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Vínculo

versão impressa ISSN 1806-2490

Vínculo vol.17 no.2 São Paulo jul./dez. 2020

https://doi.org/10.32467/issn.19982-1492v17n2p1-19 

Psicose na maternidade: um olhar psicanalítico a partir do filme "o estranho em mim"

 

Psychosis in motherhood: a psychoanalytic look from the film "the strange in me

 

Psicosis en maternidad: una mirada psicoanalítica de la película "das fremde in mir"

 

 

Maria Clara Guaragna SchornI; Daniela Centenaro LevandowskiII

IGraduada em Políticas Públicas (UFRGS) e Graduanda em Psicologia (PUCRS). clara.guaragna@gmail.com
IIPsicóloga (PUCRS), Mestre e Doutora em Psicologia do Desenvolvimento (UFRGS), com Pós-Doutorado em Psicologia (PUCRS). Professora Associada (Departamento de Psicologia, PPG Psicologia e Saúde, PPG Ciências da Saúde, UFCSPA). Bolsista Produtividade do CNPq. danielal@ufcspa.edu.br

 

 


RESUMO

No puerpério produz-se uma transformação na mulher, que agora passa a ser também mãe. Esse é um momento de ambivalência, de gozo, mas também de sofrimento, expresso através dos transtornos do puerpério. A pesquisa desenvolvida insere-se na temática da psicopatologia materna e utilizou como palco para a análise a personagem Rebecca, da produção audiovisual "O Estranho em mim" (2008), que retrata a psicose na maternidade. Objetivou-se articular a literatura psicanalítica sobre a psicose, a partir de autores como Freud, Klein e Winnicott, para compreender a condição da personagem, a partir de uma revisão de literatura narrativa sobre o tema. Verificou-se a potência da perspectiva psicanalítica para o entendimento da vivência psicótica da personagem, enfatizando a importância dos cuidados primordiais e das relações primitivas do sujeito. O estudo também apontou a necessidade de pesquisas acerca da psicose na maternidade.

Palavras-chave: psicopatologia materna; maternidade; transtornos do pós-parto; transtornos psicóticos; psicanálise.


ABSTRACT

In the postpartum a change takes place in the woman who now also becomes a mother. This is a moment of ambivalence, of joy, but also of suffering, expressed as postpartum disorders. The theme of the research developed is the maternal psychopathology. An analysis of Rebecca, character of the audiovisual production "The stranger in me" (2008), which is facing a psychosis in motherhood, was done. The objective of this study was to articulate the psychoanalytical literature about psychosis, in the light of authors such as Freud, Klein and Winnicott, to understand Rebecca condition, through a narrative literature review about this theme. The adequacy of psychoanalytical perspective to understand Rebecca's psychotic experience in motherhood was verified, emphasizing the importance of primordial care and primitive relationships. The study also pointed the need for further research on the psychosis in motherhood.

Key words: maternal psychopathology; motherhood; postpartum disorders; psychotic disorders; psychoanalysis.


RESUMEN

En el puerperio hay una transformación en la mujer, que ahora también se convierte en madre. Este es un momento de ambivalencia, de alegría, pero también de sufrimiento, expresado a través de los trastornos del puerperio. La investigación desarrollada sobre el tema de la psicopatología materna se ha utilizado como escenario para el análisis del personaje Rebecca, de la producción audiovisual "Das Fremde in mir"(2008), que retrata la psicosis en la maternidad. El objetivo era articular la literatura psicoanalítica sobre psicosis, de autores como Freud, Klein y Winnicott, para comprender la condición del personaje, a partir de una revisión de la literatura narrativa sobre ese tema. La utilidad de la perspectiva psicoanalítica se quedó evidente para la comprensión de la experiencia psicótica del personaje, enfatizando la importancia del cuidado primordial y de las relaciones primitivas del sujeto. El estudio también señaló la necesidad de investigación sobre la psicosis materna.

Palabras clave: psicopatología materna; maternidade; trastornos del pós-parto; trastornos psicóticos; psicoanálisis.


 

 

Introdução

A chegada de um bebê gera inúmeras mudanças para e nos membros do grupo familiar. Para a mulher, agora também mãe, o período pós-parto envolve uma "constelação da maternidade", nome dado a uma nova e peculiar organização psíquica (Stern, 1997). Por isso, o puerpério é um momento propenso a crises e a eventuais transtornos emocionais, acompanhado por mudanças hormonais, de humor e de identidade, pelo acréscimo de papéis sociais (a filha, esposa e profissional passa também a ser mãe). Para o bebê, esse também é um momento significativo e delicado de desenvolvimento psíquico e físico, de conhecer o mundo e ser moldado por essa experiência (Gerhardt, 2015).

Diante dessa nova organização requerida à mãe enquanto puérpera podem ocorrer alguns desacontecimentos nesse período. Nesse estudo, entende-se como desacontecimentos aquilo que é extraordinariamente comum, mas que não é contado na história (Brum, 2013), como a irrupção do adoecimento psíquico na maternidade. Esse adoecimento existe enquanto silêncio na narrativa do mundo social. Nessa perspectiva, Rueda e Murillo (2012), contrariamente à imagem que se tem da maternidade, indicam que o período posterior ao nascimento é, para as mulheres, de risco excepcionalmente elevado para o desenvolvimento de psicopatologias graves.

Nesse sentido, busca-se lançar o olhar para Rebecca, personagem do filme "O Estranho em mim" (Das Fremde Mir) lançado em 2008. A narrativa inicia com a preparação de um casal para a chegada do filho (Lukas). Apesar dessa preparação, assim que Lukas é colocado no peito de Rebecca após o parto, a mãe passa a se sentir totalmente estranha e desconectada desse filho: "é um bebê sem cheiro, com cheiro de nada". Estava posto um estranhamento. Nessa narrativa, desenrola-se uma trama de desacontecimentos de cunho psicopatológico que envolvem a dupla mãe-bebê.

Rebecca encontra-se diante de uma experiência de sofrimento e psicopatologia puerperal. É possível pensar que se trata de uma psicose puerperal grave, com características psicóticas e depressivas. Alcade (citado por Alt & Benetti, 2008) compreende que a psicose puerperal é uma síndrome que tem características da depressão, delírios e pensamentos da mãe sobre ferir o bebê ou a si mesma, o que, em situações extremas, pode levar ao infanticídio/filicídio/neonaticídio e até mesmo ao suicídio.

O presente artigo propõe-se a discutir a temática da psicopatologia materna, especificamente a psicose na maternidade, à luz da Psicanálise. O olhar do estudo está voltado para Rebecca, personagem do filme "O Estranho em mim". O objetivo do artigo é articular a literatura psicanalítica sobre a psicose, a partir de autores como Sigmund Freud, Melanie Klein e Donald Winnicott, para compreender a condição da personagem, a partir de uma revisão de literatura narrativa sobre o conceito de "psicose puerperal".

 

Método

Trata-se de um estudo de natureza qualitativa, que engloba uma revisão de literatura narrativa sobre o conceito de psicose na maternidade com base na Psicanálise. Esse tipo de revisão engloba a leitura de publicações amplas de um determinado assunto, selecionadas pelo ponto de vista teórico ou contextual, buscando a descrição e discussão do desenvolvimento ou do "estado da arte" de um determinado assunto (Rother, 2007).

A escolha desses autores se deu em função de seus focos de estudo. Freud, em sua obra, iniciou a reflexão sobre a psicose e os seus mecanismos de defesa. Já Klein aprofundou os estudos psicanalíticos sobre o funcionamento psíquico regressivo, com base na investigação de um momento primitivo da constituição do aparelho psíquico. A relação mãe-bebê, que é abordada tangencialmente em função da temática, será sustentada teoricamente pelas ideias de Winnicott, autor que também trouxe contribuições importantes para a clínica dos psicóticos ao abordar a relação desse acontecimento com as relações primordiais. Após a apresentação da trama do filme, seguem as análises da condição da personagem Rebecca, com base nos fundamentos desses teóricos.

 

Resultados e Discussão

O filme

O filme é do estilo drama e tem como foco as vivências assustadoras de uma mulher, Rebecca, que datam do nascimento de seu filho (Lukas). Na gestação, Rebecca, primípara, casada, com um relacionamento aparentemente estável, encontra-se estabelecendo diálogos e preparando-se para a chegada do novo membro da família. No entanto, após o nascimento do filho, algo se rompe nessa relação; Rebecca passa a não dormir e a ter crises de choro. Apresenta dificuldades para amamentar Lukas; não consegue nem ao menos pegá-lo no colo e olhá-lo nos olhos. Não se incomoda com o seu choro. Está desconectada.

A narrativa sugere que Rebecca apresenta delírios ou ideias persecutórias através de um incômodo quase irreal com o bebê, ficando isso bem evidente no momento que ela está na floricultura e se incomoda pelo fato de o bebê a estar olhando, precisando colocá-lo em outro cômodo para não ser olhada. É como se ela percebesse aquele olhar como um sendo o olhar de um agressor, um perseguidor na perspectiva kleiniana (Klein, 1991; Segal, 1975, p. 143). O longa metragem oferece alguns desacontecimentos para trazer essa relação: o esquecimento do bebê na rua e a dificuldade de escutar seu choro. É rico cinematograficamente quando, não por acaso, traz a sequência de cenas vividas pela personagem da seguinte forma: a sua tentativa de suicídio em um lago; a sua tentativa de filicídio ao tentar afogar Lukas na banheira; e a sua fuga sem rumo para uma mata, na qual ela se desorienta, despersonaliza e perde a capacidade de se comunicar pela fala, aparentando ser um corpo morto por um tempo indeterminado. Ao ser encontrada, é direcionada para o hospital, onde se descobre que se tratava de uma puérpera. Essas questões clarificam para a equipe e para os familiares de Rebecca o seu sofrimento, e os faz modificar seu olhar e cuidado para com ela. A mãe de Rebecca, que cuidava do marido doente no Canadá, retorna à Alemanha para cuidá-la, e o marido enxerga que a esposa está em sofrimento. Rebecca é internada em uma clínica de saúde mental e inicia um tratamento psicoterápico, assim como Lukas.

Rebecca demonstra um intenso sofrimento psíquico. Apesar da gravidade dessas manifestações, elas ocorreram de forma silenciosa, sem que os outros percebessem o seu sofrimento. Para além da maternidade, Rebecca retrata uma vivência muito solitária no filme: seu pai já é falecido, sua mãe está fora do país e Julien, seu companheiro e pai de Lukas, trabalha dois turnos. Parece que não só Rebecca está desconectada do filho, mas também seus familiares se apresentam desconectados dela.

Analisando a personagem Rebecca

Para compreender a condição da personagem Rebecca, são apresentados alguns conceitos e pressupostos teóricos freudianos, kleinianos e winnicottianos empregados para analisar os acontecimentos do filme.

Cuidados primordiais e a relação com a psicose na perspectiva de Winnicott

O bebê possui um "ego frágil" (p. 31), enquanto "a mãe é uma pessoa sofisticada" (Winnicott, 2000, p. 29). Nos primeiros estágios do desenvolvimento o bebê encontra-se em um "relacionamento simbiótico" (ibidem, p. 399) com a mãe e é totalmente dependente dela, necessitando que essa atue como um ego auxiliar nessa relação, identificando-se e colocando-se no lugar dele. Existe aqui um estado psíquico de sensibilidade exacerbada da mãe, denominado de "preocupação materna primária" (ibidem, p. 401). Essa identificação e adaptação sensível e ativa às necessidades do bebê compreendem o conceito de mãe suficientemente boa (Winnicott, 1975) e tem o objetivo de que as comunicações da dupla sejam sincrônicas às necessidades do bebê.

As necessidades do bebê, nesse momento, são necessidades corporais, que, ao longo do desenvolvimento, gradualmente tornam-se necessidades de ego (Winnicott, 2002). Essas necessidades são atravessadas por terríveis ansiedades, de forma que, quando os bebês são deixados a sós por muito tempo, passam por experiências de desintegração que podem ser descritas como "ser feito em pedaços, cair para sempre, morrer e morrer e morrer, perder todos os vestígios de esperança e renovação de contatos" (Winnicott, 2002, p. 76).

As falhas e frustrações nessa fase primitiva de dependência absoluta não são sentidas como falhas da mãe, em função da indiferenciação mãe-bebê, mas sim como ameaças ao eu do bebê (Winnicott, 2002). Quando acontece uma experiência satisfatória, esses sentimentos terríveis positivam-se, de forma que, ser feito aos pedaços, por exemplo, torna-se então uma sensação de repouso e relaxamento; morrer passa a ser a consciência de estar vivo.

Como se constata a partir do exposto, para o desenvolvimento emocional adequado e a maturação do sujeito se faz necessário um ambiente facilitador. Winnicott (2002) propõe que o desenvolvimento se trata de uma questão de integração tanto na maturação dos estágios emocionais quanto ao longo da vida. Existem três funções principais da mãe ou cuidador: segurar (holding), manipular (handling) e apresentar o objeto1. Com a dependência satisfeita enquanto bebê, esse tornase capaz de reagir posteriormente às exigências da mãe ou do meio.

Conforme Winnicott (1978b), no entanto, as mães precisam estar saudáveis para que possam entrar em sintonia com seus bebês e estabelecer comunicações com eles, ou melhor, identificações que possam ajudá-las a responder aos sinais de seus filhos. Caso contrário, não terão as condições necessárias para o estabelecimento desse estado emocional especial, que emerge a partir da gestação e do nascimento do bebê. Na visão de Winnicott (1990), as dificuldades maternas, e especialmente a psicopatologia materna, geram para o bebê uma experiência de desintegração, "o ser feito em pedaços" (p. 76). Como forma de defesa, buscando fugir dessa experiência que o sofrimento e o distanciamento maternos provocam, o bebê recolhe-se em si mesmo ou desenvolve um "falso self', que surge com a finalidade de agradar a mãe. Para tanto, o bebê desenvolve a capacidade de reconhecer o desejo da mãe e, assim, se submeter a ele.

Durante o período puerperal, ocorre uma regressão por parte da mãe; Winnicott (1990), explica que isso acontece de modo normal, pois a mãe já foi um bebê, de forma que, com ela, traz lembranças dessa vivência, o que pode ajudá-la ou atrapalhá-la em sua própria experiência como mãe. Quando essa regressão propicia a identificação com o bebê, é extremamente útil para os primeiros cuidados efetuados à criança (Gutierrez, Castro & Pont, 2011). De fato, é necessário que exista um outro para nomear, reconhecer e estimular. Se, para Winnicott "o olhar da mãe é o espelho do bebê" (p. 185, 1975), como ficará a imagem de Lukas, o bebê de Rebecca? A personagem parece um espelho que reflete a sua própria vivência de mãe enquanto bebê de sua mãe, em um movimento regressivo e adoecido. Verifica-se que a personagem é atravessada por uma vivência de assincronia com o filho e com o mundo ao longo da narrativa, demonstrando uma dificuldade nesse processo regressivo e na identificação do que ainda é irrepresentável para Lukas (Winnicott, 1978b).

É preciso considerar também que a regressão de Rebecca se dá diante da ausência da própria mãe. Um dos poucos momentos durante o filme em que Rebecca se emociona e sorri é quando fala com a mãe pela webcam; essa percebe que a filha não está bem. Traz a marca da sua vivência enquanto mãe, dizendo para a filha que "no começo é muito difícil" e pede para o genro, Julien, que ele não deixe Rebecca "muito sozinha". Essas falas levam o telespectador a entender que a vivência da mãe de Rebecca enquanto mãe também não parece ter sido fácil.

Da mesma forma, quando Rebecca está internada no hospital, a única frase que fala para a enfermeira, diante do seu mutismo, é a de que deseja ver sua mãe. A mãe retorna a Alemanha imediatamente, assim que Rebecca é encontrada na mata. Rebecca é internada na clínica de saúde mental e a mãe consegue ficar alguns dias cuidando dela. Mãe e filha ficam juntas; não conversam muito, estão apenas juntas, em uma escuta silenciosa e sincrônica. Era necessário ser cuidada pela mãe nesse movimento regressivo, para que pudesse cuidar de Lukas. Existe a necessidade de um outro para reconhecer e nomear a sua vivência enquanto mãe de Lukas. Bydlowski (2004) acrescenta que a maternidade, embora seja uma vivência predominantemente individual, em parte também necessita de um outro, no caso, de outras mulheres, para que a mãe possa efetivar a identificação com uma imagem materna positiva.

O bebê parece um completo estranho a Rebecca desde o momento em que foi colocado em seu peito após o parto. A cena mostra uma mãe que tenta dar sentido àquele bebê, pois não o reconhece como seu. O diálogo de Julien com Rebecca elucida esse não reconhecimento e estranheza: "Você acha que ele se parece com um de nós?", pergunta Julien. "Não sei", responde Rebecca, que percebe Lukas como um "bebê sem cheiro, com cheiro de nada".

No longa metragem não se percebe o estabelecimento de um "relacionamento simbiótico" e de "preocupação materna primária" como proposto por Winnicott (2000, p. 399) de Rebecca com Lukas. A personagem encontra-se diante da estranheza (e angústia) com a chegada de um membro novo em busca de filiação. Sobre esse estranhamento, é possível recorrer ao texto freudiano de 1919, Das Unheimliche. Esse texto toca em algo "familiar" e que, por algum motivo "secreto", não pode ser identificado como tal (Iannini & Tavares, 2019). No filme, Rebecca encontra algo muito estranho e aterrorizante em seu bebê; o que é íntimo, torna-se infamiliar (Freud, 2019). Nesse sentido, conforme Freud, o que um dia foi familiar e conhecido, pode tornar-se desconhecido e inquietante pela via do recalque.

Entretanto, nem tudo que é assustador ou sinistro aciona em nós o sentimento de estranho. O sentimento de estranhamento é acionado quando há subversão do recalque, fazendo com que aquilo que deveria ter ficado recalcado, secreto e oculto, venha à tona (Freud, 2019) Essa estranheza provém de uma fase ou período muito primitivo, no qual o ego ainda não distinguia realidade interna e realidade externa, eu e outro (Martini & Junior, 2010). A vivência de Rebecca foi acessada a partir da regressão materna, mostrando, no cuidado com o seu bebê, a história de como foi cuidada, suas vivências enquanto bebê, o primeiro vínculo que (re)monta a vivência atual através da psicopatologia.

Nesse sentido, percebe-se um movimento regressivo adoecido na vivência de Rebecca, que parece trazer a necessidade de compreensão das fases iniciais do desenvolvimento humano. Winnicott acrescenta muito à reflexão sobre a clínica dos psicóticos, abordando as relações primordiais, assim como Klein. O paciente psicótico que Winnicott apresenta tem a origem do seu adoecimento no desenvolvimento inicial, especialmente antes dos 6 meses. Esse paciente não contou com um ambiente que facilitasse o processo de integração, de personalização e o estabelecimento de relações objetais. Na adultez, regride até um período de dependência quase que absoluta (Winnicott, 2002).

O bebê no início da vida encontra-se em pedaços, de forma que, através dos cuidados infantis e da manipulação de experiências pulsionais, o adulto integra as partes do bebê, facilitando a chamada integração primária. No psicótico, existe uma falta da integração dos pedaços do sujeito enquanto bebê, que, então, vive a desintegração na adultez, bem como despersonalização e desrealização, perdendo, assim, o contato com a realidade (Winnicott, 1983). A relação primária com a realidade externa faz também todo o sentido para pensar o problema da psicose, pois o autor entende que existe uma chamada falta essencial de relação verdadeira com a realidade (Winnicott, 1978a). No par bebê-seio da mãe, o bebê tem ímpetos pulsionais e ideias predatórias, enquanto a mãe tem a ideia de ser atacada por um bebê faminto. Esses dois entram em relação até que vivam uma experiência juntos. Se existe uma mãe suficientemente boa, experiências de constância, holding e handling, o frágil bebê vive como uma ilusão e/ou alucinação sua (isto é, evoca uma realidade que é possivelmente disponível); se a experiência é assincrônica, a realidade externa se sobrepõe, invadindo o psiquismo do bebê, que necessita conhecer o mundo em pequenas doses.

Com base nesses pressupostos, pode-se pensar que, na história de Rebecca, tenha ocorrido uma regressão quase à fase da dependência absoluta, trazendo à tona, na dificuldade de ser uma mãe suficientemente boa, a sua história enquanto bebê não integrado e adulto desintegrado. Bebê para o qual a realidade externa se impôs diante de uma experiência assincrônica com a mãe, e um adulto que vive uma falta de relação com a realidade externa diante da maternidade.

Freud: A psicose como expulsão do que é intolerável ao Eu

Para a Psicanálise, existem três principais estruturas clínicas: neurótica, perversa e psicótica. Segundo Barbosa (2013), o que é chamado de psicose puerperal para a Medicina é compreendido, na Psicanálise, como uma psicose desencadeada durante o puerpério. Nos primórdios da Psicanálise, Freud não se ateve a estudar profundamente a psicose, ocupando-se prioritariamente da neurose. No entanto, em 1924, posteriormente ao caso Schreber (1911), iniciou a reflexão sobre essa estrutura clínica, compreendendo a psicose como uma tentativa de cura ou de reconstrução (Freud, 2018a)

Segundo a metapsicologia psicanalítica, o Eu é uma posição intermediária entre o mundo exterior e o Isso e anseia servir "a todos os senhores" a um só tempo através da formação de compromisso. Na psicose acontece um conflito entre o Eu e o mundo exterior, de forma que ocorre um afastamento do Eu em relação a uma parte da realidade, a serviço do Isso (Freud, 2018a). Ocorre a recusa e a substituição da realidade em função do predomínio do Isso. Após a saída do Eu da realidade, secundariamente existe a busca por reparação do prejuízo e restabelecimento da relação com a realidade às custas da não limitação do Isso (Freud, 2018b). Desse modo, cria-se uma realidade que não mais traz o embate da realidade abandonada e sim segue o princípio do prazer próprio do inconsciente. O conflito e a ruptura com o mundo exterior ocorrem em função de um grave e intolerável impedimento do desejo por parte da realidade (Versagung). Assim, a psicose envolve a frustração de desejos da infância que nunca foram vencidos e estão enraizados (Freud, 2018a).

Na psicose acontece então uma rejeição da realidade (Verwerfung), que é uma forma de negação (Freud, 2018c). Um fracasso de funcionamento do Ego diante de todas as exigências, uma doença de defesa, que é a expressão máxima da tentativa que o Eu faz para se preservar, para se livrar de uma representação inassimilável, que, à maneira de um corpo estranho, ameaça à integridade do sujeito psicótico (Zolty, 2001).

Essa perspectiva faz pensar na cena em que Rebecca não reconhece Lukas como seu filho, estranhando-o completamente, entendendo-o como um "bebê sem cheiro". Pode-se arriscar dizer: sem cheiro dela. Diante do estranhamento de Rebecca, o Eu busca expulsar a ideia que se tornou intolerável, separando-se então da realidade externa da qual essa ideia é a imagem psíquica (Zolty, 2001). Essa proposta de Freud acerca da psicose faz pensar sobre a cena que Rebecca busca terminar com a sua a vida ou com a vida de Lukas, obedecendo e fantasiando uma nova realidade que segue o princípio do prazer, na qual ela não mais existiria ou então ele não mais existiria, o que finalizaria o conflito existente naquele vínculo: o estranho em mim, que sou eu e não sou eu, que fala da Rebecca e não fala, fala de outro, a experiência de Rebecca com sua mãe. O delírio surge aqui como um remendo onde havia surgido uma fissura na relação do Eu com o mundo exterior (Freud, 2018a) a relação mãe-bebê, a vivência de Rebecca enquanto bebê da sua mãe. Verifica-se aqui a psicose como tentativa de cura ou de reconstrução (Freud, 2018a).

Klein: Psicose, cisão e projeção do que é insuportável ao Ego

Melanie Klein (1991), psicanalista austríaca, propôs um novo olhar para a psicose, acreditando que se tratava de uma regressão aos estados infantis de desintegração. No desenvolvimento normal, os estados de desintegração que o bebê vive são transitórios.

Para Klein (1991; Segal, 1975), o ego imaturo do bebê é exposto à polaridade de instintos inatos, a pulsão de vida e a pulsão de morte. Da pulsão de morte provém uma angústia, que é sentida pelo bebê como um medo de aniquilamento (morte), que toma a forma de perseguição (Klein, 1991). Segundo Hanna Segal (1975), para Klein, esse fenômeno consiste em parte numa projeção (1) e em parte na conversão do instinto de morte em agressividade (2). O ego se divide e projeta (1) para fora essa sua parte do instinto de morte, que se torna agressividade no objeto externo original (a mãe/seio). Assim, o seio é sentido como contendo parte do instinto de morte do bebê, portanto, como mau, ameaçador para o ego, o que origina o sentimento de perseguição. O medo original do instinto de morte é transformado em medo do perseguidor pelo mecanismo de projeção. A projeção do instinto de morte no seio é sentida como dividindo-o em vários pedaços, de forma que o ego é confrontado como uma multidão de perseguidores. A outra parte do instinto de morte (2) permanece no self e é convertida em agressividade dirigida contra os perseguidores, contra o seio mal e ameaçador.

Nesse contexto de projeção e permanência da pulsão de morte no self, mas convertida em agressividade, também é estabelecida uma relação com o objeto ideal. A pulsão de morte é projetada para evitar a angústia, e a libido é também projetada com a finalidade de criar um objeto para satisfazer o esforço primitivo do ego de preservar a vida. Assim, o ego projeta para fora parte da libido e o que permanece nele é usado para estabelecer uma relação libidinal com esse objeto ideal. Nesse sentido, o ego passa a ter uma relação possível com o objeto primário, que é o seio, dividido em dois objetos: o seio ideal e o seio persecutório. O objetivo do bebê é tentar manter dentro e identificar-se com o objeto ideal, que ele percebe como algo protetor e que lhe dá vida, além de controlar e manter afastado do bom o objeto mal e aquelas partes do self que contêm a pulsão de morte (Klein, 1991; Segal, 1975), O mecanismo de defesa é acionado em função da angústia: projeção do ruim (ou do bom, para manter a salvo o que é bom) e introjeção do bom (ou do ruim, para controlá-lo). O característico é a cisão, que tem a finalidade de manter os objetos perseguidores e ideais afastados um do outro, bem com sob controle. Essa cisão está ligada à idealização, que busca manter o objeto distante do perseguido e do mal e exagerar os aspectos bons do seio, justamente em função do medo do perseguidor (Klein, 1991). Aqui, portanto, ainda não há integração do objeto.

Trata-se aqui da posição esquizo-paranóide, um modo de funcionamento psíquico que faz parte do desenvolvimento normal. Contudo, para que essa posição dê lugar à próxima etapa do desenvolvimento (posição depressiva), é importante que haja predominância das experiências boas sobre as más2. A patologia se dá quando as experiencias más predominam sobre as boas, de forma que a experiência da realidade é percebida como perseguição. Tal fracasso leva a uma regressão. Em relação a isso, Klein (1991) propõe que "surgem na primeira infância ansiedades, características das psicoses, que forçam o ego a desenvolver mecanismos de defesa específicos. É nesse período que se encontram os pontos de fixação de todos os distúrbios psicóticos" (p. 20).

Quando os mecanismos de defesa (projeção, introjeção, cisão, idealização, negação e identificação projetiva e introjetiva) não conseguem dominar a ansiedade, essa invade o ego e a desintegração pode ocorrer como uma medida defensiva: a psicose. O ego se fragmenta e se divide (splits) em pequenos pedaços, a fim de evitar a experiência de ansiedade. É como se, para evitar a ansiedade, o ego fizesse o máximo para não existir, que é uma tentativa que dá origem a uma ansiedade aguda específica, a de se desintegrar em pedaços e se tornar atomizado. A divisão mantém os objetos perseguidores e ideais afastados uns dos outros, de forma que os pedaços que surgem da defesa se relacionem ou com o seio bom ou com o seio mau, isto é, ou com o seio idealizado ou com o seio perseguidor (Klein, 1991; Segal, 1975). A divisão é combinada com a identificação projetiva, de forma que as partes fragmentadas do ego que se projetam no objeto resultam no que Klein chama de criação de objetos bizarros, experimentados como carregados de grande hostilidade (Segal, 1975). O objeto aqui é percebido como dividido em fragmentos diminutos; esses, por sua vez, contêm uma parte projetada do self, os objetos bizarros.

A teorização kleiniana faz pensar que Rebecca teve uma vivência de experiências prevalentemente más na sua experiência da posição esquizo-paranóide enquanto bebê, regredindo até sua infância. Na adultez, seus mecanismos de defesa mostraram-se falhos diante da angústia gerada pela pulsão de morte, de forma que se desintegrou e psicotizou, dividindo seu ego em pequenos pedaços não integrados. Esses pedaços Rebecca projetou no bebê, projetando na verdade aquilo que não suportou: a sua hostilidade. O bebê, por sua vez, foi percebido, através da identificação projetiva (de partes do objeto), como carregado de grande hostilidade, como um objeto mau, gerando assim em Rebecca a experiência de perseguição e a consequente necessidade fazê-lo sumir, de não mais existir, de morrer.

A personagem vivencia uma experiência de dissociação e despersonalização durante o seu episódio psicótico3, quando, em determinada madrugada, sai de si e, apática, pega um trem e aporta em uma mata. Nela esquece-se, não sabe mais quem é, como se sumisse do mundo. Perde-se no tempo e no espaço. Sobre essa apatia, Klein (1991) a entende como uma ansiedade latente: "o sentimento de estar desintegrado, de ser capaz de vivenciar as emoções, é, na realidade, o equivalente da ansiedade" (p. 40).

Alt e Benetti (2008), complementando essa compreensão, mencionam que, na psicose e na depressão pós-parto, existe uma revivência de uma experiência conflituosa anterior da mãe com a sua própria mãe, que contribui para uma identidade materna difusa e enfraquecida. As dificuldades, que eram vividas de forma latente e intrapsíquica, tornam-se manifestas e interpessoais, e o bebê se torna a representação da "efígie viva de objetos internos antes recalcados ou clivados" (Cramer & Espasa, 1993, p. 30). Alt e Benetti (2008, p.391) descrevem a dinâmica inconsciente dessa atuação:

"A dinâmica inconsciente do infanticídio resulta da projeção, no bebê, de uma parte do ego que está arruinada por um objeto interno muito ameaçador. A morte da criança significa eliminar o terror, a dor, o sofrimento e, ao mesmo tempo, o objeto terrorífico".

 

Considerações Finais

O presente trabalho teve por objetivo contribuir para a discussão sobre a psicose na maternidade, a partir da articulação da literatura psicanalítica, destacando especialmente as contribuições de Freud, Klein e Winnicott, para a compreensão da personagem central da produção audiovisual "O Estranho em mim", denominada Rebecca.

Percebe-se que a literatura psicanalítica se apresentou potente para o entendimento da vivência psicótica de Rebecca na maternidade, enfatizando a importância dos cuidados primordiais e das relações primitivas, bem como demonstrando as características do funcionamento psicótico, com destaque para os mecanismos de defesa empregados por ela. Nessa direção, o destaque foi dado para os mecanismos de defesa mais primitivos, que são preferencialmente utilizados nas experiências de psicose, como cisão e projeção (Klein, 1991), negação (Freud, 2018c) do que é intolerável, no caso, a sua hostilidade (Klein, 1991), que é projetada no bebê, e/ou uma representação inassimilável que é então negada (Freud, 2018c), evidente no bebê sujeito, o bebê sem cheiro de Rebecca.

Para estudos futuros, sugere-se entrevistar mulheres que vivenciam a psicose na maternidade, visto que estas fazem parte ativa do processo de sentido do adoecimento e de subjetivação. Ser mulher e mãe está inserido em um contexto social, de forma que se faz necessário compreender melhor as narrativas dessas mulheres enquanto sujeitos que foram bebês e hoje são mães, podendo assim contribuir para melhorar o diagnóstico, amenizar o sofrimento e promover a saúde da díade mãe-bebê e da família como um todo.

 

Notas

1. Holding envolve especialmente o holding físico do lactente, que o protege da agressão fisiológica. Envolve a sensibilidade cutânea, auditiva, visual, de temperatura. Inclui também a forma de segurar o bebê, transmitindo segurança. Esse processo favorece a constituição do bebê como unidade (Winnicott, 1983). Handling corresponde ao manuseio corporal durantes as atividades de troca do bebê, que favorecem o fenômeno da personalização ou localização do self no próprio corpo (Winnicott, 1978a). A apresentação do objeto é fenômeno que traz a possibilidade de o bebê criar o mundo a partir da apresentação desse mundo em pequenas doses, favorecendo a experiência de self num tempo e espaço compartilhados (Winnicott, 1978a).

2. Fatores internos e externos contribuem para isso. Nas experiências boas acontece uma aproximação dos objetos perseguidores e ideais, de forma que ficam mais bem preparados para a integração. Nelas, o splitting (cisão) diminui quando o ego se sente mais forte e com maior fluxo de libido. O ego passa a ter maior tolerância para com a sua agressividade e a senti-la como parte de si mesmo, não a projetando nos seus objetos. Desse modo, o ego se prepara para integrar os objetos e para se integrar. Através da diminuição dos mecanismos projetivos, acontece uma diferenciação crescente entre o que é eu e o que é objeto (Klein, 1991; Segal, 1975).

3. Winnicott entende que o psicótico tem a origem do seu adoecimento no desenvolvimento infantil, diante de um ambiente insuficiente para as suas fragilidades de ego. Trata-se de alguém que não teve um ambiente que facilitasse o processo de integração, de personalização e de estabelecimento de relações objetais, portanto, apresenta sentimentos de desintegração, despersonalização e desrealização, perdendo, assim, o contato com a realidade (Winnicott, 1983).

 

Referências

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