preocupação em proporcionar bons exemplos aos irmãos. Para Fernandes (2000), se por um lado o comportamento de liderança do primogênito pode ser explicado por uma maior identificação com os genitores, ou seja, com o poder e a autoridade, por outro lado, em virtude da influência que exerce sobre a fratria, é capaz de exercitar o papel de orientador do irmão mais novo.
Os sujeitos 1 e 2 também destacaram as diferenças percebidas entre os irmãos: “enquanto eu sou um pouquinho mais centrada, prudente e madura nas atitudes, ela é mais elétrica, ousada, mais ansiosa” (sujeito 1); “entendo que me preocupo mais em seguir as orientações de meus pais do que meu irmão” (sujeito 2). Verifica-se a equivalência nas respostas dos participantes 1 e 2 com a pesquisa de Magalhães (2008), na qual o primogênito é apontado como alguém que acaba definindo o ritmo para o mais jovem, que é instigado a alcançá-lo. Enquanto o primeiro preocupa-se com as regras a seguir, o segundo está inclinado a tendências inovadoras.
Assim sendo, de acordo com Fernandes, Alarcão e Raposo (2007) as primeiras experiências vivenciadas entre irmãos poderão moldar, inclusive durante a vida adulta, o modo de agir e de pensar de cada sujeito. Para os irmãos mais velhos, até mesmo pelo fato de serem “destronados”, a fratria que lhes segue transforma-se em um contexto de fundamental importância para o seu crescimento futuro, dado que a relação fraterna viabiliza o sentimento de comunidade que é essencial para o desenvolvimento do caráter.
Conclusão
Com o presente estudo, foi possível perceber que o vínculo fraterno é uma relação estabelecida na continuidade do tempo. As lembranças partilhadas no decorrer da infância e da adolescência e as memórias da vivência familiar irão auxiliar na manutenção, ou não, do vínculo entre irmãos na vida adulta. Assim, acredita-se que a relação fraterna é de fundamental importância, tanto na formação da vida psíquica como na constituição da vida social do sujeito.
De forma a contribuir com o estudo da relação fraterna a partir da ótica do primogênito na fase adulta, verificou-se que a vivência da relação entre irmãos e seus modelos vinculares resultantes dessa ligação, como por exemplo, rivalidade, afeto e cumplicidade, responsabilidade pelo outro, impulso de domínio, entre outros, tendem a ser reproduzidos ao longo da vida dos sujeitos. Os irmãos têm discernimento das distintas características de sua personalidade por terem experienciado juntos sentimentos e divergências ao longo dos anos na intimidade da vida familiar.
O significado de tornar-se irmão mais velho para os entrevistados está atrelado com a atitude de dar exemplo. Na percepção do primogênito, as expectativas dos genitores são frequentemente muito elevadas. Muitas vezes são lhe dadas responsabilidades e espera-se que o primeiro filho seja capaz de cumpri-las. Além disso, o primogênito inclina-se a estar disponível para o irmão em situações difíceis, colocando-se à disposição. Essa postura oportuniza o desenvolvimento de aprendizagens recíprocas e crescimento individual.
Constatou-se, por meio da pesquisa, que os impactos do nascimento do segundo filho para o primogênito estão relacionados com a divisão dos espaços físicos da casa, do compartilhamento dos pertences e, de modo especial, da ausência de atenção exclusiva dos genitores. Com relação às implicações do nascimento do segundo filho na dinâmica familiar na perspectiva do primogênito em idade adulta, observou-se que a principal consequência diz respeito às adaptações que o novo membro demanda. Por isso, destaca-se a importância da complementaridade entre os genitores na busca pela adaptação familiar.
Ainda, como consequência, o estudo possibilitará reflexões importantes para o trabalho clínico do terapeuta de família, na medida em que a pesquisa com adultos oportunizou a identificação de uma visão positiva acerca da relação fraterna, que constitui um aspecto importante no desenvolvimento das habilidades sociais, apesar dos desafios e mudanças que contemplam a contemporaneidade.
Sendo essa uma pesquisa de caráter qualitativo, não se pretende generalizar os resultados. Portanto, sugere-se a realização de novas pesquisas relacionadas à percepção do primogênito acerca da relação entre irmãos. Espera-se, com a presente discussão, estimular novos estudos que possam contribuir para o entendimento da relação fraterna a partir da ótica do primogênito na fase adulta e, sobretudo, para compreensão do significado de tornar-se irmão mais velho e os efeitos observados na dinâmica familiar a partir do nascimento do segundo filho.
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Endereço para correspondência
Emeline Pompeo da Silva
E-mail: emelinepompeo@hotmail.com
Michele Gaboardi Lucas
E-mail: michele.lucas@unoesc.edu.br
Enviado em: 31/01/2019
1ª revisão em: 24/05/2020
Aceito em: 25/06/2020
1 Acadêmica de Psicologia da Universidade do Oeste de Santa Catarina, Campus Chapecó.
2 Mestre; Professora Orientadora; Docente da Universidade do Oeste de Santa Catarina, Campus Chapecó.