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Pensando familias

versão impressa ISSN 1679-494X

Pensando fam. vol.25 no.2 Porto Alegre dez. 2021

 

ARTIGOS

 

Investigações sobre a maternagem: comparando mães multíparas e primíparas na interação mãe-bebê

 

Investigations on motherhood: comparing multiparous and primiparous mothers in mother-baby interaction

 

 

Marcelo Gonçalves da Silva1, I ; Veronica Aparecida Pereira2, II ; Olga Maria Piazentin Rolim Rodrigues3, III

I Hospital Universitário da UFGD
II
Universidade Federal da Grande Dourados
III Universidade Estadual Paulista (Unesp)

Endereço para correspondência

 

 


RESUMO

A maternagem é apresentada como um processo de aprendizagem do comportamento de cuidado dos filhos em contextos de mulheres que optam pela maternidade. Diante disso, as mães multíparas teriam respostas mais positivas na interação com seus filhos pequenos? Para responder a essa questão buscou-se comparar a interação mãe-bebê entre mães primíparas e multíparas. Participaram do estudo 65 díades mâe-bebê (G1: 34 primíparas; G2: 31 multíparas). Utilizou-se o Paradigma Experimental Face-To-Face-Still-Face (FFSF) para análise da interação diádica com registros de vídeos de até nove minutos divididos em episódios (1 - play; 2 - não interativo – Still Face; e 3 - reunião). Os comportamentos foram registrados em protocolos, categorizados em Orientação Social Positiva – OSP - e Orientação Social Negativa – OSN - para a díade; e autorregulação - para os bebês. As médias observadas durante os episódios do FFSF foram comparadas a partir do teste t de Student. Houve diferença significativa na categoria OSP do episódio play, com médias superiores para mães multíparas. As mães primíparas tiveram mais dificuldade para retomada da interação, no episódio de- reunião. Os dados confirmaram resultados observados em pesquisas de autorrelato, indicando que a experiência prévia da maternagem favorece respostas mais efetivas tanto no inicio da interação como na retomada. Sendo a maternagem um comportamento aprendido, outros familiares podem igualmente desenvolver comportamentos de cuidado, compartilhando a alegria e a responsabilidade dos cuidados parentais.

Palavras-chave: Maternagem, Vinculação mãe-bebê, Família.


ABSTRACT

Motherhood is presented as a process of learning the behavior of caring for children in contexts of women who choose maternity. In this condition, would multiparous mothers have more positive responses when interacting with their babies? To answer this question, we sought to compare the mother-infant interaction between primiparous and multiparous mothers. 65 mother-baby dyads participated in the study (G1: 34 primiparous; G2: 31 multiparous). The Experimental Face-To-Face-Still-Face (FFSF) Paradigm was used to analyze the dyadic interaction with video records of up to nine minutes in three episodes (1 - play; 2 - non-interactive - Still Face; and 3 - meeting). The behaviors were recorded in protocols, categorized as Positive Social Orientation - OSP - and Negative Social Orientation - OSN - for the dyad; and self-regulation - for babies. The averages observed during the FFSF episodes were compared using the Student's t test. There was a significant difference in the OSP category of the play episode, with higher averages for multiparous mothers. Primiparous mothers found it more difficult to resume interaction in the meeting episode. The data confirmed results observed in self-report surveys, indicating that the previous experience of motherhood favors more effective responses both at the beginning of the interaction and at the resumption. Mothering is a learned behavior, therefore, other family members can also develop care behaviors, sharing the joy and the responsibility of parental care.

Keywords: Motherhood, Mother-baby bonding, Family.


 

 

Introdução

No século XXI observou-se a presença feminina na maioria das atividades laborais, no entanto a mulher ainda permanece como principal responsável pelo cuidado dos filhos (Baluta & Moreira, 2019). Essa condição concentra múltiplos papéis, em contextos que ainda reforçam a concepção de maternidade como algo natural, atrelando a condição feminina uma habilidade inata para o exercício da maternagem (Tomaz, 2015).

Essa visão sobre a habilidade materna esteve presente principalmente nos movimentos higienistas do final do século XVIII, que defendia a valorização da mulher a partir da utilidade educativa, associada ao fortalecimento da instituição família (Donzelot, 1980). Ela passa a ser moralmente responsável pelos filhos, se tornando a principal fonte de afeto e proteção, construindo e reforçando o mito do amor materno, concebido de forma instintiva (Badinter, 1985). Segundo a autora, esse mito foi incorporado na representação da mulher e no seu status social como parte integrante da sua natureza. Nesse contexto, uma das principais transformações da concepção da maternidade foi o fato de a mulher amamentar o próprio filho e disponibilizar cuidados essenciais a sua sobrevivência. Essa proximidade favoreceu as trocas afetivas entre mãe e bebê que ganharam importância. (Lanzetta, 2016). Porém, as ideias sobre o cuidado feminino, centradas na condição de gestação e amamentação, acabaram por considerar o vínculo como algo essencialmente biológico (Alzuguir & Nucci, 2015).

Exigiu-se, então, que a mulher não fosse somente aquela quem gerava e dava a luz ao bebê, mas que garantisse alimentação, educação e que lhe transmitisse os valores morais. A partir de então, prevaleceu socialmente a “ideia de maternidade como elemento definidor da condição de feminilidade”. (Vasques, 2014, p. 105) Nesse contexto histórico, o ideal de mulher-mãe teve na maternidade a condição básica para a estruturação da identidade feminina (Machado et al., 2019).

No contexto atual a maternidade passa por outras elaborações teórico-práticas, deixando, em grande parte das culturas, de ser uma obrigação da mulher. Nesse sentido, é reconhecida como um direito social, modulado por expectativas sociais e para quem pode e quer ser mãe, observando o período e o contexto sociocultural de cada família e, principalmente, a condição de cada mulher. (Santos et al., 2019)

Essas mudanças requerem o reconhecimento da possibilidade de que existam, pelo menos três grupos de mulheres. No primeiro grupo estão aquelas que se realizam na maternidade, fazendo deste seu principal papel ou agregando-o, satisfatoriamente, a outros papéis desempenhados na vida moderna. No outro grupo estão as mulheres que sofrem com a imposição e sobrecarga relacionada à maternidade, e em um terceiro, aquelas que decidem não ter filhos. Para além dessas possibilidades, é possível compreender que, embora a maternidade possa ser natural, a maternagem não é. Para Faria (2012), a maternagem é resultado de um trabalho relacional intenso e diário. Estar na condição de mãe é mais do que um determinismo biológico ou social, pois ainda que todas as mulheres saudáveis organicamente possam gestar, nem todas exercerão a maternagem (Baluta & Moreira, 2019).

Miranda e Martins (2007) definiram a maternagem como um conjunto de cuidados dispensados ao bebê com o objetivo de atender às suas necessidades tanto de “continência” como o ato mecânico de segurar o bebê no colo ou alimentá-lo, como também de suporte físico e emocional. Para isso será fundamental a sensibilidade da mãe, ou da pessoa que exerce a função materna, em decodificar e compreender as necessidades do bebê, estabelecendo uma rotina que favoreça o crescimento, desenvolvimento, e estabilidade emocional. A maternagem requer o acolhimento do bebê, de modo a tornar as atividades básicas, como cuidado e alimentação, momentos de encontro e afetividade. Esses momentos podem ser enriquecidos por meio do olhar, do toque terno, das cantigas e das palavras suaves, comportamentos que podem favorecer a vinculação diádica. Nesse exercício de maternagem, outras variáveis poderão influencias o desenvolvimento do vínculo como a idade, status socioeconômico, saúde emocional materna, condições físicas e funcionais (Santos et al., 2019). Essas variáveis podem associar a modelos explicativos do desenvolvimento do vínculo e da maternagem de forma mais abrangente que o suposto instinto materno (Badinter, 1985).

Nesse contexto, a interação mãe-bebê pode ser compreendida como um conjunto de comportamentos implicados diretamente na maternagem. Uma das características da maternagem é o reconhecimento das necessidades e habilidades do bebê nas diferentes fases do seu desenvolvimento. Essa percepção pode favorecer condições para que a díade esteja em sintonia, com respostas contingentes e assertivas, promovendo conforto e segurança. Para tanto, é necessário reconhecer também que o bebê possui um papel ativo na interação, devendo a mãe atentar-se às suas respostas/solicitações, reconhecendo a sua capacidade de percepção, imitação e comunicação, ou seja, de sua pré-adaptação para iniciar o conhecimento do meio no qual está inserido, em termos físicos e sociais (Seidl de Moura et al., 2004). Para os autores, as mães apresentam, em graus variados, a capacidade de reconhecer as necessidades, preferências e limites do bebê identificando os seus modos peculiares de comunicação, ajustando seu comportamento a esses aspectos. Mendes e Seidl de Moura (2013), reforçaram que as interações sociais estabelecidas com os principais cuidadores, em especial a mãe, possibilitam que o bebê modifique sua forma de conhecer e de se relacionar com o mundo.

Para caracterizar as interações mãe-bebê, a reciprocidade (que os parceiros respondam aos comportamentos um do outro) e a comunicação são dois elementos fundamentais (Ribas et al., 2007). A reciprocidade envolve a sincronia diádica, expressa por um elevado grau de sensibilidade materna em reconhecer as necessidades do bebê e atendê-las de forma assertiva. A comunicação pode acontecer de diferentes formas: contato olho a olho, sorrisos, vocalizações, posturas, gestos, expressões faciais, tom de voz, aproximação e afastamento corporal, brincadeiras e do choro. Mãe e bebê são sensíveis aos sinais um do outro e respondem a eles.

Para Mendes e Seidl de Moura (2013), as primeiras interações sociais possibilitam que o bebê modifique sua forma de conhecer e de se relacionar com o mundo. Mas, para que as interações com o bebê sejam prazerosas é preciso que a maternagem esteja sendo bem desenvolvida. Especialmente no caso do primeiro filho, a transição para a maternidade e a paternidade é uma nova fase de desenvolvimento e exige muitas adaptações (Nunes & Salomão, 2016). Todavia, as autoras relataram que processo semelhante pode ocorrer a partir do nascimento do segundo filho, que caracteriza uma nova fase na vida familiar, com mudanças para cada um dos membros da família.

Após o nascimento do primeiro ou do segundo filho, os primeiros meses são de reorganização familiar. As demandas tornam-se maiores e exigem dos pais reorganização da rotina para atender às exigências do bebê e, no caso de pais multíparos, conciliá-las com as necessidades dos outros filhos (Castoldi et al., 2014). Os pais também precisam se reorganizar emocionalmente, adaptando-se aos novos papéis, construindo o vínculo com o novo bebê e aprendendo a prática conjunta dos cuidados (Lopes et al., 2012).

A primiparidade, na visão de (Zanettini et al., 2019), traz consigo uma série de novidades em relação a descoberta da maternidade, independente da idade da mãe.  Envolve um processo comum em que as mães têm um sentimento de amor, que cresce dia a dia no convívio com o filho e mostram preocupações com os cuidados básicos e com a sua saúde.

Nesse contexto adaptativo, é possível que a paridade influencie a interação mãe-bebê. Muitas são as formas de analisar esta interação e a idade do bebê é um determinante para isso. Uma das possibilidades consiste em investigar possíveis preditores. No estudo de Figueiredo et al. (2009) os autores utilizaram a uma Escala de Apego (Bonding Scale – versão portuguesa) para investigar, com 315 mães logo após o parto, quais os como situava-se o vínculo diádico e quais seriam seus possíveis preditores. Os autores indicaram que níveis educacionais inferiores, sinais de depressão, desemprego e ausência de apoio do parceiro foram importantes preditores de emoções negativas em relação ao recém-nascido, indicando a importância de triagem e intervenção junto a mães que possam encontrar-se nessas condições.

Entre as diferentes possibilidades de pesquisa, Arpini et al. (2015) apresentaram um estudo sobre a interação mãe-bebê, considerando o relato materno. O estudo foi realizado com 11 mães com a aplicação de uma entrevista e um questionário de Indicadores Clínicos de Risco ao Desenvolvimento Infantil (IRDI) para avaliar informações sobre desenvolvimento infantil e a relação mãe-bebê. Os resultados apontaram que as mães conhecem características e preferências do seu bebê e avaliaram a sua relação com ele como prazerosa, remetendo-se a ele de forma positiva. Do ponto de vista materno, as questões de sensibilidade e responsividade são elementos importantes para análise da interação. Faltaram, porém, elementos que possibilitasse a análise dos comportamentos do bebê frente ao que as mães relataram como positivo.

Alexandre et al. (2016) analisaram a interação mãe-bebê inicial comparando 50 mães de bebês prematuros, separadas em grupos de multíparas e primíparas. Para avaliação, utilizaram a Escala de Apego (Costa et al., 2009). Entre os resultados, destacaram que a Capacidade e Preparação Geral para a função materna estava mais presente entre o grupo de primíparas. Também observaram uma associação positiva entre a capacidade geral de cuidar do bebê e o nível de apego.

Em um estudo de coorte, Yoshida et al. (2020) investigaram a associação entre os níveis de apego, com a via de nascimento e a paridade, obtidos a partir de autorrelato de mães aos doze meses de idade de seus filhos. Participaram do estudo 36.662 mães primíparas e 45.878 mães multíparas. Entre as características sociodemográficas foram observadas maior frequência de mães com a presença do parceiro, amamentação exclusiva e ausência de trabalho remunerado. Os resultados indicaram melhor qualidade de vínculo entre as multíparas, independente da via de nascimento. Os autores, porém, indicaram como limitação do estudo o fato de se pautarem apenas na percepção das mães, indicando a importância da observação do pesquisador.

A interação mãe-bebê também pode ser avaliada a partir de observação natural ou de filmagens. A filmagem é um recurso que possibilita a revisão da interação para análises mais acuradas. Possibilita, ainda, que os comportamentos do bebê e do adulto possam ser observados e analisados, o que pode ser considerado um avanço em termos de pesquisas restritas a autorrelato. O Face-to-face Still-face é um paradigma que tem sido utilizado para avaliar o efeito de um evento estressor sobre o comportamento interativo da díade mãe-bebê (Tronick et al., 1978). O protocolo sugere que durante a filmagem mãe e bebê fiquem face a face, sendo que o bebê fica em uma cadeirinha e a mãe permanece sentada de frente para ele. O período é dividido em três episódios, cada um com até três minutos de duração. No primeiro episódio, a mãe interage com o bebê como está habituada; no segundo ela interrompe a interação, de forma que, apesar de manter o contato visual, deixa de responder ao bebê e, no terceiro, ela retoma a interação. Não é permitido usar brinquedos nem retirar o bebê da cadeirinha (Chiodelli et al., 2020).

Seixas, Barbosa e Fuertes (2017) analisaram o efeito da paridade sobre padrões de interação apresentado pelos bebês durante os episódios de interação observados a partir do paradigma do Face-to-face Still-face, de 98 díades, filmadas aos três e aos nove meses. Os autores identificaram três padrões: Socialmente Positivo, Socialmente Negativo e Orientado para o autoconforto. Os resultados mostraram que aos três meses tanto os bebês de mães primíparas como multíparas apresentaram o Padrão Socialmente Positivo. O Padrão Orientado para o Autoconforto foi significativamente superior para bebês de mães primíparas, enquanto que o Padrão Socialmente Negativo foi superior para bebês de mães multíparas. Todavia, essas diferenças não foram significativas aos nove meses. Os autores destacaram a escassez de estudos que indiquem essa associação, o que agrega importância ao presente estudo.

Embora ainda incipiente, percebe-se uma maior participação dos homens nos cuidados dos filhos (Nunes & Salomão, 2016, Gradvohl et al., 2014). Para as autoras, observa-se um novo modelo de paternidade, presente nos cuidados educacionais e afetivos com os filhos. Embora a mãe seja indicada como uma das principais figuras de vinculação do bebê, pelas condições de responsividade e proximidade capazes de promover interações seguras e duráveis, sabe-se que o bebê pode estabelecer relações de vinculação secundárias, igualmente importantes para o seu desenvolvimento (Izidoro et al., 2020). Todavia, pesquisas com a participação materna ainda representam a maioria, considerando o lugar que a mãe ocupa como figura mais vinculada ao cuidado diário com o bebê e como principal participante nas interações iniciais (Andrade et al., 2014; Souza et al., 2014). A mãe, no seu papel de cuidadora, é considerada como importante fonte de estimulação sociocognitiva, comunicativa e afetiva.

No presente estudo optou-se pelas mães como pares diádicos considerando a maior disponibilidade de tempo, nesta fase de vida do bebê, em razão da licença maternidade ainda não ser um direito suficientemente estendido aos pais (Abade & Romanelli, 2018). Observou-se uma lacuna na literatura relacionado a estudos sobre a influência da paridade na interação mãe-bebê, nos meses iniciais dessa relação. O único estudo encontrado que utilizou o FFSF foi o de Seixas et al. (2017) apresentando dados que apontaram para o comportamento negativo mais frequente entre os bebês filhos de mães multíparas. Os meses iniciais constituem um período profícuo pois, uma vez identificados padrões negativos de interação, é possível planejar de intervenção junto às famílias, evitando o aumento ou a manutenção desses padrões no curso de desenvolvimento da criança. Nesse contexto, o objetivo do presente estudo foi descrever e comparar os comportamentos interativos maternos e dos bebês, de díades de mães multíparas e primíparas, utilizando o paradigma do FFSF.

A hipótese inicial deste estudo apoia-se na concepção de que os comportamentos parentais são aprendidos (Abade & Romanelli, 2018; Alzuguir & Nucci, 2015; Badinter, 1985). Dessa forma, espera-se que as mães multíparas apresentem mais comportamentos interativos positivos e menos negativos que as primíparas tanto no episódio 1 como no 3. Quanto ao comportamento interativo dos bebês, espera-se, também, que os filhos de mães multíparas apresentem mais comportamentos interativos negativos do que os filhos de primíparas, confirmando os achados de Seixas et. al. (2017). Quanto aos comportamentos de autorregulação/autoconforto, espera-se que os bebês, filhos de mães multíparas se autorregulem significativamente mais no episódio 2 do que os bebês de primíparas, demonstrando habituação a uma espera em função dos outros filhos. Também se espera que os bebês dos dois grupos mantenham os mesmos níveis, tanto de comportamentos interativos positivos como negativos, comparando os episódios 1 e 3.

Delineamento

Estudo descritivo, transversal, observacional, com método de análise quantitativo e qualitativo. Integra um projeto sobre interação mãe-bebê, aprovado pelo Comitê de Ética uma universidade pública do Mato Grosso do Sul (Dados ocultados para avaliação às cegas).

Participantes

Participaram do estudo 65 mães que tiverem seus filhos em um Hospital Universitário.  A amostra foi constituída por dois grupos, sendo o um formado por 34 mães primíparas (G1) e o segundo, por 31 mães multíparas (G2). As mães tinham idade entre 19 a 42 anos, com média de 31,06 anos em G1 e em G2 27,38 (superior para G1, p<0,05 conforme teste t). Quanto ao tempo de escolaridade, a composição foi semelhante, com aproximadamente 13 anos de estudo. A principal via de nascimento foi a cesárea (acima de 71% para ambos os grupos). A maioria das mães exercia trabalho remunerado (88,2% em G1 e 83,9% em G2). Entre as primíparas foi significativamente superior o percentual de mães que se encontravam com o parceiro (94,1% em G1, e 80,6% em G2, p<0,01). Quanto aos bebês, a distribuição foi semelhante quanto ao gênero (G1 – 52,9% Feminino e G2 48,4%) e idade gestacional (G1 38,48 semanas e G2 37,5 para G2).

Local e Procedimento

A coleta de dados ocorreu em uma clínica escola de uma universidade pública do Mato Grosso do Sul. As mães e seus bebês foram filmados em situação estruturada segundo o paradigma do Face-to-Face Still Face (Tronick et al., 1978), durante nove minutos, divididos em três episódios com até três minutos cada, sem o uso de brinquedos e outros objetos. No primeiro episódio (Play) e no terceiro episódio (Reunião) a mãe foi orientada a interagir com o seu bebê como está habituada a fazer. No segundo episódio (Still Face) a orientação foi para que a mãe mantivesse apenas contato visual com o bebê, cessando outras interações. A transição entre os episódios foi sinalizada pelo experimentador pela com um toque no vidro da sala de observação. Em casos de desconforto do bebê (choro por 15 segundos) o episódio é interrompido (no caso do episódio Play ou Reunião) ou alterado (no caso do Still Face, dando início à Reunião).

Análise de Dados

Os vídeos foram analisados em intervalos de cinco segundos, com registros de comportamentos da mãe e do bebê, distribuídos nas categorias propostas por Fuertes et al. (2009), sendo: Orientação Social Positiva (OSP) - comportamentos interativos que envolvem contato visual, toque, verbalizações positivas ou neutras; Orientação Social Negativa (OSN) - comportamentos interativos de protesto, expressão facial negativa, tentativas de escapar da cadeirinha, verbalizações negativas, e choro; e, Autorregulação do bebê (AUR) comportamentos do bebê que não envolvem a participação do adulto – tocar o corpo ou objetos, olhar para outra direção, esfregar mãos e/ou pés, sugar as mãos, e balançar-se.  Os vídeos foram analisados por dois diferentes pesquisadores, sendo realizada análise de correlação intraclasse para 30% da amostra (r=0,839), que demonstrou um bom nível de confiabilidade. Os registros dos comportamentos, a cada cinco segundos, foram organizados em tabelas, totalizando até 36 intervalos para cada episódio. As médias das categorias foram ponderadas, de acordo com o número de intervalos observados para cada bebê, A partir de então, realizou-se o Teste t de Student, para amostras independentes, com intervalo de confiança igual ou maior de 95%.

 

Resultados

A descrição e comparação das médias dos comportamentos interativos de G1 e G2 estão apresentadas na Tabela 1. Observa-se que não houve diferença significativa entre os comportamentos interativos maternos, de Orientação Social Positiva (OSP) ou Negativa (OSN) entre os grupos. Considerando o comportamento interativo dos bebês observou-se diferença significativa para as médias de G1 e G2 no episódio play (p=0,00) para os comportamentos de OSP, com médias superiores para G2. Nas demais categorias não houve diferenças significativas.

 

 

A qualidade da vinculação foi verificada a partir da análise intragrupos, conforme observa-se na Tabela 2. Para o Grupo 1 observou-se diferença significativa em OSP, indicando diminuição dos comportamentos do episódio play para o Still-Face e retomada da interação positiva no episódio de reunião. Para os comportamentos de OSN, houve aumento significativo do episódio Play para Still Face, aumentando ainda mais no episódio de reunião. Em autorregulação (AUR), observou-se aumento significativo do Episódio Play para o Still Face, com diminuição significativa na retomada da interação, reunião. Para os comportamentos maternos observou-se diminuição significativa do Episódio Play para reunião, tanto em OSP como em OSN. Os bebês do G2 diminuíram significativamente os comportamentos OSP do Episódio Play para o Still Face, e embora aumentem durante a reunião, são significativamente inferiores ao início da interação. Os comportamentos de OSN foram tiveram baixa ocorrência, sem diferenças significativas entre os episódios. Para os comportamentos observou-se aumento significativo durante o Still Face, retomando aos níveis iniciais durante a reunião. As mães diminuíram significativamente a emissão de OSP do episódio Play para reunião, porém, os comportamentos de ONS se mantiveram baixos, sem diferenças significativas.

 

 

Discussão

A comparação dos comportamentos interativos maternos e dos bebês, de díades de mães multíparas e primíparas utilizando o paradigma do FFSF indicou que os grupos se diferem quanto a emissão de comportamentos de Orientação Social Positiva dos bebês, com médias superiores para os bebês de mães multíparas no primeiro episódio. Nessa amostra, os dados indicaram que os bebês de mães que já passaram pela experiência de maternagem apresentaram mais comportamentos positivos na interação inicial. Não houve diferença quanto aos comportamentos interativos maternos, possivelmente pelo fato de que as mães tinham ciência da filmagem e tendiam a aprimorar seus comportamentos diante de qualquer audiência. A hipótese inicialmente levantada de que a multíparas, considerando que seriam mães mais atarefadas, apresentassem mais comportamentos negativos não foi confirmada.  A situação proposta acaba sendo diferente da real, onde ela está para o bebê, seguindo a instrução para interagir com ele. Quanto aos comportamentos dos bebês, os do G2 apresentaram significativamente mais comportamento OSP do que os bebês do G1. A hipótese, amparada nos resultados de Seixas et al., (2017) não foi confirmada, visto que em seu estudo os bebês de mães primíparas apresentaram significativamente mais OSP. Nesse sentido, os resultados observados para frequências superiores em OSP para o grupo de multíparas no episódio Play confirmaram os achados de estudos de autorrelatos sobre vinculação desenvolvidos por Alexandre et al. (2016) que indicaram maior capacidade de cuidado e qualidade de vinculação para mães multíparas e Yoshida et al. (2020) que confirmaram esses achados, independente da via de parto.

Os grupos diferiram em algumas variáveis sociodemográficas como o fato das mães do G2 serem mais jovens, trabalharem menos e apresentarem menor frequência da presença do parceiro. Seus bebês nasceram mais de parto natural e com menos idade gestacional. No presente estudo, o efeito dessas covariáveis não foi analisado, podendo ser aprofundado futuramente, principalmente com estudos que envolvam populações maiores, uma vez que Santos et al. (2019) indicaram que esses fatores influenciam o processo de maternagem e Figueiredo et al. (2009) indicaram que podem atuar como preditores para vinculação. Considerando que, para a população do presente estudo, as mães multíparas apresentaram significativamente mais comportamentos de Orientação Social Positiva no Episódio 1, sugere-se que a experiência vivenciada por essas mães com outros filhos possibilitou-lhes a aquisição de mais repertório, reforçando a ideia de que a maternagem é resultado de processos de aprendizagem (Abade & Romanelli, 2018; Alzuguir & Nucci, 2015; Badinter, 1985), capacitando-as para o cuidado dos filhos (Alexandre et al., 2016).

A análise dos comportamentos interativos dos grupos entre os episódios mostrou que as mães dos dois grupos diminuíram significativamente a frequência de OSP no episódio Reunião, indicando que tiveram mais dificuldade de interagir de forma positiva com seus filhos após o episódio não interativo. Elas também diminuíram os comportamentos de OSN no episódio Reunião, mas a mudança só foi significativa para as mães primíparas. Esperava-se que as mães conseguissem retomar as interações positivas no mesmo nível de episódio Play mas isso não aconteceu o que sugere que as mães pareceram não conseguir manter comportamentos positivos com o bebê por muito tempo, independente da paridade, o que pode ser um ponto para intervenção precoce junto à população de mães de bebês, conforme indicado por Chiodelli et al. (2020). O fato de mesmo as multíparas poderem ser beneficiadas por intervenções que favoreçam o aprendizado de comportamentos de maternagem indica que o fato de já terem passado pela experiência da maternidade não elimina a necessidade de constante aprendizado, frente às demandas de cuidado desse novo bebê.

Quanto aos comportamentos dos bebês observou-se para G1 apresentaram o efeito still face com relação aos comportamentos de OSP, diminuindo-os do episódio Play para o Still Face, e aumentando do Still Face para Reunião, em níveis próximos ao episódio Play Este efeito também foi observado em AUR, com o aumento do episódio Play para o Still Face e redução para o episódio de Reunião, com níveis semelhantes ao Play. Esses dados apontaram para a sensibilidade do bebê para o evento estressante e a sua capacidade de autorregular-se. Todavia, em OSN, observou-se o efeito carry over, quando o comportamento negativo aumenta de frequência do episódio Play para o Still Face, acentuando-se no episódio de reunião. Para Mesman et al. (2009) os bebês que apresentam esse efeito podem ser mais difíceis na interação experimental, exigindo mais habilidades de suas mães para acalmá-los. As hipóteses propostas foram parcialmente confirmadas, especificamente em relação aos comportamentos de OSP e AUR.

Os bebês do G2 diminuíram os comportamentos de OSP do episódio Play para o Still Face, mantendo a frequência no episódio de reunião (inferior ao início da interação). Os comportamentos de OSN permaneceram semelhantes entre os episódios. Os comportamentos AUR aumentaram de frequência do episódio Play para o Still Face, com redução para o episódio de Reunião (níveis semelhantes ao episódio Play). Para esse grupo as hipóteses foram parcialmente confirmadas. Diferente do que se esperava os bebês do G2 não retomaram a interação positiva no episódio de Reunião no mesmo nível do episódio Play. Uma hipótese pode ser a influência do comportamento materno, ao diminuir a frequência de OSP entre os episódios Play e Reunião. Todavia, confirmou-se a hipótese de que eram capazes de se autorregularem na ausência da mãe.  O baixo nível de comportamentos OSN e a pouca variação entre os episódios pode ser uma característica de bebês filhos de mães multíparas que aprenderam a se autorregular em condições que a mãe precisa interagir com o outro filho. Todavia, estudos com populações maiores poderão confirmar essa hipótese.

Quanto a qualidade da vinculação, é possível afirmar que tanto para G1 como para G2 verificou-se uma boa qualidade, visto que depois do episódio não interativo houve retomada da interação. Porém, a forma com a qual as mães responderam ao aumento de interações negativas de seus bebês pareceu indicar que as multíparas se apoiaram mais em comportamentos de orientação social positiva, confirmando as indicações de Mesman et al. (2009).

Uma vez que a literatura tem indicado a ocorrência de resultados mais significativos aos seis e nove meses, são limitações do presente estudo o fato de ser transversal, sem contemplar portanto essas idades. As mães do presente estudo, participantes de um programa de intervenção precoce, tiveram dificuldade de permanecer em acompanhamento após o quarto mês, em razão do retorno às atividades laborais. Estudos longitudinais poderão encontrar resultados mais robustos.

Porém, é importante frisar que não só as mães são capazes de desenvolver sentimentos positivos no convívio com o filho. Entretanto, isso passa a ser praticamente uma imposição quando, na própria legislação brasileira, a licença maternidade é de até 120 dias e de paternidade de cinco a 20 dias. Essa diferença de disponibilidade já estabelece prioritariamente diferentes papeis de gênero a serem mantidos em torno do que se percebe como maternidade e paternidade (Oliveira & Marques, 2020). Contrariamente, em famílias patrifocais, nas quais os pais são os responsáveis pelo cuidado dos filhos, é possível observar que a paternagem também é algo a ser aprendido “desmontando o mito de uma incompetência natural dos homens para cuidarem da prole de modo adequado” (Abade & Romanelli, 2018, p.1).

Nesse contexto, estudos futuros que considerem também a participação paterna poderão contribuir para aprofundamento das questões apresentadas. Poderão ainda investigar as associações entre os resultados observacionais e os dados sociodemográficos, obtidos por autorrelato. Figueiredo et al. (2009) já destacaram a importância de preditores para vinculação, indicando que a identificação precoce de dificuldades relacionadas ao vínculo pode contribuir para a oferta de intervenção precoce junto às famílias, favorecendo melhores condições de desenvolvimento e saúde familiar.

 

Considerações Finais

Os resultados sugerem que as mães multíparas e seus bebês apresentaram mais comportamentos de orientação social positiva, tanto na fase inicial do experimento como posterior ao episódio não interativo. Os dados sugerem que o desenvolvimento da maternagem, analisados no presente estudo a partir da observação de comportamentos interativos mãe-bebê, envolve um processo de aprendizagem, com impactos para comportamentos positivos significativamente maiores para filhos de mães multíparas. Porém, uma vez que ambos os grupos apresentaram, também, aumento significativo de comportamentos negativos na retomada da interação, subentende-se que os dois grupos poderiam beneficiar-se de intervenções focais. Sendo aprendidos, os comportamentos interativos positivos não seriam prerrogativas só para mães. Como apontado por Badinter (1985) é necessário a transposição da concepção de cuidado da prole como atividade exclusividade feminina. Na sociedade contemporânea compartilhar o cuidado dos filhos é essencial, não só para alívio da sobrecarga de trabalho feminina como frente a necessidade de se pensar diferentes formatos de família, o que sugere a análise dos comportamentos interativos paternos e, se preciso, a participação dos pais em programas de intervenção.

Embora o segundo episódio, não interativo, seja uma situação controlada experimentalmente, no cotidiano pais e mães também se ausentam de uma interação exclusiva, seja nas atividades de rotina ou na ausência para o trabalho. Dessa forma, preparar os pais para a retomada da interação, de forma segura e positiva, pode favorecer a autorregulação dos bebês. Educadores, terapeutas de casal e família podem contribuir com a orientação de pais/mães acerca da responsividade parental, que envolve observação e escuta sobre as necessidades do bebê e como responder adequadamente a elas. O comportamento de espera, por exemplo, gera condições para que o bebê manifeste suas necessidades de atenção e cuidado, sem que o adulto antecipe tudo o que acha necessário.

As experiências vividas em cada processo de maternagem/paternagem mostram-se singulares e passíveis de serem aprendidas, tanto pelas mães como por outros integrantes desse cenário. As características dos bebês poderão sinalizar como esse cuidado poderá ser sincronizado, em busca de maior frequência de comportamentos de orientação social positiva, importantíssimos para o vínculo, desenvolvimento infantil e saúde da família.

 

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Endereço para correspondência
Marcelo Gonçalves da Silva
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Veronica Aparecida Pereira
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Olga Maria Piazentin Rolim Rodrigues
E-mail: olgarolim29@gmail.com

Enviado em: 20/07/2020
1ª revisão em: 23/04/2021
Aceito em: 26/07/2021

 

 

1 Psicólogo Residente em Saúde Materno-Infantil no Hospital Universitário da UFGD.
2 Professora Associada da Universidade Federal da Grande Dourados; Docente do curso de graduação e Pós Graduação em Psicologia. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia.
3 Livre Docente – Unesp – Faculdade de Ciências – Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem.

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